Acessibilidade / Reportar erro

Produção do conhecimento em um mundo "problemático": contribuições de um feminismo dialético e relacional

Production of knowledge in a 'problematic' world: contributions of a dialectical and relational feminism

Resumos

Este artigo aborda avanços na epistemologia feminista que partiram da constatação da natureza androcêntrica da ciência binária, para desvelar a relação de constituição mútua entre os sujeitos da ciência e o conhecimento que produzem. Essa percepção, que abriu a possibilidade de combater a ciência determinista e binária através de análise da produção do conhecimento como processo social e histórico, também revelou a natureza ideologizada do mundo social. São apresentadas autoras que constroem uma perspectiva crítica, dialética e relacional que visa a iluminar como 'diferenças' são articuladas em relações sistêmicas de dominação e a transformar este mundo 'problemático'.

epistemologia feminista; estudos sociais da ciência; ideologia; dialética


This article describes advances in feminist epistemology that began with the perception of science as binary and androcentric, which revealed the mutually-constituting relationship between the subjects of science and the knowledge they produce. This understanding, establishing the possibility of combating deterministic and binary science through the analysis of the production of knowledge as a social and historical process, also revealed the ideological nature of the social world. The authors discussed construct a critical, dialectical and relational perspective which aims to illuminate how 'differences' are articulated in systemic relations of domination, and to transform this 'problematic' world.

Feminist Epistemology; Social Studies of Science; Ideology; Dialectics


ARTIGOS

Produção do conhecimento em um mundo "problemático": contribuições de um feminismo dialético e relacional

Production of knowledge in a 'problematic' world: contributions of a dialectical and relational feminism

Karen Mary Giffin

Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca Fundação Oswaldo Cruz

RESUMO

Este artigo aborda avanços na epistemologia feminista que partiram da constatação da natureza androcêntrica da ciência binária, para desvelar a relação de constituição mútua entre os sujeitos da ciência e o conhecimento que produzem. Essa percepção, que abriu a possibilidade de combater a ciência determinista e binária através de análise da produção do conhecimento como processo social e histórico, também revelou a natureza ideologizada do mundo social. São apresentadas autoras que constroem uma perspectiva crítica, dialética e relacional que visa a iluminar como 'diferenças' são articuladas em relações sistêmicas de dominação e a transformar este mundo 'problemático'.

Palavras-chave: epistemologia feminista; estudos sociais da ciência; ideologia; dialética.

ABSTRACT

This article describes advances in feminist epistemology that began with the perception of science as binary and androcentric, which revealed the mutually-constituting relationship between the subjects of science and the knowledge they produce. This understanding, establishing the possibility of combating deterministic and binary science through the analysis of the production of knowledge as a social and historical process, also revealed the ideological nature of the social world. The authors discussed construct a critical, dialectical and relational perspective which aims to illuminate how 'differences' are articulated in systemic relations of domination, and to transform this 'problematic' world.

Key Words: Feminist Epistemology; Social Studies of Science; Ideology; Dialectics.

Introdução

O questionamento do paradigma epistemológico dominante (ou a 'crise da ciência') é um processo histórico complexo com muitas contribuições.1 1 Fritjof CAPRA, 1995; e Boaventura SANTOS, 1994. Este artigo visa a apresentar uma perspectiva feminista específica sobre a construção do conhecimento que, embora compartilhe aspectos da crítica à ciência positivista com muitas outras vertentes teóricas, se distingue pela sua insistência em relacionar as realidades locais/cotidianas incluindo aí as atividades teóricas de feministas com relações sistêmicas de dominação que articulam, mas extrapolam, as relações de gênero.2 2 Neste trabalho, 'dominação' é entendida dessa forma, na articulação de múltiplas facetas de diferença.

As dificuldades desse empreendimento são refletidas na caracterização do mundo cotidiano como "problemático"3 3 Dorothy SMITH, 1987. e um conceito crítico de "ideologia" é centralizado para avançar na compreensão da relação dialética, de determinação mútua, entre o simbólico e o material, e entre o subjetivo e o objetivo, na conformação da dominação e sua superação.

Essa perspectiva rejeita os termos de uma discussão binária e abstrata de 'igualdade/diferença' no feminismo, e alerta para o perigo da sua cumplicidade com o aprofundamento da dominação e exclusão que ocorre, hoje, internacionalmente. Nas palavras de Donna Haraway, "Algumas diferenças são divertidas; outras representam pólos de sistemas históricos mundiais de dominação. A 'epistemologia' se encarrega de fazer-nos conhecer a diferença".4 4 HARAWAY, 1994, p. 258.

Construção social de uma epistemologia contra-hegemônica

O movimento de mulheres, opondo-se à caracterização binária de homens e mulheres como seres essencialmente diferentes, com lugares diferenciados e poderes desiguais na sociedade, almejou um autoconhecimento e uma transformação do lugar das mulheres: uma proposta de saber e poder. Nesse movimento, nomear nossa própria opressão foi um ato de poder e uma contestação do esquema binário vigente, uma afirmação de que seríamos capazes de transformar esta ordem social. Esse sujeito oprimido tanto dominado como tendo o poder da contestação é um sujeito não-binário por excelência.

No feminismo, a crítica partiu de uma práxis em grupos de reflexão (consciousness-raising) que antecederam os estudos da ciência no âmbito acadêmico. Nos grupos de reflexão problematizamos nosso cotidiano, em uma forma alternativa de construir conhecimento: coletivamente, e a partir das nossas próprias experiências, inclusive as mais íntimas nas relações com homens. Apesar de nossas diferenças individuais, nesse processo coletivo encontramos muitas comunalidades, o que favoreceu uma forte sensação de que a identidade feminina, o ser mulher, é uma construção social, e implicada em poderes desiguais. Este foi o primeiro passo: recusando os termos dessa construção, inauguramos um movimento contra-hegemônico.

Ao mesmo tempo, muitas das nossas experiências e nossos sentimentos não correspondiam ao que, em princípio, se esperava e se dizia das mulheres (fazemos abortos, por exemplo). Começamos a perceber o silêncio sobre essas questões como uma importante forma de controle social, na qual éramos todas implicadas, e anunciamos: 'O pessoal é político!' Entender as razões de a nossa opressão ser, até então, invisível, no entanto, demandaria o uso de teoria que revela por que o cotidiano não é transparente.

A investigação do lugar das mulheres na ciência, esfera legitimada da produção do conhecimento, revelou tanto a ampla extensão dos fundamentos binários dessa ciência quanto a invisibilidade das mulheres como sujeitos dela. Como objetos da ciência, fomos definidas não somente como diferentes dos homens, mas também como biologicamente inferiores e, entre outras coisas, inadequadas ao exercício do papel de cientista. Isso levou à caracterização dessa ciência como androcêntrica, permitindo vislumbrar uma relação de constituição mútua entre o sujeito masculino e o seu conhecimento: definindo a mulher como inadequada para a ciência, definia a si mesmo, assegurando seu próprio poder.5 5 Ver, entre muitíssimos, Sandra HARDING, 1986; e Evelyn KELLER e Helen LONGINO, 1996.

