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Uma família de mulheres: ensaio etnográfico sobre homoparentalidade na periferia de São Paulo

A family of women: an ethnographic proposal on homoparenting in the periphery of São Paulo, Brazil

Resumos

No presente artigo,<A HREF="#nt01"></A> buscarei refletir sobre uma família recomposta homoparental feminina da periferia da cidade de São Paulo, no que concerne à conjugalidade, ao relacionamento com as filhas, com a família extensa e com o ex-marido. Analisam-se possíveis variáveis que influenciam na forma como a lesbianidade é tratada e vivida e como diferentes posições relativas à questão podem levar a distintos arranjos familiares. No caso enfocado, a vivência de uma militância política e a concepção de lesbianidade como "condição" levam a uma publicização da mesma que terá repercussões na configuração dessa família. Por fim, partindo de uma consideração acerca dos dados etnográficos pesquisados, repenso a própria noção de lesbianidade e de pluriparentalidade.

lesbianidade; família; militância política; etnografia


This article aims to propose a reflection on conjugality in its relationship with parenting, extended family and ex-husbands in a recomposed female homoparental family, from the periphery of São Paulo. Possible variables that influence the manner in which lesbianism is dealt with and experienced will be analyzed, as well as how different positions relating to this question can result in distinct family arrangements. In the case studied the experience of political activism and the conception of lesbianism as a "condition" result in a form of publicity, which has repercussions in the configuration of the family. Finally, beginning with a contemplation of the ethnographic data, the very concept of lesbianism and plural parenting will be reconsidered.

Lesbianism; Family; Activism Politics; Ethnography


DOSSIÊ

"Uma família de mulheres": ensaio etnográfico sobre homoparentalidade na periferia de São Paulo

"A family of women": an ethnographic proposal on homoparenting in the periphery of São Paulo, Brazil

Camila Pinheiro Medeiros

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO

No presente artigo,1 1 Agradeço à minha orientadora prof.ª dr.ª Antonádia Borges pela discussão e contribuições a este artigo, e também a Virna Virgínia Plastino e Clara Flacksman pelas sugestões. buscarei refletir sobre uma família recomposta homoparental feminina da periferia da cidade de São Paulo, no que concerne à conjugalidade, ao relacionamento com as filhas, com a família extensa e com o ex-marido. Analisam-se possíveis variáveis que influenciam na forma como a lesbianidade é tratada e vivida e como diferentes posições relativas à questão podem levar a distintos arranjos familiares. No caso enfocado, a vivência de uma militância política e a concepção de lesbianidade como "condição" levam a uma publicização da mesma que terá repercussões na configuração dessa família. Por fim, partindo de uma consideração acerca dos dados etnográficos pesquisados, repenso a própria noção de lesbianidade e de pluriparentalidade.

Palavras-chave: lesbianidade; família; militância política; etnografia.

ABSTRACT

This article aims to propose a reflection on conjugality in its relationship with parenting, extended family and ex-husbands in a recomposed female homoparental family, from the periphery of São Paulo. Possible variables that influence the manner in which lesbianism is dealt with and experienced will be analyzed, as well as how different positions relating to this question can result in distinct family arrangements. In the case studied the experience of political activism and the conception of lesbianism as a "condition" result in a form of publicity, which has repercussions in the configuration of the family. Finally, beginning with a contemplation of the ethnographic data, the very concept of lesbianism and plural parenting will be reconsidered.

Key words: Lesbianism; Family; Activism Politics; Ethnography.

Em novembro de 2003, conheci Flávia2 2 Todos os nomes utilizados são fictícios. no XIV Encontro Nacional Feminista ocorrido em Porto Alegre. Ela participava do evento como coordenadora de uma associação de mulheres lésbicas, negras, da periferia da cidade de São Paulo e aceitou ser entrevistada para a pesquisa que eu estava realizando na época a respeito de mulheres que tiveram filhos em um relacionamento heterossexual antes de se assumirem lésbicas, investigação que resultou em minha monografia de graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina.3 3 Essa monografia, defendida em janeiro de 2004, intitula-se Sobre deveres e prazeres: estudo acerca de mulheres que se assumiram lésbicas depois de terem sido mães (MEDEIROS, 2004) e foi orientada pela prof.ª dr.ª Miriam Pillar Grossi, que realizou comigo a referida entrevista. Além de minha orientadora nessa pesquisa, muito devo agradecer a meus colegas do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS Laboratório de Antropologia/UFSC), especialmente Flávio Luiz Tarnovski, Juliana Cavilha Mendes, Rita de Cássia Flores Müeller, Rozeli Maria Porto e Simone Becker. Agradeço também ao CNPq pela bolsa de pesquisa concedida durante a realização desse trabalho. Se o tema da "maternidade lésbica" norteara a entrevista, outras questões naquele momento emergiram, ficando porém como pano de fundo daquela problemática central à época. É sobre aquele "pano de fundo" que se centra meu interesse atual de investigação.

Naquele primeiro momento, o método de entrevistas baseadas em histórias de vida levava a um recorte do objeto que privilegiava a comparação entre os depoimentos colhidos em entrevistas com outras mulheres. O objetivo da pesquisa que agora desenvolvo para a dissertação de mestrado segue talvez um "caminho de volta", uma vez que busco retomar temas da vida de Flávia que não haviam sido explorados inicialmente com a delimitação do recorte. Assim, se antes a pesquisa era sobre "Flávia, mãe e lésbica", procuro agora articular os atributos "negra", "moradora da periferia", "filha-de-santo", dentre outros, nessa "colcha" que não é de retalhos, pois não apresenta costuras que delimitam espaços. A etnografia permite atenuar essas separações, possibilitando aproximar a "maternidade lésbica" da "vida vivida" de Flávia. Apresentarei a seguir alguns aspectos de sua história de vida.

Flávia, 39 anos, nascida e criada na cidade de São Paulo, desde muito jovem iniciou uma trajetória de militância política: quando adolescente, realizava um trabalho social junto ao Conselho Regional da Juventude da Igreja Católica na região onde morava; há quatorze anos, quando se mudou para o bairro onde reside atualmente, descobriu que o terreno que havia comprado estava em uma área irregular, e passou, então, a coordenar um movimento de moradia organizado na região. Durante esse período, essa mobilização aproximou-a do Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual se filiou. A partir de sua atuação no movimento de moradia estabeleceu contato com um deputado estadual do PT, e devido principalmente ao trabalho que ela começou a desenvolver na associação que criou para mulheres, lésbicas, negras da periferia, esse deputado a indicou para coordenar um dos diretórios de articulação da campanha de Marta Suplicy (PT) – na época candidata à prefeita pela cidade de São Paulo. Nesse espaço, passou a desenvolver muitas atividades voltadas para o "segmento GLBT",4 4 GLBT é a sigla para "Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros". Na maioria das vezes, o G antecede o L, mas as lésbicas costumam inverter a seqüência para LGBT. as quais renderam-lhe, com a eleição de Marta, um cargo em uma Coordenadoria da Prefeitura. Nessa função, da qual foi exonerada na gestão atual de José Serra (PSDB), Flávia atuou sobretudo com a questão GLBT, e nestes quatro anos participou ativamente da organização da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo – que, em 2004, reuniu 1.600.000 pessoas. Nestes últimos anos, também, passou a integrar – à frente da referida associação que criou em seu bairro – uma rede de discussões que se estabelece entre os grupos feministas e lésbicos de São Paulo e do país.

