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Observações sobre a política dos desejos: tentando pensar ao largo dos instintos compulsórios

Remarks on the politics of desire: trying to think beyond compulsory instincts

Resumos

O texto procura articular uma maneira feminista e holista de pensar a relação entre natureza e desejos. Tento considerar nossos desejos em relação ao nosso corpo e a como ele responde às forças nas nossas subjetividades, às pessoas a nossa volta e à história da nossa espécie. Começo considerando a distinção entre o político e o pessoal e daí faço algumas observações sobre a natureza e as três ecologias imbricadas uma na outra como diagnosticou Guattari. Proponho que entendamos o corpo como a confluência dessas ecologias e, ao mesmo tempo, como sendo ele mesmo nossa plataforma política. Proponho, então, um modelo acerca de como a natureza molda e restringe nossos desejos de um modo que não nos impõe nenhuma mensagem específica. Reflito, assim, sobre nossos instintos e como eles se inscrevem na política de nossa espécie - e como eles podem ser transformados, uma vez que não são mais naturais que os demais itens da nossa paisagem subjetiva. Essa transformação, eu argumento, deve ser pensada em termos de uma politização ecológica.

corpo; desejo; politização; pornografia; instintos; masculinidades


This work attempts to articulate a feminist and holist account of our desires and their relation to nature. I consider desires in relation to our bodies, the environment around them and how they respond to the forces within our subjectivities, to society around us and to the evolutionary history of our species. I start out considering the separation of the personal and the political and then move on to make some remarks about nature and the three intertwined ecologies described by Guattari. I suggest that we understand the body as a meeting point for those ecologies and, at the same time, as constituting itself a political platform. I then offer a model of how nature constrains and shape our desire so that no specific message is drawn by our desires from nature. It follows that our desires can be changed as they are not in any sense more natural than the rest of our subjectivity. This change, I claim, is to be thought of in terms of an ecological politics.

Body; Desire; Politics; Pornography; Instincts; Masculinities


ENSAIO

Observações sobre a política dos desejos: tentando pensar ao largo dos instintos compulsórios

Remarks on the politics of desire: trying to think beyond compulsory instincts

Hilan Bensusan

Universidade de Brasília

RESUMO

O texto procura articular uma maneira feminista e holista de pensar a relação entre natureza e desejos. Tento considerar nossos desejos em relação ao nosso corpo e a como ele responde às forças nas nossas subjetividades, às pessoas a nossa volta e à história da nossa espécie. Começo considerando a distinção entre o político e o pessoal e daí faço algumas observações sobre a natureza e as três ecologias imbricadas uma na outra como diagnosticou Guattari. Proponho que entendamos o corpo como a confluência dessas ecologias e, ao mesmo tempo, como sendo ele mesmo nossa plataforma política. Proponho, então, um modelo acerca de como a natureza molda e restringe nossos desejos de um modo que não nos impõe nenhuma mensagem específica. Reflito, assim, sobre nossos instintos e como eles se inscrevem na política de nossa espécie – e como eles podem ser transformados, uma vez que não são mais naturais que os demais itens da nossa paisagem subjetiva. Essa transformação, eu argumento, deve ser pensada em termos de uma politização ecológica.

Palavras-chave: corpo; desejo; politização; pornografia; instintos; masculinidades.

ABSTRACT

This work attempts to articulate a feminist and holist account of our desires and their relation to nature. I consider desires in relation to our bodies, the environment around them and how they respond to the forces within our subjectivities, to society around us and to the evolutionary history of our species. I start out considering the separation of the personal and the political and then move on to make some remarks about nature and the three intertwined ecologies described by Guattari. I suggest that we understand the body as a meeting point for those ecologies and, at the same time, as constituting itself a political platform. I then offer a model of how nature constrains and shape our desire so that no specific message is drawn by our desires from nature. It follows that our desires can be changed as they are not in any sense more natural than the rest of our subjectivity. This change, I claim, is to be thought of in terms of an ecological politics.

Key words: Body; Desire; Politics; Pornography; Instincts; Masculinities.

0. O intuito central destas observações é esboçar um modelo para pensarmos nos desejos, nas relações políticas em torno deles e na sua autonomia. O modelo é uma maneira de entender instintos e sua relação com o conteúdo de nossos desejos de uma maneira holista e compatível com muitos dos desiderata feministas. Trata-se de um modelo em grande medida compatível com as observações sobre meus desejos e suas relações com outras pessoas e com meu treinamento sexual em Observações sobre a libido colonizada.1 1 BENSUSAN, 2004a. Penso nesse modelo desde meu esforço por pensar minha situação de homem em uma sociedade patriarcal e, assim, ele emerge de minha maneira de lidar com os feminismos. Estas observações refletem esse caráter situado da elaboração do modelo: nelas incluo algumas de minhas experiências hesitantes ao tentar interferir no apelo dos desejos que são associados comumente a instintos e apresento algumas inquietações acerca do modo como os feminismos atuam sobre a esfera dos meus desejos. Os desejos são, de alguma maneira, inculcados – em nós no convívio com outras pessoas. Este trabalho pretende investigar de que maneira esses desejos são inculcados e considero meus desejos freqüentemente como exemplos. Começo considerando a relação entre o privado e o público na esfera dos desejos; tento encontrar elementos para investigar o que significa dizer que o pessoal é político (1-6, 10-12). Depois de algumas observações preliminares sobre corpo, desejo e soberania (7-9), passo então a considerar a relação entre a politização dos desejos e a pornografia (13-15). Isso me permite rapidamente introduzir alguns elementos do modelo a ser esboçado que dizem respeito ao corpo e à confluência das ecologias (16-20) diagnosticadas por Guattari.2 2 Félix GUATTARI, 1989. Depois de algumas observações sobre a política dos estupros (21-25) dirijo-me ao tema da maneira como concebemos aquilo que é natural (26). Em seguida (27-35) considero o modo como nosso corpo (e suas políticas, eróticas e ecologias) torna-se nosso. Nesse ponto estou em condições de procurar esboçar explicitamente o modelo (36-37) e concluir considerando algumas de suas conseqüências.

1. Desejos muitas vezes são entendidos como exigindo uma esfera própria, uma esfera especializada: muitas vezes entendemos o desejo pertencente a um domínio privado. Gostaria de começar a pensar o desejo em sua relação com essa articulação de esferas. O que significa contrastar o privado e o político? Muitas vezes pensamos de um jeito quando tratamos de alguma coisa pública, e de um outro jeito quando pensamos privadamente. Um exemplo dessa dicotomia pode ser encontrado na forma como Rorty3 3 Richard RORTY, 1989. distingue auto-criação, ou autonomia, de um lado e solidariedade de outro. Rorty pretende entender a solidariedade e a autonomia como valores que guiam nosso pensamento – e entende que esses guias são tais que apenas um deles é compatível com a argumentação (e, presumivelmente, com o debate político). Ele diz que

não há modo de juntar auto-criação e justiça no nível da teoria. O vocabulário da auto-criação é necessariamente privado, não-compartilhado, inadequado para a argumentação. [ ] As demandas da auto-criação e da solidariedade humana são igualmente válidas, e ainda assim incomensuráveis.4 4 RORTY, 1989, p. xiv-xv. Tradução minha.

Incomensuráveis, mas compatíveis porque os vocabulários públicos e os vocabulários privados têm diferentes funções em nossas vidas. Ambos nos ajudam a lidar com certas situações. Acontece que, se Rorty está certo, temos que ter já uma divisão entre as situações apropriadas para cada tipo de vocabulário. Precisaríamos ter uma espécie de ur-vocabulário, um vocabulário fundante, que proceda à separação entre o que é apropriado para cada vocabulário. Rorty, sabidamente, posiciona-se muitas vezes contra vocabulários considerados privilegiados, que de alguma forma são tomados como mais próximos de como as coisas são – representações privilegiadas. A inexistência de vocabulários com direito a privilégios especiais insinua uma pergunta assim: que meta-vocabulário poderoso poderia instituir a separação entre as esferas públicas e as esferas privadas? A instituição de separações é feita e desfeita desde dentro de vocabulários por nós, que de alguma forma traficamos vocabulários. Penso que a afirmação de que o pessoal é político deve ser pelo menos uma maneira de negar a incomensurabilidade de que fala Rorty.5 5 RORTY, 1999. Ele concorda com Robert BRANDOM, 1999, que sua distinção entre vocabulários de autonomia e vocabulários de solidariedade é problemática e pode ser perigosa.

2. Há um sentido de privado associado ao que não é corrigível: ao que está para além do escopo de qualquer correção. Muitas vezes, são esses os conteúdos privados que são exorcizados ao longo do trabalho de Wittgenstein nas Investigações (PU, 1, 256-304).6 6 Ludwig WITTGENSTEIN, 1968, I, 256-304. Aquilo que é privado é aquilo que não precisa ser visto, explicado, justificado, divulgado. E também não precisa ter mais do que uma aparência de correção para quem de alguma forma tem acesso a ele. Muitas vezes sensações são associadas ao que é privado. Pode-se argumentar que tudo aquilo que escapa ao controle público, no qual nenhuma instância pública pode intervir, está alheio a normas de correção. Assim, por exemplo, quando dizemos que a vida privada deve ser reservada, estamos estabelecendo um lugar de onde não repercute nada, um pequeno casulo.7 7 Na Argentina de Videla, quando o chamado "Processo" militar tentou atrair os políticos civis, estes torciam para que a luta contra a chamada subversão não fosse ao estilo Pinochet – com assassinatos públicos. Em um cenário desses, os políticos teriam de justificar ou condenar os atos do Processo. Os desaparecimentos lhes convinham mais; instalavam um clima de terror – uma vez que critérios e escolhas não precisavam ser em nenhuma medida publicamente escrutináveis – mas prescindiam de um discurso público. A arena privada parece muitas vezes como o espaço debaixo do tapete para onde colocamos o que não pode ser julgado publicamente. Durante o período, os desaparecimentos foram escolhidos porque pareciam subversivos aos olhos de algum grupo militar (embaixadores que estavam muito próximos de Videla, quando iam a Buenos Aires, poderiam também desaparecer ­­ como foi o caso de Hidalgo Solá, embaixador na Venezuela desaparecido em Buenos Aires em julho de 1977). Aquilo que parecia subversivo a um grupo suficientemente armado e poderoso das forças armadas era subversivo. Para uma exposição mais detalhada do episódio, consultar, por exemplo, Marcos NOVARO e Vicente PALERMO, 2003, p. 106-220. Quando os passos de uma ação não podem ser examinados, não podemos colocá-los sob o escrutínio de normas de qualquer tipo. O privado parece aqui próximo de um terreno de arbitrariedade completa. Aquilo que fica completamente escondido pode ter o luxo de nem sequer precisar ser inteligível.

3. Podemos pensar na distinção entre privado e público como a distinção entre cama, carteira e vida familiar de um lado e rua, trabalho e vida na sociedade civil de outro. É assim que, primariamente, eu a entendo. Porém muitas vezes o privado é a diferença entre nós e qualquer dos grupos de identidade a que pertençamos por exemplo, porque pertencemos a outros grupos também: temos gênero, mas temos classe, etnia, escolha sexual, raça também. Amos Oz,8 8 OZ, 2004, p. 39-40. propondo uma retificação do muito citado diagnóstico de John Donne de que todo homem é uma ilha, escreve que nenhum homem e nenhuma mulher são ilhas, mas todas as pessoas são penínsulas, um lado próprio, um lado público. Todas as pessoas estão parcialmente conectadas com as outras, mas não completamente. A solidão, o foro íntimo, as motivações que me atingem podem deixar de atingir outras pessoas. Alguns movimentos no espaço das práticas públicas são pessoais: são próprios. O que é próprio é, pelo menos, uma posição específica na assembléia de pessoas: que horizonte podemos observar, do ponto onde estamos. Nesse sentido, no sentido em que somos penínsulas, o pessoal não deixa de ser político. Mas parece que ele invoca uma política diferente, que não é apenas a política das manifestações de rua – veremos que talvez não seja apenas a política dos grupos de identidade. Não se trata de organizar partidos ou movimentos, de escolher, mas de nos movimentar dentro dos cenários em que estamos. Trata-se de uma política diferente?

4. Dizemos: pecunia non onet. O dinheiro, que controla e substitui a maioria das nossas políticas emocionais – a maioria do nosso contato com as outras pessoas –, esconde sistematicamente a teia de relações pessoais que fazemos para sobreviver. O dinheiro deixa as classes, o prestígio, a distribuição de privilégios recônditos. O dinheiro esconde um conjunto de relações econômicas e força uma estrutura competitiva em que não importa de onde o dinheiro vem – seu cheiro. O dinheiro permite que pensemos na economia como independente de nossas outras relações com as pessoas – como Gen Vaugham9 9 Geneviève VAUGHAM, 1997. uma vez sentenciou, a troca monetária institui uma linguagem independente e de poucos recursos para que negociemos aquilo que entra na esfera econômica. Podemos pensar, analogamente, que a idéia de que as pessoas buscam prazeres nos permite tornar a erótica independente de nossas relações com as pessoas. A erótica, como a economia, fica instituída como uma esfera independente; e, assim independente, fica liberada de se apresentar a um escrutínio por parte de normas sociais externas a elas. Nesse sentido, e pensadas assim, elas ficam parecendo autônomas como muitas vezes quer parecer a esferas privadas.

