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Apresentação

SEÇÃO DEBATES: TRADUÇÕES DO PÓS-FEMINISMO

Apresentação

Eliana Ávila; Claudia de Lima Costa

Universidade Federal de Santa Catarina

O objetivo desta seção é possibilitar um espaço para a exploração sobre o tema das viagens e traduções das teorias feministas e do movimento feminista. Com isso, queremos não apenas trazer os debates que acontecem na comunidade feminista internacional para as páginas da REF, como também, principalmente, levar para esse debate perspectivas específicas, locais e globais, do feminismo dentro e fora da academia. Contribuindo para a articulação de contextos específicos de enunciação, nosso propósito é analisar deslocamentos marcantes das teorias e práticas feministas ao longo dos eixos norte/sul e leste/oeste, em suas múltiplas direcionalidades, salientando o que é ou não relevante sobre esses debates para tais contextos. Assim, especialistas são convidadas a utilizar a Seção Debates da REF para engajar questões do feminismo contemporâneo a partir de perspectivas e políticas cruciais para reconfigurar os feminismos transnacionais.

Diante das formações contemporâneas pós-coloniais e da re-configuração de todos os tipos de conhecimentos e cartografias (geográfica, econômica, política, cultural, libidinal, etc.), a problemática da tradução tornou-se um novo espaço de debate feminista. Por quais rotas as teorias e práticas feministas, junto com seus conceitos fundacionais, viajam? Como são traduzidas em diferentes contextos geográficos e históricos? Que tipos de leituras as categorias analíticas das teorias feministas recebem em seus múltiplos deslocamentos? Quais são os mecanismos e tecnologias de controle que supervisionam o trânsito das teorias e práticas feministas através das fronteiras territoriais, institucionais e disciplinares? Quais são os lugares de enunciação que os sujeitos feministas ocupam no trânsito das teorias? De que forma o lugar que habitamos no gênero, na raça, na classe, na sexualidade, nas instituições, etc. delimita quais teorias (bem como autoras) e práticas são traduzidas e como são interpretadas/apropriadas? No contexto do trânsito transnacional de teorias e conceitos, a questão da tradução cultural se faz um espaço privilegiado, por um lado, para a elaboração de análises críticas sobre a representação e o poder e sobre as assimetrias entre linguagens e, por outro, para examinar e situar aquelas práticas constitutivas do sujeito do feminismo e de seu lugar de enunciação.

Em um cenário de divisas fragmentadas, "zonas de contato" (em vez de centros e periferias) e epistemologias da fronteira, é crucial investigarmos os processos de apropriação ou, como gostaríamos de aqui denominá-los, processos de tradução cultural das teorias feministas e de suas categorias analíticas com o intuito de desenvolvermos o que algumas autoras têm chamado de "capacidade geopolítica de ler e escrever" na articulação de feminismos transnacionais.1 1 Susan FRIEDMAN, 1998; e Gayatri SPIVAK, 1992. Essa tarefa implica o rastreamento das migrações e traduções das teorias feministas para salientar aqueles elementos de apropriação que subvertem noções de autenticidade ou de originalidade. Idéias, conceitos e práticas que jamais são totalmente puros ou nativos emergem de lugares sempre já saturados por outros lugares e teorias.2 2 James CLIFFORD, 1992, já assinalou que, apesar de as teorias sempre partirem de algum lugar, esse lugar deveria ser pensado como interseção de vários itinerários, desenhados a partir de diferentes histórias de pertencimento, imigração e exílio. O itinerário segue, portanto, uma lógica do rizoma, sem um ponto de origem evidente nem um ponto inequívoco de chegada. No caso específico das teorias e práticas feministas, mapear seus itinerários se complica ainda mais porque suas categorias analíticas são produzidas no (des)encontro das formações feministas heterogêneas, marcadas pelas diferenças de raça, de classe, de orientação sexual, de linguagem, de etnia e de tradição nacional, entre muitas outras. Devido a tudo isso, nessas migrações as teorias encontram coações epistemológicas, institucionais e políticas, fazendo com que passem por terrenos imprevisíveis, peguem desvios súbitos e encontrem armadilhas ocasionais.3 3 Veja Rajagopalan RADHAKRISHNAN, 1996; Edward SAID, 1983

É importante notar aqui a distinção crucial entre, por um lado, transplantes de teorias, como se pudessem ser meramente aplicadas, sem serem alteradas pelos contextos sócio-históricos, institucionais e geopolíticos que atravessam, e, por outro lado, migrações teóricas, que tratam justamente de levar em conta tais contextos, de forma crítica. Como escreveu Edward Said, "o fechamento teórico, assim como a convenção social ou o dogma cultural, é anátema à consciência crítica, que perde sua profissão quando perde seu senso ativo de um mundo aberto onde suas faculdades devem ser exercidas".4 4 Tradução nossa. Veja SAID, 1983.