"Descobriu-se" lésbica aos 32 anos.5 5 A categoria êmica "descobrir-se" foi discutida em trabalho anterior (MEDEIROS, 2004) e se refere a uma idéia de acessar uma essência que estivera coberta durante um período da vida. Aproximações dessa concepção serão abordadas doravante. Sua primeira companheira também participava do movimento de moradia no qual militava. Quando apresentou esse envolvimento ao seu marido, pai de suas duas filhas – Tatiana (atualmente com 12 anos) e Daniela (9 anos) –, ele a agrediu. Na época, ele ameaçou requisitar a guarda das filhas, mas logo desistiu da idéia. Atualmente está casado com outra mulher e mantém pouco contato com Flávia, Tatiana e Daniela.

Há cinco anos, quando ainda estava com sua primeira companheira, conheceu Luiza, 41 anos, durante a campanha da Prefeitura de São Paulo. Luiza, que é deficiente visual, estava participando como representante do segmento da mulher com deficiência. Elas se aproximaram após as eleições, pois Flávia, em seu cargo no executivo municipal, dava assessoria ao Conselho da Prefeitura onde Luiza – trabalhava primeiro como conselheira, e há dois anos como presidente eleita. Depois de sete meses de namoro, Luiza foi morar na casa que Flávia residia com suas filhas. Nesse espaço também funcionava a associação fundada por Flávia, e a ela se juntou a organização dirigida por Luiza, que há dez anos trabalha com mulheres com deficiências.

Há dois anos, elas mudaram-se para um apartamento, no qual Luiza estava inscrita, em um conjunto habitacional muito próximo à casa onde moravam, que ficou exclusivamente destinada às associações. Elas conseguiram colocar esse apartamento no nome do casal e das duas filhas de Flávia e é lá que as quatro residem atualmente. No momento, Luiza continua na presidência do referido Conselho na Prefeitura, mas não recebe salário, pois seu cargo é considerado de "relevância pública" (o qual não prevê remuneração). Como Flávia está desempregada, a fonte de renda familiar é a aposentadoria de Luiza (ela aposentou-se por invalidez aos 20 anos, quando perdeu a visão). Flávia está produzindo artesanatos (velas, camisetas bordadas, biscuits, bijouterias, etc.) para complementar o orçamento doméstico. Elas continuam coordenando suas associações e também são importantes articuladoras de um fórum de discussão acerca do "segmento LGBT na periferia de São Paulo" que está se consolidando no bairro onde moram. Sobre a associação que coordena, Flávia falou-me em certa ocasião:

Porque falta uma formação política. As pessoas acham que é para se mobilizar só para fazer festa, mas tem que ter uma discussão política. Nós temos assim, mais próximas, umas vinte mulheres no nosso grupo. E nós buscamos nos reunir para trabalhar a questão do emprego, auto-estima, relação com a saúde, com os postos de saúde, com as delegacias de mulheres. Tem meninas que nunca foram ao ginecologista, por exemplo, porque acham que, porque se relacionam com mulheres, não precisam. E se elas vão nesses postos de saúde da região muitas vezes elas sofrem preconceito, porque o médico não leva em consideração a especificidade delas; muitas nunca tiveram uma penetração, por exemplo, e o médico já vai logo enfiando aquele bico de pato. E elas não têm opção de ir a um outro médico. Tem a questão da educação também, porque nós temos meninas que têm dificuldade em ler. E tem também as regressas, aquelas mulheres que foram presas e que tem todo um trabalho de auto-estima para ser feito com elas, porque elas têm relatos, você tem que ver, muito difíceis do tempo em que elas estiveram presas.

Além de o cotidiano dessas mulheres estar pautado por militâncias políticas, o envolvimento religioso também está aí fortemente imbricado. Conforme Flávia designou-me, trata-se de uma "família candomblecista": dentro de alguns meses, ela e a filha Tatiana farão sete anos de santo; Luiza é iniciada há dezessete e recentemente Daniela foi iniciada. Esse "envolvimento múltiplo" é marcado por Flávia, que ironiza comentando que elas fazem parte da "exclusão dentro da exclusão":

Quando eu vou me apresentar em algum seminário, algum lugar, e eu falo que eu sou lésbica, negra, da periferia, mãe, do candomblé, e que minha companheira tem deficiência, as pessoas ficam loucas, cada uma querendo pegar uma dessas especificidades.

Penso então que o direcionamento da trajetória de militância de Flávia articula-se com as preocupações suscitadas por eventos de sua vida: se o terreno irregular comprado foi o principal propulsor da mobilização em torno das questões de moradia, sua atuação junto ao segmento GLBT emergiu a partir do momento em que se assumiu lésbica, como uma espécie de resposta política a demandas particulares – uma atitude que parece ser central e que dá sentido ao "ser-no-mundo" de Flávia. Na verdade, é um caminho de mão dupla, pois, se Flávia faz sua assunção lésbica reverberar pública e politicamente, é também essa esfera de atuação política que a impulsiona a assumir sua lesbianidade.

Retomei o contato com Flávia em outubro de 2004, quando fui a São Paulo conhecer sua família e a associação que coordena. Nessa ocasião, Flávia ofereceu-me a hospedagem em seu apartamento para a pesquisa de campo que vim a realizar nos meses de fevereiro e março de 2005. Nesse tempo em que convivi com uma "família recomposta homoparental feminina",6 6 Reproduzo aqui o termo cunhado por Didier LE GALL, 2001, para se referir a famílias cujo casal é formado por duas mulheres, sendo que ao menos uma delas "traz" consigo filha(o)(s) de um relacionamento heterossexual anterior. pude repensar certas análises que realizei na pesquisa anterior e revisitar alguns conceitos utilizados. Embasando-me na idéia de um diálogo entre teoria nativa e teoria antropológica,7 7 Cf. Marilyn STRATHERN, 1988. o presente artigo é uma tentativa, em certa medida, de reescrever algumas reflexões. A partir dessa experiência etnográfica de pesquisa, pude em algum grau vislumbrar uma "vida em movimento" que permitiu reelaborar certos pressupostos: a análise dos "temas em (inter)ação" possibilitou, principalmente, perceber que o "ser mãe" não pode ser dissociado do "ser lésbica", que por sua vez é impensável sem se abordar a atuação política de Flávia.8 8 Infelizmente, não será possível desenvolver detidamente neste espaço a vivência religiosa do candomblé, mas sua articulação nesse cotidiano, como já referido, não é de menor importância.

