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Mudanças e permanências: um olhar antropológico sobre as relações de gênero na cultura brasileira

RESENHAS

Mudanças e permanências: um olhar antropológico sobre as relações de gênero na cultura brasileira

Mariana Barreto Vavassori

Universidade Federal de Santa Catarina

De perto ninguém é normal: estudos sobre corpo, sexualidade, gênero e desvio na cultura brasileira.

GOLDENBERG, Mirian.

2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. v. 1. 189 p.

O livro De perto ninguém é normal, de Mirian Goldenberg, é fruto da compilação de pesquisas dos últimos dez anos realizadas pela autora, que perpassa temas abordados por ela desde seu doutoramento em Antropologia Social. Escrito de forma leve e informal, a obra possibilita ao leitor pensar sobre as relações de gênero, comportamentos tidos como desviantes ou transgressores, corpo, sexualidade e os modelos de relações conjugais que circulam na sociedade brasileira atualmente.

Estabelecendo uma estreita relação entre teoria e pesquisa de campo (questionários e entrevistas em profundidade), Goldenberg pesquisa as camadas médias urbanas cariocas e discorre sobre a importância de pesquisas antropológicas quando o próprio pesquisador é o nativo de sua pesquisa. Em outras palavras, quando o outro compartilha muitos dos valores, hábitos e costumes do próprio pesquisador, não existindo a distância geográfica, lingüística e cultural, sendo a única distância existente aquela produzida pela forma de olharmos o outro ou a nós mesmos. Destaca ainda a importância de se perceber que "compreender melhor o outro ajuda não só a compreender melhor a nós mesmos mas também a revelar aspectos obscuros, ocultos, silenciados de nossas próprias vidas e da cultura na qual estamos inseridos" (p. 30-31).

O capítulo "O corpo cativo: sedução e escravidão feminina" instiga a reflexão sobre o atual culto ao corpo e à aparência instaurada na cultura brasileira através da apresentação dos resultados de diferentes pesquisas. Goldenberg incrementa a discussão a partir das contribuições de Marcel Mauss sobre as técnicas corporais, com resultados e discussão de suas pesquisas a respeito do papel do corpo na cultura carioca, e de comentários de outros autores, como a psicanalista inglesa Susie Orbach e Naomi Wolf, sobre corpo e sexualidade. Afirmando que as mulheres estão aprisionadas aos seus corpos, que não almejam mais o prazer, a liberdade, mas sim a perfeição estética moldada pelas mãos de cirurgiões plásticos, a autora critica a excessiva valorização do corpo, o aprisionamento aos padrões de beleza e suas conseqüências afetivo-sexuais, e discute o que denomina de papéis de gênero.

Gênero é definido e utilizado pela autora como um conceito que serve para "desnaturalizar os papéis e as identidades atribuídos ao homem e à mulher. Assim, diferencio o sexo (dimensão biológica dos seres humanos) do gênero (uma escolha cultural, arbitrária, um produto social e histórico)" (p. 7). A tendência teórico-epistemológica estrutural presente neste trabalho caracteriza-se quando as posições ocupadas por homens e mulheres aparecem ainda muito invariantes e universalizadas. No entanto, a expressão papéis de gênero utilizada por Goldenberg remete à idéia de função de homem e função de mulher, justamente com a qual o conceito gênero visa romper ao substituir a expressão papéis sexuais.

Ao discutir as representações de gênero, a valorização da sexualidade e os diferentes usos do corpo entre jovens de camadas médias cariocas, a autora mostra que há mudanças e permanências do comportamento sexual desses jovens. Entre as mudanças, pode-se citar que a diferença entre os gêneros, quando se trata da primeira relação sexual, vem diminuindo, pois, como já explicitado em diferentes pesquisas, a idade de iniciação sexual de meninos e meninas é aproximada. Outra mudança é que as meninas que afirmaram ser virgens sentem-se como desviantes, rompendo com a visão mais tradicional que prega a virgindade antes do matrimônio. Entre as permanências, aparece a dupla moral sexual que incentiva a multiplicidade de parceiros para os homens e restringe os parceiros sexuais para as mulheres. Essa dupla moral que norteia o comportamento sexual e preventivo dos jovens brasileiros é fruto da coexistência de valores mais tradicionais e modernos na nossa cultura. Assim, os jovens investigados demonstram que transitam entre os diversos valores que moldam seus discursos e práticas.

Identificando a tão exaltada valorização do corpo magro da mulher e a importância da altura, virilidade e potência para os homens, Goldenberg cita Pierre Bourdieu para afirmar que não só as mulheres estão presas ao seu corpo real que é diferente do ideal, mas também os homens vistos como dominantes sofrem, pois as exigências a respeito de um determinado modelo de corpo recaem também sobre eles, que se preocupam com a força física, virilidade, potência, altura e com o tamanho do pênis.

A autora destaca uma temática muito abordada dentro do campo do gênero, que é a questão do corpo. Mostrando que esse corpo também é construído socialmente, não sendo visto como algo biológico dado de antemão, os resultados de pesquisas mostram o que Joan Scott ressalta ao afirmar que "o corpo tem também uma história. E portanto, toma-se o corpo para encontrar algo, para legitimar alguma coisa. Sim, nós temos um corpo, mas o uso do corpo, a idéia do corpo, o conceito do corpo, o status do corpo, isto depende do contexto social e histórico"1 1 Miriam GROSSI, Maria Luiza HEILBORN e Carmen RIAL, 1998, p. 124. . Goldenberg em suas análises ressalta o lugar que o corpo ocupa para as camadas médias cariocas, afirmando que o corpo feminino valorizado atualmente é fruto do modelo de corpo veiculado pela mídia, o corpo magro.