Sob essa perspectiva, a idéia da 'objetividade' científica e da 'neutralidade' do sujeito do conhecimento, que seriam garantidas através do 'método científico', envolveu uma negação da ação dos sujeitos no mundo social: enquanto os sujeitos do cotidiano não são reconhecidos como participantes da produção do conhecimento e da construção da realidade social, o sujeito científico seria 'neutralizado' através das regras científicas.

A legitimação da ciência binária como âmbito de construção do conhecimento 'objetivo e universal' foi desmascarada: engajados na re/produção de poderes, essa ciência e seu sujeito se re/presentam como 'desinteressados'. A partir desse entendimento, instituímos uma política explícita do conhecimento, para contestar o entendimento binário tanto do 'ser' como do 'conhecer'.6 6 Boaventura de Souza dos Santos considera que uma transição paradigmática, como esta que atualmente se processa, implica sempre uma nova visão da subjetividade e do conhecimento (SANTOS, 1994).

Críticas dialéticas à ciência binária/objetivista/positivista: parte integrante de sistemas de poder e dominação

Da perspectiva que entende o social como estruturado historicamente pela articulação de diferenças em relações de dominação sistêmicas, emergem questões tais como: quem se beneficia de uma visão da natureza como objeto a ser dominado? Usamos o conhecimento para dar continuidade aos atuais arranjos de divisões sociais, ou para eliminar distinções de classe? Usamos o conhecimento para confirmar padrões de subordinação ou para tornar válidas propostas de equidade de gênero ou de justiça social?7 7 Sondra FARGANIS, 1997, p. 228.

Ruth Berman observa que a ciência objetivista, além de postular a divisão sujeito/objeto,

[...] conceitualiza os fenômenos como compostos de unidades elementares discretas, individuais, sendo o todo constituído pelo conjunto desses elementos separados. Além disto, presume uma relação linear, quantitativa, de causa e efeito entre os fenômenos.8 8 BERMAN, 1997, p. 254.

Nesse modelo, a natureza é concebida como máquina e os processos naturais são abstraídos e convertidos em leis imutáveis.

A concepção dialética da natureza, em contraste, vê toda existência como matéria em movimento, e se preocupa com fenômenos específicos sob condições determinadas, cujo entendimento exige interação entre observador e observado (ou, práxis).

Berman nota que governos do mundo inteiro se apóiam na ciência binária e sua tecnologia para sustentar seu poder, e que a idéia da máquina como protótipo da natureza parece ter se tornado a ideologia oficial nas sociedades que agora permitem patenteamento de organismos vivos na busca de lucro: "A vitória da máquina sobre a vida nos corredores de nossa estrutura de poder dificilmente poderia ser expressa de forma mais explícita".9 9 BERMAN, 1997, p. 258.

Da mesma forma, aponta que as teorias atuais da sociobiologia e da microbiologia trabalham com uma concepção binária dos genes e do meio ambiente, na qual os genes são apresentados como os determinantes fundamentais de todo comportamento e patologia humanos.10 10 Num exemplo recente, O Globo (8.6.2004) noticia, a partir de um estudo com gêmeas: "Infidelidade poderia ter uma origem genética". Na reportagem, gêmeas idênticas são referidas como "clones naturais"! Embora a reportagem inclua comentários lembrando os fatores sociais, a pesquisa não os considera. Isso situa os indivíduos, e não a sociedade, como responsáveis por seus problemas, e nega a necessidade de mudança social.

Observando que essas teorias se empenham persistentemente em demonstrar esses 'determinantes últimos', apesar das críticas contundentes e incansáveis que tenham sido feitas, Berman busca as raízes históricas das suas noções binárias. Conclui que, desde os gregos até a atualidade, elas serviram para justificar desigualdades sociais, em sociedades divididas entre dominantes e dominados. A função política das explicações biologizantes fundamenta sua persistência:

[...] quando a ciência de uma sociedade é reconhecida como uma expressão da sua ideologia, o repetido ressurgimento em nossa mídia de hipóteses biológicas deterministas [...] não constitui mais um fenômeno misterioso ou aberrante. Representa a maneira de pensar necessária à preservação de uma sociedade baseada na hegemonia de uma elite.11 11 BERMAN, p. 248.

Donna Wilshire retoma a questão dos binários, observando que, mais que simples expressão de diferenças, são sempre hierarquizados, "opostos polarizados em que um lado tem domínio sobre o outro"12 12 WILSHIRE, 1997, p. 102. , sendo úteis na produção do conhecimento que tem por fim lucrar com o controle e a dominação da natureza, a qualquer preço. Na medida em que os binários, e as imagens a eles associados, tornaram-se uma parte da nossa maneira de pensar, são como lentes através das quais contemplamos a realidade social.

Wilshire contrapõe a imagem da natureza como máquina às imagens de mitos pré-históricos centrados na grande deusa-mãe. Em contraste com os deuses gregos, que foram representados como personalidades individuais, mas diferentes das pessoas comuns e da natureza, as imagens da Grande Mãe incorporavam todas as coisas naturais, incluindo o que todos os seres humanos compartilhavam. Relacionando a totalidade, expressaram uma outra maneira de ser no mundo que permite uma outra perspectiva, relacional e holística, no conhecimento: "A imagem da Deusa contém dentro dela uma suposição (padrão) de totalidade, de unicidade mente-corpo e terra, de uma maneira não dualista, cooperativa, solícita de estar no mundo".13 13 WILSHIRE, 1997, p. 117.

Essas imagens, de uma forma não-linear, expressavam e revelavam o movimento dos fenômenos cíclicos naturais, intimamente relacionados ao corpo reprodutivo das mulheres:

[...] o mito primordial propõe uma maneira de pensar e estar no mundo que dissolve o dualismo, neutraliza hierarquias coercitivas e coloca alguns velhos tabus (especialmente sobre o sangue das mulheres e seus corpos com escuros interiores) em novas e positivas perspectivas, criando possibilidades [...] para o conhecimento sobre a natureza humana [...] o significado da vida era constituído pela integridade, interconexão e pela experiência cíclica do tempo não por dualismos e linearidade.14 14 WILSHIRE, 1997, p. 107.

Wilshire observa que, desde os gregos, houve na civilização e na filosofia ocidentais uma explícita desvalorização do corpo, o que foi reforçado durante a revolução científica pela idéia cartesiana da produção do conhecimento: penso, logo existo. Nas palavras de Elizabeth Grosz,

[...] a crise da razão é conseqüência do privilégio dado, historicamente, ao puramente conceitual ou mental, em detrimento do corporal: isto é [...] a inabilidade dos conhecimentos ocidentais em conceber seus próprios processos de produção (material), processos que simultaneamente são baseados em, e negam, o papel do corpo.15 15 GROSZ, 1993, p. 187. Esta e as demais citações de textos em inglês são traduzidas pela autora.