Não bastasse aquele apartamento ser um universo onde pululavam diversas questões antropológicas – a respeito de família, política, gênero, religião, etc. –, havia uma porta aberta pela qual adentravam outras mulheres que também foram se tornando essenciais para a pesquisa – principalmente no que tange à possibilidade de informarem sobre reflexões compartilhadas acerca do ser lésbica na periferia, as quais talvez permitam falar em uma delineação de um ethos. Portanto, enfoco primordialmente apenas uma família, mas contestarei este "apenas" a partir da apresentação de uma 'expansividade' que esse caso pode ter. Justifico uma antropologia a partir de uma pessoa, ou de uma família, ou de um apartamento, expondo que, por si só, esses dados – essa teoria nativa – já têm um potencial questionador da teoria antropológica. Além do mais, Flávia, como uma liderança política e centralizadora de uma rede de relações,9 9 Sigo aqui a acepção de "rede social" de Elizabeth BOTT, 1976. Essa concepção foi formulada como um "instrumental" teórico-metodológico para a análise de "sociedades complexas", nas quais há um alargamento infinito das redes de relações entre os indivíduos, que circulam por vários "universos simbólicos" e, portanto, não se encontram englobados por um grupo específico. "condensa" opiniões de um círculo maior de pessoas que estão à sua volta. Suas concepções informam, ou melhor, têm uma representatividade que vai muito além daqueles limites físicos impostos pelas paredes de seu exíguo apartamento. É nesse sentido, por exemplo, que ela fala pelas lésbicas da periferia em reuniões de organização da Caminhada Lésbica que antecede a Parada do Orgulho GLBT, e discursou no carro de som da Marcha Mundial de Mulheres no 8 de Março na Avenida Paulista, em São Paulo, representando as lésbicas. Seguindo uma idéia de que o que Flávia diz/informa não se refere apenas a ela, é que apresento os dados a seguir.

Significados do ser lésbica como um dado importante para pensar a vida familiar

Antes propriamente de falar de características dessa família homoparental no que concerne a "papéis familiares", relacionamento conjugal, com as filhas e a família extensa, penso ser importante apresentar a forma como a lesbianidade é tratada nesse contexto, se esta é – segundo distinção exposta por elas mesmas – "estado" ou "condição". Neste momento, refiro-me então àquelas "reflexões compartilhadas" citadas na introdução deste artigo, já que a lesbianidade foi um assunto debatido em diversas ocasiões – seja em discussões conjuntas na sala do apartamento, seja em circunstâncias de conversas particulares – por outras lésbicas que fazem parte da rede próxima de Flávia. Mães ou não, o consenso é nítido com relação ao assunto: ser lésbica não é uma questão de escolha; nasce-se assim. Conforme desenvolverei abaixo, essa concepção parece-me ser fundamental no sentido de que influencia a delineação de arranjos familiares.

Em uma ocasião, conversava com Cecília (26 anos) – ela e uma outra mulher, Fabiana (28 anos), são as pessoas mais próximas de Flávia e Luiza e estão quase diariamente no apartamento delas10 10 Elas são próximas pois, além de vizinhas, são as principais participantes da associação coordenada por Flávia. Além disso, Flávia é mãe-pequena de ambas (mãe-pequena é aquela que, no candomblé, auxilia a mãe ou pai-de-santo durante as iniciações). –, na cozinha do apartamento, enquanto ela preparava o jantar. Cecília é da Paraíba, e veio morar com os pais em São Paulo quando tinha 7 anos. Os pais voltaram para a cidade de origem e ela ficou em São Paulo, principalmente em função do namoro com Fabiana, o qual durou sete anos e terminou há dois. Falava-me sobre seus pais e sobre sua lesbianidade:

Meus pais vieram para cá, moraram um tempo e depois voltaram. Eu fiquei. De vez em quando eu fico com saudade, mas quando você tem independência é difícil voltar. Quando eu tinha uns 18, eu fui morar com eles. Mas o que pega mesmo é minha opção sexual. Na verdade, não se pode falar em opção, porque não é uma questão de escolher Natura ou Boticário; é uma coisa que nasce com a gente.

Este tipo de discurso foi recorrente enquanto lá estive: "Porque com a gente não tem essa de 'estar'. Eu 'sou' [enfática] lésbica" (Fabiana); "Para mim não tem essa história de 'estar lésbica'" (Luiza). Foi comum também ouvir histórias de mulheres que se descobriram lésbicas aos 9, 12 ou 13 anos de idade. Além disso, essa concepção embasa a argumentação contrária à bissexualidade que elas explicitam. Em uma discussão acalorada entre Flávia, Luiza, Fabiana e Cecília, narravam-se os debates em torno do assunto em um encontro da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL),11 11 A Liga Brasileira de Lésbicas é uma articulação de grupos lésbicos de todo o país que, além de realizar encontros bianuais, mantém uma lista de discussão na internet. ocorrido em dezembro de 2004. A partir do surgimento de uma proposta de integrar mulheres heterossexuais e bissexuais na LBL, Luiza indignou-se: "Daqui a pouco vai ser a 'Liga do Vai Quem Quer'!". Diante do comentário de uma mulher nesse encontro de que Flávia era bissexual porque já fora casada com um homem, ela respondeu: "A pessoa não é bi porque ficou com homem uma vez. É bi porque fica vez com homem, vez com mulher".

Essa posição contrária à bissexualidade parece ser nodal para essas mulheres, porque centraliza concepções acerca do ser lésbica, do ser lésbica na periferia, e da vinculação no movimento lésbico – dimensões que parecem formar três vértices de um triângulo. O "ser lésbica na periferia" ilumina a concepção do "ser lésbica" na medida em que, para essas mulheres, não se assume lésbica a pessoa que não tem certeza de sua condição. Isso porque o bairro da periferia onde elas moram é caracterizado como de extremo preconceito a lésbicas e gays, e várias situações homofóbicas de agressão física e atentados de morte foram narradas. Por conseguinte, dada a violência que podem vir a sofrer, ninguém parece se arriscar a se assumir lésbica se não tiver certeza de sua condição – a ameaça de violência não seria propícia a um livre experimentar. Assim, a um certo descompromisso que elas por vezes apontam às lésbicas do centro – dentro de uma figura de oposição centro/periferia que elas costumam lançar mão –, contrapõe-se uma, digamos, firmeza de posição daquelas da periferia. Conforme me apontou Fabiana, "é muito diferente você ser lésbica no centro, onde pode tudo, e na periferia, onde as pessoas controlam e onde tem violência".

