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Editorial

EDITORIAL

Encerramos, com este número, o ano de 2006. A cada final de ano, cumprimos um ciclo, fechamos um círculo, e assim renovamos o rito que nos permite, olhando para trás, recomeçar. O ano se conclui com alguns ganhos para o feminismo e para as lutas da sociedade civil contra o preconceito e as desigualdades sociais. Merecem destaque no Brasil o debate incessante que se travou sobre as cotas raciais nas universidades e os ganhos obtidos através da implementação da Lei Maria da Penha, que reacendeu as discussões sobre a violência contra as mulheres, mostrando que esse problema persiste em larga escala e precisa ser denunciado.

Na UFSC, alguns passos importantes foram dados para a consolidação do nosso trabalho. A criação do Instituto de Estudos de Gênero ampliou o espaço de intervenção feminista, apontando para a construção de uma rede de diálogo e interação com outras instituições, tanto de ensino como de representação dos movimentos sociais. Em agosto, realizamos o VII Seminário Internacional Fazendo Gênero, cujo tema, nessa edição, foi dedicado à questão "Gênero e Preconceito". Durante três dias, o evento reuniu aproximadamente 3.000 pesquisadores/as, que, através de simpósios, conferências e mesas-redondas, debateram temas diversos como erotismo e sexualidade, mídia, discriminações geracionais, ditaduras, racismo e ações afirmativas, representações e linguagens, identidades pós-coloniais, violência, pobreza e cidadania, etc.

Outro aspecto interessante do ano que se encerra é o fortalecimento de governos democráticos e de tendências anti-imperialistas na América Latina. Chile, Bolívia, Equador, Venezuela apresentam, neste final de 2006, uma face renovada da América Latina, o que nos permite ter alguma esperança. Esperança, aliás, de que muito precisamos, se olharmos para o quadro de guerras e enfrentamentos sangrentos promovidos pelo estilo Bush de governar o mundo. Coisas de arrepiar. Haja força no movimento social, na luta pela paz, pelos direitos humanos, e ainda muita solidariedade, coalizões e redes entre todos os que sofrem preconceitos, desigualdades, discriminação, para combater esse verdadeiro rolo compressor! Nossos olhares se dirigem para Nairóbi, onde se realiza, em janeiro de 2007, o VII Fórum Social Mundial, esperando que de lá partam novas diretrizes na luta por um mundo melhor para todos. As feministas têm tido importante papel nessa luta. Mary Hawkesworth defende, em seu artigo publicado nesta edição, que, denunciando a "feminização da pobreza" no mundo e a sub-representação das mulheres nos regimes democráticos liberais, as manifestações feministas têm constituído "vigorosas tentativas de subverter os sistemas econômicos e políticos dominantes". De nossa parte, aqui vai nossa pequena contribuição: mais um número da Revista Estudos Feministas, uma forma de estarmos presentes, e atuantes, nesse amplo debate.

Este número traz para nossas/os leitoras/es uma discussão de caráter provocativo e extremamente atual: "Traduções do pós-feminismo" é o tema da Seção Debates. Discutindo os usos amplamente divulgados do conceito de "pós-feminismo", Mary Hawkesworth faz uma brilhante interpretação da morte anunciada, ou do enterro em vida, do feminismo, como estratégia de combate ao potencial de denúncia e transformação da práxis feminista, em um contexto de capitalismo global e sistemas políticos que perpetuam a desigualdade em todos os níveis da existência humana. Como defende a autora, "sutilmente transformando o ativo em inerte na mente pública, as proclamações da morte do feminismo apagam o ativismo de milhões de mulheres ao redor do globo que estão atualmente lutando por justiça social".

Rita Schmidt desenvolve a discussão proposta por Mary Hawkesworth, trazendo-a para dentro da cultura brasileira. Ao analisar a íntima relação existente entre os discursos anti-feministas e uma tradição patriarcal, racista e conservadora de fundas raízes na cultura nacional, a autora do artigo "Refutações ao feminismo: (des)compassos da cultura letrada brasileira" denuncia o compromisso que vincula a elite letrada de nosso país aos interesses do poder econômico e político, responsável por uma longa história "de violências e autoritarismos, repressões e exclusões jamais seriamente questionadas ou perturbadas por grande parte da sociedade". Para Rita Schmidt, a crítica feminista brasileira deve sair da invisibilidade em que constantemente é lançada, para formular um projeto epistemológico de intervenção, que possa questionar e alterar a ordem estabelecida em termos de gênero, classe e raça no país.