Alison Jaggar elabora a idéia de que, no paradigma binário que separa mente/corpo e razão/emoção, o corpo e as emoções têm sido considerados prejudiciais ao conhecimento:

Com o desenvolvimento da ciência moderna [...] as esferas da natureza e dos valores foram separadas: a primeira foi despojada de qualquer valor e re-conceitualizada como um mecanismo inanimado sem mérito intrínseco. Os valores foram deslocados para os seres humanos e enraizados em suas preferências e respostas emocionais. A separação entre fatos supostamente naturais e os valores humanos significava que a razão, a fim de poder fornecer um entendimento fidedigno da realidade, deverá ser abstraída desses valores para não ser por eles contaminada.16 16 JAGGAR, 1997, p. 158.

Essa separação binária impôs, por outro lado, uma reconceitualização correspondente da emoção como 'impulsos não-racionais', individuais, variáveis e idiossincráticos: "[...] [as emoções] aconteciam a um indivíduo ou lhe eram impostas algo que se sofria em vez de algo que se fazia".17 17 JAGGAR, 1997, p. 158.

Com a intenção declarada de mostrar que as emoções podem ser úteis ou mesmo necessárias à construção do conhecimento, Jaggar aponta que as emoções têm sido vistas de variadas e inconsistentes maneiras ao longo do tempo, e que o termo abrange uma ampla gama de fenômenos, desde reações reflexivas até a dedicação por toda a vida a uma causa, desde sensações indiferenciadas de sede ou fome a respostas estéticas altamente civilizadas. Ilustra, nessa discussão, que o próprio conceito de emoção é uma invenção histórica, uma construção social, que participa "da organização fundamental de nosso modo de olhar para nós mesmos e para os outros".18 18 JAGGAR, 1997, p. 160.

O positivismo separou a razão das emoções, relegando-as às reações fisiológicas ou movimentos corporais involuntários. Assim, as emoções não foram vistas como tendo referência a coisa alguma fora delas próprias: "[...] ao contrário, eram vistas isoladamente como fatores potenciais de perturbação de outros fenômenos que são sobre alguma coisa, como julgamentos racionais, pensamentos e observações".19 19 JAGGAR, 1997, p. 161. Essa definição revela-se deficiente: na medida em que equipara as emoções com as sensações e estas são, por definição, percebidas conscientemente, não permite a possibilidade de alguém não estar consciente do seu estado emocional, algo que acontece freqüentemente.

Em concepções mais recentes, no entanto, aspectos cognitivos das emoções têm sido privilegiados, em definições que enfocam seu aspecto intencional, incluindo os julgamentos subjacentes. Isso permitiu perceber que "[...] os seres humanos se desenvolvem e amadurecem nas emoções assim como em outras dimensões [...] de acordo com suas experiências de vida e suas reflexões sobre as mesmas".20 20 JAGGAR, 1997, p. 162. Embora valorize esse avanço, Jaggar argumenta que as explicações cognitivistas acabam reproduzindo o dualismo, deixando de explicar a relação entre os aspectos cognitivos e afetivos nas emoções:

[...] elas perpetuam a distinção positivista entre o mundo compartilhado, público, objeto de cálculos, observações e fatos verificáveis e o mundo individual, privado, subjetivo de sentimentos e sensações idiossincráticos. Essa nítida distinção rompe quaisquer vínculos conceituais entre o que sentimos e o mundo 'externo'.21 21 JAGGAR, 1997, p. 162.

Jaggar explicita a importância de reconhecer as emoções como socialmente construídas. Na sua discussão, aponta que tendemos a vivenciar nossas emoções como reações involuntárias e individuais. No entanto, há diferenças culturais marcantes no reconhecimento, nomeação e expressão de emoções, o que revela um processo social subjacente no qual as crianças aprendem o que sua cultura define e conceitualiza como apropriado: "Por essa razão, as emoções são simultaneamente tornadas possíveis e limitadas pelos recursos conceituais e lingüísticos de uma sociedade [...] a experiência individual é simultaneamente experiência social".22 22 JAGGAR, 1997, p. 164-165.

Relacionando aspectos corporais e cognitivos, o sujeito ativo é visibilizado. As emoções

[...] são trajetórias através das quais nos engajamos ativamente e até construímos o mundo. Elas têm tanto aspectos mentais como físicos, que se condicionam mutuamente. Em alguns casos, são escolhidas, mas em outras, são involuntárias; pressupõem uma linguagem e uma ordem social. Podem ser atribuídas às chamadas 'pessoas integrais', engajadas na atividade contínua da vida social.23 23 JAGGAR, 1997, p. 166.

Essa conceitualização relaciona as emoções humanas dialeticamente com nossa percepção, através dos valores que permitem julgamentos: "[...] assim como a observação direciona, molda e define parcialmente a emoção, assim também a emoção direciona, molda e até define parcialmente a observação".24 24 JAGGAR, 1997, p. 167.

Sob essa ótica, as funções políticas do 'mito da investigação imparcial' são reveladas. Como a razão tem sido associada a membros de grupos dominantes, esse mito funciona para re/produzir sua autoridade epistêmica exclusiva: "[...] o ideal do investigador imparcial é, portanto, um mito classista, racista e, sobretudo, masculinista".25 25 JAGGAR, 1997, p. 172.

Como o sujeito é ativo na sua relação com o mundo, no entanto, Jaggar lembra que podem existir 'emoções proscritas' reações a injustiças, ou que expressam algo sobre a situação dos subalternos. Examinar essas emoções pode ser útil no desenvolvimento de uma perspectiva crítica sobre o mundo: "Podem nos ajudar a compreender que o que foi geralmente considerado como fato foi construído de maneira a obscurecer a realidade de pessoas subordinadas".26 26 JAGGAR, 1997, p. 176. Dado que há uma interação continuada entre a forma como compreendemos o mundo e quem somos enquanto pessoas, investigar essas emoções pode ser subversivo, política e epistemologicamente.

Onde não há separação sujeito/objeto, a auto-reflexividade é, igualmente, parte necessária do processo teórico:

a reconstrução do conhecimento é inseparável da reconstrução de nós mesmos [...] uma parte necessária do processo teórico é o auto-exame crítico [...] A reflexão crítica sobre as emoções não é um substituto auto-indulgente da análise e ação políticas. É ela mesma uma espécie de teoria e prática política, indispensável para uma teoria social adequada e para a transformação social.27 27 JAGGAR, 1997, p. 179.

Apesar de esse processo ter produzido um novo sujeito feminino (não-binário) do conhecimento (não-binário), os velhos hábitos binários continuam a se infiltrar (como Berman nos alerta) mesmo no que parece ser o consenso maior nos estudos de gênero sua construção social. Se o conceito de 'gênero', elaborado para se opor à determinação biológica, quer dizer que a biologia está excluída dessa construção, encarnamos o dualismo, re/produzimos o binário do biológico/social como pólos estanques e opostos, e nos aproximamos perigosamente da velha idéia da mente cartesiana, que se separa do corpo e das emoções, vistos como fontes de perturbação no conhecimento.