Em outra ocasião, voltava com Fabiana da sede de uma associação de "lésbicas do centro", saindo de uma reunião de organização da Caminhada Lésbica. Chamou-me a atenção o espaço da sede, localizada em um prédio de uma área nobre de São Paulo: era uma ampla sala com computador, uma grande televisão, DVD. No mural, havia chamadas para diversos eventos que lá ocorriam: saraus, festas, videokês, sessões de filmes. Conversávamos a respeito daquele encontro: "Elas sempre deixaram claro que elas não têm uma proposta de formação política. Elas se preocupam em manter aquele espaço", falava-me Fabiana. Já em casa, quando narramos a reunião para Flávia, ela complementou:

Nós tínhamos mais proximidade com elas antes. Todo sábado, eu dava um jeito para que fossem duas ou três participarem das atividades lá. Mas é muito diferente, as preocupações são muito diferentes, sabe? E nós apresentamos isso para elas. Elas não têm uma discussão, por exemplo, sobre equipamentos de saúde, sobre atendimentos a lésbicas em postos de saúde, porque todas lá têm convênio médico. Aqui a realidade é outra. E eu não posso separar a discussão lésbica da vida dessas meninas aqui da periferia.

Luiza continuou: "Elas têm uma outra concepção de visibilidade. Elas não sabem o que é não poder assumir para não sofrer agressão". Portanto, as formulações a respeito da lesbianidade aparecem aqui atreladas ao local onde se vive: se no centro é mais viável um discurso sobre o "estar" – pois não haveria uma coerção imediata sobre uma vivência homoerótica –, na periferia, ante um preconceito pungente, a lesbianidade não se explicaria por uma questão de escolha (o querer "experimentar" o homoerotismo), senão como algo essencial, que não poderia ser de outro modo. Diante dessa irredutível constatação, o que caberia ao âmbito da opção é, ou militar em torno da "visibilidade", ou escamotear aos olhos públicos essa condição. Seguindo essa argumentação, a bissexualidade torna-se também inconcebível: na periferia só se assume quem está certa de sua condição, e essa idéia de condição, por sua vez, inviabiliza pensar um relacionamento com homens.12 12 A respeito das categorias "ser" e "estar homossexual", ver Maria Luiza HEILBORN, 1996. A autora, pesquisando um grupo de mulheres de camadas médias, argumenta que as mesmas lançam mão da expressão "estar lésbica", pois não se identificam como homossexuais, alegando apenas que "estão no momento vivendo com uma pessoa do mesmo sexo" (HEILBORN, 1996, p. 142). Penso que essa idéia do "ser lésbica" apresentada pelas "mulheres da periferia" pode vir a complementar o argumento da autora, uma vez que esta localizava o "estar lésbica" em mulheres de camadas médias.

Volto à imagem do triângulo ("ser lésbica", "ser lésbica na periferia", "vinculação ao movimento lésbico"). Mais de uma vez, presenciei Flávia e Luiza, Fabiana, Cecília e suas respectivas namoradas beijarem-se publicamente, andarem de mãos dadas nas ruas, namorarem dentro dos ônibus. Conforme já exposto, "ser lésbica na periferia" delineia a idéia de condição do "ser lésbica", e essa noção, somada à atuação política, leva a uma publicização da lesbianidade. A relação entre esses dois vértices talvez possa, então, ser colocada nos seguintes termos: já que se é, luta-se politicamente em torno da questão, e a luta política, por sua vez, requer uma politização da lesbianidade que só é vislumbrada quando a mesma é tratada como condição. Mais uma vez, ser bissexual ou considerar-se como "estando lésbica" implicaria para elas um esvaziamento do teor político, pois significaria ficar em cima do muro por receio das conseqüências advindas do "ser lésbica". A essencialização, portanto, é um propulsor da vinculação política em torno da questão lésbica.

O vértice de "vinculação ao movimento lésbico" é fundamental nessa tríade, na medida em que sua ausência leva a uma outra "política da lesbianidade". Na pesquisa anterior, já havia traçado uma oposição entre mulheres vinculadas a movimentos sociais e aquelas não militantes no que se refere ao posicionamento político da família homoparental e exposição da lesbianidade.13 13 "As 'não militantes' são adeptas da lógica 'não precisa ficar falando a toda hora, pra todo mundo', e reivindicam um status de normalidade para si e sua família, procurando adaptar-se ao meio social homofóbico [...]. As 'militantes' entrevistadas pensam mais de acordo com a assertiva 'quando eu me assumo lésbica, eu faço isto politicamente', associando a lesbianidade a um 'estilo de vida', e afrontando, sempre que necessário, as reações lesbofóbicas" (MEDEIROS, 2004, p. 50-51). Essa dicotomização foi também observada no contexto em que agora pesquiso. Entrevistei Helena (39 anos) e Lila (29 anos), que moram juntas há quinze anos. Elas participam de algumas reuniões da associação mas não têm o mesmo envolvimento de Flávia, Luiza, Fabiana e Cecília na militância política (não vão à Parada, à Caminhada Lésbica, à marcha do 8 de Março, a reuniões de militância, por exemplo). Helena tem um filho de 23 anos do primeiro casamento, dois filhos (17 e 15 anos) do segundo e, após a separação, uniu-se a Lila. Atualmente, elas moram em uma casa próxima ao apartamento de Flávia e Luiza, junto com os dois filhos mais velhos de Helena. O mais novo saiu recentemente de casa, por divergências relativas à religião da mãe – Helena e Lila fizeram santo no mesmo barco que Daniela, a filha mais nova de Flávia.14 14 Barco, no candomblé, significa um grupo de pessoas que são iniciadas conjuntamente no mesmo período e pelo mesmo pai-de-santo. Apesar dos dois casamentos, Helena disse que se descobriu lésbica aos 11 anos, mas que se casou principalmente para não decepcionar a mãe. Lila nunca teve relacionamentos com homens. Ambas consideram a lesbianidade como condição, mas – conjecturo – a não-atuação em movimentos de militância leva a uma outra política: a do "se resguardar".

Não, a gente não tem aquele negócio, entendeu? Eu sempre fui dessa opinião. Ou eu tenho meus filhos, eu tenho uma vida assim... eu não tenho aquela postura, de chegar: "Ah, sou isso mesmo...". Aquela coisa mesmo. Por quê? Porque tem sempre uma cobrança. Então eu não vou fazer assim: "Olha, eu sou isso mesmo, porque sou e acabou". Não. Se eu não tivesse filho, se eu tivesse seguido outra vida e tudo, seria mais fácil para você impor sua presença e tudo. Mas a gente se cala mais diante da situação. Diante de você ter filhos, de você morar em um lugar e todo mundo conhecer, então você fica mais assim (Helena).

