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Mulatas profissionais: raça, gênero e ocupação

Professional mulatas: race, gender and occupation

Resumos

Baseado em pesquisa realizada junto a um grupo de mulheres negras inscritas no II Curso de Formação Profissional de Mulatas, promovido pelo SENAC-RJ, o artigo resgata e analisa as categorias através das quais as alunas representam sua condição de mulata e a passagem à condição de mulata profissional. Representante e mediadora de uma brasilidade que se faz feminina, sensual e mestiça, a mulata profissional se debate, necessária e permanentemente, entre dois pólos, simultaneamente profissionais e morais: de um lado, o pólo positivo, da dançarina; de outro lado, o pólo negativo e ameaçador, da prostituta.

mulheres negras; sexualidade; discriminação sexual e racial


Based on a research carried out with a group of black women enrolled in the II Course for Professional Formation of Mulatas, the article recovers and analyses the categories through which the students represent their condition of mulatta and their passing to the condition of professional mulata. The mulata, who represents and mediates a Brazilian way of being a woman, sensual and race-mixed, the professional mulata debates herself, permanently, between two poles which are both professional and moral: on the one hand, there is a positive pole, of being a dancer, on the other, there is a threatening and negative one, of being a prostitute.

black women; sexuality; sexual and racial discrimination


ARTIGOS

Mulatas profissionais: raça, gênero e ocupação

Professional mulatas: race, gender and occupation

Sonia Maria Giacomini

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

RESUMO

Baseado em pesquisa realizada junto a um grupo de mulheres negras inscritas no II Curso de Formação Profissional de Mulatas, promovido pelo SENAC-RJ, o artigo resgata e analisa as categorias através das quais as alunas representam sua condição de mulata e a passagem à condição de mulata profissional. Representante e mediadora de uma brasilidade que se faz feminina, sensual e mestiça, a mulata profissional se debate, necessária e permanentemente, entre dois pólos, simultaneamente profissionais e morais: de um lado, o pólo positivo, da dançarina; de outro lado, o pólo negativo e ameaçador, da prostituta.

Palavras-chave: mulheres negras profissão, sexualidade, discriminação sexual e racial.

ABSTRACT

Based on a research carried out with a group of black women enrolled in the II Course for Professional Formation of Mulatas, the article recovers and analyses the categories through which the students represent their condition of mulatta and their passing to the condition of professional mulata. The mulata, who represents and mediates a Brazilian way of being a woman, sensual and race-mixed, the professional mulata debates herself, permanently, between two poles which are both professional and moral: on the one hand, there is a positive pole, of being a dancer, on the other, there is a threatening and negative one, of being a prostitute.

Key Words: black women-profession, sexuality, sexual and racial discrimination.

Este artigo pretende contribuir para os estudos que se desenvolvem no campo definido pelas questões relativas à construção e articulação das identidades de gênero e de raça/cor na sociedade brasileira ou, se se prefere, no campo de estudos sobre a mulher negra brasileira.1 1 A autora agradece mais uma vez o apoio da Fundação Carlos Chagas, sem o qual a pesquisa que deu origem a este artigo não teria sido possível. Reúnem-se aqui alguns resultados de pesquisa realizada sobre uma ocupação em que gênero, raça/cor e sexualidade ocupam lugar central: a profissão de mulata.2 2 Esse tema foi amplamente explorado em Giacomini, 1992.

A pergunta que orientou esta pesquisa poderia ser formulada da seguinte maneira: por que e como uma categoria racial se transforma em categoria profissional? Como, em uma sociedade que se pretende sem preconceitos de raça ou cor, determinados atributos raciais podem ser discriminados, isto é, separados e selecionados, de modo a permitir a criação de uma profissão particular? Qual o significado dessa operação de transmutação do que é racial em profissional para aqueles, ou melhor, aquelas que estão diretamente envolvidas, que são ao mesmo tempo sujeitos e objetos da operação?

Certamente não se pretende, com este trabalho, responder de maneira exaustiva a todas essas perguntas, mas, mais modestamente, explorar parte do material recolhido em entrevistas com as alunas do II Curso de Formação Profissional de Mulatas, ministrado pelo SENAC no Rio de Janeiro no final dos anos 1980 e início de 1990, e na observação realizada em diferentes shows de mulatas em cartaz na cidade no mesmo período, o que permitiu fazer etnografias dos espetáculos e captar alguns elementos recorrentes.

Durante três meses, três vezes por semana, freqüentei a Casa de Show onde era ministrado o Curso. Como me introduzi naquele universo através do proprietário da casa de espetáculo em que eram realizadas as aulas e da coordenadora do Curso, passou-se bastante tempo até que as alunas entendessem o motivo de minha presença. Fui muitas vezes confundida com jornalista, e acredito que muitas participantes, sobretudo no início, imaginavam que eu podia ser uma empresária ou olheira de algum produtor, algo bastante comum nesse universo. Com o decorrer das aulas, porém, minha assiduidade e muitas explicações contribuíram para que ficasse mais clara minha identidade de antropóloga/pesquisadora.

Dessa forma, observando o Curso, entrevistando as alunas candidatas a mulata profissional e observando as interações entre os diferentes agentes envolvidos na realização das aulas e, em particular, analisando o show de encerramento do Curso apresentado na cerimônia de formatura, consegui recolher um rico material para a pretendida reflexão sobre a identidade da mulata profissional.