5. Existem partes da nossa vida que não concernem a ninguém? Pensamos assim quanto aos nossos bens privados: aquilo que é uma propriedade privada pode ser usada como aprouver apenas a quem dispõe da propriedade. Nenhuma outra voz é relevante. Pensamos assim quanto a nossa vida privada: aquilo que é de nossa vida privada dispomos como nos aprouver, apenas a nós. É como pensamos no dinheiro que temos no bolso na maioria dos casos: gastamos como decidimos gastar; o domínio privado é um domínio do nosso arbítrio – livre. Aquilo que é privado é muitas vezes entendido como sendo jamais passível de revisão, como sendo alguma coisa que não pode ser julgado como correto ou incorreto – não pode, portanto, ser corrigido – e que não deve ser colocado em xeque. Aquilo que é público pode ser questionado, pode ser julgado e é onde pode haver julgamentos de responsabilidade. Aceito esse contraste entre o público e o privado, parece que há um sentido de liberdade que repousa na nossa capacidade de fazer escolhas que podem ser vistas como acertadas – a liberdade na esfera pública ­­ e há um sentido de liberdade como puro exercício de nossos desejos sem restrições – a liberdade na esfera privada. Vivemos, de acordo com essa imagem, uma vida dupla e, portanto, temos uma dupla liberdade. Essa imagem permite que as propriedades privadas sejam usadas como livremente (no sentido privado) escolhem quem tem a propriedade: uma vez que o dinheiro entra na carteira (ou na conta bancária), não se deve mais restringir o seu uso. Essa imagem também permite que a vida pessoal possa ser gerida livremente (no sentido privado). Uma imagem assim implica o privilégio da não-responsabilidade sobre o dinheiro que sai da carteira e sobre as conseqüências das escolhas pessoais. A esfera privada fica livre de escrutínio: o privilégio de não ter responsabilidade sobre as conseqüências dos nossos atos privados é o privilégio de quem fica fora do escopo do escrutínio. A imagem de que o privado é esfera diferente do público favorece quem não precisa justificar aquilo que faz porque faz em uma esfera privada. A imagem desfavorece quem não pode fazer demandas ou reivindicações porque elas atingem uma esfera privada. A separação entre público e privado interessa a quem pode usar privilégios que ficam sem serem questionados: privilégios exercidos entre quatro paredes, privilégios tornados possíveis pelo dinheiro na carteira. Não atribuir responsabilidade ao que se faz na esfera secreta incapacita as demandas de quem não dispõe desses privilégios. Politizar a erótica e a economia é conectá-las com as demais interações entre as pessoas e a história delas. Politizar vidas pessoais é supor que não existem essas províncias onde nenhuma outra voz pode ser escutada; onde apenas a minha voz fala, comanda e é obedecida. Negar que haja províncias só minhas, mesmo na minha vida pessoal. (E ainda assim minha vida pessoal é minha: me diz respeito.)

6. Uma vez eu participei de uma discussão sobre como as mulheres bonitas são favorecidas ao procurarem emprego. Podemos legislar sobre as obrigações dos empregadores e, assim, impedi-los de descriminar quem não apresenta beleza. Muito mais difícil é atuar sobre a vida pessoal dos homens que escolhem estar apenas em relações afetivas ou sexuais com as mulheres bonitas. Não podemos – aqui começa a esfera privada, um véu de Maya que esconde o que supostamente não deve ser examinado: quanto a isso, nenhuma voz pode ser escutada e os desejos devem ser deixados em paz. E, no entanto, na medida em que nossos desejos escutam outras vozes, eles são politizáveis.

7. Relatos etnográficos de uma tribo de índios brasileiros que andam sem roupa contam que os índios sentenciam: "em nós, tudo cara". Se tudo é cara, nada é pornografia. A pornografia ensina a separar a cara do resto do corpo, a cara não pode ser olhada com olhos pornográficos. O corpo, por outro lado, expressa muito pouco, apenas obedece (ou não obedece) às normas do que é desejável. Wittgenstein escreveu que "o corpo humano é a melhor imagem da alma humana".10 10 WITTGENSTEIN, 1968, II, iv. E nós não vemos a alma na maior parte do corpo; vemos apenas o que uma certa pornografia ensina a ver. Trata-se de uma maneira de ver os corpos que deixa os desencantados, sem alma, no seguinte sentido: ficam exilados de tudo de pessoal.11 11 Interessante aqui a observação de Ondina Pena Pereira (em conversa) sobre um grupo melanésio que, após contato com o Ocidente, diz que os ocidentais lhes trouxeram a idéia de corpo e não a idéia de espírito.

8. Muitas vezes para nós nosso corpo aparece como terra incognita. Terra desconhecida e que, no entanto, responde a nossa maneira de viver – e parece – de forma cada vez marcada. Penso que nossos corpos, assujeitados por nosso controle e pelo qual somos responsáveis, vão gradativamente, tornando-se mais e mais a nossa cara. Meu corpo, parece, responde mais a minhas angústias, está mais bem sintonizado com meus afetos e exprime ele mesmo meus próprios confortos e desconfortos emocionais. Penso que, com a passagem do tempo, o corpo fica mais dominado, não pela nossa vontade, mas por nossas motivações e pelos nossos estados emocionais. Nosso corpo se torna mais e mais a melhor imagem de nossa história pessoal – de nossa capacidade de sentir e dos sentimentos que o ambiente e as pessoas a nossa volta provocam.12 12 Cf., por exemplo, Alexander LOWEN, 1958. Penso então que os corpos, com o tempo, tornam-se mais visivelmente efeitos da maneira como vivemos; frustrações, aceitações incompletas, desgostos e relações ambíguas com outras pessoas são afetos que fazem adoecer e fazem morrer. O processo acontece quando envelhecemos, quando nossos corpos deixam de ter a juventude na qual eles sejam talvez menos um retrato de nós, sejam talvez menos assujeitados por nossa vida emocional. Os corpos que aprendemos a desejar com a pornografia são corpos jovens. Talvez sejam corpos que não sejam a cara de ninguém. A virgindade continua a ser desejável: a virgindade emociona13 13 No filme Monique, de Valérie Guignabodet (2002), uma boneca que parece muito uma jovem mulher é comprada por um homem que se separa de sua esposa. Monique, a boneca, é um corpo pura materialidade, mas com uma história que se supõe ser a história dos afetos e concessões de uma garota atraente simulada nele. Não é um corpo qualquer ou um corpo em geral porque não há corpos sem uma história de afetos e concessões. Mas é um corpo que agora se torna isento de política – submisso à erótica e à política do dono. O dono da boneca é que assujeita o seu corpo, e assujeita-o completamente. Sua ex-mulher, em uma crise de insegurança, diz "mas ela poderia ser sua filha...". Claire, a ex-esposa tenta entender o ex-marido pensando no que Monique não faz: não reclama, não faz jantares, não lava a louça, não cozinha, não fica indisposta. O marido resolve assumi-la completamente: era um corpo assim que ele queria. O filme parece para mim um retrato de um tipo preponderante de desejo masculino. ; como o desejo pedófilo que seja pautado pelo desejo por controlar o que é vulnerável, por aquilo que nem sequer se assujeitou a si mesmo. A pornografia, também nesse sentido, separa os corpos do que eles expressam. Ela torna possível a desconexão de nossa vida erótica do resto de nossas vidas. Um erotismo que tratasse com sujeitos e com corpos que são a cara de alguém seria um erotismo espalhado por todos os terrenos da nossa vida emocional.

9. O desejo parece ser muitas vezes pensado como endereçado no corpo. O corpo, por sua vez, é uma propriedade pessoal de alguém – como pessoais e inalienáveis são as vidas mentais e, portanto, os desejos. De um lado, ouvimos a sugestão de que o pessoal é esfera autônoma, privada, alheia, por conseguinte, aos esforços de politização. Por outro lado, se o desejo não é inteiramente privado, aceitamos que ele trace caminhos inescrutáveis. A separação entre os desejos como itens privados e o resto de nossas vidas como politizáveis separa também os nossos corpos – lócus dos desejos – de nossa capacidade de soberania. Existem muitas razões para rejeitar a imagem tradicional da fraqueza da vontade diante dos desejos14 14 Cf. David HUME, 1911[1740]; Donald DAVIDSON, 1980. em favor de uma imagem onde nossa soberania se relaciona com nossos desejos de uma maneira mais complexa.15 15 Cf. por exemplo John McDOWELL, 1998; Richard MORAN, 2001. Gostaria de propor um modelo da esfera dos desejos – e paralelamente do que fica refletido em nossos corpos – que não a considerasse como privada no sentido de alheia a qualquer escrutínio político e, ao mesmo tempo, que respeitasse as intuições de que ela não pode ser apenas um reflexo de nossa soberania pessoal. Esse modelo, que ficará claro no resto do trabalho, entende que os desejos respondem sempre a minha esfera pessoal, às subjetividades a minha volta e à história da nossa espécie em seu ambiente.

10. O que significa dizer que o pessoal é político? Não se trata de uma redução do tipo que permite que abandonemos todo discurso acerca do que é pessoal porque, no fim das contas, tudo é político. Podemos dizer que o discurso político trata, prevê, cura, explica, entende e torna possível tudo o que o discurso pessoal trata, cura, explica, entende e torna possível? Quero dizer que não, não pode ser nesse sentido que o pessoal é político. Em que sentido então?

11. Se o pessoal é político então o pessoal não é estético, por exemplo? O pessoal, eu tento dizer, tem uma dimensão política. Não queremos que o sujeito desapareça, tragado pelo objeto que é pensado – queremos que as subjetividades não se tornem objetividades (nem mesmo objetividades potenciais) para que elas possam ser políticas. As subjetividades – feitas de um material público, penínsulas de Oz – carregam capacidades políticas. Penso que se trata de negar a incomensurabilidade entre uma dimensão pessoal e uma dimensão política; negar a incomensurabilidade não é por si só afirmar que é possível que uma dimensão se reduza a outra. Não se reduz; nem sequer me parece inteligível o que seria uma redução assim. E parece que na comensurabilidade entre o político e o pessoal é que surge o espaço para as diferenças. Pergunto-me como podemos formular a política e a erótica dessas diferenças? E as diferenças não são nem dadas e nem irreversíveis. Não são irrevogáveis em ponto algum. E, no entanto, isso não nos leva a uma arquitetura da vitória ou do convencimento – da tese vencedora, seja de fato ou de direito. Minhas crenças afetam as crenças das outras pessoas como meus desejos afetam os desejos das outras pessoas. Porém no caso dos desejos – pelo menos no caso dos desejos – não parece que se trata de um campo vencedor e um campo vencido, um campo convencido. Meus desejos contagiam, mas o contágio atua sobre um outro corpo. A tentação do território conquistado, ou do convencimento, é, no caso das crenças, a tentação de pensar em nossas crenças isoladamente, como por vezes pensamos em teses que podem se sustentar apenas por demonstrações. Mas as teses não podem ser entendidas sem outras crenças e nossas crenças – nossas teses – freqüentemente não podem ser identificadas senão por meio das demonstrações de que fazemos uso para mantê-las em mente: crenças são função da demonstração, mas também as demonstrações são função das crenças que temos (e, mesmo, da tese em questão). A tentação do território conquistado, ou do convencimento, parece ser também no caso do desejo um produto da idéia de que um desejo nosso possa ser isolado dos demais e do resto de nossa vida; os desejos das outras pessoas atuam sobre mim atuando sobre o pano de fundo dos meus desejos, das minhas crenças. Parece claro que afetamos as pessoas; de alguma maneira afetamos as crenças e os desejos das outras pessoas; não é uma crença específica que muda, não é um desejo específico que muda. Não é um desejo específico que passa de uma pessoa para outra – em outra pessoa, o desejo assume sempre uma outra identidade.

12. Não parece fácil individuar desejos. Agimos sobre diferenças quando nosso desejo contagia. É essa epidemiologia que tem uma política: não é alheia a quem tem poder e privilégios (e a ribalta e o megafone). A política dos desejos é uma espécie de epidemiologia de quantidades massivas. Um desejo é sempre composto de um pano de fundo de outros desejos que compõem toda uma cena (com outros itens da nossa subjetividade). Afetar os desejos das outras pessoas – e o combate emocional, simbólico e prático dos feminismos se inserem aqui – é afetar grandes quantidades de elementos nas subjetividades das pessoas. Nenhum desejo nos move sozinho; nenhum desejo pode ser transformado sozinho.

13. A esfera de desejos parece por vezes ter todas as suas portas e janelas abertas. Parece que cada desejo pode ser transformado, ainda que não possamos alterar todos os nossos desejos ao mesmo tempo. Os desejos formam um composto em que cada um só pode ser entendido – e só pode atuar – sobre o pano de fundo dos outros desejos. Se pudermos confiar nessa propriedade transformável dos desejos, essa plasticidade dos desejos de cada um de nós, temos a indicação de um caminho na política dos desejos: eles não são naturais, não estão amarrados em nós com laços de aço. Acredito que os feminismos são pedagogias do desaprendizado das pornografias masculinistas. Espero que eles atuem sobre meus desejos. Observo meus desejos como uma arena em que minha soberania, minha política, a natureza e minha educação estão presentes. Observo o que faço com a pornografia que coloniza alguns dos meus desejos dentro dessa arena.