A convivência de valores e comportamentos tradicionais e modernos aparece também ao discutir a multiplicidade e a flexibilização dos arranjos conjugais. A coexistência de antigos e novos modelos de conjugalidade gera uma ressignificação dos arranjos conjugais, que, segundo Goldenberg, rompe com a dualidade tradicional X moderno. Os resultados de uma pesquisa realizada pela autora mostram que ainda há o ideal do amor romântico tanto para homens quanto para mulheres, porém, mais enfatizado por elas. No entanto, ao mesmo tempo são citados aspectos como individualidade, privacidade e liberdade, valores estes mais contemporâneos e enfatizados pelos homens, que vão de encontro com os ideais do amor romântico, como por exemplo o de doação.

No capítulo dedicado à temática dos (re)arranjos conjugais percebem-se aproximações e distanciamentos nos discursos de homens e mulheres investigados, o que possibilita pensar nas relações de gênero. As aproximações estão relacionadas ao compartilhamento do ideal de amor romântico, à importância do respeito nas relações, e os distanciamentos se referem, principalmente, às diferentes concepções de infidelidade descritas por homens e mulheres.

Em relação à infidelidade, resultados apontam que a mulher que trai se vê como vítima, pois afirma trair por falta de atenção, carinho do parceiro. Já o homem justifica a traição através do instinto masculino, por 'galinhagem', tesão, sendo este último sempre visto como o culpado da traição, tanto deles quanto delas. A conclusão a que a autora chega após a análise das respostas femininas é que a mulher ao trair "no máximo reage à dominação masculina" (p. 92), e por isso se vêem como vítimas, o que contribui para a cristalização de uma vitimização feminina.

Continuando a discussão sobre a multiplicidade de arranjos conjugais, a autora faz a análise da novela Laços de família exibida pela Rede Globo de Televisão no ano 2000. Goldenberg afirma que o modelo tradicional de família ainda é hegemônico e os que vivem outros tipos de arranjos conjugais sentem-se desviantes. A novela serviu para análise, pois apresentou indícios de declínio da família nuclear, tradicional (pai + mãe + filhos), pois mostrava vários modelos de novas conjugalidades. Novamente a convivência dos padrões tradicionais de comportamento com os mais modernos aparece como resultado da análise, pois, apesar da multiplicidade de arranjos conjugais presentes no decorrer de toda a novela, ao final da trama todos os temas tabus desaparecem e os vistos como desviantes (prostituta, mãe solteira) são normatizados através do matrimônio.

No capítulo intitulado "Mulheres e militantes"2 2 A autora iniciou seus estudos sobre a construção social da identidade feminina no Brasil em 1988 ao investigar "Mulheres & Militantes" (GOLDENBERG, 1997). é descrita a trajetória daquelas que participaram da luta política brasileira, para compreender a posição e atuação feminina em um contexto representado principalmente por homens e analisar como se constrói a identidade da mulher militante. Através da leitura das biografias de mulheres como Olga Benário e Maria Prestes, entre outras, Goldenberg é uma mulher que escreve uma história sobre mulheres, rompendo com a tradição da história dos homens escritas pelos homens.

O comportamento de muitas dessas mulheres militantes poderia ser compreendido, no contexto sócio-histórico em que estavam inseridas, como desviante, pois elas extrapolaram o mundo privado e alcançaram, ganharam notoriedade no mundo público, caracterizado como o mundo dos homens. A conquista de uma posição importante neste "mundo dos homens" é ainda mais valorizada, pois, apesar do machismo existente elas, conseguiram superar a posição de inferioridade.

No último capítulo do livro, chamado "Bandido ou herói", a autora aborda as representações existentes em torno da imagem de Carlos Marighella, militante comunista, um revolucionário brasileiro preso e torturado por diversas vezes pela ditadura militar até sua morte. Goldenberg descreve detalhadamente versões da morte de Carlos Marighella e aponta as representações que surgem, como a de bandido, assassino, e herói, corajoso e valente. Nesse capítulo a autora rompe com a continuidade do texto, distanciando-se dos temas abordados anteriormente, e ressaltando, dessa vez, a história de um homem que lutava pela liberdade.

Colaborando com a produção acadêmica nacional e dando visibilidade aos estudos de gênero ao publicar uma obra de fácil compreensão e maior acesso à população, a autora ressalta as permanências e mudanças das relações de gênero, dos (re)arranjos conjugais, sendo, muitas vezes, a mudança compreendida como transgressora. Com uma grande variedade de temas pesquisados, a obra está repleta de interessantes conclusões, porém, com tamanha diversidade de assuntos, ficou faltando um aprofundamento teórico que possibilitasse maiores avanços nas discussões. Enfatizando o aspecto relacional e os múltiplos fatores que influenciam o constituir-se homem e mulher na sociedade brasileira, o livro, ainda assim, mostra que, através do exercício de estranhar o que nos é familiar, é possível compreender melhor nós mesmos e nossa cultura, com seus discursos e práticas, auxiliando a construção de um olhar mais crítico sobre nossa sociedade.

Notas

Referências bibliográficas

GOLDENBERG, Mirian. "Mulheres & Militantes". Revista Estudos Feministas, v. 1, n. 2, p. 349-364, 1997.

GROSSI, Miriam; HEILBORN, Maria Luiza; RIAL, Carmen. "Entrevista com Joan W. Scott". Revista Estudos Feministas, v. 6, n. 1, p.114-124, 1998.

  • 1
    Miriam GROSSI, Maria Luiza HEILBORN e Carmen RIAL, 1998, p. 124.
  • 2
    A autora iniciou seus estudos sobre a construção social da identidade feminina no Brasil em 1988 ao investigar "Mulheres & Militantes" (GOLDENBERG, 1997).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Dez 2006
    • Data do Fascículo
      Set 2006
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