Dividido em três partes, este artigo inicia-se com uma análise da auto-representação das candidatas no que concerne à identificação de atributos e características considerados fundamentais para ser uma mulata profissional. A segunda parte apresenta a estrutura dos shows de mulata e investiga a composição de seus diferentes quadros, os quais, como se verá mais adiante, se apresentam como que condensados no show apresentado pelas alunas durante a cerimônia de formatura do Curso. Através da análise do show de formatura, procura-se identificar a maneira pela qual os atributos considerados típicos da mulata são acionados e configuram, como que 'naturalmente', uma forma de interação recorrente e tipificada que constitui o núcleo da narrativa de brasilidade atualizada pelo show.

Na última parte, alinham-se alguns comentários sobre as especificidades da ocupação de mulata, em particular sobre a maneira como são vivenciadas e representadas aquelas que seriam as principais dificuldades e ameaças que acompanham a mulata profissional.

O que é ser mulata?

Quais as percepções e conceitos a partir dos quais as alunas do Curso de Mulata do SENAC, em um contexto que se pretende de formação profissional, constroem sua visão acerca da profissão de mulata, profissão em que as condições de gênero e de cor são fundamentais?

As entrevistas, abertas, muitas delas bastante longas, tiveram como eixo ou ponto de partida quase sempre a mesma pergunta ou questão, formulada e reformulada de várias maneiras: O que é ser mulata? O que é uma mulata? Você é mulata? Por quê? Por que você está fazendo o Curso de Mulata? O que significa ser mulata profissional?

Nas entrevistas e conversas emergiu espontanea-mente algo que me parece particularmente significativo: a maneira como aquelas mulheres percebem as relações entre a profissão de mulata e a prostituição, o que envolve, sem rodeios, uma associação imediata da ocupação com a sexualidade .

O que é ser mulata? Muitas acham que esta é uma pergunta "difícil de responder". Talvez porque, de seu ponto de vista, trata-se de uma pergunta que nem mesmo se justificaria, por ser absolutamente banal.

Mulata é mulata, não sei como explicar.

Pode-se sugerir que a dificuldade em explicar o que é ser mulata deve-se sobretudo a duas razões: em primeiro lugar, porque ser mulata é algo evidente, que, por isso mesmo, não carece de explicação; mas também, em segundo lugar, é de difícil explicação porque significa muitas coisas juntas, o que torna difícil discernir e destacar o essencial.

O que mostra a narrativa das meninas, que é como elas mesmas se chamam, é que há várias maneiras de ser mulata, de definir mulata. São várias as razões, ou combinações de razões, que justificam incluir ou excluir alguém; mas se há, por assim dizer, uma certa margem de manobra, a indeterminação não é absoluta, havendo certos limites e uma determinada lógica que condiciona o campo de possibilidades.

Diante da gama de respostas surgidas nas entrevistas, optei por agrupar os enunciados em dois grandes tipos ou grupos.

No primeiro grupo, tem-se o conjunto de conceituações que insistem no que se poderia chamar de caracteres inatos. Estes, por sua vez, podem ser subdividos em dois subgrupos: de um lado, temos os atributos inatos que são atributos do grupo racial, dos pretos, daqueles que são escuros; de outro lado, há aqueles atributos e qualidades que, também inatos, são individuais.

No subgrupo dos atributos inatos coletivos, ou seja, referidos à raça ou etnia ou cor, temos, entre outras, as seguintes definições de mulata:

Ser mulata é cor;

Ser mulata é saber sambar;

Ser mulata é algo que está no sangue, é de raiz.

Dentre as menções a caracteres inatos de natureza individual, pode-se citar:

Ser mulata é ter um corpo violão;

É ter bundinha empinadinha;

Ter cintura fina;

Ser mulata é ter um corpo bonito.

Nesse caso, a mulata é definida por atributos de que são dotadas apenas algumas, individualmente, dentre as mulheres que têm a cor negra ou mulata.

Não parece estranho que um conjunto de mulheres, com a cor da pele que, para usar as expressões nativas, vai de negona a morena clara, e que consideram que são mulatas por serem portadoras de certos atributos inatos, esteja fazendo um curso para aprender a ser aquilo que já são por nascimento?

É esse impasse lógico que explica, como referido acima, um segundo grupo de conceitos que, no lugar dos atributos inatos, destaca a dimensão propriamente profissional. Agora, é o universo profissional que se impõe:

Ser mulata é comportar-se segundo as exigências da profissão.

Em certo sentido, poder-se-ia dizer que essa visão surge de um curioso paradoxo, que, por sinal, não escapa ao grupo entrevistado. Elas percebem que a profissionalização enquanto mulata impõe certos atributos que não são inatos, que devem ser adquiridos. A aquisição desses atributos seria a marca e a prova da profissionalização.

Ser mulata é ser "profissional", é ser "responsável", é saber "enfrentar o público". Ser mulata é "saber se produzir", isto é, assumir a aparência física e o gestual que se espera de uma verdadeira mulata. É saber "interagir com o público", enfrentando com frieza e tranqüilidade os "acidentes de trabalho".3 3 Por "acidentes de trabalho" entendem-se situações, embora eventuais mas nem por isso total-mente inesperadas, em que um turista se excede sobre o palco ou fora dele, tornando-se incon-veniente ou mesmo agressivo.