Ambos os casos (Flávia/Luiza e Helena/Lila) tratam a lesbianidade como condição, mas o fato de ter filhos não leva a uma "política do resguardo" por parte de Flávia, fato que parece fortalecer a tese da militância política. Assim, penso que a "política da lesbianidade" varia se esta é considerada como estado ou condição, se a pessoa é do centro ou da periferia, vinculada ou não a movimentos sociais, dentre as variáveis que pude observar. E essa política da lesbianidade terá, por conseguinte, uma repercussão no viver em família, conforme será apresentado a seguir.

Relacionamentos e papéis familiares

Neste tópico, continuarei insistindo na comparação entre os dois casos citados no parágrafo anterior. Em comum, em ambos trata-se de mulheres da periferia, que pensam a lesbianidade como condição; porém, em uma circunstância há a vinculação a movimentos sociais (Flávia/Luiza) e na outra não (Helena/Lila). Isso parece denotar uma distinção interessante nas configurações familiares no que diz respeito, principalmente, ao relacionamento conjugal, com os filhos e com a família extensa. O relacionamento com o pai das/os filhas/os é semelhante nos dois casos e parece seguir uma tendência já observada na pesquisa anterior: a ausência do pai fato – que me fez repensar a idéia de pluriparentalidade associada a famílias recompostas homoparentais femininas.

"Nós temos uma política de não deixar de falar as coisas na frente das crianças", explicou-me Fabiana certo dia. De fato, Tatiana e Daniela com freqüência estão presentes em conversas a respeito de temas lésbicos, inclusive tomando a palavra em algumas situações. Flávia e Luiza – que têm seu próprio quarto, com cama de casal – não se furtam de se relacionarem afetivamente na frente das crianças. Uma bandeirinha do arco-íris tem lugar de destaque na estante da sala; Flávia deu o nome de Safos (em uma referência a Safo de Lesbos, poetisa grega da qual se originou a palavra lésbica) a uma tartaruga que Luiza lhe deu e que é seu animal de estimação; é com freqüência que elas estão com camisetas da LBL, da Parada do Orgulho GLBT, do Seminário Nacional de Lésbicas, dentre outros signos que demonstram explicitamente a "orientação sexual".15 15 Em tom cômico, Luiza contou quando, uma vez, saiu com a camiseta cujos escritos da Liga Brasileira de Lésbicas estavam em destaque e ouviu uma senhora comentar na rua: "Coitadinha, olha a camiseta que deram para ela vestir e ela nem sabe". Esses signos também são usados pelas filhas Tatiana e Daniela: elas inclusive vão para a escola com camisetas e bótons do movimento lésbico, e Tatiana leva pendurado na mochila um chaveiro com um sapinho, sobre o qual ela tem conhecimento da conotação.16 16 Houve uma "positivação" do símbolo "sapa" pelo movimento lésbico. "Sapatão", que sempre foi – e ainda é – um termo pejorativo para se referir a lésbicas, foi transformado em "sapa" (um sapo feminino) e reapropriado como um emblema para essas mulheres, que o utilizam estampado em camisetas, sob forma de chaveiros, dentre demais usos.

Com essa exposição, há certamente uma preocupação relativa a reações lesbofóbicas que as filhas possam sofrer, mas Flávia busca contornar a situação sempre conversando abertamente com as filhas, conforme aponta. É nesse sentido também que não se busca esconder a lesbianidade da vizinhança, como sugere explicação de Luiza enquanto ela conversava com um vizinho amigo que do mesmo modo assume sua homossexualidade publicamente:

Todo mundo sabe. E a gente sempre fez questão de não omitir, não ficar escondendo para ninguém saber, até para quebrar com a chance do "ah é..." [imitando um tom de fofoca]. Então, quando se insinua qualquer coisa, não vai ter nenhum impacto porque não é novidade para ninguém. E não vão usar isso como xingamento também. A gente tem um casal de amigas que teve que se mudar do conjunto onde elas moravam, porque elas sempre esconderam; os vizinhos descobriram e ficou insustentável morar lá.

Atualmente Flávia é síndica do bloco e, nas duas reuniões de condomínio que pude acompanhar, é muito respeitada pelos moradores. Ela foi eleita com a incumbência de colocar as contas do prédio em dia, visto que a síndica anterior – que já havia se mudado –, em uma gestão comprovadamente fraudulenta, deixou de pagar diversas mensalidades de água e luz.

Mas Flávia expõe que isso não impede que haja cobranças externas (família extensa, ex-marido, vizinhança, etc.) com relação à educação das filhas e argumenta que, por ser lésbica, o cuidado nesse sentido deve ser redobrado para evitar os comentários de que se algo sai errado é por conta do "mau exemplo" que se tem em casa.17 17 LE GALL, 2001, expôs situações semelhantes. Helena apresentou a mesma preocupação e está muito apreensiva e resistente com o fato de seu filho do meio estar "se enveredando" pelos caminhos do homoerotismo. Ela dizia estar certa de que isso será julgado negativamente à luz do argumento de que ele é gay por ter convivido quinze anos com sua mãe e a companheira.18 18 Com relação a essas famílias, Le Gall expôs: "O que é aqui bem específico é que a homossexualidade da mãe é sempre posta em destaque para lhe recusar, sem maiores análises, toda a competência, e até mesmo invalidá-la como pessoa [...] A fobia da homossexualidade faz os lesbofóbicos não perceberem o fato de que a competência parental não se avalia pela vida sexual" (LE GALL, 2001, p. 220 – livre tradução). Mas, ao contrário do que ocorre na casa de Flávia, nunca houve uma conversa entre eles a respeito do vínculo que une Helena e Lila, conforme a primeira apresentou-me:

Porque na verdade, na verdade, nunca foi sentado e conversado; é mais na brincadeira. Eu tento levar, mostrar as coisas para eles na brincadeira, entendeu? Então não é aquela coisa assim de sentar e perguntar. A gente trata sempre na esportiva assim, mas... Se eles não me perguntam mesmo assim é por respeito. [Pergunto se eles sabem do caráter do relacionamento entre elas]. Sabem, sabem. Exatamente. Mas por respeito mesmo, a mim eles não perguntam (Helena).

A postura entre os dois casos aqui analisados também é diferenciada no que se refere ao relacionamento com demais membros da família extensa, como a mãe, pai e irmãos, por exemplo. A mãe de Flávia sabe do relacionamento da filha e, apesar de sempre insistir que ela deve ter sua própria casa, no mínimo uma noite por semana dorme no apartamento da filha. Seus irmãos, assim como seu pai, também sabem e se relacionam bem com Luiza. Por sua vez, Luiza, que é filha única, assumiu-se lésbica com 13 anos, um ano após o falecimento de seu pai. A mãe não aceitou, Luiza saiu de casa e elas ficaram muito tempo sem se falar. No entanto, ela faleceu há aproximadamente dois anos e passou os últimos meses de sua vida morando na casa de Flávia e Luiza.