14. Fico querendo tocar nos pés, nas pernas, no corpo das mulheres – e uso a pornografia, pelo menos na sua forma mental. A esta altura, não me lembro mais se algum dia fui mesmo a um cinema pornô, como o cine Ritz, que tem também pessoas fazendo sexo no palco.16 16 Parte desta seção originou-se em minha comunicação "Por que (quase) vou ao cine Ritz", feita em maio de 2005 no evento Corpus Crisis, que ocorreu no CONIC, centro de diversões de muitas naturezas, em Brasília. Agradeço ao Corpus Crisis. Não sei se é só imaginação que algum dia entrei no cinema, fiquei excitado e entediado e saí dele me sentindo miserável. Não importa. Mas dentre os homúnculos dentro de mim, parece haver pelo menos um que tenta ser complacente com a pornografia. Passo a chamá-lo de Ritzículo. Tenho também outros homúnculos dentro de mim, por exemplo, aquele que abaixaria a minha cabeça quando eu saísse miserável do cine Ritz. Esses homúnculos me dizem que qualquer pornografia inventa desejos em mim, desejos que esquartejam as mulheres, as enxergam como um corpo, desejos que me fazem associar prazer e dominação, ocupação, subjugação. Esses homúnculos têm prazer com gente como John Stoltenberg ou Andrea Dworkin. Um deles pode se chamar DWORKÍNCULO. Os dois, Ritzículo e DWORKÍNCULO, são homúnculos que vivem discutindo dentro da minha cabeça, na pele da minha mão, entre os poros das minhas costas. Eles têm diálogos assim:

RITZÍCULO: A pornografia é uma escapatória para o erotismo. Quando meu desejo de trepar é muito grande, me masturbo; às vezes o desejo fica ainda mais satisfeito com as imagens e os sons da pornografia. Não sei se a pornografia satisfaz meu erotismo, mas pelo menos me livra das minhas urgências...

DWORKÍNCULO: Mas a que preço? Ela me ensina a desejar a dominação, a erotizar o controle, a gostar do jogo de provocar e conquistar. Eu acho que a pornografia é um desperdício de erotismo. Aquilo que é mais pulsante e que mais nos sacode é colocado à disposição de um roteiro fixo em que eu sou o homem que domina a presa depois que ela me tenta, se insinua, pede para ser dominada e eu a domino. Cada vez que eu vejo uma pornografia, ficam reforçadas as lições de que as mulheres querem ser dominadas, não importa o que elas digam. A pornografia aparece como a autoridade a nos contar o que as mulheres realmente querem...

RITZÍCULO: As mulheres que eu conheci fora da pornografia raramente querem apenas serem dominadas; esta é uma fantasia pornográfica.

DWORKÍNCULO: Mas por que é que eu quero dominar as mulheres, possuí-las, fodê-las, tê-las como objeto da minha conquista que me faz sentir fiel aos princípios da minha casta masculina?

RITZÍCULO: Sei lá se eu quero isso tudo... Gosto de sexo. Quero as mulheres, às vezes gosto de dominá-las como na pornografia, a pornografia realiza esses desejos...

DWORKÍNCULO: Mas a pornografia enfiou esses desejos em mim!

RITZÍCULO: Não sei se meus desejos foram criados por uma pedagogia pornográfica ou uma matriz misógina ou sei lá o quê. Mas eu desejo sexo e a pornografia me mostra o que eu desejo, mesmo que a pornografia seja o meu desejo por definição. Hoje eu desejo corpos femininos sensuais e lânguidos, não sei de onde isso veio, mas sei que desejo essas coisas.

DWORKÍNCULO: Eu aprendi a desejar essas coisas, mas não é só isso que eu aprendi.

RITZÍCULO: O que mais eu aprendi a desejar?

DWORKÍNCULO: Eu acho que a pornografia ensina a desejar porque o desejo é contagiante. Não somos alheios às pessoas a nossa volta, aprendemos a ser o que somos olhando outras pessoas e pensando no que elas fazem e no que elas gostam. É por isso que a pornografia pode ser tão eficiente – desejos são aprendidos, aprendemos com as outras pessoas o que é desejável (e o que não pode ser desejável). É uma lição difícil, precisamos anos para aprender e muitas pessoas não aprendem direito – acho que ninguém aprende direito. E, no entanto, talvez nós não tenhamos nenhum desejo a não ser aqueles que aprendemos vendo as outras pessoas desejarem. Para aprendermos a desejar muitas coisas, temos que ter contato com muitas coisas. Temos que ter um regime plural de desejos.

RITZÍCULO: É estranho, parece que nossos desejos não são quase nunca realmente nossos.

DWORKÍNCULO: E talvez nenhum elemento da nossa cabeça seja realmente todo nosso. Nossa cabeça é parte de um sistema material de dominação sexual das mulheres que dispõe dos nossos corpos para erotizar o conflito da nossa casta masculina com as mulheres. Uma base dessa dominação é que as mulheres são caças, são presas – e a pornografia é uma representação da sedução e da posse. Meus desejos foram forjados em um regime assim; e, no entanto, eles são pelo menos em parte meus.

RITZÍCULO: E o que faço com meus desejos? Reprimo, realizo ou fico em um meio termo morno que é a masturbação? Quando entro no clima da masturbação, só a pornografia me interessa; não penso mais que as diferenças de comportamento sexual são instigantes e como elas podem ser subversivas, não penso mais nos trechos dos livros que me fazem chorar – procuro os trechos de romances em que há alguma coisa que me excite, procuro imagens de sexo ou procuro pensar minha própria pornografia... Olha, Dworkínculo, eu quase sempre estou pronto a entender os desejos sexuais que eu tenho como sendo em grande medida fabricados pela pornografia, que é parte da maneira frustrante como vivemos as coisas eróticas. Há um homúnculo dentro de mim, o Naturículo, que insiste que meus desejos simplesmente vieram assim. Mas não dou muita trela para ele. Entendo meus desejos como tendo uma história associada com o resto do mundo e, no entanto, desejos aparecem muitas vezes como urgências, como alguma coisa que me impele a fazer alguma coisa. Nesses casos, eu faço o meio termo; mas me pergunto se faz bem ficar na opção morna, melhor seria contratar uma puta e... pronto!

DWORKÍNCULO: Acho que contratar uma puta seria reforçar ainda mais o esquema dos desejos que me frustra. Você sabe, Ritzículo, minha agenda é me curar da pornografia. Talvez, eu penso às vezes, se eu começasse a agir com as mulheres de um outro modo; assim, deliberadamente, depois com o tempo o meu próprio comportamento me contagiaria. Eu começaria negociando cuidadosamente com meus desejos e depois aprenderia a não mais me excitar com mulheres que seduzem para serem controladas...

RITZÍCULO: Tenho vontade de trepar. Esta conversa me lembra sexo e, depois que este diálogo começou a ser registrado, dei para procurar pornografia na rede. Ah... Agora achei um casal trepando em várias posições e ela contando assim:

Logo no elevador ele chegou mais perto e a gente começou a se beijar, senti a mão dele entrando por baixo da minha saia e sentindo a minha bundinha. Comecei então a mexer no pau dele por cima do short, que já fazia um volume bem duro e gostoso que me deixou louca. Estava totalmente duro, cada centímetro. Ainda no corredor do prédio a gente se pegava, se beijando e passando a mão um no outro. Quando entramos no ap ele me levou pro o quarto e tirou a camisa, foi ótimo ver o seu tórax, e já ir explorando o corpo dele, era definido e gostoso, nem precisou de mais incentivos pra eu já tirar toda minha roupa, começando pela saia e revelando já minha boceta pra ele. Depois de eu tirar a blusa, ele tirou o short e a cueca e nossa, quando eu vi aquela pica! Dá vontade de gemer só de pensar. Que tesão... Logo falei para ele que era muito tesudo aquilo, que a rola dele estava muito dura. Só de escrever já estou toda molhada. Na hora eu já me virei e fiquei de quatro, com os braços na cama apoiada, oferecendo minha bunda pra ele. E aí senti pela primeira vez a pica dele esfregando ali atrás, estava bem quentinha e me deixava louca, ficamos roçando um no outro assim um bom tempo, ele de pé me encoxando e eu apoiada na cama. Logo ele começou a meter, então comecei a gemer muito, já estava caindo na cama, falei que o pau dele metia muito bem e não sei se foi impressão, mas senti que ficava mais duro ainda dentro da minha boceta. Ele me pegava pela cintura, o que me deixou excitada até hoje; adoro que peguem na minha cintura e ele metia com força acabando comigo.

Leio esse relato de uma mulher, vejo as fotos do corpo dela, e o pau fica duro e tenho vontade de me masturbar. Começo a me masturbar até gozar... [pausa]

DWORKÍNCULO: Depois de gozar, parece que eu recomeço a pensar naquilo que ficou enfiado debaixo do tapete enquanto eu estava com toda atenção na pornografia. Começo a me perguntar por que essa mulher escreve isso. Exibicionismo, ela diz, isso a excita. Ela escreve o que os homens querem ouvir, talvez ela faça o que os homens querem que ela faça – e talvez esteja aí a excitação dela. Mas parece que o desejo dela não está bem aí, ela não pode ter desejos de satisfazer os desejos dos homens – seus desejos são independentes!

RITZÍCULO: Às vezes, Dworkínculo, parece que você deixa o Naturículo tomar conta de você. Os desejos dela também são construídos pela pornografia...

DWORKÍNCULO: Claro, mas é por isso que dá vontade de promover uma agenda de cura da pornografia. Talvez nós devamos libertar nossos desejos da imagem de sexo: re-erotizar o resto de nossas vidas e deixar nossos desejos estarem presentes em conexão com todo o resto de nossas vidas: enxergar as pessoas ao invés de despedaçar os corpos. Experimentar desejos que não tenham roteiro fixo, que não envolvam sedução e conquista, que integrem nossa genitália com nossas emoções específicas com respeito a cada pessoa...

RITZÍCULO: Sim, mas o que fazer enquanto esse projeto não acontece? Reprimir meus desejos de gozar vendo corpos sendo possuídos? Olha, Dwor, eu tenho evitado realizar meus sonhos de dominação orientados pela pornografia. Muitas vezes não sinto que não posso fazer o que eu quero porque não quero apenas isso: na maioria das vezes, meus desejos são outros, são desejos de contato com as pessoas. Mas como posso parar de me masturbar com pornografia quando o desejo de sexo puro aparece? Eu sei que você acha que sexo puro é uma maneira ruim de tratar os desejos pornográficos, realmente, mas você sabe o que eu quero dizer...

DWORKÍNCULO: Sim. Mas olha, Ritz, eu realmente não sei o que devo fazer; a punheta com pornografia me incomoda. Mas me incomoda essa fragmentação que parece parte da maneira masculina de pensar: é como se nossas experiências pudessem ser fraturadas, literalmente seus ossos quebrados, examinamos os pedaços e esquecemos dos ossos, examinamos os ossos e esquecemos do corpo. Me incomoda essa coisa de que meu pau é de um homúnculo, meu coração é de outro. Essa hiperatomização me corrói. Há uma parte de mim que fica esmagada quando vejo imagens de gente trepando, me excito e me masturbo – gente que são corpos sensuais, é o que importa. Queria ter minha vida sexual mais integrada com as coisas que me encantam – queria apenas me excitar com elas. Fico com uma ânsia enorme de me livrar desse legado da pornografia...

RITZÍCULO: Dwor, acho que nós temos medo desses homúnculos que são o Assimmesmo e o Deixaestar.17 17 Personagens do meu poema "Sem paciência, sem letargia" publicado em comunista (BENSUSAN, 2005). Um medo de deixar de se preocupar e simplesmente se entregar ao que parece que desejamos, como muitos homens dão a impressão de fazer. Mas às vezes eu tenho medo desse medo, tenho medo de corrermos tanto do Assimmesmo e do Deixaestar que acabemos parando de fazer outras coisas, de ter prazer.

DWORKÍNCULO: Acho que é possível subverter a minha própria estrutura de desejo a partir de dentro afirmando algumas coisas, ao invés de apenas proibir a pornografia. Ousar, ousar integrar meu erotismo no resto da minha vida, ousar liberar as energias eróticas de todo o meu corpo – afirmar tanto um prazer corporal não-pornográfico que a pornografia fique parecendo sem cor, desinteressante, pálida diante dessas outras experiências...

RITZÍCULO: Bacana, Dwor, mas você mesmo disse que os desejos contagiam. Parece que o prazer pornográfico é um prazer que eu posso ter sozinho, sem me comprometer com ninguém, sem depender de ninguém – a não ser talvez de um suporte de imagens aqui e ali. Mas como eu posso reafirmar desejos alternativos dentro de mim sozinho?

DWORKÍNCULO: Eu sei, às vezes sinto-me tentado a promover imagens e textos eróticos alternativos; uma espécie de contrapornografia. Às vezes tento me masturbar pensando em imagens muito diferentes daquelas que a pornografia promove. Tem vezes que dá certo.

RITZÍCULO: Mas a punheta é muito pouca ação afirmativa para empalidecer a atração da pornografia que às vezes toda hora, às vezes uma vez por semana, reaparece!

