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Gênero e desejo: a inteligência estraga a mulher?

Gender and desire: does intelligence damage women?

Resumos

Neste artigo, eu analiso a idéia de que a inteligência é um atributo erótico do homem, enquanto a beleza é o que torna uma mulher atraente. Eu inicio por Immanuel Kant, filósofo do século XVIII, segundo o qual uma mulher inteligente pode despertar a admiração de um homem, mas não desejo e amor. Mais do que isso, uma mulher inteligente, mesmo que bela, perderia seu poder sobre os homens, pois a inteligência arruinaria a atratividade feminina. Eu mostro que essa visão antiga ainda está em voga atualmente. Muitos autores defendem a visão de que o que torna uma mulher atraente para um homem é a beleza, a inteligência sendo negativa ou indiferente. Alguns teóricos inclusive atribuem esse fato a uma essência natural do ser humano. Eu contesto essa visão, mostrando que a beleza tem um aspecto cultural e que não podemos falar de uma essência não-histórica do ser humano.

gênero; desejo; beleza; inteligência


In this paper I analyze the idea that intelligence is a male erotic attribute, while beauty is what makes woman attractive. I begin by Immanuel Kant, an 18th Century philosopher, according to whom an intelligent woman may have the admiration of men, but not their desire. More than that, an intelligent, yet beautiful woman would lose her power over men, because intelligence can ruin woman attractiveness. I show that this apparently old vision is still alive today. Many authors nowadays support the view that what makes a woman's attractive for man is beauty, intelligence being negative or indifferent for attraction. Some even assign this idea to a natural essence of man and woman. I will challenge this view, showing that beauty has a cultural aspect and that we cannot appeal to a non-historical essence of human being.

gender; desire; beauty; intelligence


ENSAIO

Gênero e desejo: a inteligência estraga a mulher?

Gender and desire: does intelligence damage women?

Maria de Lourdes Borges

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

Neste artigo, eu analiso a idéia de que a inteligência é um atributo erótico do homem, enquanto a beleza é o que torna uma mulher atraente. Eu inicio por Immanuel Kant, filósofo do século XVIII, segundo o qual uma mulher inteligente pode despertar a admiração de um homem, mas não desejo e amor. Mais do que isso, uma mulher inteligente, mesmo que bela, perderia seu poder sobre os homens, pois a inteligência arruinaria a atratividade feminina. Eu mostro que essa visão antiga ainda está em voga atualmente. Muitos autores defendem a visão de que o que torna uma mulher atraente para um homem é a beleza, a inteligência sendo negativa ou indiferente. Alguns teóricos inclusive atribuem esse fato a uma essência natural do ser humano. Eu contesto essa visão, mostrando que a beleza tem um aspecto cultural e que não podemos falar de uma essência não-histórica do ser humano.

Palavras-chave: gênero, desejo, beleza, inteligência.

ABSTRACT

In this paper I analyze the idea that intelligence is a male erotic attribute, while beauty is what makes woman attractive. I begin by Immanuel Kant, an 18th Century philosopher, according to whom an intelligent woman may have the admiration of men, but not their desire. More than that, an intelligent, yet beautiful woman would lose her power over men, because intelligence can ruin woman attractiveness. I show that this apparently old vision is still alive today. Many authors nowadays support the view that what makes a woman's attractive for man is beauty, intelligence being negative or indifferent for attraction. Some even assign this idea to a natural essence of man and woman. I will challenge this view, showing that beauty has a cultural aspect and that we cannot appeal to a non-historical essence of human being.

Key Words: gender, desire, beauty, intelligence.

I heard an old religious man

But yesternight declare

That he had found a text to prove

That only God, my dear, Could love you for yourself alone

And not your yellow hair.