Contradições no feminismo, na forma de conceber a relação indivíduo/social nessa construção, são também de importância crucial. No argumento de Catharine MacKinnon, enquanto o feminismo liberal reduz o social a uma coleção de indivíduos, o feminismo radical reduz os indivíduos ao social.28 28 MACKINNON, 1989, p. 40. Uma outra forma de ver essa relação fundamenta a epistemologia dialética em foco aqui, e é explicitada na sociologia compreensiva e no feminismo marxista, dialético: os indivíduos e a realidade social são mutuamente construídos; os sujeitos são tanto construídos historicamente como construtores na/da realidade social, seja na ciência, seja na vida cotidiana.

As persistentes ou até crescentes contradições no(s) feminismo(s) evidenciam que tornar-se sujeito do conhecimento não resolve a questão de divergências teóricas antes a instaura. A sensação de identidade, que deu impulso para o movimento de mulheres, está agora em questão não menos porque o feminismo tem convivido durante décadas com um processo global de polarização de classes e nações, ou seja, de aprofundamento das diferenças entre as mulheres. Nossa identidade contra-hegemônica revela seus limites: baseada naquilo que não queríamos, contém, mas oculta, contradições, dificultando nossa ação política conjunta.

Críticas dialéticas ao pensamento pós-moderno

No processo de elaboração da crítica, o debate feminista se viu inundado por discussões acerca de autores que representam, na academia, o pensamento 'pós-moderno',29 29 Entre os mais influentes, Foucault, Derrida e Lyotard. Coerente com a perspectiva apresentada, é preciso dizer que há múltiplos entendimentos do pós-moderno, assim como uma complexidade imensa nas categorizações tanto de idéias como de autores; mas isso não quer dizer que nada se pode conhecer sobre esse assunto, inclusive como fenômeno histórico. Entre os livros que se concentram no debate feminismo/posmodernismo, ver: Marianne HIRSH e Evelyn KELLER, 1990; Linda NICHOLSON, 1990; Susan HECKMAN, 1990; Michèle BARRETT e Anne PHILLIPS, 1992; Rosemary HENNESSY, 1993; Kathleen LENNON e Margaret WHITFORD, 1994; Seyla BENHABIB, Judith BUTLER, Drucilla CORNELL e Nancy FRASER, 1995; e Kathi WEEKS, 1998. aqui entendido em termos gerais como uma celebração de diferença, parcialidade e multiplicidade que afirma a incomensurabilidade de experiências e perspectivas: "A crítica pós-moderna vai além do reconhecimento da natureza histórica da parcialidade e do caráter situado do pensamento humano, para insistir que a justificação e legitimação são internas a uma prática, [ou] jogo de linguagem".30 30 Susan STRICKLAND, 1994, p. 266. Em conseqüência, "[...] o social é desmontado e transformado no 'discursivo', e as relações sociais, em padrões lingüísticos. Ao defender as diferenças, relações individualizadas de poder são enfatizadas, com exclusão de sua interconexão sistêmica".31 31 Carol STABILE, 1999.

Na medida em que insista nessa 'relatividade absoluta' de posições, esse complexo de idéias pode ser considerado o 'outro' da ciência positivista.32 32 Donna HARAWAY, 1988; Susan BORDO, 1993; Susan STRICKLAND, 1994. Nesse sentido, o postulado pós-moderno do sujeito fluido, plural ou fragmentado representa o perfeito reflexo binário do velho sujeito universal, e servindo à mesma função mistificadora. Paralisado pela sua visão de infinitas e incomensuráveis diferenças entre sujeitos, nega a possibilidade de produção do conhecimento.

Enfocando essa relativização de toda verdade como fenômeno histórico, feministas preocupadas com as relações sistêmicas de dominação notaram que o pensamento pós-moderno "[...] tende a negar o status ontológico do sujeito justamente no momento em que as mulheres e os povos não-ocidentais começaram a se colocar como sujeitos".33 33 Frances MASCIA-LEES, Patricia SHARPE e Colleen COHEN, 1989.

Opondo-se a essa abstração relativista está a visão da ciência como um empreendimento inteiramente social, de interpretações ativas realizadas por sujeitos situados social e historicamente, e autorizadas por uma coletividade; uma concepção do sujeito do conhecimento como histórico e social, "[...] corporificado, interessado, emocional e racional, e cujo corpo, interesses, emoções e razão são fundamentalmente constituídos por seu contexto histórico particular".34 34 JAGGAR e BORDO, 1997, p. 13.

Em função disso, a 'objetividade' também é drasticamente reformulada. Agora, "[...] refere localização limitada e conhecimento situado, não transcendência e divisão entre sujeito e objeto. Isto permite que nós nos tornemos responsáveis35 35 No original, " accountable." por aquilo que aprendemos a perceber".36 36 HARAWAY, 1988, p. 583; ver também Helen LONGINO, 1990, p. 212.

Não sendo possível isolar o sujeito do objeto, a separação ciência/sociedade e ciência/política também não se sustenta. Ao contrário, nessa nova visão da objetividade, que reconhece os sujeitos do conhecimento como ativos, portadores de valores e situados em hierarquias sociais, a ética e a política são reveladas como inerentes à construção do conhecimento seja isso reconhecido ou não.

A visão do papel político do intelectual é consideravelmente modificada com isso. Atuar como sujeito ético e político do conhecimento interessado exige, portanto, uma postura auto-reflexiva, pois, se a neutralidade é impossível, quem não toma posição favorecerá a reprodução do status quo, da dominação existente.

Os conhecimentos socialmente situados e parciais do feminismo dialético e relacional se oferecem para serem julgados como instrumentos de ações práticas a serviço de interesses declarados, na produção de conhecimentos sempre históricos e provisórios. Sua relação estreita com a proposta de transformação permite evitar o limbo ético do relativismo absoluto, que afirma o predomínio absoluto das diferenças e a impossibilidade de um novo pacto social, baseado em entendimentos coletivos sobre valores, na construção de uma nova utopia. Nesse sentido, "Conceitos como 'conhecimentos situados' se opõem, por um lado, à fé modernista não-crítica na razão e na racionalidade e, por outro lado, à rejeição pós-moderna da possibilidade do conhecimento".37 37 Heidi GOTTFRIED, 1996, p. 14.

Investigações sociais e práticas conceituais em um mundo problemático

Dorothy E. Smith, desde os anos 1970, discute "[...] as práticas conceituais do poder" típicas das "relações de mando"38 38 No original, " relations of ruling" (SMITH, 1987, p. 3). na sociedade capitalista atual, onde a mercantilização constitui novos espaços de relações sociais, processos ideológicos/informacionais são de importância crescente na reprodução da ordem social, e uma forma de consciência 'objetificante' e 'textual', típica da produção científica, se disseminou, tornando-se hegemônica.39 39 SMITH, 1974 e 1987.