Matilde Ribeiro participa desse debate trazendo uma contribuição profundamente vinculada aos movimentos sociais. Sua atuação como ministra-chefe da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial lhe permite uma visão ampla das intersecções entre o feminismo, o movimento negro e as lutas pela igualdade e contra o preconceito no Brasil. Assim, seu artigo nos oferece um panorama da história recente dessas lutas, dentro e fora do país: os mais importantes eventos, as conquistas e os passos dados na construção de uma agenda política voltada para a conquista de direitos para as mulheres e as minorias étnicas e raciais. Após relatar e analisar os processos políticos que deram visibilidade às lutas das mulheres com enfoque especial para a participação crescente das mulheres negras nesse cenário , a autora conclui, dialogando com o texto de Mary Hawkesworth, que "não há morte e sim modernização e definição de novos rumos e focos para o feminismo".

Ana Gabriela Macedo encerra o debate trazendo os aportes de sua experiência acadêmica, brilhantemente sintetizados no Dicionário da Crítica Feminista,1 1 MACEDO, Ana Gabriela; AMARAL, Ana Luísa (Orgs.). Dicionário da crítica feminista. Porto: Afrontamento, 2005. de que é uma das organizadoras. A partir do verbete "pós-feminismo", extraído de seu dicionário, a autora trava uma concisa e arguta discussão em torno do conceito, observando que, se uma epistemologia ancorada em uma prática de oposição e resistência ao mainstream foi desde o início a marca definidora do feminismo, estamos longe de perceber o seu esgotamento, já que um mundo "pós-feminista" pressuporia a existência prévia de um mundo globalmente feminista, conquista esta que nunca se deu por inteiro. Assim, tomando como referência os diversos discursos que apontam para a construção de rumos para o feminismo no presente, a pesquisadora portuguesa conclui seu texto afirmando que "vivemos tempos de feminismos plurais, porém, não ainda (e infelizmente, se bem entendido), de pós-feminismo".

Quanto aos artigos, podemos dizer que, abrindo um leque bastante variado de enfoques e campos de conhecimento, eles reafirmam a interdisciplinaridade que caracteriza a Revista. No primeiro, "Teorias feministas e representações sociais: desafios dos conhecimentos situados para a psicologia social", João Manuel de Oliveira e Lígia Amâncio discutem as contribuições epistemológicas que as teorias feministas oferecem à psicologia social. Com base na Teoria das Representações Sociais, os autores propõem uma concepção de conhecimento situada e dialógica, cujos sujeitos estão envolvidos na promoção de mudanças sociais e das relações de gênero.

Orientada também para a questão da construção do conhecimento, Karen Giffin desenvolve, no artigo "Produção do conhecimento em um mundo 'problemático': contribuições de um feminismo dialético e relacional", uma interessante discussão sobre a contribuição de uma epistemologia feminista tanto para o trabalho de desconstrução do sujeito da ciência positivista (nas palavras de Alison Jaggar, "um mito classista, racista e, sobretudo, masculinista") quanto na proposição de uma nova abordagem do conhecimento científico, que incorpore a subjetividade, o contexto histórico e social e as relações intersubjetivas no bojo de suas preocupações. Nesse sentido, a autora considera uma tarefa da crítica feminista a constante prática auto-reflexiva, com vistas a questionar as implicações das epistemologias feministas com as relações sistêmicas de poder, evitando assim integrar as redes de poder que atualizam relações desiguais.

Já no artigo intitulado "De mancebas auxiliares do demônio a devotas congregantes: mulheres e condutas em transformação (reduções jesuítico-guaranis, séc. XVII)", Eliane Cristina Fleck dedica-se a investigar, nos textos que registram a missão jesuítica junto aos povos Guarani, as representações que são feitas sobre as mulheres, particularmente no que concerne à sua sexualidade, observando que essas representações se alteram à medida que o processo missionário logra obter resultados na difusão da doutrina católica. Inicialmente vistas como fonte de tentação e pecado, as mulheres passam a ser consideradas aliadas no processo de cristianização, sublimação da carne e difusão, junto ao seu povo, dos valores morais ensinados pelos religiosos.

