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Para ir além das dicotomias

RESENHAS

Para ir além das dicotomias

Adrienne Kátia Savazoni Morelato

Universidade Estadual Paulista

Feminino + Masculino: uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades.

KOSS, Monika Van.

São Paulo: Escrituras, 2000. 254 p.

Ir além das dicotomias pensadas e construídas sobre as relações de gênero parece ser o objetivo fundamental de Monika Van Koss em seu livro Feminino + Masculino: uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades, lançado no ano de 2000 pela editora Escrituras. O feminino, tido como aquilo que se refere à mulher, sempre foi definido como algo negativo e passivo em nossa sociedade objetiva e dicotômica, enquanto o lugar dos homens, tido como o masculino, é visto como algo positivo e ativo, isto é, o lugar da esfera pública que detém o poder e o domínio sobre a outra esfera, lugar obscuro e silencioso que é o espaço privado destinado às mulheres.

A história, por sua vez, foi escrita a partir desta visão, do lugar dos homens, sublimando a participação da mulher na evolução humana, mesmo quando essa história passou pelo crivo científico, pois a ciência não deixou de ter o seu papel ideológico, embora seu objetivo mais remoto fosse a neutralidade, já que a maioria dos cientistas foram e são homens que, do seu lugar de homens, examinaram e examinam o passado. O que acontece geralmente nesse tipo de pesquisa é a projeção de nossos valores e desejos no passado que tentamos recontar (as origens são irrecuperáveis em seu todo) comprometendo a veracidade das análises, porque estas seriam um pouco a construção daquilo que ansiamos encontrar ou daquilo que buscaríamos para justificar as situações presentes.

O grande dilema que Koss tentará resolver será o paradoxo de pensar o feminino e o masculino além das diferenças preestabelecidas pela sociedade, já que, ao valorizar o feminino como se define hoje, no momento em que se tenta preencher a lacuna histórica sobre a participação da mulher, corre-se o risco de afirmar a cultura patriarcal, ou a outra polaridade que é o masculino. Então, a autora tentará ir além da definição de Beauvoir de que a mulher é o outro, pois, se assim ela for, é porque o lugar do homem é colocado como o oficial e como a referência. Nesse sentido, a autora parece idealizar a pré-história da humanidade, na qual prevaleceriam os valores maternos, a Grande Deusa Mãe que uniria em si a mãe terrível e a boa, configurando as relações humanas dessa época quando as mulheres teriam autonomia sobre seus corpos e seus destinos e quando essa autonomia passaria a regular a vida e o destino dos homens.

A autora não afirma que prevaleceria nessa época um domínio das mulheres da mesma forma que existe dos homens no patriarcado. O que existiria seria um regime de cooperação e troca, o qual as mulheres coordenariam, pelo motivo de essa sociedade ser regida pelo princípio ying feminino, que não é separador e dominador como o yang masculino. Por isso, Monika traça a presença da Grande Deusa Mãe na raiz de todas as culturas, desde a ocidental até a oriental, explicando a prevalência do macho na sociedade de hoje através da derrota que essas Deusas sofreram pelos deuses heróicos, solares e luminosos, os quais, ao contrário da energia totalizante, uterina e misteriosa das deusas, trariam em si os princípios da hierarquia e da dicotomia do patriarcado.

É uma visão sem dúvida diferente de Simone de Beauvoir, que em Segundo sexo mostra a não-existência da sociedade matriarcal, visto que a maternidade consumia toda a vida da fêmea, enquanto o macho já exercia um certo controle sobre ela, porque dele dependiam a carne e a proteção do clã diante dos perigos externos. Para Beauvoir, os homens só assumiram na sociedade patriarcal o poder que já detinham sobre as mulheres, domínio que obtiveram na pré-história e que se estende até os dias de hoje, por meio da força física e da violência. Entretanto, Van Koss pretende romper com a visão polarizante do mundo na qual as mulheres se definiriam pelos olhos dos homens, e seriam reduzidas e inferiorizadas a apenas sua parte procriadora e receptora. Também os homens estariam submetidos a uma visão parcial de si mesmos, porque seriam identificados à condição unilateral do pênis, enquanto a parte gerativa e fecundadora contida nos testículos fora abandonada, mantendo o estereótipo de homem que extraímos da história, o qual é centralizador, dominador, racional e lógico, sem sentimentos e emoções, incapaz de lidar com o desejo inconsciente e com o sonho.

Se a pretensão da autora é de romper com os paradigmas, chega-se a ponto de negar o feminino vigente, porque este seria uma construção social e psicológica da mulher sob o ponto de vista do homem, o qual ocuparia o lugar oficial, sendo ele o sujeito e ela, o objeto. No entanto, como ir além desse feminino se é nele que estamos submersas em nossa cultura ainda patriarcal? Como redefinir o papel e o lugar da mulher na história se não foi ela que a escreveu, o que dificulta sua tomada como protagonista? Nesse sentido, Beauvoir e Koss chegam a um acordo quando concluem que ninguém nasce mulher mas torna a vir a ser, o que faz de sua condição uma escolha entre se anular e se descobrir, entre se calar e se deixar falar, entre o silêncio e o poder, ou seja, uma construção difícil e dolorosa em busca de sua identidade que é muito mais do que se ver como um ser em falta, sem o falo. Aliás, a análise freudiana que interpreta como sentimento de inveja e perda o vir a ser da mulher foi a maneira como os homens interpretaram essa busca.

Monika Van Koss resolverá esse impasse ao relacionar a filosofia oriental, em especial o tantra, com a sociologia, a psicologia, a antropologia e a biologia, buscando na totalidade essa nova história, já que o mundo masculino oficial e, por conseguinte, a ciência foram estabelecidos através da fragmentação do conhecimento. Ao final, o objetivo do ensaio de Koss será de construir uma nova relação entre os gêneros, e uma outra possibilidade para os sexos de se enxergarem, pois o ser humano seria redefinido em sua totalidade, o que significa para este reunir os seus pólos internos feminino e masculino, não como o andrógino, não como o ying e o yang, mas como o eterno retorno da Grande Deusa Mãe, princípio e origem de todos os deuses, de todos os seres, enfim, de todos os mitos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2006
  • Data do Fascículo
    Set 2006
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