As relações entre os diferentes atributos, inatos e adquiridos,4 4 Giacomini, 1992. fornecem uma amostra da extraordinária ambigüidade em que estão lançadas essas moças que, se por um lado se vêem como mulatas, por outro lado vivem na dúvida se estarão aptas a serem reconhecidas pelos empresários como verdadeiras mulatas. Com efeito, o que se passa de essencial durante a realização do Curso é um processo de seleção, no âmbito do qual se vai atestar quais dentre as candidatas estão em condições de representar aquela que seria a mulata típica, a mulata autêntica. E, certamente, o tipo que alimenta o imaginário da clientela desse tipo de espetáculo está bastante distante do tipo comum das mulatas brasileiras.

Em outros termos: o Curso de Formação, longe de configurar um verdadeiro processo de aprendizagem, constitui-se, antes de mais nada, em processo de seleção.

Nesse ponto, poder-se-ia citar a insatisfação, registrada por várias entrevistadas, com o fato de que a mulata profissional tipo exportação deve ser alta, muito alta. O raciocínio delas é inquestionavelmente lógico: se o show de mulata quer mostrar aquilo que é autêntico, quer mostrar como é, de fato, a mulata brasileira, por que exigir uma altura que é antes exceção que regra?

Pedir o corpo violão é válido, mas não se pode valorizar muito a altura, porque afinal o brasileiro é conhecido como de estatura mediana. É a nossa estrutura mesmo física. Eles tinham que visar uma coisa assim, nessa altura, as pessoas com esse tamanho... isto é, entre um metro e sessenta e cinco e um metro e setenta.

Algumas chegam mesmo a afirmar que a estatura postulada é excessiva, que constituiria um obstáculo à dança, ao samba, introduzindo um conflito entre dois requisitos igualmente valorizados pelos empresários.

Você pode notar que uma mulher assim muito alta não sabe dançar direito, assim... mexer o corpo muito bem... Já num tamanho não tanto, pode observar como ela dança melhor, samba melhor, leva mais jeito.

Diante de um conjunto tão amplo de qualidades requisitadas – inatas coletivas, inatas individuais e adquiridas – as meninas sentem-se objeto de um processo nem sempre claro em seus critérios e procedimentos, que acabará fazendo delas – apenas algumas delas, é bom registrar – uma mulata profissional. O que elas compreendem, mesmo que intuitivamente, porém, é que, do início ao fim, o processo seletivo rege-se por uma mulata paradigmática, que corresponde a um imaginário presente na sociedade brasileira.

A mulata bonita, de corpo violão, boa sambista, de bundinha arrebitada, sensual, sedutora é produzida segundo um determinado modelo. O segredo da operação consiste em apresentar o resultado desse meticuloso processo de seleção e produção – que é a mulata profissional – em exemplar, típico, representativo. Dessa forma, o show de mulata é como que uma prova de que a mulata brasileira é tudo o que dela se diz e imagina: encontram-se aí, no palco, para quem quiser ver, as mulatas brasileiras autênticas.

Mas esse imaginário não produz apenas uma representação estética da mulata brasileira;5 5 Presente no imaginário brasileiro de forma crescente, principal-mente a partir do século XIX, a mulata é construída, em verso e prosa, como um tipo feminino peculiar. Para uma análise da mulata na literatura brasileira, ver Teófilo Queiroz Junior, 1975; e Affonso Romano de Sant'Anna, 1975. Sobre representações da mulata no pensamento social brasileiro, em particular em Gilberto Freyre, Raymundo Nina Rodrigues, Oliveira Vianna e Florestan Fernandes, ver Giacomini, 1992. ele também implica, talvez principalmente, uma representação moral e sexual da mulata . A esse respeito Gilberto Freyre já dizia em 1936:

o bom senso popular e a sabedoria folclórica continuam a acreditar na mulata diabólica, superexcitada por natureza [...] Por essa superexcitação, verdadeira ou não, de sexo, a mulata é procurada pelos que desejam colher do amor físico os extremos de gozo, e não apenas o comum.6 6 Freyre, 1985, p. 602.

Bem antes de Freyre, em 1894, Raymundo Nina Rodrigues, pai da medicina legal no Brasil, afirmava com a autoridade que lhe conferia sua posição de cientista: "A excitação genésica da clássica mulata brazileira não póde deixar de ser considerada um typo anormal".7 7 Rodrigues, s/d, p. 153. Grifado no original.

Ora, a mulata profissional deve, antes de mais nada, ser portadora desses atributos e corresponder a esse modelo. Deve não apenas ter o tipo físico, mas portar-se de modo a evocar essas imagens. Isso se dá, em particular, numa forma de interação com o público: ela tem de seduzir seu público. Sua capacidade de sedução, em última instância, constitui a prova de sua efetiva capacitação profissional.

Uma etnografia do show de formatura, protago-nizado pelas quinze alunas que se diplomaram, permite enfocar melhor e mais de perto essa questão.

A confirmação da mulata: o show de formatura

O show apresentado durante a cerimônia de formatura, idealizado pelos professores de coreografia, foi composto por seis quadros que reproduziam quase que integralmente números do espetáculo que há vários anos se encontravam em cartaz na casa de espetáculos que sediou o Curso.