Liliana Lohmann e Sebastião Votre, no artigo "A inserção acadêmica e esportiva da primeira turma feminina no Colégio Militar do Rio de Janeiro", analisam, através de entrevistas e leitura de reportagens publicadas na imprensa da época, o contexto em que teve lugar a primeira turma feminina do Colégio Militar do Rio de Janeiro, em 1989, período em que diversas conquistas relativas à participação feminina na sociedade sinalizavam mudanças políticas e comportamentais significativas. Segundo os autores, o ingresso de alunas no Colégio Militar, em consonância com as tendências da época, revela o quanto as ações do movimento de mulheres foram então efetivas, "no sentido de que iam além de 'compreender e explicar a subordinação social e a invisibilidade política a que as mulheres tinham sido historicamente submetidas'". No entanto, por tratar-se de um ambiente fortemente orientado por uma norma androcêntrica, a adaptação ao Colégio exigiu dessas meninas uma prática cuidadosa feita de "táticas e artimanhas de sobrevivência no universo masculino". Segundo os entrevistados, esse foi um processo de adaptação recíproca: enquanto as meninas buscavam aprender a conviver com as normas do Colégio, este também se adaptava à presença feminina. O resultado desse esforço recíproco de adaptação e desse novo convívio no interior do Colégio Militar foi, ainda segundo os informantes, altamente positivo: nas palavras dos autores, "as alunas contribuíam, nos termos de Rorty, para um mundo mais belo, menos cruel, mais solidário".

O ensaio assinado por Richard Miskolci, "Corpos elétricos: do assujeitamento à estética da existência", analisa os modos contemporâneos de controle do corpo e propõe uma "estética da existência" como forma de resistência às práticas de disciplinamento e normalização da subjetividade, tema que vem ganhando cada vez mais destaque na sociedade em geral, em tempos de modelos anoréxicas e sacrifícios extremos em nome da ditadura da beleza. Segundo o autor, "a emergência de uma nova cultura de si pode originar novas relações críticas aos modelos de identidade socialmente propostos, recusando o aparato disciplinar que nos torna algozes de nós mesmos".

A seção Ponto de Vista traz duas interessantes contribuições: um texto de Simone Perelson, que apresenta uma abordagem psicanalítica sobre a parentalidade homossexual, tema cada vez mais na ordem do dia, e uma entrevista com Shirley Malcolm, doutora em Ecologia e membro da Academia Americana de Artes e Ciências. Vale observar que a entrevista tece alguns fios que podem ser entrelaçados com os artigos de Karen Giffin e de João Manuel de Oliveira e Lígia Amâncio, uma vez que se volta para o tema das relações entre gênero e conhecimento, gênero e ciência, abordado em uma perspectiva política e feminista.

Por fim, a Revista traz, como de praxe, algumas resenhas, a partir de diversos pontos de vista e lugares disciplinares, oferecendo um breve panorama das publicações recentes sobre os estudos feministas e de gênero.

Para encerrar, gostaríamos de deixar aqui nosso agradecimento a todas/os que nos acompanharam em mais um ano de intensa atividade, especialmente ao grupo de trabalho que cotidianamente faz da Revista Estudos Feministas uma realidade: editorias, secretaria, equipe técnica. Registramos também nossa gratidão às/aos colaboradoras/es e às/aos pareceristas, cujos nomes se encontram listados no final deste número. Nosso agradecimento ainda aos órgãos de fomento que têm apoiado a Revista (CNPq, FAPEU e Secretaria Especial de Políticas para Mulheres) e, de maneira muito especial, a Claudia Ferreira, que gentilmente nos cedeu seu trabalho fotográfico para a capa deste número. Desejamos a todas/os que 2007 seja intenso e bem vivido, e que nos traga novos sonhos, e alguma esperança.

Simone Pereira Schmidt

Cristina Scheibe Wolff

Sônia Weidner Maluf

Coordenação Editorial

  • 1
    MACEDO, Ana Gabriela; AMARAL, Ana Luísa (Orgs.). Dicionário da crítica feminista. Porto: Afrontamento, 2005.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
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