W. B. Yeats

Seria a inteligência um atributo masculino? Segundo o filósofo Immanuel Kant, a mulher poderia chegar a ter inteligência, contudo, com isso ela despertaria apenas respeito do homem, mas não mais seu amor e perderia todo o poder que ela pudesse ter sobre o sexo forte. Tal é dito no texto Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. 1 1 KANT, 2000. O esforço na ciência é sublime, pesado, portanto é masculino; o sexo feminino é belo, leve, ele apraz imediatamente. O enorme esforço para entender Descartes, Leibniz, as equações de Newton, desperta o sentimento do sublime, não do belo, por isso é contrário à natureza feminina. As mulheres poderiam se deixar levar por essa dura empreitada, contudo perderiam aquilo que nelas agrada imediatamente, sua beleza e leveza:

O estudo laborioso ou a especulação penosa, mesmo que uma mulher nisso se destaque, sufocam os traços que são próprios a seu sexo; e não obstante dela façam, por sua singularidade, objeto de uma fria admiração, ao mesmo tempo, enfraquecem os estímulos por meio dos quais exerce seu grande poder sobre o outro sexo.2 2 KANT, 2000, p. 49.

Kant vai se referir a algumas mulheres do século XVIII que ousaram adentrar em campos do conhecimento considerados masculinos: Anne Dacier (16541720) comentou e traduziu clássicos grego-romanos e Gabrielle Emilie (17041749), marquesa de Châtelet intimamente ligada a Voltaire, traduziu e comentou os Principia de Newton:

A uma mulher que tenha a cabeça entulhada de grego, como a senhora Dacier, ou que trave profundas discussões sobre mecânica, como a Marquesa de Châtelet, só pode mesmo faltar uma barba, pois com esta talvez consigam exprimir melhor o ar de profundidade a que aspiram.3 3 KANT, 2000, p. 49.

Para amar alguém, precisamos nos sentir superior a tal pessoa. Como diz Kant na reflexão 14 do Nachlass: "Nós precisamos mais ser honrados do que amados, mas nós também precisamos algo para amar com que não estejamos em rivalidade. Então amamos pássaros, cachorros ou uma pessoa jovem, inconstante e querida".4 4 KANT, 1923, p. 649.

A igualdade inspira respeito e amizade, o amor necessita de desigualdade. Kant é categórico sobre a impossibilidade de se amar um superior leia-se, de um homem amar uma mulher que considere intelectualmente superior a si mesmo: "Quando se aprecia demais alguém, torna-se impossível amá-lo. Embora suscite admiração, está por demais acima de nós para que ousemos nos aproximar dele com a intimidade do amor".5 5 KANT, 2000, p. 25.

Ao dizer que a mulher relaciona-se ao belo, Kant não nega a relevância do seu papel na sociedade, nem a reduz a um papel doméstico. Ela deve freqüentar os salões e deixar os homens mais leves com sua presença, servindo de contraponto à seriedade dos assuntos masculinos:

O belo feminino deve servir como uma pausa ao sublime masculino, pois aqueles que combinam ambos os sentimentos descobrem que a comoção do sublime é mais poderosa que a do belo, só que, sem se alternar com esta ou ser por ela acompanhada, cansa, e não pode ser desfrutada por muito tempo.6 6 KANT, 2000, p. 26.

Além de trazer leveza à conversação, as mulheres, devido aos seus sentimentos sensíveis, cumprem um papel de educação moral do homem. A mulher "dispõe de sentimentos piedosos, de bondade e compaixão. [...] Seu sentimento acusa a menor ofensa e é extremamente aguçada em notar a mínima falta de atenção e respeito para consigo. Em resumo, é ela que dispõe, na natureza humana, do fundamento essencial do contraste entre as qualidades belas e nobres, tornando mais refinado mesmo o sexo masculino". 7 7 KANT, 2000, p. 49. Mesmo a virtude nela não é sublime, mas bela. Assim, a reprovação feminina do mal não passa pela idéia de justiça, mas pela sua monstruosidade estética: "ela evitará o mal não por ser injusto, mas por ser repulsivo; ações virtuosas significam para ela as que são moralmente belas".8 8 KANT, 2000, p. 52.

A leveza do belo feminino faz com que a ciência seja, para ela, árida demais.

Teria Kant ainda razão? A pergunta "Seria a inteligência um atributo masculino?" transformar-se-ia em "Queremos ser inteligentes e despertar apenas o respeito masculino e não mais seu amor"?

Poder e inteligência são atributos eróticos masculinos, e beleza e juventude atributos eróticos femininos.

Talvez alguns se lembrem ou tenham visto documentário sobre a tentativa de Henry Kissinger aproximar-se da China comunista. Em uma histórica reunião entre o então presidente Mao Tse Tung e Henry Kissinger, para quebrar o gelo daquela que deveria ser uma das mais tensas reuniões da política do século XX, Mao Tse Tung arriscou uma primeira pergunta a Henry Kissinger. Como ele, sendo tão gordo, fazia tanto sucesso com as mulheres? Ao que ele respondeu com a famosa frase: o poder é afrodisíaco.