Bem menor e mais curto que o espetáculo da casa com seus treze quadros e cerca de duas horas de duração, o show da formatura condensou alguns números e suprimiu outros, mas manteve aqueles considerados carros-chefe, isto é, os chamados "solos de mulata"8 8 Dos seis números apresentados no show de formatura, dois constituem solos de mulata e um se encerra com um solo desse tipo, ficando nesse show mantida a mesma proporção existente no show regular: metade dos quadros do espetáculo é especialmente dedicada a exibições solo de mulata. Quanto aos outros quadros, no espetá-culo das formandas houve a supressão de três regularmente protagonizados por outros tipos de profissionais: Balé Africano, executado exclusivamente por bailarinos negros; Capoeira, exibição de capoeiristas; e, finalmente, o número em que Ataulfo Alves Filho canta em homenagem ao pai. Foi também suprimido o quadro Iemanjá, provavelmente por se julgar que a nudez de uma mulata envolta em diáfanos véus azulados não seria apropriada a um show de formatura apresentado a fami-liares das alunas. .

Tanto a concepção do show quanto a exibição das alunas procuraram, de forma explícita e evidente, reproduzir um conjunto: o clima, as personagens e seus respectivos papéis, em suma, todos os ingredientes que compõem o ambiente no qual se realiza o trabalho de uma mulata profissional. Com efeito, as alunas entendiam muito bem o sentido da realização daquele show: era uma formatura. Em conseqüência, a cada momento e no contexto de cada quadro, procuraram mostrar que tinham realizado a passagem de mulata aluna para mulata profissional.

O samba e a mulata brasileira – elogio da miscigenação

Já se encontrava em cena a Dupla Café com Leite – integrada por uma aluna que se considera "fechada na cor" e outra cuja autoclassificação é de "branca mesmo" – quando o mestre de cerimônia se dirige à platéia para apresentá-las como "duas mulatinhas arretadas, levadas da breca, do ziriguidum, do telecoteco" e exortar: "Vai lá maestro, capricha no sambinha para A. e B. porque, afinal, elas fazem parte de uma mesma cultura, a cultura brasileira, do samba, da miscigenação".

Bastante desinibidas desde o início, as duas alunas, da mesma estatura mediana e vestindo o mesmo modelo de biquíni brilhante e franjado, iam executando performaticamente passos de samba, uma secundando a outra, como que num desafio ou competição da qual o público entusiasmado participava. Ao final do número, manifestações inequívocas da assistência como que confirmavam a fala inicial da apresentadora, atestando que a disputa terminara em empate.

Encarnando Carmem Miranda – a mulata-garota notável

Dublando chica-chica-bum, com muitos babados da mesma cor das penas do incômodo adereço de cabeça que insistia em sair do lugar, as três alunas escolhidas para encarnar a garota notável sabiam que protagonizar aquele número era considerado por todas as alunas um privilégio – "esse quadro exige muita vida", como havia dito a coreógrafa –, o que só fazia aumentar a responsabilidade. Alguns encontrões pelo palco, elegantemente ignorados pela assistência, ficaram totalmente eclipsados pelo sucesso das caras e bocas, olhinhos arteiros escorregando de um lado para outro e, evidentemente, pelo balanço dos quadris que ritmava os babados, fazendo-os alternadamente esconder e revelar as pernas.

Maculelê – uma mulata-afro?

O quadro mais intencionalmente afro do show apresenta uma notação rítmica bastante diferente daquela do samba, mais precisamente uma adaptação da música religiosa ritual do candomblé de caboclo. Comparando-se esse quadro com aqueles que o antecederam, não há como ignorar a instauração de um novo clima, mais dramático e respeitoso que, desde o palco à platéia, pareceu exigir de todos uma postura mais introspectiva e cerimonial. Duas alunas representam, em solo, cada uma um orixá. Trajando réplicas das pesadas vestimentas e dos adereços rituais do candomblé, sua representação da possessão vai garantir, durante toda a longa apresentação, um silêncio algo religioso da platéia. Envolvida pelo ritmo cadenciado e repetitivo, a assistência era como que conduzida pela crescente dramaticidade da coreografia.

Quanto a esse quadro, vale registrar que a escolha das protagonistas resultou de uma cuidadosa seleção das duas melhores entre aquelas que sabiam "dançar afro". Esse quadro foi também o único dirigido pela coreógrafa mais idosa, uma ex-bailarina comprometida no passado com projetos de balé étnico. Para essa coreógrafa, a seleção não se resumia em simplesmente escolher uma dançarina para representar um orixá, sendo igualmente importante "encontrar qual seria o orixá" das escolhidas. Assim é que o rodízio das alunas testadas era acompanhado de uma mudança da coreografia e do próprio quadro – isto é, cada aluna remetia à opção pela dança de um orixá específico, tendo sido testadas várias coreografias entre aquelas associadas às entidades incluídas no panteão do candomblé.

Tanto a escolha da diretora do quadro quanto os procedimentos adotados atestam que o efeito provocado na platéia não foi casual, mas resultado de um tratamento particular, singular. Esse quadro é aquele que confere o selo de qualidade e autenticidade afro ao conjunto do espetáculo.

Baianão – a mulata-baianinha

Trata-se de um quadro tipicamente coletivo, que evoca brejeirice nos enormes laços coloridos que enfeitam a cabeça das oito participantes que vão rodando as bufantes saias de renda, parecendo imitar as evoluções das velhas baianas das escolas de samba. Nesse número foram como que encaixadas todas as alunas que, mesmo não sabendo dançar ou sambar muito bem e, além disso, não tendo o "tipo específico ou adequado para um solo", não se encontravam, entretanto, na mesma situação daquelas duas que, reprovadas em coreografia, foram excluídas do show. Assim é que a participação de algumas formandas – principalmente daquelas muito baixas e/ou sem os atrativos de um "corpo violão" – ficou restrita a essa aparição pouco (ou nada) individualizante.