DWORKÍNCULO: Parece que não posso mudar meus desejos sozinho. Tenho tido algumas experiências fantásticas com as mulheres que conheci, sobretudo desde que comecei esse tortuoso caminho de me curar da pornografia.

RITZÍCULO: Mas aí há um problema: as mulheres reais têm que oferecer mais prazer, mais erotismo que o que a pornografia oferece para que a pornografia empalideça. Por muitos dias, às vezes semanas, ela empalidece, mas não para sempre. Parece que ela volta a me ocupar. E ela não aparece somente com textos e imagens explícita ou implicitamente pornográficas, ela aparece no comportamento que às vezes eu tenho com as mulheres e elas por vezes realimentam meus desejos os mais pornográficos – por exemplo, pedindo assim: me estupra. Eu me pergunto, é claro, de onde vem essa fala...

DWORKÍNCULO: A pornografia está na cabeça de todo mundo...

RITZÍCULO: Mas quem disse que as mulheres querem todas se curar da pornografia? Aquela mulher da rede, por exemplo, pode ser que ela esteja bem feliz com seus desejos (ainda que talvez em dez anos queira desejar coisas muito diferentes).

DWORKÍNCULO: Não quero curar todo mundo da pornografia, este é apenas um projeto para mim mesmo. Claro que não posso me transformar sozinho, mas talvez não precise que toda a humanidade de uma só vez abandone a pornografia – talvez me sejam suficientes apenas alguns gatos pingados em torno de mim; uma massa crítica!

RITZÍCULO: Mas, Dwor, se está na cabeça de todo mundo, quem vai me contagiar a cura? Realmente, isso me incomoda muito.

DWORKÍNCULO: A cura tem que vir do contágio dos exemplos. Ou seja, há fissuras na ordem pornográfica estabelecida. Proponho que tentemos enfiar a mão, o braço, as pernas (e o pau!) nessas fissuras.

RITZÍCULO: Mas como? As mulheres que pedem para ser estupradas (ou comidas, ou fodidas ou arrebentadas) não podem junto comigo fazer a tal ação afirmativa super-super que vai empalidecer a pornografia porque elas têm uma perna dentro da fissura, mas outra perna fissurada nos roteiros pornográficos!

DWORKÍNCULO: É verdade, Ritz, não há ninguém que, sozinho, pode nos conduzir pela mão para fora dos domínios da pornografia. Porém, também penso que ninguém aprendeu apenas os desejos pornográficos. Há outros exemplos em todo mundo; os exemplos que eu intuo quando aparece aquela melancolia pós-pornografia.18 18 O filme Le Pornographe, de Bertrand Bonello (2001), ilustra uma melancolia de quem vê e produz pornografia. Jacques, uma pessoa que começou a fazer pornografia pelo que parecia ter de subversivo logo depois de 1968 e que depois se profissionalizou, vive a crise de ter que voltar a filmar pornô depois de uma longa ausência. Sua melancolia foi pelo menos em parte ativada pelo filho adolescente que, ao saber que ele fazia pornografia, o abandonou. Jacques, de fato, filma o roteiro dos seus sonhos, L'animal, em que uma mulher é caçada em um grande bosque por homens que querem fazer sexo com ela – trata-se de uma trama pornográfica arquetípica e que aparece muitas vezes nas metáforas de Andréa Dworkin da mulher pornografada como presa. Em uma entrevista, Jacques é perguntado se prefere filmar sexo ou cenas dramáticas. Ele responde: "a felação; na felação não há apenas dois órgãos, mas uma cara. A cara é a última fortaleza do que é humano". A pornografia aparece aqui também como uma oposição entre sexo de um lado e expressividade do outro. Os órgãos (genitais) estão para além da fortaleza do humano. Não são as mulheres que redimem, mas são os momentos das vidas das pessoas em que elas desconfiam que sua vida erótica fica bitolada e amordaçada pela pornografia – e que elas podem querer mais...

RITZÍCULO: Dwor, tenho medo de Assimmesmo e de Deixaestar. Quase sempre que me masturbo tenho medo de estar desistindo um milímetro ou dois de ter uma vida erótica mais descolada da pornografia. De me agarrar ao prazer de foder, reconhecer que quero isso; reconhecer que o desejo da pornografia é meu e pronto. O resto do mundo terá que se adaptar aos meus desejos...

DWORKÍNCULO: Tenho esse medo também; eles são fortes e poderosos esses homúnculos. Nos arrastam pelos cabelos. Mas eles prometem muito pouco para o meu futuro; eles oferecem apenas um gozo fácil e a frustração de erotizar uma guerra mesmo que eu não goste de guerra. Eu quero confiar que podemos resistir a essa onda de cinismo que invade tantos homens...

RITZÍCULO: Resistir, vamos resistindo. Mas não me interessa tanto essa erótica da resistência, da denúncia dos nossos desejos. Eu prefiro quando você faz seus discursos pela ação afirmativa, por mais desejos de outros tipos, quando você confia que outras imagens e outras estórias vão me capturar e vão empalidecer a pornografia. Talvez seja possível dissolver a pedagogia pornográfica em um oceano de multipedagogias para os meus desejos... Mas quem vai prover tudo isso?

DWORKÍNCULO: Eu quero continuar tentando começar. Tentando ver pessoas para além das suas partes. Tenho medo de Assimmesmo e de Deixaestar, mas noto também que eles não me erotizam – quero peitos, quero bundas, mas não quero me conformar. Não tenho desejo de beijar e abraçar Assimmesmo e nem de dar mordidas em Deixaestar. Nem sequer quero enjaulá-los. Isso me faz perder um pouco da ansiedade. Boto fé que eu posso fazer diferente, pelo menos às vezes.

RITZÍCULO: Às vezes perco a coragem, quero apenas uns desejos satisfeitos. Fica parecendo que sexo é uma arapuca, é um atoleiro: meus desejos são também provação, a parte mais difícil de minha vida.

DWORKÍNCULO: É. Mas parece que nessa parte difícil é que podemos ser um pouco mais livres. No meio dos meus desejos aparece todo tipo de coisa; na maioria das vezes aparece bem mirradinho, mas aparece. É nesses desejos mirrados e incomuns que eu me agarro agora. Pelo menos enquanto eu tiver algum desejo de não mentir muito, de não esconder algumas partes de mim (e algumas tensões dos órgãos do meu corpo) debaixo do tapete.

15. Como os desejos se transformam? Eles seguramente são produtos de um agenciamento porque são susceptíveis de ser colonizados.19 19 BENSUSAN, 2004a. Outras subjetividades são possíveis apenas porque subjetividades são espaços para diferentes articulações de desejos e motivações. Porém meus desejos são diferentes a cada dia. Eles parecem estar convivendo em um ambiente ecológico próprio. Em cada uma das minhas ações feitas ou imaginadas, muitos desses itens estão presentes: como homúnculos que falam dentro de mim e, sempre, em minha primeira pessoa. Essa ecologia, no entanto, não está isolada da natureza e das pessoas a minha volta: meus homúnculos também respondem à história da minha espécie e interagem com as pessoas (e seus desejos) a minha volta. Os desejos se transformam porque as relações ecológicas entre esses itens dentro de mim se transformam: há infecções, contágios, disputas por hegemonias, relações predatórias, etc.

16. Proponho que concebamos os corpos como o ponto de confluência de três dinâmicas: a de nossa comunidade, a de nossas subjetividades e a do ambiente em que vivemos. Gostaria de pensar nos desejos a partir dessa confluência. Os corpos são o centro de um triângulo onde pensamos, nos adaptamos ao que está ao nosso redor e o transformamos – onde acontece nossa vida ecológica, como sugere Guattari.20 20 GUATTARI, 1989. Guattari apresenta a interação de três ecologias: a ecologia do ambiente, a ecologia das forças nas nossas comunidades e a ecologia das subjetividades. Cada corpo é constituído pela história – expressa no genoma – das opções políticas da comunidade que o produziu. A comunidade tem uma história biologizada. Cada corpo, depois, torna-se uma confluência de nós, do impacto emocional das pessoas a nossa volta e do ambiente ao nosso redor. Ações políticas agem sobre a biologia a nossa volta, a comunidade em torno de nós e os desejos que convivem na nossa subjetividade. Essas ações confluem no corpo que fazem para nós e no corpo que produzimos – em colaboração inseparável com o ambiente e a comunidade que encontramos – a partir do corpo que fizeram para nós. Os corpos são a confluência de nós, nossos próximos e a natureza que nos cerca. Por terem essas três pontas, os corpos são os agentes de transformação das coisas – cada corpo, com os afetos que produz e com as capacidades que abriga, deveria ser visto como uma plataforma política.. Uma erótica que enxergue os corpos como uma tal confluência talvez possa ver os corpos como posturas; cada corpo como um plataforma política – desejamos os mesmos corpos porque temos (ou, talvez, somos direcionados a ter) plataformas políticas construídas em série. As pornografias são disciplinas políticas que treinam nossos desejos para ter um impacto em série sobre nós e tudo o que nos cerca. Pensar os corpos como plataformas permite que erotizemos as potencialidades de cada corpo atuar de maneira específica sobre aquilo que o circunda. A erótica, entendida assim, coincide com a política.

17. Se pudermos entender os corpos como plataformas políticas, temos uma resposta para como pode ser a política dos desejos: a política molecular que se confunde com a erótica. A política dos desejos pode ser a política do que tornamos público de nossas subjetividades por meio de nossos corpos. Não é uma política em que cada pessoa tenha soberania completa – não temos soberania completa sobre o que se passa nos nossos corpos. Porém os corpos são plataformas de quem os carrega – quem carrega o corpo carrega também a bandeira que aparece com ele. A política dos corpos é talvez a política das diferenças. É preciso escapar da matriz que nos torna inteligível por causa das identidades sem nos tornar ininteligíveis. Nossa vida pessoal é talvez a casa das diferenças.21 21 Esta é uma expressão linda de Audre Lorde: "Being women together was not enough. We were different. Being gay-girls together was not enough. We were different. Being Black together was not enough. We were different. Being Black women together was not enough. We were different. Being Black dykes together was not enough. We were different. It was a while before we came to realize that our place was the very house of difference rather than the security of any one particular difference." (LORDE, 1983, p. 226). As identidades decididas antes de que sejamos consultados não são mais do que programas que nos tornam inteligíveis. E nossa vida pessoal às vezes parece um refúgio dessas identidades compulsórias: de perto, ninguém é só homem, só branco, só um elemento da classe média. E, no entanto, de perto somos homens, brancos, etc. Em Trumpet, Jackie Kay22 22 KAY, 1998. explora as conseqüências pessoais da nossa possibilidade de inventar identidades. Josephine se reinventa como um homem diante dos meios musicais, nos ambientes públicos, diante de seu filho. Seu filho, adotado, percorre uma jornada para compreender a distorção que seu pai promoveu a recusar uma identidade compulsória. Ele embarcou em uma trajetória de devir-saxofonista que o fez fugir de seu destino de gênero. Joss Moody, como ele fica sendo chamado, teria mentido ao seu filho – que não sabia de seu batismo como Josephine – apenas do ponto de vista das identidades naturais compulsórias. Se politizamos as identidades desde as diferenças, não deixamos que as identidades oficiais controlem o regime de verdade acerca de quem somos. A força das políticas da identidade está muitas vezes em atribuir a uma natureza não-politizável a responsabilidade pelas nossas identidades (de homens, de brancos, etc.). Se nossa identidade (pessoal) deixa de estar para além de toda a política, também quem somos vira uma questão de política das diferenças.23 23 A idéia de identidades construídas em uma política de diferenças é analisada de maneira interessante por Gloria ANDALZÚA, 1987. Norma ALARCÓN, 2002, por exemplo, explora como identidades de mulheres chicanas são construídas. Essas construções sempre correm o risco de tomar o atalho do apelo a uma matriz de identidade supostamente natural.

