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Raça, sexualidade e saúde

ARTIGOS

Raça, sexualidade e saúde

Laura Moutinho; Simone Monteiro; Osmundo Pinho; Sergio Carrara

As interfaces entre relações raciais, o processo saúde e doença, sexualidade e gênero não têm sido exploradas suficientemente pelas ciências sociais e da saúde de modo a contemplar as transformações na sociedade e na reflexão teórica contemporânea. Partimos do princípio de que a discussão acerca da inter-relação de tais temas nas experiências da vida cotidiana pode iluminar o estabelecimento de padrões e práticas sociais para a definição de políticas de intervenção estatal. Dentro dessa perspectiva, este número temático da Revista Estudos Feministas, Raça, Sexualidade e Saúde, reúne trabalhos em torno da articulação entre raça, sexualidade, gênero e saúde que buscam explorar as possibilidades empíricas, teóricas e políticas abertas pelo diálogo entre essas diferentes temáticas. Foram privilegiadas, nesse sentido, abordagens inovadoras e comprometidas com a ampliação da discussão e o próprio desenvolvimento social.

O ponto de partida que informa a presente coletânea refere-se ao fato de que, classicamente, os estudos sobre relações raciais mantêm um viés comparativo, vinculando-se de distintas formas à esfera pública. Tendo em vista que tradicionalmente os Estados Unidos aparecem como o pólo privilegiado de reflexão e comparação, este conjunto de textos busca trazer à cena outros cenários que são mostrados com menos destaque nas análises sobre o tema, como Colômbia, Argentina e Moçambique. Ademais, traz como contribuição a divulgação de estudos sobre aspectos ainda pouco abordados no campo das interações raciais, como a homossexualidade, o gênero, o erotismo, a saúde e a intervenção social.

Nesse sentido, é importante destacar que os textos ora partilhados com um público mais amplo permitem que os leitores reflitam sobre esse intricado entrelaçamento a partir de investigações que, além de expor as faces complexas das múltiplas formas de discriminação e exclusão social, fornecem importante aporte para que se torne mais visível o campo de manobra que os indivíduos possuem no dia-a-dia para lidar com essas questões.

Se a idéia de que raça (entre outros marcadores sociais) é uma construção histórica e cultural específica que vem sendo partilhada pela grande maioria dos pesquisadores que tratam dessa questão, processos de exclusão social vêm sendo trabalhados a partir de uma perspectiva universalizante sem ser devidamente contextualizados. A "globalização" fornece um vocabulário comum e muitas vezes enganoso nesse sentido, na medida em que esse vocabulário obedece a múltiplos e variados significados.

É necessário destacar que os artigos foram apresentados e debatidos no Seminário Internacional "Raça, Sexualidade e Saúde: Perspectivas Regionais", realizado na Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, no período de 3 e 5 de novembro de 2004. Apoiado pela Fundação Ford e pelo CNPq, o evento foi organizado pelo CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (IMS/UERJ),1 1 O CLAM realizou, ao longo dos anos de 2003 e 2004, uma série de seminários sobre sexualidade e suas diferentes interfaces. Além de fomentar a análise e discussão em relação a essas temáticas, esse empreendimento teve como foco a regionalização e o estabelecimento de parcerias com instituições tanto de perfil acadêmico quanto ligadas ao ativismo. Os papers apresentados foram publicados pela editora Garamond Universitária na Coleção Sexualidade, Gênero e Sociedade Sexualidade em Debate. pela Fundação Oswaldo Cruz (Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde, Departamento de Biologia, Instituto Oswaldo Cruz) e pelo, infelizmente, extinto Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Candido Mendes, através da Rede AfroGenero – Rede Afro Latina de Pesquisa em Gênero, Saúde Reprodutiva e Desenvolvimento Humano, projeto de intercâmbio apoiado pelo CNPq por meio do PROSUL – Programa Sul-Americano de Apoio às Atividades de Cooperação em Ciência e Tecnologia. Participaram do evento pesquisadores, estudantes e ativistas de diferentes regiões do Brasil e convidados da Colômbia, Argentina, Espanha, África do Sul e Estados Unidos. Embora os textos aqui reunidos não contemplem a totalidade dos trabalhos apresentados no Seminário, eles traduzem grande parte das questões abordadas no evento.