Essa característica da escolha das participantes desse quadro reforça a sensação de que ele constitui antes um intervalo animado que um verdadeiro número do show, intervalo que acaba por engrandecer o impacto e a personalidade daquele que viria a seguir.

O solo – a mulata-exportação

Ao som de uma música em que o refrão repetia "segura no pé dessa nêga", a percussão que acompanha a entrada triunfal de M. chega a fazer vibrar copos, mesas e cadeiras. Todos os que ocupavam as mesas reservadas a convidados se levantam para aplaudir entusiasticamente, e há mesmo quem faça soar uma barulhenta corneta (dessas utilizadas por torcidas em estádios); outros ainda estendem uma grande faixa exibindo o nome da formanda. Durante vários minutos, revelando para a platéia as "qualidades de uma solista", M. "preenche o palco" com seus movimentos e tremidinhas, provocando a assistência com movimentos insinuantes seguidos de pausas não menos sugestivas. A cada nova evolução a platéia responde com encorajamentos crescentes, pedindo sempre mais. A demora na entrada de Mt., que obriga a apresentadora a anunciar diversas vezes que "aí vem outra mulata de fazer perder o rebolado, foi até Rainha do Carnaval", faz com que a já cansada M. tenha que esticar sua apresentação.

Mt. ainda leva alguns minutos para, com um sorriso um pouco forçado, se apresentar no palco. Esse pequeno atraso – resultante do inexplicável desaparecimento de seu biquíni no camarim, como me foi informado mais tarde pela própria – não parece ter comprometido a boa receptividade da platéia. Ao contrário, o incidente parece ter servido para reforçar simpatias. De uma certa forma, se aquele era um show de formatura no qual as alunas deviam mostrar publicamente sua capacitação como mulatas profissionais, o público atestava, com seus calorosos aplausos, que aquela solista esbanjava aptidão. Soube, como a que a antecedeu, seduzir o público à moda de uma verdadeira mulata: envolver com seus trejeitos os espectadores, manter com eles uma forma de comunicação privilegiada, fazendo desaparecer as barreiras que normalmente estão interpostas entre quem se apresenta e quem assiste. Conseguiu, através do samba, fazer o corpo falar uma linguagem bastante familiar à platéia; em suma, no ato eficiente mas aparentemente gratuito e descompromissado de envolver os espectadores, apagou distâncias e celebrou integrações. A novata soubera resolver uma dificuldade, o que foi evidentemente percebido logo de início pelo público que, redobrando os aplausos a cada novo passo, ia exigindo mais e mais da passista. De fato, Mt. teve uma performance extraordinária: executou durante vários minutos um tipo de movimento de quadris que amiúde não corresponde senão a poucos segundos – o ápice – do solo de uma mulata.

Que esse tenha sido o quadro com maior potencial de projeção individual de suas integrantes, não há a menor dúvida. Quem não conhecia M. ou Mt. teve oportunidade não somente de vê-las em uma situação de absoluto destaque, mas igualmente de conhecer parte de seus currículos, ao menos aquela ligada ao samba e ao espetáculo, assim como de memorizar seus nomes – verdadeiros – que eram repetidos a cada instante. A apresentadora chegava mesmo a mencionar as propostas de contratos e viagens que já haviam recebido antes mesmo do fim do Curso essas "duas mulatas que não estão no mapa". Tudo parece indicar o início promissor de uma carreira de mulata.

Mulher rendeira – de mulata-Maria Bonita a mulata-exportação

Diferentemente dos outros quadros – cópias integrais de segmentos completos do espetáculo regular da casa –, esse número é resultado de uma combinação: ao quadro regular Mulher rendeira foi justaposto um solo bastante característico do show, em que a mulata convida um homem da assistência – geralmente um estrangeiro – que sobe ao palco para aprender a sambar.

Assim é que nesse quadro é possível falar-se em duas partes nitidamente separadas. A parte inicial tem evidente inspiração regional nordestina: uma sanfona ao fundo vai ritmando saiotes, laçarotes, bustiês coloridos e xales de renda de um coro bastante vivaz de quatro alunas que apenas deixam entrever, ao centro, a rendeira principal – diferenciada do coro apenas pela cor do traje.

A segunda parte desse quadro inicia-se quando desaparecem as rendeiras por entre as cortinas e irrompe, cena adentro, uma mulata de biquíni. Enquanto o som da viola cede gradativamente espaço ao do tamborim, os espectadores vão tendo um pequeno momento de pausa para notar as semelhanças entre a mulata de biquíni sambando no palco e aquela que anteriormente fizera o papel da mulher rendeira principal.

A anônima rendeira retorna agora transformada: é a fogosa "mulata saliente: a mulata D.!" – como repete diversas vezes uma voz ao microfone. Enquanto é anunciada, D. vai realizando uma rápida performance solo e, dirigindo-se à platéia, começa a escolher alguém para sambar com ela, apontando alguns homens nas fileiras próximas ao palco. Como ninguém se prontifica, ela insiste diretamente com um rapaz que, incentivado por apelos e aplausos, termina finalmente por subir ao palco.