18. A natureza muitas vezes é entendida como o ponto final de toda política – de toda capacidade de liberdade. Porém, a natureza, nesse sentido, pode ser adiada indefinidamente; podemos tentar encontrar sentido para a tese de que as fronteiras do natural dependem de onde colocamos nossa liberdade.24 24 Esta tese, posta assim, tem uma ressonância hegeliana. Hegel entendia que nossa liberdade é determinada por onde a colocamos – liberdade é uma realização (um pouco mais sobre isso em BENSUSAN, 2004a, p. 36). Hegel entende que a natureza, em certa medida, não se resigna à passividade e mesmo os animais agem sobre tudo que lhes é imposto, dentro dos limites dos seus recursos. No parágrafo 109 da Fenomenologia do espírito, Hegel faz um curioso comentário: "[os animais] não ficam diante das coisas sensíveis como em si essentes, mas desesperando dessa realidade, e na plena certeza de seu nada, as agarram sem mais e as consomem" (HEGEL, 1977 [1807]). Os recursos de cada espécie para transformar as coisas a sua volta se transformam, de um ponto de vista evolucionário, regulados pelo menos em parte pelo ambiente e com a história da espécie. Nossos corpos registram a nossa história emocional e política e registram também o legado da história da nossa espécie. Em que sentido podemos dizer que essa história é uma história de escolhas políticas? Tento ensaiar uma maneira de entender a evolução das espécies como uma sucessão de escolhas políticas. Ali, no processo de evolução das espécies, há preferências que guiam a sobrevivência da espécie no seu ambiente, que guiam a transformação do ambiente por meio da construção de nichos, que informam a escolha mesma pela sobrevivência. As espécies fazem política reagindo ao que o ambiente, formado também por outras espécies, apresenta. A ação responsável ou a ação deliberada são, pensando assim, apenas uma das possibilidades de intervenção política. As escolhas são políticas, uma vez que cada uma delas pode ser pensada, por nós pelo menos, como podendo ser diferentes. Instintos poderiam então ser pensados como a herança da política da nossa espécie – nossa política de segurança (de garantias), nossa política de relações exteriores (com outras espécies) e domésticas (dentro de nossa espécie), nossa política de manutenção e fortificação da nossa espécie (eventualmente em detrimento de outras). Pelo menos nós vemos a política dos passos trilhados pela espécie. Nós atribuímos, para entendermos o caminho que a espécie trilha ao invés de várias possibilidades alternativas, certas preferências. Pelo menos a tecnologia disponível para transformar nossa espécie é a mesma que dispúnhamos quando começamos a construir partes do ambiente onde evoluímos. Nichos são ambientes construídos pela nossa espécie onde desenvolvemos nossos comportamentos, nossos desejos e o pano de fundo para nossos comportamentos. Nichos afetam nossos genes que afetam próximos indivíduos, que vão construir novos nichos – o ambiente promove através dos nichos uma seleção política em que uma das ecologias de Guattari afeta as demais.25 25 Interessante comparar essas observações breves sobre a seleção através de nichos com a concepção de evolução recomendada por Richard LEWONTIN, 2000. Lewontin defende que genes, organismos e ambiente interagem constantemente para produzirem seqüências genéticas, outros organismos e ambientes modificados. Trata-se de uma tríplice hélice em que cada elemento não funciona sem os demais. Trata-se de um modelo que se assemelha àquele das três ecologias entrelaçadas. A história dos nichos é também a história de quem os construiu; a ecologia que produz a nossa espécie é também uma ecologia dos nossos desejos: daquilo que nos importa e daquilo que não nos importa. A história de nossa espécie – ou se quisermos a pré-história de nossa política – foi moldada por uma seqüência de alternativas guiadas, por exemplo, pelo apego à segurança, pelo apelo à sobrevivência, pelo apego à previsibilidade. Nesses caminhos podemos enxergar – e reexaminar – as escolhas políticas que moldaram nossa espécie. (Uma imagem assim da natureza está em grande medida em consonância com o modo como feminismos como o de Donna Haraway26 26 HARAWAY, 1991. pensam nossa capacidade de intervir sobre nossos corpos e nossa biologia.)

19. Diante dessas observações podemos sentir a tentação de perguntar se houve escolhas e política na história da nossa espécie. Nós, desde onde estamos agora, podemos espreitar essas escolhas e reconhecê-las como escolhas – e como escolhas políticas acerca dos desejos. Pelo menos no seguinte sentido: nós concebemos que poderia ser diferente. Uma resposta: concebemos que poderia ser diferente, sim, mas a natureza obrigou nossos antepassados a fazerem (e desejarem) aquilo que eles fizeram (e desejaram). O desejo era, naquele momento, natural. Onde começa a natureza termina a política? Ou antes, onde termina a natureza? Como pode a natureza, em algum ponto, deixar de atuar? Mas a natureza deixou diferentes heranças em nossos corpos. Os desejos naturais talvez tenham sido muitos, escolhidos em diferentes circunstâncias por diferentes ambientes contingentes e produzidos. As heranças naturais e as heranças de nossas respostas à natureza parecem se confundir desde o início. Nossos corpos são plataforma política porque são naturais.

20. Nossos corpos e nosso erotismo – como nossas plataformas políticas – são a confluência das três ecologias. Talvez o erotismo seja o equilíbrio delicado e precário entre a ponta da península, nossa comunidade e as forças naturais que estão pelo nosso ambiente. Nosso erotismo é o reflexo de nossa política. E, em algum sentido, nossa política é particular; ela não pode ser determinada meramente pelo nosso ambiente ou pelos grupos de identidade de que participamos. Nossa política e nossa erótica são também função de nossas afinidades: o que nós fazemos na posição política e erótica em que nos colocaram. Penso que o erótico é radicalmente particular. O erótico é uma confluência de ecologias porque é nossa maneira de construir nossa própria oikos entre nossos desejos e temores, nossas comunidades e nosso ambiente. É particular de cada pessoa como um lar, é particular de cada circunstância, é particular de cada história de vida. E, no entanto, o pessoal (que é particular) é político. (Não há lares que são refúgio de toda política isso ainda não quer dizer que não há lares.)

21. Consideremos a política da motivação para um estupro. O estupro é parte da militância política em favor da supremacia masculina. O estupro milita mais ou menos assim: o desejo masculino é uma força da natureza, é um elemento de motivação inteiramente independente de todo o resto das coisas que os homens pensam, temem ou sentem. Portanto, as mulheres devem se curvar a ele, ou seja, devem contorná-lo, como fazemos com um penhasco que não podemos mover. A política da masculinidade é a política da sacralização do desejo masculino; agimos como se o desejo estivesse acima de qualquer liberdade. Por que exatamente sacralizamos esse desejo? Para nós, homens, essa estrutura preexistente de desejo garante uma quota de poder em nossas mãos porque, de acordo com essa estrutura, nós desejamos dominar, submeter, possuir – a estrutura faz nossa vulnerabilidade esvaecer: somos fortes, somos homens, a estrutura preexistente dos desejos; este deus ex-machina para o qual rezamos quando estupramos ou somos coniventes com o estupro – ou, por vezes, ficamos excitados com ele – está do nosso lado. Pouco importa quanto desejo esteja presente – importa mais o caráter incontrolável: importa que este pareça ser o desejo. Essas ações, e conivências, endossam um programa político (o programa da masculinidade) que pensamos que vai nos trazer algum benefício. Ou então que pensamos que devemos endossar porque, se não endossamos, nos tornamos desprezíveis aos nossos olhos. Para os homens parece que o programa masculino é endossado por uma mistura de conveniência e de obrigação. Quando os homens, como um grupo, impõem que seus membros sejam capazes de estuprar – que seus corpos sejam capazes de levar a cabo uma tal ação é uma mostra de fidelidade ao grupo na plataforma política do homem –, estão afirmando um conjunto de práticas que garante que as mulheres terão de contornar penhascos: as mulheres terão de encontrar um modo de conviver com a lealdade de honra dos homens.

22. Os homens atuam como um grupo quando se reconhecem em um conjunto de práticas de desejo. Os homens pertencem ao grupo quando obtêm algo das mulheres: a masculinização é o processo de aprender a ocupar um espaço emocional, econômico e político junto às mulheres. As pessoas são masculinizadas aprendendo a ter uma relação com as mulheres que coloca os afetos em um regime de troca,27 27 Gen VAUGHAM, 1997, defende que a masculinização, e, portanto, a diferença entre os gêneros, é uma diferença primariamente econômica. Ela entende a economia como a maneira como satisfazemos nossas necessidades (por abrigo, comida, afeto, atenção, etc.). Os homens são ensinados a pertencer primariamente a um esquema de economia de troca; as mulheres a uma economia da dádiva. que demanda uma dose de atenção e afeto, que considera normal ter certas prioridades (e que as mulheres tenham certas obrigações; por exemplo, a de serem as principais responsáveis pelas atividades da prole). Rita Laura Segato28 28 SEGATO, 2003. acredita que os homens cobram um tributo das mulheres para garantir sua inclusão no grupo masculino. (Gayle Rubin29 29 RUBIN, 1975. entende que o tráfico de mulheres entre clãs funciona como uma proto-mercantilização das mulheres, o tráfico de mulheres depende de um cercamento que as coloca dentro do espaço que é propriedade dos homens.) Esse tributo é o símbolo da dominação e é pago em termos de atenção, afeto, controle sexual e serviços domésticos. Um homem é visto como homem se há mulheres prestando serviços de alguma natureza a ele. A masculinidade é um grau outorgado por um grupo àqueles que atuam de acordo com as normas que regem o reconhecimento dos homens. A aprendizagem dessa dita natureza, é claro, não é sempre fácil.

23. Desde quando há estupro? O estupro é a origem do patriarcado? Devemos procurar a história pré-estupro? Cynthia Eller30 30 ELLER, 2000. argumenta que não precisamos de uma história pré-patriarcal para criar um futuro feminista. Elaine Morgan31 31 MORGAN, 1972. procura explicar o estupro e a incapacidade humana de conter genocídios na própria espécie. Ela diz que nós somos a única espécie de primata que copula com um contato ventral e a única espécie que é capaz de matar um membro da própria espécie em qualquer circunstância mesmo que quem esteja para ser morto dê um sinal de que está se rendendo.32 32 Atuais pesquisas com chimpanzés parecem mostrar que eles fazem, sim, guerra entre tribos com mortes. Desconheço se eles, nessas circunstâncias, respondem ao sinal de rendição. De toda maneira, importa mais aqui a estrutura das explicações de Elaine Morgan. Nós não temos a capacidade de responder a um sinal que signifique "chega, eu me rendo", que, na maioria dos primatas, acontece por meio da exposição da região do ventre. Morgan procura explicar essas duas características humanas por meio de um relato evolucionista de que alguns homens foram premiados por sua incapacidade de responder ao sinal de rendição – que fazia os demais ficarem paralisados diante de uma mulher que expunha a barriga – com um intercurso mais prazeroso e mais produtivo (mais reprodutivo). Ou seja, os estupradores (potenciais) foram selecionados pela evolução da espécie. A efetividade da reprodução pela cópula fez com que homens insensíveis à rendição fossem selecionados. Está nos nossos genes a herança de nossas biopolíticas tanatófilas passadas – nossa natureza. E, contudo, a imagem que surge de sugestões como a de Morgan é que a nossa natureza não é o fim de toda demanda de explicação: nossa capacidade de sermos violentos é uma evolução contingente da espécie que nos fez desaprender a entender sinais de rendição. Aí conectamos a rendição ao prazer. A evolução da masculinidade, então, produziu esse gênero tanatófilo. Podemos ouvir um relato como o de Morgan como um relato da evolução da nossa espécie que co-evoluiu com uma ecologia dos desejos masculinos; isto é, se a evolução da espécie se mistura com a evolução dos desejos da espécie, a história política dos nossos desejos pode ser traçada em um relato como o de Morgan.

24. A política da preservação da espécie a qualquer custo parece orientar o relato de Morgan. A violência é muitas vezes um produto de um gargalo na circulação dos bens e serviços que necessitamos: com acesso irrestrito aos meios de produção, aos meios de autopreservação e aos meios de conforto emocional haveria menos violência. Parece que os meios de preservação dos próprios genes são escassos no relato de Morgan: se essa escassez é natural, a conexão entre violência e sexo entre humanos é natural. A escassez, no entanto, pode ser uma produção dos nossos desejos e das formas de vida que se produzem com eles: das ecologias que produzimos com nossas práticas. Lewis Hyde33 33 HYDE, 1983. contrapõe a dádiva à propriedade – esta faz o valor acumulado estragar porque estagnado – e entende a dádiva como promotora de riqueza em todo o círculo que está envolvido entre quem ganha e quem recebe presentes. A acumulação, produto da impressão de escassez (ou, se quisermos, de ansiedade produzida pelo medo da escassez), retira os bens de circulação e os impede de criar riqueza. A acumulação é feita de privação. A política da preservação dos meus genes prefigura a predicação de filhas e filhos (ou crianças) como meus. Nossas práticas de preservação são práticas de preservação de alguma coisa. O que queremos preservar de nós e por que queremos preservar o que queremos preservar? Nossa noção do que é próprio de nós é um indício de como se orienta nossa política. Em contraste, espaços afetivos podem ser vistos como espaços de dádiva, espaços onde não preponderam as relações de propriedade. Esses espaços, e os movimentos dentro deles, são terrenos constantemente redefinidos, reavaliados, renegociados.