Verena Stolke, autora que de modo pioneiro refletiu sobre o entrecruzamento de raça, gênero e sexualidade, abre esta coletânea com o artigo "O enigma das interseções: classe, "raça", sexo, sexualidade.. A formação dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX". Seguindo um percurso histórico, Stolcke aborda as repercussões das idéias metropolitanas de pureza de sangue no mundo colonial. Dá especial destaque às múltiplas maneiras pelas quais as normas sociais, jurídicas e religiosas sobre moralidade sexual e relações de gênero interagiram com as desigualdades sociais e políticas na época em que a sociedade colonial estava se estruturando política e simbolicamente – período que vai do início das conquistas portuguesas e espanholas até o século XIX. Na perspectiva apresentada pela autora, a experiência colonial Ibérica coloca questões inovadoras na relação entre classe, raça e gênero.

A partir de uma visão construtivista da sexualidade, o artigo "Entre as tramas da sexualidade brasileira", de Maria Luiza Heilborn, discute os mitos em torno da natureza sexual dos brasileiros. Com base na análise dos resultados de um inquérito domiciliar realizado em três cidades de distintas regiões do país, com jovens de 18 a 24 anos, e de dados históricos, a autora argumenta que os comportamentos sexuais não correspondem à imagem socialmente difundida da sexualidade brasileira, fortemente codificada por relações de gênero.

Denise Ferreira da Silva, em "À brasileira: racialidade e a escrita de um desejo destrutivo", discute o lugar do desejo e da raça na produção do sujeito moderno. A autora aborda o erotismo tal como concebido por Gilberto Freyre e defende que a miscigenação não somente constrói sujeitos subalternos como também transforma as mulheres não brancas em instrumento do desejo colonial.

Os temas abordados nos três primeiros artigos desta coletânea dialogam de modo estreito com a pesquisa conduzida por Sonia Maria Giacomini. No artigo "Mulatas profissionais: raça, gênero e ocupação", a autora discute a forma como as alunas do II Curso de Formação Profissional de Mulatas, promovido pelo SENAC-RJ, representam tanto a "mulata" – categoria na qual elas próprias estão classificadas – quanto a "mulata profissional" – categoria concomitantemente profissional e moral que representa a própria nação brasileira.

Um outro ponto da intersecção entre sexualidade, raça e gênero é explorado por Laura Moutinho em "Negociando com a adversidade: reflexões sobre 'raça', (homos)sexualidade e desigualdade social no Rio de Janeiro". O foco do trabalho são as trajetórias de jovens homossexuais negros moradores de regiões marcadas pela pobreza no subúrbio carioca. A autora discute sexualidade e pobreza a partir do campo de possibilidades no qual esses indivíduos se movem. Ao longo da análise, pode-se acompanhar como para os homens gays "mais escuros", em especial, é possível percorrer e ultrapassar de diferentes modos e com distintas interações as linhas de classe que conformam o tecido social carioca.

A equipe coordenada por Fernando Urrea Giraldo e composta por Waldor Botero, Hernán Darío Herrera Arce e José Ignacio Reyes Serna explora, em "Afecto y elección de pareja en jóvenes de sectores populares de Cali", as lógicas de produção de afeto e eleição afetiva entre jovens de setores populares da cidade de Cali, na Colômbia. Através de entrevistas, grupos focais e informações estatísticas advindas de pesquisa domiciliar realizada entre 1998 e 2003, os autores procuram desenvolver uma abordagem sociológica em torno do fenômeno da homogamia racial manifestado em diversas dimensões da sociedade caleña.

As intersecções entre saúde, sexualidade, juventude e raça na Colômbia são analisadas em "Políticas de sexualidad juvenil y diferencias étnico-raciales en Colombia", de Mara Viveros. A autora aborda as modalidades de 'governo da sexualidade juvenil' relacionadas às atividades de programas de saúde sexual e reprodutiva para jovens escolarizados de Bogotá e seus efeitos na produção de subjetividades juvenis. O artigo inclui ainda uma reflexão sobre as percepções e práticas dos profissionais que desenvolvem os referidos programas acerca das diferenças étnico-raciais entre os jovens.

No ensaio etnográfico "'A vida em que vivemos': raça, gênero e modernidade em São Gonçalo", Osmundo de Araújo Pinho apresenta dados de investigação realizada com jovens de ambos os sexos em importante bairro popular na periferia de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O objetivo da pesquisa é interrogar sobre a experiência da modernização em ambiente de pobreza e subcidadania. Mais especificamente, procura pensar como as práticas e representações sobre raça e gênero são mobilizadas pelos agentes nesse contexto de modernização desigual e o seu lugar na reprodução de uma ordem social desigual.