Assim como Kant, Kissinger também sabia que o poder era afrodisíaco, desde que fosse um atributo masculino. O poder e o saber são afrodisíacos, enquanto propriedades do homem. Isso pode ser tomado em dois sentidos: as mulheres são atraídas por homens que possuem tais qualidades, sem dúvida. Mas existe um outro sentido, inexplorado nessa afirmação de Henry Kissinger: os homens gozam o próprio espetáculo narcísico de exibição de seu poder e saber, espetáculo que excita, antes de tudo, a eles próprios. O espetáculo de inteligência feminina roubaria a cena e tornaria aquele contato anti-erótico.

Muitas vezes, é erotizado na mulher exatamente o contrário da inteligência. Assim, a má pronunciação de fonemas do inglês por parte das latinas nos Estados Unidos – tais como Penélope Cruz – é considerada sexy.

O primado da beleza

Nancy Etcoff publica em 1999 um livro que se tornou um best seller nos Estados Unidos chamado Survival of the Prettiest, the Science of Beauty.9 9 ETCOFF, 1999. O livro contém uma tese trivial e outra polêmica. A trivial é que os homens preferem as mulheres mais bonitas, a inteligência sendo indiferente ou negativa para a escolha de uma parceira. As mulheres, por sua vez, preferem homens com status, poder ou dinheiro. As garotas mais bonitas da high school (ensino secundário) são aquelas que conseguem marry up, casar com homens acima do seu nível social.

Etcoff cita um experimento realizado pelo antropólogo John Marshall Townsend.10 10 TOWNSEND e Gary LEVY, 1990. Foram mostradas aos homens três fotos de mulheres e às mulheres três fotos de homens, cada foto representando pessoas de belezas desiguais e a cada pessoa foi atribuída uma profissão de status sócio-econômico diverso (garçonete/garçom, professora/professor e médica/médico). Foi perguntado aos participantes das pesquisas com quais dessas pessoas eles gostariam de sair, de fazer sexo e de casar. As mulheres preferiram o homem mais bonito e com mais dinheiro, mas, abaixo desses, médicos não atraentes recebiam a mesma preferência que professores muito atraentes. No caso do homem, mulheres não atraentes fisicamente nunca eram preferidas, independentemente do seu status social.

Segundo Etcoff, essa é uma das experiências que mostram a preferência dos homens pela beleza, independentemente do status sócio-econômico, e a preferência das mulheres pelo status sócio-econômico. Tal fato explicaria por que as executivas de uma grande empresa, segundo a autora, poderiam sentir-se atraídas pelo seu secretário, personal trainer ou servente, e teriam dificuldades para lidar com esses sentimentos, enquanto para os homens o status inferior da mulher não se constitui num obstáculo, podendo até mesmo ser um incentivo, já que os homens considerariam, segundo a autora, mulheres que ganham mais do que eles menos atraentes.

Etcoff coloca-se como opositora às feministas tais como Naomi Wolf, que defendem ser a beleza um produto cultural que mantém a dominância do macho. Iniciando seu livro com uma citação de Aristóteles de por que se deseja a beleza física ("Ninguém que não é cego poderia fazer essa pergunta"), ela faz um elogio da beleza como um poder legítimo da mulher sobre o homem, e, assim como Camiglie Paglia, restitui à beleza uma cidadania no discurso feminino.