25. Uma possível alternativa à associação entre desejo de um lado e posse, controle, submissão do outro é entendê-lo no âmbito da dádiva em oposição ao âmbito da propriedade: pensar que amar é deixar livre, desejar como dádiva, entender o desejo como um bem abundante que provoca mais desejo e não como uma mercadoria escassa que temos de preservar. Se o desejo é uma dádiva e desejar não é possuir, os bens eróticos não perdem a vitalidade que ganham quando circulam pela comunidade. O desejo entendido como produtivo não precisa ser controlado e nem possuído; o desejo escasso demanda controle e concentração.34 34 Um personagem do filme The oppposite of sex, de Dan Roos (1998), define uma relação amorosa em termos que parecem, nesse contexto, bastante lúcidas desde dentro das nossas relações de escassez erótica. Ele diz para sua nova parceira: "To me, sex is not about procreation nor about recreation, it's about concentration. In a room full of people you look at me first, and I do likewise" (Para mim, sexo não é procriação e nem recreação, é concentração. Em uma sala cheia de gente, você olha para mim primeiro, e eu faço o mesmo". O regime da escassez erótica é o regime que faz com que queiramos garantias para desejar e sermos objetos de desejo: é o regime que torna próximos o desejo e a posse. Esse diagnóstico das relações de posse pode fazer o ciúme ter a mesma origem da acumulação: o terror da escassez. Em Observações sobre a libido colonizada35 35 BENSUNSAN, 2004a, 34. eu trato de um regime de escassez da afirmação. Talvez possamos falar de uma maneira de viver que torna o que é erótico escasso. O regime de circulação de erotismo produz escassez promovendo algum cercamento de pessoas, ou seja, determinando que pessoas são propriedade de outras pessoas. O estupro foi por muito tempo considerado como uma violência contra a propriedade dos homens – e talvez tenha muitas vezes sido motivado como um assalto a um bem alheio.36 36 Alice Walker, na sua obra-prima sobre afinidades em conflito ( Advancing Luna – and Ida B. Wells, em WALKER 1971), torna nítida essa dimensão da política do estupro. Ela considera rápida, mas incisivamente ativistas do movimento negro nos EUA como Eldridge Cleaver e LeRoi Jones que falavam dos estupradores revolucionários e eram capazes de recomendar aos homens negros que estuprassem as garotas brancas, estuprassem seus pais. No texto de Walker muitas dimensões do estupro inter-racial – muitas delas reminiscentes do tráfico de mulheres – são consideradas do ponto de vista da confiança de uma mulher negra, entrelaçada entre duas solidariedades (cf. BENSUSAN, 2004b) Outras vezes, o desejo de posse é o mais preponderante: ser um homem é tomar posse. Sem o gargalo, o prazer poderia estar sempre consentido. Que estruturas políticas seriam necessárias para que o estupro não fosse mais possível?

26. É cômodo e tranqüilizante pensar na natureza como um rincão de incontornáveis dentro de nós; uma idéia que é prima daquela que nos faz perguntar quem nasceu primeiro, a natureza ou a pornografia. Claro que uma maneira de exorcizar a possibilidade de que a natureza seja nosso álibi é enfatizar que a pornografia construiu o nosso senso do que é natural. É como se recuássemos de um apelo central à natureza em direção a uma maneira de nos entender que é por completo alheia à natureza, em direção a uma concepção segundo a qual ela lava suas mãos e nós somos indiferentes a ela. Como a natureza pode entrar nas explicações de nossas políticas (de nossos desejos) sem aparecer como o rincão de incontornáveis onde toda política – e todo desejo propriamente nosso – termina? Há o risco de nos encaminharmos para uma physiphobia, um desprezo à natureza segundo o qual a natureza não tem papel algum sobre nossas práticas. Judith Butler37 37 BUTLER, 1993. diagnostica em certas formas de pensar gêneros uma condição similar que ela apelida de somatophobia: o desprezo a qualquer uso do corpo nos nossos discursos sobre gênero, como se o corpo não fizesse ele mesmo diferença alguma. Quando rejeitamos a idéia de que a nossa imagem da pornografia surge da natureza para adotar que a nossa imagem da natureza surge da pornografia, podemos nos incomodar com a situação em que a natureza não tem qualquer papel sobre nós; como o incômodo que podemos experimentar quando desconectamos nossa sexualidade do nosso corpo. Butler então promove, com um recurso à discussão entre Irigaray e Kristeva sobre a chora,38 38 A chora é freqüentemente pensada como aquilo que se opõe e precede a qualquer determinação, a qualquer forma e, portanto, a qualquer conceito. Butler entende que, para Kristeva, acessar essa ausência de determinação é encontrar um feminino para além do esforço falogocêntrico de determinar. Para Irigaray, a idéia mesma de uma chora, de algo que precede a determinação e assim fica determinado depois da determinação, é guiada por uma erótica da entrada e da contenção: essa erótica guia a maneira como pensamos na matéria – inerte, passiva, indeterminada, disforme – em contraposição à forma. A dualidade, ela suspeita, é fruto de uma maneira de pensar que se orienta (eroticamente) por dualidades como atividade e passividade. um diagnóstico de que nos apressamos a perguntar pela materialidade (ou a corporalidade) do sexo antes de perguntar pela sexualidade da matéria (ou de um corpo que preceda nossas práticas sexuais). Nossa maneira de pensar na matéria – e, eu diria, na natureza – é informada por uma erótica, por uma sexualidade de acordo com a qual controle e descontrole (o irremediável, o incontrolável, o lócus da necessidade pura) estão separados em uma dualidade. A natureza e o que, sim, é contornável não precisam estar em quartos separados: nós, em nossa atuação sobre as ecologias, produzimos aquilo que aparece como incontornável. A imagem que emerge para mim aqui é de uma interação constante com muitos elementos da natureza. A política dessa interação é também a erótica que orienta nosso pensamento. Não é uma política de escolhas decisivas porque a política em nossa própria casa é também a ecologia do nosso endereço e do ambiente que deixa a casa de pé. A natureza pode ficar diluída na política que promovemos como a pornografia. Ou seja, não precisamos adotar nem a tese de que a natureza fica inerte e sem influência sobre nossas práticas sexuais (que a pornografia a precede) e nem que ela seja o lócus daquilo que nós não transformamos (que ela promove a pornografia), mas podemos pensar a natureza como afetando o conjunto dos nossos pensamentos sempre. Podemos pensar no que é natural em nós como resultante de interações das ecologias.

27. O corpo, um rincão da natureza que às vezes é chamado de significante-zero,39 39 Ver, por exemplo, José GIL, 1997. Ali Gil reflete sobre a dificuldade de separar corpos de discursos e códigos sobre corpos. Que obteríamos com uma separação assim? não parece ter nenhuma propriedade própria, intrínseca. Ele é sempre uma confluência. Em certo sentido, nosso corpo é natural não como uma floresta, mas como um jardim. Proponho uma leitura – oblíqua e retorcida – da punchline de Voltaire em Candide, uma leitura decididamente a contrapelo do motto il faut cultiver notre jardin. Nosso jardim é nosso corpo. Penso que nosso corpo é natural não como uma terra incógnita. Nosso corpo é uma das primeiras coisas que apontamos quando queremos indicar que coisas são nossas (se bem que às vezes ele também é apontado para indicar o que nós somos). Nosso corpo é o que pensamos também quando falamos do nosso quinhão de natureza. E não se trata de algo que possa ser alheio a nós – não pode ser completamente confiscado, mas pode ser em algum sentido abandonado, um corpo inteiramente descontrolado, sem dono. O ônus do abandono pode ser aqui de três jeitos: pode ser um corpo que não responde, pode ser um corpo que não responde a alguém, pode ser um corpo que não responde a um sujeito que assujeita aquilo que consideramos que pode estar sujeito a um sujeito no corpo de um sujeito. Assujeitar é muitas vezes também metáfora para apropriar. Os corpos são metáforas úteis para falar de propriedade: nossas propriedades são nossas como nossos corpos são nossos; nossos corpos são exemplos seguros do uso dos pronomes possessivos. Fica parecendo que o sujeito pode ficar desapropriado – como o corpo, ou os jardins, podem ficar abandonados.40 40 As seções 27-33 são elaborações a partir do texto que apresentei em outubro de 2005 na Sophia+, Brasília, em um ciclo associado à exposição aartesupranaturaldosjardins de Gisel Carriconde Azevedo. Agradeço às gentes da Sophia+ e à Gisel pela oportunidade de pensar na metáfora dos corpos como jardins.

28. A metáfora da propriedade tem problemas: a propriedade do nosso corpo não pode ser desapropriada e apropriada por outro dono; a propriedade do nosso corpo parece ser o que faz com que possamos ser reconhecidos como sujeitos – é parte do que, de alguma maneira, temos que assujeitar para sermos sujeitos. Dificilmente encontramos sujeitos que não assujeitam nenhum corpo e nenhuma porção da natureza. Parece que nosso corpo está mais intimamente ligado a nós, como um jardim compulsoriamente nosso. (Possivelmente não podemos pensar em corpos que não sejam corpos de alguém, como não podemos pensar em estados mentais – desejos, pensamentos, temores – que não sejam de alguém.) Então às vezes parece que nosso corpo somos nós, ou parte de nós. Oscilamos entre pensar que nosso corpo é parte do que é nós e pensar que ele é parte do que é nosso (este corpo sou eu ou é meu). Corpos, partes de nós ou partes nossas, muitas vezes são também vistos como vitrines de nós. Mostra-me teu corpo e eu te direi quem és. Aqui queremos dizer mostra-me o jardim que cuidas e eu te direi quem és, mas também mostra-me o que cresce (e como cresce) no teu jardim que eu te direi quem és. O corpo, se não for o todo, será então a parte do todo que tem uma potência metonímica. Podemos procurar nossos afetos, e a história de produção e repressão deles, nas habilidades dos nossos músculos, nas couraças em torno de nossas articulações, nas tensões que acumulamos em certas áreas.

29. Minha terapeuta bioenergética me conta que meus braços se encurtaram por eu não ter podido avançar e segurar o que eu queria. A história dos meus desejos, e de sua realização, ficou escrita no meu corpo. Que parte do mundo é esta que fica sendo meu biógrafo não-autorizado? Meu corpo, como biógrafo, tem a vantagem importante de ter estado onde quer que eu estive: a forma dos meus músculos registra meus movimentos, o estado dos meus nervos registra minhas apreensões, o estado do meu coração registra meus medos. Pelo menos, este biógrafo somático é um quinhão da natureza que esteve sempre comigo.

30. Parece que meu biógrafo fez mais do que estar presente; ele fez com que eu fizesse o que eu fiz – os abraços que dei, os bilhetes desesperados que escrevi, as fugas que corri. Ainda, parece que ele é mais que testemunha e instrumento: ele é também minha cômoda permanente, minha casca de caracol; onde eu sempre estou. É meu biógrafo não-autorizado que é meu auto-biógrafo autorizado. Minha terapeuta, possivelmente, enxerga meu corpo desde fora, como quem vê um jardim pela grade da rua. Meu corpo é visto como um elemento da natureza; quero dizer o seguinte: ele é visto a partir de um ponto de vista de terceira pessoa e não com a minha voz sintonizada com minha (primeira) pessoa. E meu corpo pode ser visto assim; é por isso que ele é uma (auto-)biografia e, ao mesmo tempo, não autorizada. Sim, eu não leio tudo o que minha terapeuta – ou qualquer um de vocês que estejam em algum sentido do lado de fora do meu corpo – lê no meu próprio corpo. Há coisas sobre meu corpo que você sabe e eu não sei, há coisas que ninguém sabe: ainda assim o corpo é meu ou eu. Mais do que isso, eu também posso aprender a ler meu biógrafo não-autorizado e, mesmo, concordar com ele sobre mim, ainda que eu nunca escreveria as palavras (ou os movimentos de ombros) que ele escreveu. Ou seja, eu posso aprender a ver meu corpo também desde fora, também como parte da natureza; desde um ponto de vista de terceira pessoa. Posso olhar o jardim como um troço da natureza, como olho uma floresta – mas este não é o olho que eu uso quando me ponho a jardinar.

31. Parece que há uma diferença entre me ver como os outros podem me ver e me ver como eu me vejo. Richard Moran41 41 MORAN, 2001. tem feito esforços para mostrar que uma distinção assim não quer dizer que eu possa ver alguma coisa em mim que uma terceira pessoa (ou uma segunda pessoa, pois isso pode ser importante) não pode ver. Ele também tenta mostrar que isso não quer dizer que minha visão de primeira pessoa vê mais longe, introspecta com mais precisão. No meu modelo da esfera dos desejos, minha capacidade de me dar conta de meus desejos é apenas um acesso a eles – não traz nenhuma incorrigibilidade e nenhuma autoridade privilegiada assim como o acesso de primeira pessoa não determina o conteúdo de minhas crenças.42 42 Cf. BENSUSAN e Manuel de PINEDO, 2006. Quem jardina não vê ou sabe nada que outras pessoas não possam saber sobre o jardim e nem vê ou sabe de uma maneira necessariamente mais acurada. E, no entanto, a voz de primeira pessoa é diferente de qualquer outra. Tento pensar assim sobre meu corpo: desde dentro dele o enxergo de uma maneira diferente da maneira que vocês aí de fora o enxergam; não que haja uma parte do corpo que só eu posso ver e nem que de onde eu estou se veja melhor. Ainda assim, se eu quero conhecer meu corpo, tenho que conhecer o que vocês vêem e o que eu vejo. Parece que preciso de um caleidoscópio de lunetas – e de pontos de vista – para que eu possa enxergar alguma terra firme. Nossos corpos têm a voz dos corpos – a voz da natureza que pode ser descrita desde fora, alheia a qualquer possibilidade de introspecção – mas tem a voz do nosso – ele está sujeito ao mundo estando sujeito a nós. Se o corpo fala, ele fala então nessa polifonia.