O artigo "Discriminação, cor e intervenção social entre jovens na cidade do Rio de Janeiro: a perspectiva masculina", de Fátima Cecchetto e Simone Monteiro, analisa as visões e experiências de um grupo de jovens sobre os circuitos, as redes e os processos que envolvem práticas discriminatórias na cidade carioca. As autoras abordam as configurações que a discriminação e o racismo assumem entre os jovens do sexo masculino com experiência em projetos sociais e suas implicações para a sociabilidade e o acesso a determinados espaços sociais

Em "Sobre los significados de ser hombre en varones jóvenes en el área metropolitana de Buenos Aires", Hernán Manzelli analisa dados de uma investigação qualitativa realizada entre jovens de classes baixas e média-alta da Região Metropolitana de Buenos Aires, discutindo os significados do ser homem para esses agentes sociais. Um dos achados da pesquisa revela uma concepção sobre o desejo sexual masculino como irresistível, uma perspectiva algo essencialista que, segundo o autor, dificulta as possibilidades de mudança social e individual.

Tendo por base as propostas de políticas de saúde para a população negra no Brasil em anos recentes, Josué Laguardia examina o Programa Nacional de Anemia Falciforme (PAF), em seu artigo "No fio da navalha: anemia falciforme, raça e as implicações no cuidado à saúde". O autor analisa os discursos sobre a anemia falciforme que ressaltam, a partir de pressupostos biológicos e epidemiológicos, o caráter racial dessa doença. São apresentadas críticas a esses pressupostos e discutidas as implicações éticas decorrentes da racialização das doenças.

Fecha a coletânea o artigo "Raça, sexualidade e doença em Moçambique", de Luiz Henrique Passador e Omar Thomaz. Partindo de uma retrospectiva sobre as transformações de Moçambique, os autores fazem uma análise das noções de raça, sexualidade e doença no contexto nacional, complementada pela descrição da situação atual da AIDS nesse país. O trabalho traz uma reflexão sobre as distorções impostas por uma agenda de intervenção que não leva em conta a compreensão da AIDS nos termos em que ela se expressa e é experimentada no contexto moçambicano contemporâneo.

Acreditamos que tanto a realização do Seminário como a publicação deste número temático da Revista Estudos Feministas representam uma etapa importante da reflexão criteriosa em torno dos temas focalizados. Cresce, na universidade e no movimento social, a compreensão da relevância que os efeitos das desigualdades de gênero, raça e orientação sexual trazem para a saúde pública e para as condições gerais de vida das populações empobrecidas da América Latina. Nesse sentido, os artigos aqui publicados compõem uma ampla gama de estudos que têm contemporaneamente ressaltado: 1) a estreita relação entre os aspectos políticos e históricos da construção das identidades de gênero, narrativas nacionais e processos de "territorialização/localização" da pobreza e da desigualdade; 2) o dinamismo e a complexidade das articulações entre raça, gênero e classe num contexto de modernização conservadora; 3) as conseqüências da pobreza, da baixa instrução e de políticas públicas ineficazes ou inexistentes para saúde reprodutiva e sexual; 4) a contínua violação de direitos sexuais e de direitos humanos para minorias sexuais/raciais; 5) e a persistência de padrões machistas e masculinistas, muitas vezes erigidos como políticas de Estado com apoio de setores conservadores.

Sem enfrentar essas questões, consideradas em sua dinâmica histórica e em sua articulação com diferentes esferas de produção e reprodução de desigualdades sociais e políticas, não poderemos estabelecer com firmeza um projeto continental de desenvolvimento humano, inclusão social e consolidação da democracia. Enfim, esperamos que essa iniciativa possa ao menos inspirar a realização de novas pesquisas e abordagens teóricas que sejam críticas e criativas.

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    O CLAM realizou, ao longo dos anos de 2003 e 2004, uma série de seminários sobre sexualidade e suas diferentes interfaces. Além de fomentar a análise e discussão em relação a essas temáticas, esse empreendimento teve como foco a regionalização e o estabelecimento de parcerias com instituições tanto de perfil acadêmico quanto ligadas ao ativismo. Os
    papers apresentados foram publicados pela editora Garamond Universitária na Coleção Sexualidade, Gênero e Sociedade Sexualidade em Debate.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2006
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