A tese polêmica do livro é que a beleza não atende essencialmente a padrões culturais, mas a simetrias da espécie, e que as mulheres bonitas seriam preferidas, pois seus traços harmônicos garantiriam uma melhor prole. Da mesma forma, homens com poder, dinheiro, saber, garantiriam à prole um melhor sustento. Eu chamaria essa tese de evolucionista, bastante em voga atualmente, a qual fundamenta, na biologia evolucionista, as preferências dos homens por mulheres jovens e bonitas e das mulheres por homens com poder e status. Parece que, como crítica a uma teoria de que tudo era cultural, entramos agora em uma era na qual tudo passa a ser biológico. O fundamento biológico, diante de um fundamento cultural, apresenta uma certa dificuldade para qualquer tentativa de mudança de padrão. Ainda que não partilhemos dessa divisão de características entre os sexos, mesmo que não estejamos visando à reprodução, nossa biologia nos inclina para parceiros que tenham determinadas características. Continuaríamos tendo as mesmas preferências dos homens das cavernas, visto que não houve nenhuma mutação significativa desde então. Etcoff não reduz suas afirmações a casais heterossexuais, tentando mostrar que as preferências masculinas pelo belo e femininas pela inteligência permanecem mesmo em casais do mesmo sexo. Assim, em casais homossexuais masculinos, a beleza seria um atributo altamente valorizado no parceiro, enquanto o mesmo não aconteceria com as mulheres homossexuais. A série americana Sex and the City ilustra bem essa afirmação com o amigo gay de Carrie, baixinho, careca, o qual não se enquadra nos padrões de beleza do Chelsea, bairro gay nova-iorquino.

A tese evolucionista chegou ao conhecimento do grande público brasileiro, entre outros meios, através da revista Veja de 21 de janeiro de 2004. Com o título "O que torna você sexy?", o artigo corrobora a tese de Etcoff. Cita uma pesquisa inédita da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenada pela antropóloga Miriam Goldenberg, na qual 1.300 homens e mulheres foram entrevistados, para saber o que mais atrai sexualmente. A maioria das mulheres respondeu inteligência e mais da metade dos homens disse beleza.

Recentemente, a antropóloga americana Helen Fisher apresentou uma razão neurológica que poderia justificar tal fato. No homem, o amor começa pelo erótico, pois no seu cérebro o centro da excitação sexual está muito ligado ao centro do amor; na mulher, o quadrante do prazer no cérebro está ligado ao centro acústico, da audição. Assim, o amor no homem, por estar ligado ao erótico, começaria pelo visual; na mulher, pela conversa interessante e inteligente. Uma mulher bonita levaria vantagem na competição por um parceiro; um homem inteligente levaria vantagem na disputa pela parceira.

Gostaria de questionar a teoria evolucionista. Primeiro, questionando a base biológica do ideal de beleza. A beleza feminina segue padrões diferentes em épocas diferentes. A qual desses tipos os impulsos biológicos seriam dirigidos? Basta apenas olhar um quadro de Renoir ou As três graças de Rubens para ver como os padrões do belo feminino são mutáveis. Em relação à obra As três graças, dentro de nossos padrões que elogiam a magreza, elas todas as três teriam, obviamente, nos dias de hoje, uma firme indicação de lipoaspiração.

Segundo, o ideal de beleza em civilizações tais como a romana ou grega era essencialmente masculino. Etcoff, nesse ponto, equivoca-se ao fundamentar sua tese com citações de Platão e Aristóteles sobre o belo. Para esses filósofos, belo era o corpo masculino jovem. Tal pode ser aferido, por exemplo, no diálogo O banquete, no qual aparece o louvor do belo Alcebíades, discípulo de Sócrates e tido como um dos mais belos homens da Antigüidade. No mesmo diálogo, uma mulher é citada, Diotima, sacerdotisa grega, que ensina a Sócrates o que é o amor. Diotima é sábia, Alcebíades é belo.

Em um interessante artigo de Camiglie Paglia, Pagan Beauty, ela discorre sobre o ideal grego de beleza, dos jovens do sexo masculino, imortalizados no frescor de sua juventude nas esculturas dos Kouros.11 11 PAGLIA, 1997. Não apenas no mundo grego o ideal de beleza é masculino. Não apenas no mundo antigo, mas em momentos bem mais sombrios da história, tal com o III Reich, o ideal de beleza era a beleza masculina ariana.

Medéia e o risco da ciência em mãos femininas

Todos sabemos do lugar subalterno reservado às mulheres na vida pública grega. Contudo, se olharmos mais de perto, os gregos fizeram elogio do saber de suas mulheres, em um grau que não vemos na nossa avançada civilização. Na peça Medéia de Eurípides, Medéia detém os poderes da magia e da ciência. Ela utiliza seus poderes mágicos para envenenar a jovem esposa de Jasão, o homem que a deixou. Através de seus conhecimentos mágico-científicos, ela leva à morte o poderoso rei Creonte.