Nessas práticas conceituais institucionalizadas, o ato de conhecer inicia-se de um arcabouço conceitual abstrato que expressa o ponto de vista dos dominantes. A perspectiva e o conhecimento dos atores sociais no cotidiano são excluídos dessas práticas conceituais, ao mesmo tempo que são limitados pelas mesmas. Isso leva a um hiato entre as vivências e os meios dominantes de expressá-las:

[...] a feitura e disseminação das formas de pensamento que usamos para pensar sobre nós mesmos e nossa sociedade fazem parte das relações de mando, tendo origem, portanto, em posições de poder [...] existe um hiato entre onde nós estamos e os meios que temos para expressar e agir.40 40 SMITH, 1987, p. 19.

A consciência, nesses termos, é um produto social, cujas formas são modificadas com a mudança nas relações sociais que as constituem.

Se consideramos as ideologias de gênero como parte das idéias dominantes, aceitá-las pode, por exemplo, dificultar a percepção da importância do trabalho doméstico das mulheres, deixando a impressão de que elas são dependentes dos maridos, embora a organização do trabalho deles e a mais-valia do seu empregador também se beneficiem desse trabalho feminino invisível. Nomeá-las como 'donas de casa', certamente, ajudou a ocultar, durante muito tempo, as suas próprias atividades de geração de renda, inclusive nos dados de censos e na própria representação: 'sou apenas uma dona de casa'. A idéia dos homens como 'chefes da casa' continua a produzir dados censitários nos quais é quase impossível encontrar mulheres 'chefes de família' enquanto houver algum homem residente, independentemente da sua renda e autoridade na casa. Certamente, idéias dominantes sobre a 'emocionalidade' das mulheres foram importantes, durante muito tempo, em as afastar ou não as reconhecer como sujeitos da ciência. Isso exemplifica a necessidade de nomear essa realidade social como "problemática": é construída ideologicamente, dificultando a percepção da relação entre a vivência no cotidiano e os processos sistêmicos que reproduzem a desigualdade; é conivente com os interesses dos dominantes em perpetuar esse status quo.

Na sua exposição, Smith ilumina como as práticas conceituais institucionalizadas na sociologia do conhecimento definiram o conceito de ideologia de tal forma a produzirem aquilo que o conceito pretendia denunciar: a mistificação interessada das relações sociais. Nessa definição, os conhecimentos são determinados pela situação do conhecedor: "[...] o pensamento é considerado uma função da situação vital do pensador [...] a presença do sujeito é redundante [...] não é um termo necessário na relação".41 41 SMITH, 1990, p. 39. Essa definição, portanto, deve ser vista, ela mesma, como prática conceitual ideológica, pois obstrui investigação através da primazia dada aos conceitos e sua manipulação, ao mesmo tempo que nega a (historicamente contextualizada) ação dos atores sociais. Típica das práticas conceituais institucionalizadas das relações de mando, ela nos prende ao nível conceitual, "[...] suprimindo a presença e funcionamento das relações subjacentes que expressam".42 42 SMITH, 1990, p. 39.

Embora a epistemologia dialética insista que os conhecimentos sempre envolvem interesses, na concepção crítica de ideologia, ideologias expressam idéias a serviço da dominação.43 43 John THOMPSON, 1999, explicita as várias vertentes do conceito de ideologia, o que ele, como Smith, considera de importância crescente em face do imenso poder dos meios de comunicação de massa na produção e disseminação de formas simbólicas, atualmente. Ambos se preocupam, em primeiro lugar, com as conseqüências bem materiais das ideologias. Nessa função, naturalizam diferenças e desigualdades, ocultando tanto suas raízes sistêmicas como a participação dos sujeitos no cotidiano, ajudando dessa maneira a reproduzir o status quo.

Explicitar a ontologia e a teoria relacional marxistas em termos não-binários e não-deterministas tem sido um projeto importante dentro desse feminismo.44 44 Ver, no Brasil, Heleieth SAFFIOTI, 1993; Mary CASTRO, 2000; Regina SIMÕES BARBOSA, 2001, entre outras. O conceito crítico de ideologia é central a esse entendimento:

Marx descreve o ideal como 'refletindo' o mundo material e este como 'traduzido' pela mente humana em formas de pensamento [...] as relações que ele assim nomeia não são relações de determinação, são relações de significação [...] as relações sociais subjacentes não determinam como elas podem ser pensadas, mas provêem as condições do sentido dos conceitos que as expressam.45 45 SMITH, 1990, p. 40.

Berman, como vimos, havia apontado a mesma questão, observando que a posição materialista e dialética se diferencia da determinista ao enfatizar que o ponto de vista de todos é mediado através de construções mentais: "Nosso ponto de vista é, portanto, derivado não somente das nossas condições e relações materiais específicas, mas também da nossa compreensão delas, nossa consciência".46 46 BERMAN, 1997, p. 262. A possibilidade de modificar nossa compreensão tanto pode permitir uma transformação positiva como pode "[...] desmaterializar o sensório, transformando-o, de acordo com a ideologia contemporânea, numa abstração consistente e mascarar sua fonte original, a experiência material, com uma construção ideológica".47 47 BERMAN, 1997, p. 262.

Preocupada principalmente em fortalecer estudos críticos de mulheres estudando mulheres, Smith dirige-se às cientistas sociais e recomenda que seus estudos deverão começar com o mundo cotidiano e focalizar os atores sociais como conhecedores. No entanto, explicita que o conhecimento já realizado no cotidiano é um ponto de partida, e não de chegada:

Definir o mundo cotidiano como locus de uma problemática [...] não é a mesma coisa que o tomar como objeto de estudo [...] Enfocar o mundo cotidiano como objeto de estudo é o constituir como universo autocontido de investigação. O efeito de situar o conhecedor desta forma é separar/divorciar o mundo cotidiano da experiência das relações sociais e econômicas que organizam seu caráter distintivo [...] separamos [o cotidiano] metodologicamente das formas em que é enraizado num contexto socialmente organizado, maior do que pode ser conhecido diretamente [...]48 48 SMITH, 1987, p. 90.

Sherry Gorelick exemplifica essa questão com o estudo clássico de William Whyte Sociedade das esquinas, de 1943, cujos sujeitos eram grupos de homens pobres de Boston. Tomando essa realidade como objeto de estudo, Whyte enfocou e iluminou os padrões de interação e as hierarquias simbólicas e sociais nos grupos, na sua religião e na sua política. Mas, aponta Gorelick, esses homens de 30 anos estavam vivendo pelas esquinas por causa do desemprego gerado na grande depressão, o que não era causado pelos seus padrões de interação, e não poderia ser explicado dentro desses limites. Ela observa que, olhando apenas seus padrões de interação, poderiam apenas culpar a si próprios, aos outros, às pessoas que conheciam.49 49 GORELICK, 1996, p. 31.