Começa, então, aquilo que seria uma aula de samba, na qual a mulata, com ar muito malicioso e mãos nos quadris do rapaz que parece um pouco envergonhado, tenta ensinar de que parte do corpo devem partir os movimentos. Em seguida, para delírio da platéia, inverte as posições, colocando as mãos do rapaz em seus quadris, mostrando-lhe como balançam ao ritmo do samba.

Tudo levava a crer que a apresentação decorreria como previsto, reproduzindo o efeito jocoso que esse quadro tem quando realizado com turistas estrangeiros, quando é sugerida uma intimidade maliciosa e sensual na qual a iniciativa e o savoir-faire – inclusive o saber sambar – estão do lado da mulata, e a falta de jeito e o constrangimento estão do lado do gringo. A partir de determinado momento, porém, o clima da apresentação vai se modificando: o rapaz, a princípio um pouco atônito, se recupera do susto e, abandonando a condição de aluno que deveria assumir, resolve mostrar que sabe sambar. E ele samba por vários – excessivos – minutos, durante os quais nem sequer demonstra notar a presença da mulata, que deveria protagonizar o número. O público paulatinamente emudece, aparentemente partilhando o mesmo constrangimento de D. diante da atitude inesperada daquele convidado que, afinal, não tinha jogado o jogo, e a quem, de forma gentil, sem abandonar o sorriso nos lábios, ela sugere inutilmente que encerre sua participação. Pessoas a meu lado, surpresas, perguntavam-se o que estava acontecendo e sobre a identidade do rapaz, demonstrando a mesma curiosidade que, no momento, mobilizava parte da platéia e dos promotores que cochichavam entre si: seria talvez o namorado de D.?

Quando finalmente o rapaz deixa o palco, o que se deveu a uma intervenção da orquestra, que literalmente interrompe a música, as ovações que se seguiram pareciam mais uma reação de alívio pela quebra da tensão que envolvera a todos por bons minutos. De toda forma, o ambiente termina por se descontrair definitivamente quando a apresentadora puxa os aplausos finais para a retirada de "nossa professorinha do telecoteco, do balacobaco, a nossa mulata D."

O desconcerto provocado pelo desempenho do falso turista não deixa de recolocar, em outros termos, o paradoxo vivido naquele show. De um lado, as formandas deveriam realizar um espetáculo que reproduzisse, da forma mais aproximada possível, aquilo que constitui um show de mulatas profissionais; por outro lado, esse show supõe a existência de um tipo de espectador muito particular, que, no caso, estava ausente – o turista. Ao recusar-se a desempenhar esse papel, e, dessa forma, desfazer o quadro, o rapaz sambista rompeu o acordo implícito no qual estava inscrito: "nós agiremos como mulatas profissionais, vocês agirão como gringos". E, ao romper tal protocolo, de uma certa maneira aquele rapaz desvendou que a apresentação de mulatas está ancorada, antes de tudo, em uma relação muito particular com um tipo de cliente muito específico. O show de mulatas, assim, não é apenas uma exibição, mas é uma exibição para um outro muito claramente definido: o turista, o gringo.

O que pode ser depreendido dessa descrição/interpretação do show de formatura pode ser resumido da seguinte forma: é na capacidade de sedução de uma mulata que reside, em última instância, a prova de sua efetiva capacitação profissional.

Mulata sim, prostituta não

O conjunto do material recolhido durante a pesquisa reforça enfaticamente esta conclusão, ao mostrar que a construção da identidade da mulata profissional passa necessariamente pela sua diferenciação da prostituta. Praticamente todas as entrevistadas fazem questão de ressaltar que ser mulata não tem nada a ver com prostituição.

A construção da identidade mulata profissional, como a de qualquer identidade social, não passa apenas pela afirmação de atributos e características partilhados por um mesmo grupo; ela é também, e talvez principalmente, o estabelecimento das fronteiras que demarcam esse grupo de grupos percebidos como vizinhos, próximos, e por isso mesmo ameaçadores daquela identidade em construção.

No caso da mulata profissional a fronteira a ser marcada e defendida é aquela que limita o seu grupo do grupo das prostitutas, o que significa que essa é uma identidade cercada de perigos, de ameaças de diluição.

Como foi verbalizado por várias entrevistadas, "estar na noite exige cabeça", o que quer dizer: não se misturar com os outros, potencialmente corruptores. Essa situação insere a mulata profissional em um contexto moral ligado ao imprevisível, ao perigo, sobretudo porque a implica em um domínio no qual a prostituta se destaca como inescapável referência feminina.

Estar inserida na noite é circular num espaço-tempo em que paira fortemente a sugestão de uma identificação com a prostituta, sugestão que a produção e o ritual de sedução que são exigidos da mulata profissional reforçam ainda mais.

Tem muito homem que pensa assim, eles logo vem: 'Está com aquela bunda de fora é prostituta, é prostituta da noite, é piranha'. Eu posso trabalhar no show, fazer o meu show, pegar as minhas coisas e ir embora, fico se eu quiser na prostituição.

No fundo, no fundo, a gente tem que mostrar que não é nada daquilo que as pessoas pensam [...] dizem logo que é prostituta, mas não é nada disso.