Medéia pede exílio em Atenas ao rei Egeu, o qual estava de passagem por Corinto em direção ao oráculo de Delfos, ao qual pediria para ter filhos e deixar herdeiros. Ao fazer seu pedido, Medéia promete ao rei que lhe dará filhos, visto que detém o saber sobre ervas e medicamentos:

Medéia:

Não me deixes viver no exílio, abandonada!

Dá-me acolhida em teu país, em tua casa!

Em retribuição dêem-te os deuses filhos, como desejas, para que morras feliz.

Não imagina quão afortunado foste

Em vir ao meu encontro aqui; graças a mim

Não ficarás sem filhos, logo serás pai;

Conheço filtros com essa virtude mágica.

Contudo, se a ciência de Medéia convence Egeu a lhe dar asilo, essa também é a razão pela qual Creonte a expulsa de Corinto:

Creonte:

É inútil alinhar pretextos: é por medo.

Temo que faças mal sem cura à minha filha.

Muitas razões se somam para meu temor:

És hábil e entendida em mais de um malefício

E sofres hoje por te veres preterida

No leito conjugal.

O temor de Creonte será concretizado: Medéia usará de sua mágica ciência e de seus malefícios, envenenando a coroa que dará àquela que esposará Jasão, seu ex-marido. O próprio Creonte morrerá desse veneno, ao abraçar o corpo da filha morta.

Medéia usa sua ciência para o mal, o que é constantemente ressaltado na tragédia de Eurípides. Não podemos esquecer que ela era uma bárbara, vindo de um mundo onde as mulheres detinham um saber mágico sobre ervas e venenos. Na versão de Medéia levada às telas por Pasolini, a fala de Creonte é bastante explícita: "não confio em você porque você é bárbara". A civilização grega vai retirar esse poder das mulheres e passar aos homens, ainda que este retorne algumas vezes na história para mãos femininas, como na Idade Média, quando milhares de mulheres foram queimadas como bruxas.

A mulher usa a ciência para o mal. É o que nos diz o coro:

Vamos, Medeia! Não poupes recurso algum de

teu saber em teus desígnios e artifícios!

Começa a marcha para a tarefa terrível!

Chegou a hora de provar tua coragem!

Não vês como te tratam?

Tens a Ciência e, afinal, se a natureza

Fez-nos a nós, mulheres, de todo incapazes

Para as boas ações, não há, para a maldade,

artífices mais competentes do que nós.

A mulheres usam a ciência para o mal, por isso dela devem ser desprovidas. A deserotização da inteligência feminina talvez não tenha razões biológicas, mas culturais. A mulher é o outro. Como não seria perigoso tamanho poder em mãos dessa alteridade obscura?

A feminilidade perdida - ou no tempo dos dinossauros

Uma outra peculiaridade sobre a relação entre gênero e desejo é a dicotomia em que se encontra a mulher contemporânea. Se no mundo do trabalho e da carreira exige-se dela persistência na obtenção de seus fins, no território do desejo ela deve tornar-se passiva, ao menos quando se trata de estimular o desejo masculino. Se a mesma posição ativa exigida e estimulada no campo da carreira é utilizada no campo afetivo, e se a mulher decide manifestar seu desejo em relação ao homem, os adjetivos elogiosos a sua postura rapidamente tornam-se pejorativos. Assim, a mulher batalhadora, guerreira e persistente torna-se sufocante, insistente e cansativa.

Encontramos, então, manuais da auto-ajuda feminina para que possamos reaprender a passividade e a feminilidade perdidas. Um dos mais curiosos livros sobre o assunto foi escrito pela americana Rachel Greenwald e intitula-se Como encontrar um marido depois dos 35 anos, usando o que aprendi na Harvard Business School. Ela escreve para mulheres de carreira, agressivas no trabalho e acostumadas a controlar também a sua vida pessoal. Segundo a autora, essas mulheres projetam uma imagem muito masculina e, se adjetivos como audaciosas, assertivas ou mesmo intimidadoras podem ser garantia de sucesso no mundo profissional, não o são no terreno das relações afetivas, ao menos não das heterossexuais. A autora ensina às executivas a feminilidade perdida, com cortes de cabelo e roupa, mas também com ênfase nas técnicas de abordagem. A feminilidade vence, afirma categoricamente, e por feminilidade entenda-se uma postura passiva na abordagem ao sexo oposto.