32. Pode haver conflito de vozes; posso dizer alguma coisa que meu corpo nega, posso desejar alguma coisa que meu corpo não deseja. Podemos atribuir crenças e desejos a nós a partir de uma perspectiva de terceira pessoa sobre nós mesmos (como se nós nos olhássemos desde fora). É o caleidoscópio de lunetas: como posso determinar a verdade dos relatos do (auto-)biógrafo somático não-autorizado? Não posso apelar apenas para a minha voz (o que eu penso sobre meus desejos, meus medos, minhas convicções ou meu corpo): isso seria determinar uma prioridade da minha luneta de primeira pessoa. Talvez valha considerar que a verdade não está em parte alguma, não há uma morada da verdade onde ela fica esperando que nós a espiemos. Então nem o nosso corpo é a morada da verdade-sobre-nós. Lunetas de terceira pessoa podem estar enganadas sobre nós, elas podem estar vendo mal o que está no nosso corpo, lendo mal as entrelinhas composta pelo biógrafo. Porém, meu corpo só pode escrever a autobiografia com palavras que entendemos. Moran entende que o autoconhecimento não deve seguir o modelo daquilo que conhecemos por contemplação; nossas reflexões sobre nós afetam aquilo que nós somos, ele diz: "uma pessoa tem sempre um papel na formulação daquilo que ela pensa ou sente".43 43 MORAN, 2001, p. 59. Meu corpo conta coisas para minha terapeuta que eventualmente vão se expor ao meu crivo – meu crivo é o que pode tornar a biografia não-autorizada parte da minha vida. Meu crivo, que é feito com a matéria-prima de tudo o que as pessoas e as coisas a minha volta colocaram em mim, é o que constitui minha voz de primeira pessoa. O crivo é meu porque eu ativamente, com meus pensamentos, cuido dele. Meu crivo atua de alguma forma sobre meus desejos – é a primeira pessoa que me conta sobre o que eu quero. A transformação dos meus desejos requer um caleidoscópio de imagens do meu corpo e do que ele é capaz. A voz da pornografia tornou-se a minha voz. Mas a minha voz de primeira pessoa é sempre permeável por vozes de fora – ainda que não possa ser substituída por elas.

33. Além de biógrafo e instrumento, meu corpo parece abrigar também as minhas potencialidades; talvez minhas potencialidades sejam as potencialidades do meu corpo. Por exemplo, as minhas potencialidades afetivas estão elas também inscritas no meu corpo: o que me assusta, o que me excita, o que me convence, o que me instiga. Spinoza tinha uma concepção dos afetos segundo a qual eles podem ser examinados pelos seus efeitos nos nossos corpos: por nos deixar mais ou menos ativos. As capacidades do nosso corpo não são alheias a nossa vida afetiva: nossa vida afetiva se espelha nas capacidades do corpo. E então podemos perguntar o que pode um corpo – e corpos, com suas diferentes histórias afetivas, podem sempre coisas diferentes. Gilles Deleuze,44 44 DELEUZE, 1977. a partir de Spinoza, entende que os poderes instituídos atuam sobre os corpos menos para reprimi-los do que para angustiá-los, para diminuírem sua capacidade de ação. Os poderes produzem corpos, como produzem desejos, como produzem maneiras de pensar. Um corpo, insiste Deleuze, tem potencialidades para além daquelas que o faz um organismo funcional: além de funcionar, ele age. Um jardim tem potencialidades: o que pode crescer naquela terra, que capacidades de afetar quem o visita ele abriga (de produzir serenidade, inquietação, vivacidade, júbilo ou melancolia)? Nossos corpos, porque são também naturais e como tudo o mais, não são jamais completamente assujeitados por nós. Eles estão conectados a nós e jamais separados de tudo o que os rodeia.

34. Os corpos são significantes-zero talvez porque são o ponto de encontro do ambiente, das dinâmicas de poder e das subjetividades – as três em interação ecológica. Subjetividades são controladas pelas capacidades naturais e pelas pressões de poder que produzem, mantêm e reforçam nossos afetos (cultivam, podam ou cortam pela raiz o que pode germinar). Nossas comunidades são reguladas pelas capacidades naturais e pelas subjetividades que a compõem – pelos recursos naturais e pelas maneiras de pensar e sentir diante desses recursos e sua disponibilidade. A natureza, que também não é tão Grande Outra, é influenciada por como as subjetividades se expandem ou contraem (os afetos que proporcionam o consumo, a privação ou o esbanjamento) e pelas comunidades que criam nichos que afetam as espécies a serem selecionadas e mantidas. Os nichos – nossas cidades, nossas plantações e terrenos de pastoreio, nossos jardins, nossos hábitos com respeito ao nosso corpo – são ambientes construídos pela nossa espécie onde desenvolvemos nossos comportamentos, nossos desejos e o pano de fundo para nossos comportamentos. Nichos afetam nossos genes que afetam próximos indivíduos, que vão construir novos nichos. A história dos nichos é também a história de quem os construiu; a ecologia que produz a nossa espécie é também uma ecologia dos nossos desejos: daquilo que nos importa e daquilo que não nos importa. Os corpos registram a história e as histórias possíveis.

35. Os corpos são também a confluência do que é público e do que é privado. Eles são nosso espaço público, nossa imagem pública. O pessoal é político, nossa vida emocional, nossas inclinações, nossas imagens de quem somos. Os termos que usamos para descrever nossas atividades – os termos, as concordâncias, as construções gramaticais – estão permeados da estrutura política de nossa comunidade. Mas o que fazer? Não parece que possamos denunciar essa estrutura de poder como uma escolha errada – votemos antipatriarcal nas próximas eleições. Não se trata de uma escolha, mas antes da natureza mesma das escolhas: a microestrutura do nosso desejo. Trata-se da política que envolve todos os nossos atos porque é a política da nossa vida mental (e, por isso mesmo, a política dos nossos corpos). Aqui a denúncia não parece ser suficiente. Subverter essa ordem de desejos requer outros desejos – o desejo de subverter, mais forte do que o desejo de estar aceito e mais forte que todos os desejos produzidos pelo desejo de estar aceito. A subversão parece requerer outros corpos. E há muitos corpos – muitas plataformas políticas – subversivas.

36. A idéia de que podemos separar instintos da espécie de desejos pessoais é um resquício da idéia de que podemos separar o corpo que herdamos da nossa espécie (do nosso genoma) do corpo que adquirimos ao longo das nossas escolhas (e imposições das nossas comunidades). Não podemos: temos um só corpo. Temos instintos apenas no sentido de que nosso corpo responde também ao seu ambiente que, por sua vez, responde também às escolhas dos antepassados. Não há uma parte do nosso corpo (ou de nossas disposições para agir) que seja mais natural do que qualquer outra: os instintos, e seus conteúdos, estão misturados por entre as ecologias dos nossos desejos. Não há por que supor que os instintos tenham um conteúdo próprio, mais básico, mais elementar – mais natural. Nossos instintos podem ser tão complexos e tão naturais como o resto de nós. Nosso corpo – com sua história pessoal, coletiva e biológica – é o repositório ou a origem dos nossos desejos: nossa plataforma política. Assim, no modelo que proponho para entendermos os desejos, os instintos não têm um conteúdo fixo e alheio a nossa história e a nossa subjetividade. Também não têm uma autonomia em relação às pessoas a nossa volta. Mas nem por isso estamos autorizados a desconsiderar a influência dos instintos sobre nossos desejos. A história de nossa espécie está inscrita no nosso genoma que, no entanto, pode adquirir diferentes conteúdos em associação a diferentes ecologias subjetivas e diferentes ambientes sociais. Não há nenhum dos itens na ecologia dos nossos desejos que seja um mero reflexo dos nossos instintos. E, no entanto, respondemos aos nossos instintos porque não há nenhum item na ecologia dos nossos desejos que seja independente dos nossos instintos. Os desejos são viáveis se eles podem acontecer em um corpo que foi formado pela história da espécie. A natureza, que também não está alheia à soberania da nossa espécie, tem um impacto sobre nossos desejos, se bem que não possamos isolar o conteúdo desse impacto em nenhum momento. Nossos desejos não podem ser entendidos fora do ambiente em que acontecem – ambiente onde há outros de nossos desejos, nossas crenças, nossos temores, etc. (como uma sociedade de homúnculos de que Ritzículo e Dworkínculo, na seção 14 acima, são exemplos). Esse ambiente dos nossos desejos recebe o impacto de todos os lados da confluência de ecologias que é nossos corpos.

37. Esse modelo, holista e ecológico, da esfera dos desejos é inspirado pela maneira como Donald Davidson articulou a relação entre pensamentos e mundo a partir da conexão entre verdade e inteligibilidade.45 45 DAVIDSON, 2000, 2001a, 2001b. Ali, nossas crenças respondem ao mundo, uma vez que elas são também a base da inteligibilidade de um confronto entre pensamento e mundo. Aqui, nossos desejos estão articulados com nossos instintos, uma vez que só em um ambiente de desejos algum instinto pode ter conteúdo e ter alguma força na determinação de nossas ações. Davidson consegue tornar desnecessário o apelo a um ponto onde nossos pensamentos e o mundo se encontram – um ponto onde eles poderiam ser confrontados. Esse modelo também torna desnecessário um ponto em que a natureza e nossos desejos se encontram – o ponto onde os instintos teriam alguma autonomia. Não há entre os nossos desejos nenhum que é mais natural – e, ao mesmo tempo, não precisamos exorcizar o caráter natural dos nossos desejos: eles respondem à natureza.

38. O modelo é compatível com a idéia de que o pessoal é político sem deixar de ter uma autonomia própria – o pessoal é pessoal além de ser político, como nas penínsulas de Oz (cf. seção 3 acima). Trata-se de um modelo ecológico em que a esfera pessoal, a natureza e as articulações históricas da sociedade a nossa volta são pensadas não como autônomas e regidas por princípios próprios, mas antes como vasos comunicantes por meio de pressões ecológicas que aparecem em muitas formas de políticas do desejo. Assim, por exemplo, os discursos feministas sobre a pornografia entram em contato com os desejos masculinos e uma resultante ecológica aparece em diferentes corpos (em diferentes momentos). Essa resultante faz dos corpos arenas políticas e ao mesmo tempo palanques que podem influir na ecologia de subjetividades de outras pessoas. A natureza deixa de ser entendida como um espaço alheio à política e passa a ser uma arena e um reflexo de nossas políticas. Nossa soberania política não acaba onde começam os ambientes naturais; também eles respondem à intervenção de nossos desejos, também eles são permeados de ecologia natural (cf. seção 18 acima e, ali, nota 25). A política que se reflete no ambiente natural (e social) a nossa volta, contudo, freqüentemente não é a política que permite que organizemos passeatas, partidos políticos ou eleições. É antes, conforme seção 17 acima, uma política de diferenças. Trata-se da política da península de Oz, que reflete sobre nossos corpos e por isso não deixa nenhum espaço dentro de nós alheio.46 46 Gislene Aparecida dos SANTOS, 2004, p. 16-19, conta a história de Lila, mulher negra que tem dificuldade em reconhecer qualquer traço de solidariedade vinda de uma outra mulher negra, Rita, militante anti-racista. Ela conta que suas amigas brancas lhe diziam: "por que ela seria diferente das outras mulheres por ser militante? Ela discute o racismo e não a vida dela". É como se a vida de Rita, o ímpeto que move seus desejos particulares, estivesse alheio à causa em que ela milita e tivesse vida própria, decerto mais forte do que podemos esperar que sejam as convicções que a faça militar. E, no entanto, Lila pensa que Rita, ao se comportar do modo como se comporta, reforça e coloca em evidência precisamente a matriz de comportamento que ela se mobiliza para denunciar. Ao discutir o racismo (ou a supremacia heterossexual e masculina) e não discutir sua vida, Rita estaria permitindo que a vida pessoal escapasse entre os dedos para fora de qualquer arena política.

39. Gostaria de esclarecer um pouco mais a importância da politização nesse modelo; especialmente tendo em vista a coincidência entre política e erótica no corpo (apontada na seção 16). A politização promove o contágio de desejos por outros desejos – anseios de solidariedade ou justiça interagem, por exemplo, com o senso de honra associado à masculinidade. As relações ecológicas entre os desejos presentes em nós assumem muitas formas – a politização é uma maneira de provocar mudanças na ecologia dos desejos. A politização que os feminismos promovem pertence a esse âmbito ecológico: eles tratam de alterar as práticas, transformar as inclinações emocionais e problematizar as fronteiras do que é aceitável. Com isso, eles permitem que alguns desejos preponderantes se transformem. A politização atua sobre nossas tendências a tomar como fatos da vida certos desejos (nossos e dos outros), certas maneiras de manejar nossos desejos e certas conseqüências dos desejos. (Politizar o estupro é colocar em questão os desejos que o fazem acontecer; colocar em questão é criar condições para que outros desejos possam acontecer.) Essa concepção ecológica da politização não permite que compreendamos as agendas políticas como agindo em um nível diferente daquele dos desejos; as agendas apenas criam novos elementos que atuam sobre a ecologia de nossas subjetividades. Os feminismos politizam ecologicamente, como Dworkínculo na seção 14 acima. A politização inserida na ecologia dos desejos pode sempre ser insuficiente; Ritzínculo pode prevalecer, mas prevalece se adaptando ao ambiente criado por Dworkínculo.