Embora situamos as pessoas como agentes ativas das suas próprias vidas e, como tais, construtores dos seus mundos sociais, não consideramos esta atividade como fenômeno isolado e subjetivo. Melhor, localizamos a experiência individual na sociedade e na história, enraizada num conjunto de relações sociais que produzem tanto as possibilidades como os limites daquela experiência. O que está em questão não é apenas a experiência no cotidiano, mas as relações subjacentes e as conexões entre as duas [instâncias].50 50 Joan ACKER, Kate BARRY e Joke ESSEVELD, 1996, p. 62.

Isso ilustra, simultaneamente, os limites do conhecimento do cotidiano, assim como o aponta como locus da possibilidade do re/conhecimento. Nesse sentido, indica a importância de começar com o entendimento (e as emoções) dos sujeitos do cotidiano, relacionando-os com a teoria e conceitos críticos capazes de iluminar as conexões socioeconômicas sistêmicas, reforçando assim a possibilidade de contestação consciente e resistência às formas ideológicas de dominação.

Embora seja esse o primeiro passo na transformação social, Smith insiste que combater a dominação hoje requer mais do que uma crítica às ideologias. Podemos considerar esse trabalho intelectual crítico como necessário, mesmo que não suficiente; da mesma forma, lembrar sempre que nossa teoria e nossos conceitos são produções históricas, que não podem ser tratadas como verdades eternas, mas que precisam também serem constantemente referidas à prática, devendo evoluir nesse processo.

Gorelick aponta que, mesmo tendo intenções libertárias, nem professoras nem pesquisadoras, sozinhas, podem minar seu próprio poder sobre alunos e pesquisados, por ser este poder enraizado em contextos institucionais que organizam o trabalho acadêmico. Nesse trabalho, uma proposta de igualdade entre o/a pesquisador e os/as participantes de pesquisas, paradoxalmente, introduz de novo a idéia da investigação desinteressada. Ao seu trabalho, o/a pesquisador/a traz sua situação social, sua cultura, motivação, limitações, ignorâncias, habilidades, recursos, conhecimento de teoria e metodologia, incapacidades aprendidas no processo de socialização nas instituições dominantes, e uma perspectiva 'de fora' que pode tanto ser útil como problemática.

Como pesquisadores/as, podemos lutar para modificar nossas práticas, situando os sujeitos das nossas pesquisas como ativos conhecedores, mas não podemos simplesmente 'dar a voz' aos outros, nem que fosse apenas isso que se quisesse, pois

[...] sou eu que fiz as perguntas, eu que li as transcrições, eu que seleciono o material para o texto [...] [As] suas palavras, pensamentos e emoções são filtrados através das seleções que faço, com as minhas próprias posturas políticas, minhas próprias (e cambiantes) convicções e contradições.51 51 GORELICK, 1996, p. 38.

Por isso, a auto-reflexividade do/a pesquisador/a é essencial em esclarecer tanto sua situação como sua proposta teórica embora sejam também transformadas no processo da pesquisa, assim como podem modificar os respondentes.

Sob a perspectiva crítica, dialética e relacional do mundo problemático e ideologizado, podemos entender melhor por que, antes dos grupos de reflexão do feminismo, a opressão 'das mulheres' não foi percebida. No entanto, como sujeitos do conhecimento acadêmico legitimado, institucionalizado, Smith observa que nós estamos situadas contraditoriamente: como mulheres no cotidiano e também como participantes das práticas conceituais que nos objetificam como mulheres. Como profissionais, isso pode favorecer nossa percepção do hiato entre as formas abstratas dominantes e nossa própria experiência.

No entanto, como nossa situação é socialmente privilegiada, não podemos ser vistas como simplesmente oprimidas. Isso indica que nossa sensação da identidade feminina, baseada na nossa percepção das comunalidades entre as mulheres, também precisa ser sujeita à análise crítica, que alerta que

[...] a estrutura de opressão é empecilho para aqueles que estão na posição dominante, o que nos deixa severamente debilitados na nossa habilidade de perceber a opressão em que estamos implicadas; privilégio limita até nossa habilidade em entender nossas próprias circunstâncias, sem falar em praticar Verstehen52 52 Termo weberiano central, que refere o processo de compreensão, base da sociologia compreensiva. com os oprimidos.53 53 GORELICK, 1996, p. 40.

Por isso, referindo-nos tanto aos respondentes como a nós próprios/as como pesquisadores, precisamos de "[...] uma ciência social que revele as comunalidades e conflitos sistêmicos das estruturas ocultas de opressão, tanto como são sentidos como são obscurecidos".54 54 GORELICK, 1996, p. 38.

Nos estudos de gênero recentes, situados na academia dominada pelas dúvidas pós-modernas, o reconhecimento das diferenças entre mulheres levou a um processo que, no extremo, questionou a existência de tal categoria. Assim como a desconstrução do sujeito do conhecimento universal produziu uma resposta binária que afirma uma pluralidade ou relatividade absoluta, negando a possibilidade de conhecimento, a desconstrução da identidade das mulheres levou algumas à afirmação de que existe apenas uma pluralidade absoluta de diferenças, entre e dentro das mulheres.

Mas enfocar apenas as diferenças também não é suficiente,55 55 E, muito menos, apenas celebrá-las, como tem sido uma tônica recente em 'estudos culturais' dominantes, inclusive no feminismo e nos estudos de gênero. se partirmos de uma ótica que afirma a existência de relações sistêmicas de desigualdade social, nas quais diferenças de condição não querem dizer ausência de relação, mas sim um arranjo em que os privilégios de algumas dependem da opressão de outras:

Teorizar, portanto, não pode ser fragmentado, porque a realidade não vem em caixinhas separadas. Devemos desvendar não somente as experiências diferentes de grupos diversos de mulheres mas também os processos que criam estas diferenças. Devemos delinear como estes processos de opressão racista, imperialista, classista [...] são conectados e determinam [...] as vidas de todas e cada uma.56 56 GORELICK, 1996, p. 39; ver também LENNON e WHITFORD, 1994.

Como acadêmicos, temos agora os meios de entender que nosso trabalho está contextualizado pela política de classe das universidades, que, "[...] como sistema de controle, tem sido particularmente efetivo em assegurar que o conhecimento produzido não seja orientado às necessidades e interesses da massa do povo, mas sim às necessidades e interesses de mando".57 57 SMITH, 1996, p. 47. Participamos cada vez mais das práticas conceituais institucionalizadas, num âmbito universitário cada vez mais atrelado às necessidades do capitalismo global, o que desestimula o desenvolvimento e uso de teorias críticas que intencionam transformações.