Contrariamente a essa situação de apresentação da lesbianidade para a família, Helena nunca falou nada à mãe, sendo que esta ainda era viva nos primeiros anos de relacionamento com Lila. Pais e irmãos são distantes. No caso de Lila, ela perdeu o contato com o pai há muitos anos e, apesar de morar no mesmo bairro da mãe, raramente se vêem. Quem cuidou de Lila desde a infância foi sua avó materna, que aceita bem a "orientação" da neta.

Além da postura de exposição da lesbianidade, o que parece mudar com relação ao pertencimento ou não a movimentos sociais é a relação conjugal. Sobre "papéis de gênero", Flávia disse: "É porque nós conversamos muito e por toda a questão feminista também. Mas a Luiza, no começo, não queria que eu trabalhasse". E complementou: "Você acha que não tem gênero também na relação entre mulheres? Tem sim". Na casa de Helena e Lila, a última é categórica com relação a não deixar a companheira trabalhar. "Eu queria dar tudo para a Helena, porque ela merece", falava-me Lila. Apesar de elas estarem passando por uma difícil situação financeira decorrente do desemprego de Lila, esta não admite que Helena trabalhe, até por uma questão – conforme Lila me explica – de prezar pela saúde da companheira, que é diabética. Helena já trabalhou fazendo faxinas e, em uma época que fazia serviços gerais em uma escola, Lila, depois de sair de seu trabalho, ia para a referida escola fazer as tarefas que cabiam a Helena.

Em ambos os casos, apesar da proeminência das mães (Flávia e Helena), há uma preocupação do casal relativa à educação das/os filhas/os. Na situação de Flávia, cujo apartamento é uma afluência de mulheres formando uma espécie de "rede lésbica", os homens não têm lugar – "o cheiro do apartamento muda quando tem homem", conforme Luiza falou-me uma vez. Essas mulheres todas estão, em diferentes graus, comprometidas com os cuidados com as crianças. Por Luiza estar o dia inteiro fora trabalhando – assim também era o cotidiano de Flávia, que agora, devido ao desemprego, permanece mais em casa –, cabe também a Cecília e Fabiana, principalmente, cuidarem para que Tatiana e Daniela façam as refeições, arrumem as camas, vão para a escola, façam os deveres, etc. – cuidados que são freqüentemente compartilhados com a mãe de Flávia, que mora próxima à filha.

Por fim, as famílias de Flávia/Luiza e Helena/Lila – seguindo uma constante que também foi observada entre outras mulheres que já havia entrevistado – caracterizam-se pela quase ausência do pai das/os filhas/os.19 19 Há uma extensa bibliografia a respeito do caráter matrifocal das chamadas "famílias pobres" (cf. Eunice DURHAM, 1980, e Delma NEVES, 1985). Segundo essa linha, da precária inserção do homem no mercado de trabalho e crescimento do emprego feminino decorreria um aumento de poder da mulher no âmbito familiar, situação geradora de conflitos que, no limite, levariam ao abandono do lar pelo marido. Sem a presença masculina, estabelecer-se-ia um arranjo matrifocal – o qual seria uma "estratégia de sobrevivência" da unidade familiar até que aquele momento de crise fosse desfeito com a reinserção do esposo provedor. Partindo do suposto de que situações que apresentam traços comuns (no caso, uma família sem a presença masculina) podem remeter a contextos etnográficos quiçá os mais díspares, apóio-me em crítica de Claudia Fonseca, que irá localizar a abordagem referida acima em uma conjuntura em que as reflexões sobre família de baixa renda tinham como intuito principal "evitar conotações pejorativas" (FONSECA, 2000, p. 59), mas que ainda estavam grandemente marcadas por um "materialismo primário dos anos 70" (FONSECA, 1995, p. 74). Nesses enfoques há, portanto, uma lógica de "falta de": é pela ausência do homem – e não a presença da mulher – que se dá a matrifocalidade, e a dimensão da escolha é desse modo afastada. Creio que a circunstância exposta neste artigo não seria bem contemplada nesses termos. Durante todo o tempo em que estive no apartamento de Flávia e Luiza, não houve nenhum telefonema do pai de Tatiana e Daniela e elas não passaram nem um dia com ele durante as férias escolares. A ausência do pai faz-se sentir também pelas escassas referências das filhas a ele. O dado que penso ser o mais notável dessa circunstância era o fato de Tatiana e Daniela utilizarem o prenome para fazer uma distinção entre os dois "pais": o pai-de-santo e o "pai de verdade" (sic). "Pai Sérgio" é o primeiro; "pai Antônio", o segundo. "Pai Sérgio" é muito mais recorrente na conversa entre elas e, diversas vezes, quando elas falam simplesmente "pai", estava implícito que se referiam a Sérgio.

Finalizando considerações: pensando pluriparentalidade e lesbianidade

Essa observação acerca da ausência do pai biológico fez-me refletir a respeito dos pressupostos de parentesco e do conceito de "pluriparentalidade" que embasaram a análise do trabalho anterior. Para posicionar a questão, retomarei idéias de Anne Cadoret e Didier Le Gall, ambos pesquisadores da parentalidade lésbica.

Anne Cadoret20 20 CADORET, 2001a e 2001b. apresenta o caráter profundamente perturbador das famílias homoparentais por não basearem sua organização social em uma complementaridade biológica entre os sexos. Por conseguinte, essas famílias ressaltam ainda mais o aspecto social do parentesco, uma vez que enfatizam que a parentalidade pode se configurar a partir de relações sociais e afetivas, e não necessariamente biológicas. No caso das famílias recompostas homoparentais, é notável como as esferas da conjugalidade, sexualidade, procriação e filiação não se dispõem em um eixo comum. A autora se refere a como essas famílias contestam a idéia de que o pai e a mãe biológicos são as "figuras de verdade" (sic) na educação dos filhos, apresentando a noção de que "o biológico no nascimento [que] emoldura o social da aliança [...] não é mais adaptável à família homossexual". E conclui: "o biológico não é mais o fundamento do social, da família".21 21 CADORET, 2001b, p. 279-280 – livre tradução.

Esse argumento vai ao encontro daquele de Le Gall,22 22 LE GALL, 2001. que também ressalta a característica própria das famílias homoparentais de "agitar" a idéia de justaposição entre procriação, parentalidade e relação de casal. O autor narra que nas situações ideais de recomposição homoparental feminina – nas quais o ex-marido aceita a lesbianidade da mãe de seus filhos e continua presente na socialização e educação das crianças –, a "madrasta" vem para somar, uma vez que passa a ter um lugar reconhecido, não como concorrente à posição do pai, mas no sentido de um terceiro parent, um parentesco adicional baseado na eleição mútua. Esse fato ressalta o caráter premente dos laços afetivos em detrimento daqueles de sangue nessas configurações familiares.