A prostituição é, com efeito, uma referência constante. E se apresenta através de duas modalidades ou formatos: como uma atividade em si, totalizante ou exclusiva, ou como práticas que uma mulher pode desenvolver paralelamente, isto é, superpor ao exercício de uma profissão qualquer. No primeiro formato a prostituição se contrapõe a trabalho e é pensada como alternativa a ele.

Quem quer se prostituir, se prostitui; quem quer trabalhar, trabalha.

A inclusão da ocupação mulata no mundo do trabalho, no universo profissional, constrói um distanciamento diante dessa primeira forma, alternativa e oposta a trabalho. Mas há uma percepção muito clara de que essa inclusão/exclusão no universo profissional é ambígua e que a identidade da mulata profissional nunca está definitivamente dada, assegurada.

Diferenciar-se da prostituta, levar a cabo o projeto de realizar a definitiva integração da ocupação de mulata ao universo profissional: eis algo que somente seria/é alcançado quando tal ocupação se transforma em uma profissão como outra qualquer.

Ser mulata é como uma profissão qualquer, estou levando a minha vida normalmente, é como um emprego qualquer.

Nessas condições, não é difícil entender a necessidade sentida por algumas entrevistadas de colocarem claramente a prostituição como uma prática equidistante, uma possibilidade igualmente oferecida a todas as mulheres, seja qual for sua inserção profissional.

Em outros termos: no que se refere à prostituição enquanto atividade que se desenvolve paralelamente a outra atividade profissional, a mulata profissional encontra-se na mesma situação que qualquer outra mulher trabalhadora.

Prostituta você pode ser em qualquer lugar, não precisa ser mulata, você pode trabalhar num escritório e ser uma prostituta, trabalhar num banco e ser uma prostituta.

O que pode ser lido no conjunto dos depoimentos é que as mulatas são tão dadas à prostituição quanto as mulheres em geral – o que pode ser, ainda, lido no sentido inverso: as mulheres em geral se prostituem tanto quanto as mulatas. Tal postura, ressalte-se, não implica um julgamento moral da prostituição, ou das mulheres que se prostituem, como fica claro no depoimento seguinte:

Cada um com seu trabalho, cada um com a sua profissão, e quem quer se prostituir se prostitui, quem quer trabalhar, trabalha.

Equidistante de todas as profissões, indiferente à condição de cor, de classe ou de ocupação, a prostituição é algo que está definido no espaço individual, por opções e estratégias particulares:

Já ouvi falar muito que as mulatas são muito... discriminadas, são prostitutas a bem dizer, né? Então eu vi que não é nada disso, vai pela cabeça de cada um [...] Gostei da carreira e vou continuar.

Mas se a noite é um espaço-tempo que aproxima a mulata profissional de práticas e ocupações das quais é necessário demarcar-se claramente para afirmar uma identidade própria, ela oferece igualmente outros referenciais que, embora igualmente demarcatórios, não aparecem como vizinhos perigosos e ameaçadores. A noite é também povoada por outros elementos que, tanto quanto a mulata, trabalham na noite: músicos, artistas em geral são vizinhos bem-vindos, com os quais se busca uma associação evocativa que viria reforçar a identidade positiva de mulata profissional.

A auto-inclusão no mundo artístico é acionada, via de regra, como um reforço da condição profissional e como a circunscrição de um conjunto de qualidades que, próprias às mulatas, são por elas compartilhadas com um conjunto mais amplo de artistas. A mulata é uma dançarina, e, em certas circunstâncias, tal afirmação é conotada positivamente, como reconhecimento de uma certa qualificação.

Há momentos, no entanto, em que o saber dançar, ou melhor, o ser dançarina é confrontado ao ser bailarina.

De modo geral, a dançarina aparece como aquela que não tem – ou que ainda não pôde adquirir todos os conhecimentos e técnicas que devem ser aprendidos e que são indispensáveis a uma bailarina.

Eu faço show de mulata, mas é uma coisa, assim, que eu não gosto. Não desfaço, mas eu sempre liguei mais pro meu mundo profissional da dança. Não quero ser mulata, quer dizer, isso faz parte também da dança, mas eu quero continuar sendo uma dançarina profissional. Tudo bem que faz parte da profissão, mas o que eu mais me amarro mesmo é dançar, é uma coisa que eu sempre tive comigo: dança afro, faço também um pouco de jazz...

A hesitação é evidente: em certa medida, ser mulata faz parte da profissão de dançarina, mas ao mesmo tempo não permite que a condição de dançarina se realize plenamente. Embora contida no universo da dança, embora situada no campo das profissões artísticas, a mulata profissional só é dançarina de maneira ambígua: de um lado, incompleta; de outro lado, excessiva ou desviante. Parece mesmo haver uma certa consciência de que aquelas mulheres com determinada cor e determinados atributos de corpo, se e quando ingressarem no universo das profissões associadas à dança, deverão encaminhar-se para a profissão de mulata. É como se o corpo, enquanto forma perceptível, como observou Pierre Bourdieu,9 9 Bourdieu, 1977. se fizesse perceber como corpo de mulata e conduzisse inequivocamente àquela ocupação.

Em suma: mesmo ali onde a mulata profissional parece afirmar-se como um tipo particular de dançarina, a condição de cor cobra seu preço, indicando que o caminho aberto para uma ascensão profissional, e conseqüentemente social, permanece contido em limites estreitos, demarcados.