40. Os desejos adquirem seu conteúdo e sua força sobre nós com referência ao mundo a que eles respondem. A esfera de desejos, apesar de minha no sentido de que posso chegar a ela em primeira pessoa, está com as janelas abertas aos ambientes naturais e sociais que me envolvem. Deleuze e Guattari47 47 DELEUZE e GUATTARI, 1980. apresentaram uma maneira de pensar nos desejos em termos de devires. Trato da ecologia dos meus desejos desde as muitas forças moleculares que me fazem devir diferentes coisas; entre elas encontro meu devir-feminista. Trata-se de uma identidade inacabada, talvez inacabável, de contornos tão vagos quanto os meus desejos que contaminam Ritzínculo, Dworkínculo, entre outros. Talvez os feminismos sejam sempre devires (se bem que talvez convenha entender que também são devires diferentes em diferentes corporificações, como aponta Rosi Braidotti48 48 BRAIDOTTI, 1993. acerca do devir-mulher). Minha maneira de conceber instintos como inseridos em uma esfera de desejos que se articulam com outras ecologias nasceu desse devir. Esse devir me contaminou de muitas maneiras diferentes; infectou uma boa parte da produção dos meus desejos. Poucas são as espécies de desejo que são extintas de uma subjetividade. Os feminismos, claramente em mim pelo menos, não provocaram extinções de espécies de desejo. Gosto de pensar, contudo, que eles vão continuar a se propagar como pragas resistentes.

Recebido em dezembro de 2005 e aceito para publicação em maio de 2006

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  • WALKER, Alice. You Can't Keep a Good Woman Down San Diego: Harvest, 1971.
  • WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations Oxford: Blackwell, 1968.
  • 1
    BENSUSAN, 2004a.
  • 2
    Félix GUATTARI, 1989.
  • 3
    Richard RORTY, 1989.
  • 4
    RORTY, 1989, p. xiv-xv. Tradução minha.
  • 5
    RORTY, 1999. Ele concorda com Robert BRANDOM, 1999, que sua distinção entre vocabulários de autonomia e vocabulários de solidariedade é problemática e pode ser perigosa.
  • 6
    Ludwig WITTGENSTEIN, 1968, I, 256-304.
  • 7
    Na Argentina de Videla, quando o chamado "Processo" militar tentou atrair os políticos civis, estes torciam para que a luta contra a chamada subversão não fosse ao estilo Pinochet – com assassinatos públicos. Em um cenário desses, os políticos teriam de justificar ou condenar os atos do Processo. Os desaparecimentos lhes convinham mais; instalavam um clima de terror – uma vez que critérios e escolhas não precisavam ser em nenhuma medida publicamente escrutináveis – mas prescindiam de um discurso público. A arena privada parece muitas vezes como o espaço debaixo do tapete para onde colocamos o que não pode ser julgado publicamente. Durante o período, os desaparecimentos foram escolhidos porque pareciam subversivos aos olhos de algum grupo militar (embaixadores que estavam muito próximos de Videla, quando iam a Buenos Aires, poderiam também desaparecer ­­ como foi o caso de Hidalgo Solá, embaixador na Venezuela desaparecido em Buenos Aires em julho de 1977). Aquilo que parecia subversivo a um grupo suficientemente armado e poderoso das forças armadas era subversivo. Para uma exposição mais detalhada do episódio, consultar, por exemplo, Marcos NOVARO e Vicente PALERMO, 2003, p. 106-220.
  • 8
    OZ, 2004, p. 39-40.
  • 9
    Geneviève VAUGHAM, 1997.
  • 10
    WITTGENSTEIN, 1968, II, iv.
  • 11
    Interessante aqui a observação de Ondina Pena Pereira (em conversa) sobre um grupo melanésio que, após contato com o Ocidente, diz que os ocidentais lhes trouxeram a idéia de corpo e não a idéia de espírito.
  • 12
    Cf., por exemplo, Alexander LOWEN, 1958.
  • 13
    No filme
    Monique, de Valérie Guignabodet (2002), uma boneca que parece muito uma jovem mulher é comprada por um homem que se separa de sua esposa. Monique, a boneca, é um corpo pura materialidade, mas com uma história que se supõe ser a história dos afetos e concessões de uma garota atraente simulada nele. Não é um corpo qualquer ou um corpo em geral porque não há corpos sem uma história de afetos e concessões. Mas é um corpo que agora se torna isento de política – submisso à erótica e à política do dono. O dono da boneca é que assujeita o seu corpo, e assujeita-o completamente. Sua ex-mulher, em uma crise de insegurança, diz "mas ela poderia ser sua filha...". Claire, a ex-esposa tenta entender o ex-marido pensando no que Monique não faz: não reclama, não faz jantares, não lava a louça, não cozinha, não fica indisposta. O marido resolve assumi-la completamente: era um corpo assim que ele queria. O filme parece para mim um retrato de um tipo preponderante de desejo masculino.
  • 14
    Cf. David HUME, 1911[1740]; Donald DAVIDSON, 1980.
  • 15
    Cf. por exemplo John McDOWELL, 1998; Richard MORAN, 2001.
  • 16
    Parte desta seção originou-se em minha comunicação "Por que (quase) vou ao cine Ritz", feita em maio de 2005 no evento Corpus Crisis, que ocorreu no CONIC, centro de diversões de muitas naturezas, em Brasília. Agradeço ao Corpus Crisis.
  • 17
    Personagens do meu poema "Sem paciência, sem letargia" publicado em
    comunista (BENSUSAN, 2005).
  • 18
    O filme
    Le Pornographe, de Bertrand Bonello (2001), ilustra uma melancolia de quem vê e produz pornografia. Jacques, uma pessoa que começou a fazer pornografia pelo que parecia ter de subversivo logo depois de 1968 e que depois se profissionalizou, vive a crise de ter que voltar a filmar pornô depois de uma longa ausência. Sua melancolia foi pelo menos em parte ativada pelo filho adolescente que, ao saber que ele fazia pornografia, o abandonou. Jacques, de fato, filma o roteiro dos seus sonhos,
    L'animal, em que uma mulher é caçada em um grande bosque por homens que querem fazer sexo com ela – trata-se de uma trama pornográfica arquetípica e que aparece muitas vezes nas metáforas de Andréa Dworkin da mulher pornografada como presa. Em uma entrevista, Jacques é perguntado se prefere filmar sexo ou cenas dramáticas. Ele responde: "a felação; na felação não há apenas dois órgãos, mas uma cara. A cara é a última fortaleza do que é humano". A pornografia aparece aqui também como uma oposição entre sexo de um lado e expressividade do outro. Os órgãos (genitais) estão para além da fortaleza do humano.
  • 19
    BENSUSAN, 2004a.
  • 20
    GUATTARI, 1989.
  • 21
    Esta é uma expressão linda de Audre Lorde: "Being women together was not enough. We were different. Being gay-girls together was not enough. We were different. Being Black together was not enough. We were different. Being Black women together was not enough. We were different. Being Black dykes together was not enough. We were different. It was a while before we came to realize that our place was the very house of difference rather than the security of any one particular difference." (LORDE, 1983, p. 226).
  • 22
    KAY, 1998.
  • 23
    A idéia de identidades construídas em uma política de diferenças é analisada de maneira interessante por Gloria ANDALZÚA, 1987. Norma ALARCÓN, 2002, por exemplo, explora como identidades de mulheres chicanas são construídas. Essas construções sempre correm o risco de tomar o atalho do apelo a uma matriz de identidade supostamente natural.
  • 24
    Esta tese, posta assim, tem uma ressonância hegeliana. Hegel entendia que nossa liberdade é determinada por onde a colocamos – liberdade é uma realização (um pouco mais sobre isso em BENSUSAN, 2004a, p. 36). Hegel entende que a natureza, em certa medida, não se resigna à passividade e mesmo os animais agem sobre tudo que lhes é imposto, dentro dos limites dos seus recursos. No parágrafo 109 da
    Fenomenologia do espírito, Hegel faz um curioso comentário: "[os animais] não ficam diante das coisas sensíveis como em si essentes, mas desesperando dessa realidade, e na plena certeza de seu nada, as agarram sem mais e as consomem" (HEGEL, 1977 [1807]). Os recursos de cada espécie para transformar as coisas a sua volta se transformam, de um ponto de vista evolucionário, regulados pelo menos em parte pelo ambiente e com a história da espécie.
  • 25
    Interessante comparar essas observações breves sobre a seleção através de nichos com a concepção de evolução recomendada por Richard LEWONTIN, 2000. Lewontin defende que genes, organismos e ambiente interagem constantemente para produzirem seqüências genéticas, outros organismos e ambientes modificados. Trata-se de uma tríplice hélice em que cada elemento não funciona sem os demais. Trata-se de um modelo que se assemelha àquele das três ecologias entrelaçadas.
  • 26
    HARAWAY, 1991.
  • 27
    Gen VAUGHAM, 1997, defende que a masculinização, e, portanto, a diferença entre os gêneros, é uma diferença primariamente econômica. Ela entende a economia como a maneira como satisfazemos nossas necessidades (por abrigo, comida, afeto, atenção, etc.). Os homens são ensinados a pertencer primariamente a um esquema de economia de troca; as mulheres a uma economia da dádiva.
  • 28
    SEGATO, 2003.
  • 29
    RUBIN, 1975.
  • 30
    ELLER, 2000.
  • 31
    MORGAN, 1972.
  • 32
    Atuais pesquisas com chimpanzés parecem mostrar que eles fazem, sim, guerra entre tribos com mortes. Desconheço se eles, nessas circunstâncias, respondem ao sinal de rendição. De toda maneira, importa mais aqui a estrutura das explicações de Elaine Morgan.
  • 33
    HYDE, 1983.
  • 34
    Um personagem do filme
    The oppposite of sex, de Dan Roos (1998), define uma relação amorosa em termos que parecem, nesse contexto, bastante lúcidas desde dentro das nossas relações de escassez erótica. Ele diz para sua nova parceira: "To me, sex is not about procreation nor about recreation, it's about concentration. In a room full of people you look at me first, and I do likewise" (Para mim, sexo não é procriação e nem recreação, é concentração. Em uma sala cheia de gente, você olha para mim primeiro, e eu faço o mesmo".
  • 35
    BENSUNSAN, 2004a, 34.
  • 36
    Alice Walker, na sua obra-prima sobre afinidades em conflito (
    Advancing Luna – and Ida B. Wells, em WALKER 1971), torna nítida essa dimensão da política do estupro. Ela considera rápida, mas incisivamente ativistas do movimento negro nos EUA como Eldridge Cleaver e LeRoi Jones que falavam dos estupradores revolucionários e eram capazes de recomendar aos homens negros que estuprassem as garotas brancas, estuprassem seus pais. No texto de Walker muitas dimensões do estupro inter-racial – muitas delas reminiscentes do tráfico de mulheres – são consideradas do ponto de vista da confiança de uma mulher negra, entrelaçada entre duas solidariedades (cf. BENSUSAN, 2004b)
  • 37
    BUTLER, 1993.
  • 38
    A
    chora é freqüentemente pensada como aquilo que se opõe e precede a qualquer determinação, a qualquer forma e, portanto, a qualquer conceito. Butler entende que, para Kristeva, acessar essa ausência de determinação é encontrar um feminino para além do esforço falogocêntrico de determinar. Para Irigaray, a idéia mesma de uma
    chora, de algo que precede a determinação e assim fica determinado depois da determinação, é guiada por uma erótica da entrada e da contenção: essa erótica guia a maneira como pensamos na matéria – inerte, passiva, indeterminada, disforme – em contraposição à forma. A dualidade, ela suspeita, é fruto de uma maneira de pensar que se orienta (eroticamente) por dualidades como atividade e passividade.
  • 39
    Ver, por exemplo, José GIL, 1997. Ali Gil reflete sobre a dificuldade de separar corpos de discursos e códigos sobre corpos. Que obteríamos com uma separação assim?
  • 40
    As seções 27-33 são elaborações a partir do texto que apresentei em outubro de 2005 na Sophia+, Brasília, em um ciclo associado à exposição
    aartesupranaturaldosjardins de Gisel Carriconde Azevedo. Agradeço às gentes da Sophia+ e à Gisel pela oportunidade de pensar na metáfora dos corpos como jardins.
  • 41
    MORAN, 2001.
  • 42
    Cf. BENSUSAN e Manuel de PINEDO, 2006.
  • 43
    MORAN, 2001, p. 59.
  • 44
    DELEUZE, 1977.
  • 45
    DAVIDSON, 2000, 2001a, 2001b.
  • 46
    Gislene Aparecida dos SANTOS, 2004, p. 16-19, conta a história de Lila, mulher negra que tem dificuldade em reconhecer qualquer traço de solidariedade vinda de uma outra mulher negra, Rita, militante anti-racista. Ela conta que suas amigas brancas lhe diziam: "por que ela seria diferente das outras mulheres por ser militante? Ela discute o racismo e não a vida dela". É como se a vida de Rita, o ímpeto que move seus desejos particulares, estivesse alheio à causa em que ela milita e tivesse vida própria, decerto mais forte do que podemos esperar que sejam as convicções que a faça militar. E, no entanto, Lila pensa que Rita, ao se comportar do modo como se comporta, reforça e coloca em evidência precisamente a matriz de comportamento que ela se mobiliza para denunciar. Ao discutir o racismo (ou a supremacia heterossexual e masculina) e não discutir sua vida, Rita estaria permitindo que a vida pessoal escapasse entre os dedos para fora de qualquer arena política.
  • 47
    DELEUZE e GUATTARI, 1980.
  • 48
    BRAIDOTTI, 1993.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Set 2006

    Histórico

    • Aceito
      Maio 2006
    • Recebido
      Dez 2005
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