Os homens preferem tomar a iniciativa (eles telefonam, mandam e-mails, reservam mesas no restaurante, vão buscá-la, pagam a conta,...) Esse antigo estereótipo, que os homens tanto apreciam, não morreu. As mulheres de hoje adoram voltar-se contra as regras antigas, mas nesta área específica acho que elas são válidas; ser a caça e não a caçadora é muito mais eficaz quando se trata de capturar o interesse de um homem.12 12 GREENWALD, 2004, p. 56.

Tal conselho é surpreendente, pois não se trata de um manual dos anos 1950 para jovens com educação restrita e cujo sonho maior é ser dona-de-casa, mas é um manual do terceiro milênio escrito por alguém que cursou Harvard Business School, dirigido a outras mulheres que também têm nos seus currículos MBAs e PhDs nas mais renomadas escolas americanas. A autora sabe que se trata de "regras antigas", porém recomenda que as mulheres não se voltem contra a elas.

Por que devemos aceitar as "regras antigas"? Novamente podemos ter aqui uma explicação evolucionista. Desde a época dos dinossauros, aos homens caberia a posição ativa na escolha da fêmea e na sua fecundação; às mulheres caberia a posição passiva de ser escolhida pelo macho e cuidar da prole gerada. Assim acontece com a maioria dos primatas e não poderíamos nos insurgir contra as regras antigas, pois elas são sobretudo regras da natureza.

Joseph LeDoux, no livro The Emotional Brain, bastante citado pelos filósofos estudiosos das emoções, explica que "the brain systems that generate emotional behaviour are highly conserved through many levels of evolutionary history", reiterando a tese de que emoções foram importantes para a nossa evolução como espécie.

Within the animal groups that have a backbone and a brain (fish, amphibians, reptiles, birds, and mammals, including humans), it seems that the neural organization of particular emotional behaviour systems – like the systems underlying fearful, sexual, or feeding behaviours is pretty similar across species.13 13 LEDOUX, 1998, p. 17.

Consideremos que a hipótese de LeDoux esteja correta e que, por exemplo, o medo que nos incita a correr e fugir antes mesmo da detecção consciente do perigo tenha tido uma grande importância para nossa evolução como espécie, quando se tratava de fugir dos dinossauros. Mas será que teremos de manter a mesma dicotomia ativo/passivo quando se trata do desejo masculino e feminino? Afinal, os dinossauros não habitam mais a terra.

Recebido em abril de 2005 e aceito para publicação em julho de 2005.

  • ETCOFF, Nancy. Survival of the Prettiest, The Science of Beauty New York: Doubleday, 1999.
  • EURÍPEDES. Tragédies complètes I. Paris: Gallimard, 1962.
  • GREENWALD, Rachel. Como encontrar um marido depois dos 35 anos, usando o que aprendi na Harvard Business School Rio de Janeiro: GMT, 2004.
  • KANT, Immanuel. Handschriftlichen Nachlass Berlin/Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1923.
  • KANT, Immanuel.Observações sobre o belo e o sublime Campinas: Papirus, 2000.
  • LEDOUX, Joseph. The Emotional Brain. London: Weinfeld & Nicolson, 1998.
  • PAGLIA, Camiglie. "Pagan Beauty". In: MILLER, John (ed.). Beauty San Francisco: Chronicle Books, 1997.
  • TOWNSEND, John Marshall; LEVY, Gary. "Effect of Potencial Partner's Physical Attractiveness and Social Economic Status on Sexuality and Partner Selection." Journal of Sexual Behavior, n. 19, 1990, p. 149-164.
  • 1
    KANT, 2000.
  • 2
    KANT, 2000, p. 49.
  • 3
    KANT, 2000, p. 49.
  • 4
    KANT, 1923, p. 649.
  • 5
    KANT, 2000, p. 25.
  • 6
    KANT, 2000, p. 26.
  • 7
    KANT, 2000, p. 49.
  • 8
    KANT, 2000, p. 52.
  • 9
    ETCOFF, 1999.
  • 10
    TOWNSEND e Gary LEVY, 1990.
  • 11
    PAGLIA, 1997.
  • 12
    GREENWALD, 2004, p. 56.
  • 13
    LEDOUX, 1998, p. 17.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      Jul 2005
    • Recebido
      Abr 2005
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