O que gostaria de aqui acrescentar, baseando-me nessa experiência etnográfica, é que, talvez, o que o autor chama de "situação ideal" não se encaixe no contexto em questão: Flávia ressente-se de o ex-marido não procurar as filhas, mas, ao mesmo tempo, preza o fato de ele não interferir na educação que dá às meninas. Portanto, essa não-interferência do ex-marido é que parece ser a situação ideal para Flávia e Luiza. Somando-se esse caso aos casos que analisei na pesquisa anterior, em que apenas em um deles o pai se faz presente, repito-me chamando a atenção para esse afastamento do ex-marido nas situações das famílias recompostas homoparentais femininas.

Penso que esse quadro faz repensar as bases daquela idéia de pluriparentalidade. Baseando-me nos dados da família de Flávia, a pluriparentalidade pode ser percebida, mas não por uma soma dos três componentes – Flávia, Luiza e Antônio. Na "equação" dessa família considerada, o pai é eclipsado (pois não é eliminado por completo) e outras "figuras de verdade" entram em cena – no caso em questão, além de Luiza, há a mãe de Flávia, Fabiana e Cecília –, seguindo uma diretriz de que "quem está junto, é para ajudar". É de Flávia que irradia o motor principal na educação das filhas, mas as ondas emitidas pelas demais também devem reverberar. O que dá a impressão é que, saindo de cena o par biológico, surgem outras possibilidades – mais criativas – de desempenho dos papéis parentais. É nesse sentido então que, parafraseando Ruth Landes, exponho a idéia de uma "família de mulheres".23 23 LANDES, 2002.

Conforme já apresentado, essa "família de mulheres" assim se configura também em função de como é pensada a lesbianidade (sob a luz da idéia de condição). É a respeito desse ponto que desenvolverei uma segunda consideração crítica acerca de uma idéia que havia levantado anteriormente: a de que a "homossexualidade é concebida como algo tão construído socialmente quanto a heterossexualidade".24 24 MEDEIROS, 2004, p. 12. Essa noção acabou orientando as análises para um caminho onde se buscava localizar na trajetória das mulheres entrevistadas indícios de que a lesbianidade era algo construído, desconsiderando, dessa forma, o que o discurso delas sobre o caráter essencializador (o ser lésbica) poderia informar. As conclusões do trabalho, por conseguinte, centraram-se fortemente em uma dimensão de escolha que suas narrativas claramente rechaçavam.

Depois desse trabalho de campo que realizei, busquei empreender um outro movimento, e tentar não mais utilizar a teoria antropológica para, no limite, desconstruir a teoria nativa. Parece-me que na pesquisa anterior era como se estivesse explicando o que realmente acontecia na trajetória daquelas mulheres com relação à lesbianidade, por elas não estarem em um posição favorável para fazê-lo. Após a experiência etnográfica, repenso essa postura. Se eu estou em uma discussão entre quatro lésbicas – como ocorreu enquanto estive lá – na qual se afirma categoricamente que ser lésbica não é uma questão de estado, mas de condição, não posso simplesmente usar da teoria antropológica para tentar desconstruir esse argumento e, de repente, a partir de uma análise da trajetória de vida delas, provar que a lesbianidade é algo de fato construído. Se a "violência da escrita"25 25 LÉVI-STRAUSS, 1993. é inevitável, penso que falar em homossexualidade construída quando os discursos nativos apontam sempre para o contrário, é uma forma de acentuar essa violência. Acredito, portanto, que a questão central não seja a de inferir se é ou não algo construído, mas buscar compreender que orientação essa idéia promove na interpretação dessas mulheres acerca de suas histórias de vida – em que medida essa concepção é um motor para certas formas de agir e pensar. A condição inata da homossexualidade é um ponto de partida interpretativo fundante para a compreensão das trajetórias de Flávia, Luiza, Helena, Lila, Cecília e Fabiana.

Portanto, o caminho – da teoria antropológica para a teoria nativa – deve ser repensado, a fim de levar em consideração os desafios que as categorias nativas impõem às "crenças antropológicas". A teoria antropológica só pode avançar mediante um movimento infinito em que as dúvidas trazidas pela realidade etnográfica desafiem as certezas da disciplina.26 26 Antonádia BORGES, 2003. Este "desalojar de certezas" é o que possibilita o avanço conceitual da antropologia. Desse modo, a etnografia não pode ser concebida como "uma produção de exemplos", mas como dados que fazem a antropologia pensar.