Sob uma perspectiva histórica, é possível perceber o(s) feminismo(s) e suas atividades teóricas como fenômenos sociais que não são externos às relações sistêmicas de poder, nem necessariamente opostos aos processos globais, e que podem até servir para reforçar formas novas de imperialismo.58 58 SIGNS, 2001. Sob a perspectiva das tendências globais atuais, de concentração da riqueza e crescente exclusão que aumentam as diferenças entre as mulheres, recomenda-se que o feminismo

[...] deve também confrontar os investimentos da sua própria classe em recusar a conectar sua análise a um sistema social global cuja premissa fundante é que algumas mulheres são beneficiadas à custa de outras.59 59 Rosemary HENNESSY e Chrys INGRAHAM, 1997, p. 3.

É preciso enfatizar que o avanço na continuada elaboração do novo paradigma epistemológico que ocorre em todos os campos, segundo Fritjof Capra60 60 CAPRA, 1995. não foi capaz de reverter as tendências dominantes na construção do conhecimento, e que, como observa Santos, o conflito paradigmático "é cada vez mais um conflito social de grupos e interesses organizados".61 61 SANTOS, 1994. No processo de globalização neoliberal, que estende as relações que aumentam as desigualdades, precisamos, sim, marcar nossas diferenças, na relação com os que não são nossos 'idênticos' no cotidiano da produção do conhecimento.