Provavelmente em nenhum outro lugar, hoje, no Brasil, mesmo havendo recentemente e em alguns espaços a adoção de políticas de cotas em que a autoclassificação racial é critério relevante, ouvir-se-ia a afirmação, feita por uma aluna, de que ter a cor de mulata é a chave para abrir um espaço profissional.

Com a cor dela que ela ganha o trabalho, com a cor porque é mulata. Tenho essa cor, porque senão eu não teria o espaço nessa casa.

Mas é a mesma entrevista que, logo a seguir, destaca a outra face da mesma moeda, revelando que a abertura desse espaço às mulheres que têm a cor é contemporânea a sua exclusão de outros espaços:

A oportunidade aqui é para as mulatas, porque as brancas têm outras carreiras pra fazer.

Assumindo de maneira plena a idéia de que são símbolos sincréticos da brasilidade, as mulatas incorporam também a representação segundo a qual são portadoras de qualidades intrínsecas passíveis de manipulação em rituais de sedução do homem branco (no caso, sobretudo, o gringo).

Mas se a possibilidade de acionar profissionalmente essa aptidão é vislumbrada como uma benesse, as mulatas correm permanentemente o risco de fracassar pela ameaça de serem confundidas/deixarem-se confundir com a prostituta. Com efeito, elas se vêm defrontadas aos estigmas associados seja à imagem da mulata sensual e disponível – que, contraditoriamente, aceitam, rejeitam e devem representar/apresentar –, seja à imagem da mulher da noite.

Concluindo: nem prostituta, embora implicada em práticas de sedução e inserida num espaço-tempo – a noite – que evoca permanentemente a prostituição, nem plenamente dançarina, embora inserida no campo dos profissionais da dança, o ser mulata profissional é, antes de qualquer outra coisa, um permanente exercício de rejeição de identidades negativas ameaçadoras, uma permanente busca de associação a identidades idealizadas que não se completam.

A esta altura seria possível perguntar se, e em que medida, é o conjunto da sociedade brasileira e das relações de gênero e raça que se atualiza nesse drama de um grupo de mulheres cuja cor simultaneamente constitui a condição de sua profissionalização e a ameaça permanente de desqualificação da profissão que exercem. Afinal, não têm sido as mulheres negras e mulatas, no imaginário brasileiro, símbolo da sensualidade e espaço de projeção da dominação (do desejo) do homem branco? Nas condições sociais vigentes, parece coerente que a existência de uma profissão que discrimina positivamente a mulher negra seja, enquanto profissão, permanentemente ameaçada de discriminação negativa, ao mesmo tempo em que aciona, contraditoriamente, os símbolos da sensualidade e da brasilidade.

Recebido em agosto de 2005 e aceito para publicação em março de 2006

  • BOURDIEU, Pierre. "Remarques provisoires sur la perception sociale du corps". Actes de la Recherche, n.14, p. 51-54, avril 1977.
  • FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985 [1936].
  • GIACOMINI, Sonia Maria. Profissão mulata: natureza e aprendizagem num curso de formação 1992. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • QUEIROZ JUNIOR, Teófilo. Preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira São Paulo: Ática, 1975.
  • RODRIGUES, Raymundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil Rio de Janeiro: Editora Guanabara, s/d [1894].
  • SANT'ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia São Paulo: Editora Brasiliense, 1975.
  • 1
    A autora agradece mais uma vez o apoio da Fundação Carlos Chagas, sem o qual a pesquisa que deu origem a este artigo não teria sido possível.
  • 2
    Esse tema foi amplamente explorado em Giacomini, 1992.
  • 3
    Por "acidentes de trabalho" entendem-se situações, embora eventuais mas nem por isso total-mente inesperadas, em que um turista se excede sobre o palco ou fora dele, tornando-se incon-veniente ou mesmo agressivo.
  • 4
    Giacomini, 1992.
  • 5
    Presente no imaginário brasileiro de forma crescente, principal-mente a partir do século XIX, a mulata é construída, em verso e prosa, como um tipo feminino peculiar. Para uma análise da mulata na literatura brasileira, ver Teófilo Queiroz Junior, 1975; e Affonso Romano de Sant'Anna, 1975. Sobre representações da mulata no pensamento social brasileiro, em particular em Gilberto Freyre, Raymundo Nina Rodrigues, Oliveira Vianna e Florestan Fernandes, ver Giacomini, 1992.
  • 6
    Freyre, 1985, p. 602.
  • 7
    Rodrigues, s/d, p. 153. Grifado no original.
  • 8
    Dos seis números apresentados no show de formatura, dois constituem
    solos de mulata e um se encerra com um solo desse tipo, ficando nesse show mantida a mesma proporção existente no show regular: metade dos quadros do espetáculo é especialmente dedicada a exibições
    solo de mulata. Quanto aos outros quadros, no espetá-culo das formandas houve a supressão de três regularmente protagonizados por outros tipos de profissionais:
    Balé Africano, executado exclusivamente por bailarinos negros;
    Capoeira, exibição de capoeiristas; e, finalmente, o número em que Ataulfo Alves Filho canta em homenagem ao pai. Foi também suprimido o quadro
    Iemanjá, provavelmente por se julgar que a nudez de uma mulata envolta em diáfanos véus azulados não seria apropriada a um show de formatura apresentado a fami-liares das alunas.
  • 9
    Bourdieu, 1977.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2006

    Histórico

    • Aceito
      Mar 2006
    • Recebido
      Ago 2005
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