Recebido em novembro de 2005 e aceito para publicação em maio de 2006

  • BORGES, Antonádia Monteiro. Tempo de Brasília: etnografando lugares-eventos da política 1. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Núcleo de Antropologia da Política (UFRJ), 2003.
  • BOTT, Elizabeth. Família e rede social 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
  • CADORET, Anne. "Maternité et homossexualité". In: KNIBIEHLER, Yvone (Dir.). Maternité : affaire privée, affaire publique Paris: Bayard, 2001a. p. 77-91.
  • ______. "Le bricolage de la parenté". Compendre, Paris, n. 2 – Le lien familial, p. 265-282, 2001b.
  • DURHAM, Eunice. "A família operária: consciência e ideologia". Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, n. 2, v. 23, p. 201-213, 1980.
  • FONSECA, Claudia. "Amor e família: vacas sagradas de nossa época". In: RIBEIRO, Ivete; RIBEIRO, Ana Clara Torres (Orgs.). Família em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira São Paulo: Loyola, 1995. p. 69-89.
  • ______. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares 1. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000.
  • HEILBORN, Maria Luiza. "Ser ou estar homossexual: dilemas de construção de identidade social". In: PARKER, Richard; BARBOSA, Regina Maria (Orgs.). Sexualidades brasileiras Rio de Janeiro: Relume Dumará/ABIA-IMS-UERJ, 1996. p. 136-145.
  • LE GALL, Didier. "Recompositions homoparentales féminines". In: LE GALL, Didier; BETTAHAR, Yamina (Dirs.). La Pluriparentalité Paris: Puf, 2001. p. 203-242.
  • LANDES, Ruth. A cidade das mulheres 2. ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. "Lição de escrita". In: ______. Tristes trópicos Lisboa: Edições 70, 1993. p. 290-300.
  • MEDEIROS, Camila Pinheiro. Sobre deveres e prazeres: estudo acerca de mulheres que se assumiram lésbicas depois de terem sido mães 2004. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
  • NEVES, Delma Pessanha. "Nesse terreno galo não canta: estudo do caráter matrifocal de unidades familiares de baixa renda". In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. (Coord.). Anuário Antropológico 83 Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Fortaleza: UFC, 1985. p. 199-220.
  • STRATHERN, Marilyn. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia 1. ed. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 1988.
  • 1
    Agradeço à minha orientadora prof.ª dr.ª Antonádia Borges pela discussão e contribuições a este artigo, e também a Virna Virgínia Plastino e Clara Flacksman pelas sugestões.
  • 2
    Todos os nomes utilizados são fictícios.
  • 3
    Essa monografia, defendida em janeiro de 2004, intitula-se
    Sobre deveres e prazeres: estudo acerca de mulheres que se assumiram lésbicas depois de terem sido mães (MEDEIROS, 2004) e foi orientada pela prof.ª dr.ª Miriam Pillar Grossi, que realizou comigo a referida entrevista. Além de minha orientadora nessa pesquisa, muito devo agradecer a meus colegas do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS Laboratório de Antropologia/UFSC), especialmente Flávio Luiz Tarnovski, Juliana Cavilha Mendes, Rita de Cássia Flores Müeller, Rozeli Maria Porto e Simone Becker. Agradeço também ao CNPq pela bolsa de pesquisa concedida durante a realização desse trabalho.
  • 4
    GLBT é a sigla para "Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros". Na maioria das vezes, o G antecede o L, mas as lésbicas costumam inverter a seqüência para LGBT.
  • 5
    A categoria êmica "descobrir-se" foi discutida em trabalho anterior (MEDEIROS, 2004) e se refere a uma idéia de acessar uma essência que estivera coberta durante um período da vida. Aproximações dessa concepção serão abordadas doravante.
  • 6
    Reproduzo aqui o termo cunhado por Didier LE GALL, 2001, para se referir a famílias cujo casal é formado por duas mulheres, sendo que ao menos uma delas "traz" consigo filha(o)(s) de um relacionamento heterossexual anterior.
  • 7
    Cf. Marilyn STRATHERN, 1988.
  • 8
    Infelizmente, não será possível desenvolver detidamente neste espaço a vivência religiosa do candomblé, mas sua articulação nesse cotidiano, como já referido, não é de menor importância.
  • 9
    Sigo aqui a acepção de "rede social" de Elizabeth BOTT, 1976. Essa concepção foi formulada como um "instrumental" teórico-metodológico para a análise de "sociedades complexas", nas quais há um alargamento infinito das redes de relações entre os indivíduos, que circulam por vários "universos simbólicos" e, portanto, não se encontram englobados por um grupo específico.
  • 10
    Elas são próximas pois, além de vizinhas, são as principais participantes da associação coordenada por Flávia. Além disso, Flávia é mãe-pequena de ambas (mãe-pequena é aquela que, no candomblé, auxilia a mãe ou pai-de-santo durante as iniciações).
  • 11
    A Liga Brasileira de Lésbicas é uma articulação de grupos lésbicos de todo o país que, além de realizar encontros bianuais, mantém uma lista de discussão na internet.
  • 12
    A respeito das categorias "ser" e "estar homossexual", ver Maria Luiza HEILBORN, 1996. A autora, pesquisando um grupo de mulheres de camadas médias, argumenta que as mesmas lançam mão da expressão "estar lésbica", pois não se identificam como homossexuais, alegando apenas que "estão no momento vivendo com uma pessoa do mesmo sexo" (HEILBORN, 1996, p. 142). Penso que essa idéia do "ser lésbica" apresentada pelas "mulheres da periferia" pode vir a complementar o argumento da autora, uma vez que esta localizava o "estar lésbica" em mulheres de camadas médias.
  • 13
    "As 'não militantes' são adeptas da lógica 'não precisa ficar falando a toda hora, pra todo mundo', e reivindicam um
    status de normalidade para si e sua família, procurando adaptar-se ao meio social homofóbico [...]. As 'militantes' entrevistadas pensam mais de acordo com a assertiva 'quando eu me assumo lésbica, eu faço isto politicamente', associando a lesbianidade a um 'estilo de vida', e afrontando, sempre que necessário, as reações lesbofóbicas" (MEDEIROS, 2004, p. 50-51).
  • 14
    Barco, no candomblé, significa um grupo de pessoas que são iniciadas conjuntamente no mesmo período e pelo mesmo pai-de-santo.
  • 15
    Em tom cômico, Luiza contou quando, uma vez, saiu com a camiseta cujos escritos da Liga Brasileira de Lésbicas estavam em destaque e ouviu uma senhora comentar na rua: "Coitadinha, olha a camiseta que deram para ela vestir e ela nem sabe".
  • 16
    Houve uma "positivação" do símbolo "sapa" pelo movimento lésbico. "Sapatão", que sempre foi – e ainda é – um termo pejorativo para se referir a lésbicas, foi transformado em "sapa" (um sapo feminino) e reapropriado como um emblema para essas mulheres, que o utilizam estampado em camisetas, sob forma de chaveiros, dentre demais usos.
  • 17
    LE GALL, 2001, expôs situações semelhantes.
  • 18
    Com relação a essas famílias, Le Gall expôs: "O que é aqui bem específico é que a homossexualidade da mãe é sempre posta em destaque para lhe recusar, sem maiores análises, toda a competência, e até mesmo invalidá-la como pessoa [...] A fobia da homossexualidade faz os lesbofóbicos não perceberem o fato de que a competência parental não se avalia pela vida sexual" (LE GALL, 2001, p. 220 – livre tradução).
  • 19
    Há uma extensa bibliografia a respeito do caráter matrifocal das chamadas "famílias pobres" (cf. Eunice DURHAM, 1980, e Delma NEVES, 1985). Segundo essa linha, da precária inserção do homem no mercado de trabalho e crescimento do emprego feminino decorreria um aumento de poder da mulher no âmbito familiar, situação geradora de conflitos que, no limite, levariam ao abandono do lar pelo marido. Sem a presença masculina, estabelecer-se-ia um arranjo matrifocal – o qual seria uma "estratégia de sobrevivência" da unidade familiar até que aquele momento de crise fosse desfeito com a reinserção do esposo provedor. Partindo do suposto de que situações que apresentam traços comuns (no caso, uma família sem a presença masculina) podem remeter a contextos etnográficos quiçá os mais díspares, apóio-me em crítica de Claudia Fonseca, que irá localizar a abordagem referida acima em uma conjuntura em que as reflexões sobre família de baixa renda tinham como intuito principal "evitar conotações pejorativas" (FONSECA, 2000, p. 59), mas que ainda estavam grandemente marcadas por um "materialismo primário dos anos 70" (FONSECA, 1995, p. 74). Nesses enfoques há, portanto, uma lógica de "falta de": é pela ausência do homem – e não a presença da mulher – que se dá a matrifocalidade, e a dimensão da escolha é desse modo afastada. Creio que a circunstância exposta neste artigo não seria bem contemplada nesses termos.
  • 20
    CADORET, 2001a e 2001b.
  • 21
    CADORET, 2001b, p. 279-280 – livre tradução.
  • 22
    LE GALL, 2001.
  • 23
    LANDES, 2002.
  • 24
    MEDEIROS, 2004, p. 12.
  • 25
    LÉVI-STRAUSS, 1993.
  • 26
    Antonádia BORGES, 2003.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Dez 2006
    • Data do Fascículo
      Set 2006

    Histórico

    • Aceito
      Maio 2006
    • Recebido
      Nov 2005
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