Recebido em outubro de 2005 e aceito para publicação em abril de 2006

  • ACKER, Joan, BARRY, Kate, and ESSEVELD, Joke. "Objectivity and Truth: Problems in Doing Feminist Research." In: GOTTFRIED, Heidi (ed.). Feminism and Social Change: Bridging Theory and Practice Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1996. p. 60-87.
  • BARRETT, Michèle, and PHILLIPS, Anne. Destabilizing Theory: Contemporary Feminist Debates Stanford: Stanford University Press, 1992.
  • BENHABIB, Seyla, BUTLER, Judith, CORNELL, Drucilla, and FRASER, Nancy. Feminist Contentions: A Philosophical Exchange New York and London: Routledge, 1995.
  • BERMAN, Ruth. "Do dualismo de Aristóteles à dialética materialista: a transformação feminista da ciência e da sociedade". In: JAGGAR, Alison; BORDO, Susan (Orgs.). Gênero/corpo/conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. p. 241-275.
  • BORDO, Susan. "Feminism, Postmodernism, and Gender Skepticism." In: BORDO, S. Unbearable Weight Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1993. p. 215-244.
  • CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente São Paulo: Cultrix, 1995.
  • CASTRO, Mary G. "Marxismo, feminismos e feminismo marxista mais que um gênero em tempos neoliberais". Crítica Marxista, v. 11, p. 98-108, 2000.
  • FARGANIS, Sondra. "O feminismo e a reconstrução da ciência social". In: JAGGAR, Alison; BORDO, Susan (Orgs.). Gênero/corpo/conhecimento Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. p. 224-240.
  • GORELICK, Sherry. "Contradictions for a Feminist Methodology." In: GOTTFRIED, Heidi (ed.). Feminism and Social Change: Bridging Theory and Practice Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1996. p. 23-45.
  • GOTTFRIED, Heidi. "Introduction." In: GOTTFRIED, Heidi (ed.). Feminism and Social Change: Bridging Theory and Practice Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1996. p. 1-22.
  • GROSZ, Elizabeth. "Bodies and Knowledges: Feminism and the Crisis of Reason." In: ALCOFF, Linda, and POTTER, Elizabeth. Feminist Epistemologies New York and London: Routledge, 1993. p. 187-216.
  • HARAWAY, Donna. "Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective." Feminist Studies, v. 14, n. 3, 1988. p. 575-599.
  • ______. "Um manifesto para os cyborgs: ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80". In: BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 243-288.
  • HARDING, Sandra. The Science Question in Feminism Ithaca and London: Cornell U. Press, 1986.
  • HECKMAN, Susan. Gender and Knowledg: Elements of a Postmodern Feminism Boston: Northeastern University Press, 1990.
  • HENNESSY, Rosemary. Materialist Feminism and the Politics of Discourse New York: Routledge, 1993.
  • HENNESSY, Rosemary, and INGRAHAM, Chrys. Materialist Feminism: A Reader in Class, Difference, and Women's Lives New York and London: Routledge, 1997.
  • HIRSCH, Marianne, and KELLER, Evelyn F (eds.). Conflicts in Feminism New York and London: Routledge, 1990.
  • JAGGAR, Alison. "Amor e conhecimento: a emoção na epistemologia feminista". In: JAGGAR, Alison; BORDO, Susan (Orgs.). Gênero/corpo/conhecimento Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. p. 157-185.
  • JAGGAR, Alison; BORDO, Susan. "Introdução". In: JAGGAR, Alison; BORDO, Susan (Orgs.). Gênero/corpo/conhecimento Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. p. 7-16.
  • KELLER, Evelyn, and LONGINO, Helen. Feminism and Science New York: Oxford University Press, 1996.
  • LENNON, Kathleen, and WHITFORD, Margaret. "Introduction." In: LENNON, Kathleen, and WHITFORD, Margaret (eds.). Knowing the Difference: Feminist Perspectives in Epistemology London and New York: Routledge, 1994. p. 1-16.
  • LONGINO, Helen. Science as Social Knowledge: Values and Objectivity in Scientific Inquiry Princeton: Princeton University Press, 1990.
  • MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State Cambridge and London: Harvard University Press, 1989.
  • MASCIA-LEES, Frances, SHARPE, Patricia, and COHEN, Colleen B. "The Postmodern Turn in Anthropology: Cautions from a Feminism Perspective." SIGNS, v. 14, n. 1, 1989. p. 7-33.
  • NICHOLSON, Linda. Feminism/Postmodernism New York and London, Routledge, 1990.
  • SAFFIOTI, Heleieth I. B. "Novas perspectivas metodológicas de investigação das relações de gênero". In: MORAIS SILVA, Maria Aparecida (Org.). Mulher em seis tempos Araraquara, SP: Editora da UNESP, 1993. p 141-176.
  • SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre a ciência Lisboa: Edições Afrontamento, 1994.
  • SIGNS. Editorial, Globalization and Gender. SIGNS, v. 26, n. 4, 2001. p. 943-948.
  • SIMÕES BARBOSA, Regina. H. Mulheres, reprodução e aids: as tramas da ideologia na assistência à saúde de gestantes hiv-positivas. 2001. Tese (Doutorado em Saúde Pública) ENSP/FIOCRUZ, Rio de Janeiro.
  • SMITH, Dorothy E. "Women's Perspective as a Radical Critique of Sociology." Sociological Inquiry, v. 44, n. 1, 1974. p. 7-13.
  • ______. The Everyday World as Problematic: A Feminist Sociology Boston: Northeastern University Press, 1987.
  • ______. The Conceptual Practices of Power: A Feminist Sociology of Knowledge Boston: Northeastern University Press, 1990.
  • ______. "Contradictions for Feminist Social Scientists." In: GOTTFRIED, Heidi (ed.). Feminism and Social Change: Bridging Theory and Practice Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1996. p. 46-59.
  • STABILE, Carol A. "Pós-modernismo, feminismo e Marx: notas do abismo". In: WOOD, Ellen M.; FOSTER, John. B (Orgs.). Em defesa da história Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 145-160.
  • STRICKLAND, Susan. "Feminism, Postmodernism and Difference." In: LENNON, Kathleen, and WHITFORD, Margaret (eds.). Knowing the Difference: Feminist Perspectives in Epistemology London and New York: Routledge,1994. p. 265-274.
  • THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria crítica social na era dos meios de comunicação de massa Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
  • WEEKS, Kathi. Constituting Feminist Subjects Cornell: Cornell University Press, 1998.
  • WILSHIRE, Donna. "Os usos do mito, da imagem e do corpo da mulher na re-imaginação do conhecimento". In: JAGGAR, Alison; BORDO, Susan (Orgs.). Gênero/corpo/conhecimento Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. p. 101-125.
  • 1
    Fritjof CAPRA, 1995; e Boaventura SANTOS, 1994.
  • 2
    Neste trabalho, 'dominação' é entendida dessa forma, na articulação de múltiplas facetas de diferença.
  • 3
    Dorothy SMITH, 1987.
  • 4
    HARAWAY, 1994, p. 258.
  • 5
    Ver, entre muitíssimos, Sandra HARDING, 1986; e Evelyn KELLER e Helen LONGINO, 1996.
  • 6
    Boaventura de Souza dos Santos considera que uma transição paradigmática, como esta que atualmente se processa, implica sempre uma nova visão da subjetividade e do conhecimento (SANTOS, 1994).
  • 7
    Sondra FARGANIS, 1997, p. 228.
  • 8
    BERMAN, 1997, p. 254.
  • 9
    BERMAN, 1997, p. 258.
  • 10
    Num exemplo recente,
    O Globo (8.6.2004) noticia, a partir de um estudo com gêmeas: "Infidelidade poderia ter uma origem genética". Na reportagem, gêmeas idênticas são referidas como "clones naturais"! Embora a reportagem inclua comentários lembrando os fatores sociais, a pesquisa não os considera.
  • 11
    BERMAN, p. 248.
  • 12
    WILSHIRE, 1997, p. 102.
  • 13
    WILSHIRE, 1997, p. 117.
  • 14
    WILSHIRE, 1997, p. 107.
  • 15
    GROSZ, 1993, p. 187. Esta e as demais citações de textos em inglês são traduzidas pela autora.
  • 16
    JAGGAR, 1997, p. 158.
  • 17
    JAGGAR, 1997, p. 158.
  • 18
    JAGGAR, 1997, p. 160.
  • 19
    JAGGAR, 1997, p. 161.
  • 20
    JAGGAR, 1997, p. 162.
  • 21
    JAGGAR, 1997, p. 162.
  • 22
    JAGGAR, 1997, p. 164-165.
  • 23
    JAGGAR, 1997, p. 166.
  • 24
    JAGGAR, 1997, p. 167.
  • 25
    JAGGAR, 1997, p. 172.
  • 26
    JAGGAR, 1997, p. 176.
  • 27
    JAGGAR, 1997, p. 179.
  • 28
    MACKINNON, 1989, p. 40.
  • 29
    Entre os mais influentes, Foucault, Derrida e Lyotard. Coerente com a perspectiva apresentada, é preciso dizer que há múltiplos entendimentos do pós-moderno, assim como uma complexidade imensa nas categorizações tanto de idéias como de autores; mas isso não quer dizer que nada se pode conhecer sobre esse assunto, inclusive como fenômeno histórico. Entre os livros que se concentram no debate feminismo/posmodernismo, ver: Marianne HIRSH e Evelyn KELLER, 1990; Linda NICHOLSON, 1990; Susan HECKMAN, 1990; Michèle BARRETT e Anne PHILLIPS, 1992; Rosemary HENNESSY, 1993; Kathleen LENNON e Margaret WHITFORD, 1994; Seyla BENHABIB, Judith BUTLER, Drucilla CORNELL e Nancy FRASER, 1995; e Kathi WEEKS, 1998.
  • 30
    Susan STRICKLAND, 1994, p. 266.
  • 31
    Carol STABILE, 1999.
  • 32
    Donna HARAWAY, 1988; Susan BORDO, 1993; Susan STRICKLAND, 1994.
  • 33
    Frances MASCIA-LEES, Patricia SHARPE e Colleen COHEN, 1989.
  • 34
    JAGGAR e BORDO, 1997, p. 13.
  • 35
    No original, "
    accountable."
  • 36
    HARAWAY, 1988, p. 583; ver também Helen LONGINO, 1990, p. 212.
  • 37
    Heidi GOTTFRIED, 1996, p. 14.
  • 38
    No original, "
    relations of ruling" (SMITH, 1987, p. 3).
  • 39
    SMITH, 1974 e 1987.
  • 40
    SMITH, 1987, p. 19.
  • 41
    SMITH, 1990, p. 39.
  • 42
    SMITH, 1990, p. 39.
  • 43
    John THOMPSON, 1999, explicita as várias vertentes do conceito de ideologia, o que ele, como Smith, considera de importância crescente em face do imenso poder dos meios de comunicação de massa na produção e disseminação de formas simbólicas, atualmente. Ambos se preocupam, em primeiro lugar, com as conseqüências bem materiais das ideologias.
  • 44
    Ver, no Brasil, Heleieth SAFFIOTI, 1993; Mary CASTRO, 2000; Regina SIMÕES BARBOSA, 2001, entre outras.
  • 45
    SMITH, 1990, p. 40.
  • 46
    BERMAN, 1997, p. 262.
  • 47
    BERMAN, 1997, p. 262.
  • 48
    SMITH, 1987, p. 90.
  • 49
    GORELICK, 1996, p. 31.
  • 50
    Joan ACKER, Kate BARRY e Joke ESSEVELD, 1996, p. 62.
  • 51
    GORELICK, 1996, p. 38.
  • 52
    Termo weberiano central, que refere o processo de compreensão, base da sociologia compreensiva.
  • 53
    GORELICK, 1996, p. 40.
  • 54
    GORELICK, 1996, p. 38.
  • 55
    E, muito menos, apenas celebrá-las, como tem sido uma tônica recente em 'estudos culturais' dominantes, inclusive no feminismo e nos estudos de gênero.
  • 56
    GORELICK, 1996, p. 39; ver também LENNON e WHITFORD, 1994.
  • 57
    SMITH, 1996, p. 47.
  • 58
    SIGNS, 2001.
  • 59
    Rosemary HENNESSY e Chrys INGRAHAM, 1997, p. 3.
  • 60
    CAPRA, 1995.
  • 61
    SANTOS, 1994.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2006
    • Recebido
      Out 2005
    Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
    E-mail: ref@cfh.ufsc.br