Fica claro, a partir dessa perspectiva, que a Seção Debates se propõe a desmistificar concepções tanto de purismo quanto de pluralismo relativista do feminismo contemporâneo. Em outras palavras, resiste à lógica do sacrifício de uma concepção do feminismo por outra, mais forte, bem como à lógica da coexistência passiva pela qual se dissolveriam os conflitos entre concepções por vezes incompatíveis entre si. Tais impurezas e interrupções, longe de se assentarem em uma estrutura utilitária confortável, fazem emergir instabilidades imperceptíveis no banco de gens supostamente puro do feminismo, engajando-o necessariamente com suas contradições internas.5 5 Refiro-me a Mary HAWKESWORTH, 2006, p. 752. É importante notar que, no mesmo texto, Mary Hawkesworth considera explicitamente problemáticas as "histórias [...] do darwinismo social e [da] sociobiologia [...], as metáforas evolucionárias da 'seleção natural' e da 'sobrevivência do mais capaz'" (HAWKESWORTH, 2006, p.. 742.

O texto escolhido para a Seção Debates deste ano é o artigo recente de Mary Hawkesworth traduzido aqui como "A semiótica de um enterro prematuro: o feminismo em uma era pós-feminista". Definindo o pós-feminismo como "o mapeamento do espaço social que deixa o feminismo sem teto e sem terra",6 6 HAWKESWORTH, 2006, p. 746. Hawkesworth corrobora a crítica feita por Tania Modleski7 7 MODLESKI, 1991. contra a concepção liberal que restringe o projeto feminista à igualdade de homens e mulheres perante a lei, obliterando assim todas as questões derivadas das assimetrias de poder que permeiam as relações sociais.

Seguindo o argumento de que "toda representação de morte é uma representação equivocada",8 8 Sarah GOODWIN e Elisabeth BRONFEN, 1993, p. 20. Hawkesworth critica o obituário do feminismo iniciado pela matéria de capa da revista Harper's,9 9 Veronica GENG, 1976. pautada pelo tema da morte por causas naturais. Especificamente, Geng atribuía a morte do feminismo aos desgastes naturais internos do movimento, causados pela desunião e conseqüente dissolução de suas metas. Em outras palavras, o artigo de Geng reproduzia a ideologia hegemônica, reduzindo a mero faccionalismo autodestrutivo a heterogeneidade do movimento que se verificava em 1976, ou seja, justamente durante um de seus períodos de grande crescimento.10 10 Jude HOWELL e Diane MULLIGAN, 2003. Contra tal ideologia, Hawkesworth defende o argumento de Patricia Misciagno,11 11 MISCIAGNO, 1997. para quem o ativismo feminista é mais bem concebido não em termos de um movimento social unívoco, objetificado marginalmente pela sociedade do espetáculo, mas sim como praxis de subversão. Nesse sentido, o feminismo se constrói como movimento social polívoco, bem como através de atos específicos, historicamente situados, de mulheres que resistem singularmente a formas diferentes de opressão; assim, o feminismo perturba sistemas hegemônicos também em seu próprio bojo.

Para Hawkesworth, se por um lado a reiteração obcecada por prescrever (pré-escrever) o enterro do feminismo reproduz a narrativa patriarcal do sacrifício feminino, ela também torna visível tal narrativa. Assim, a prescrição obituária do feminismo acaba por confirmar, ironicamente, a vitalidade do movimento enquanto ameaça real à ideologia hegemônica que depende de naturalizar o telos de sua resolução final neste caso, a morte. Não surpreende que o enterro de tal ameaça só possa ser simulado discursivamente, como que inocentemente sem cadáver em que se possa fazer a autópsia, nem coveiro que possa apontar sua procedência. O que se fabrica afinal é, portanto, o discurso obituário enquanto simulacro que engendra a invisibilidade do ativismo feminista dentro e fora da academia.

O artigo original em inglês de Hawkesworth, "The Semiotics of a Premature Burial: Feminism in a PostFeminist Age",12 12 Signs, v. 29, n. 4, 2004. p. 961-985. foi selecionado por nossa Editoria devido à sua importância estratégica na construção histórica do feminismo anti-hegemônico. Com a meta de integrar a produção acadêmica com o ativismo social ao qual se refere Hawkesworth, selecionamos como interlocutoras para o debate a Ministra Matilde Ribeiro (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), a Professora Rita Terezinha Schmidt (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e a Professora Ana Gabriela Macedo (Universidade do Minho, Portugal), com suas diversificadas e amplas experiências no movimento feminista. Portanto, ao justapormos essas vozes, estamos também engajadas em um processo contínuo (e necessariamente infiel) de traduções de traduções.

Referências bibliográficas

CLIFFORD, James. "Traveling Cultures." In: GROSSBERG, Lawrence, NELSON, Cary, and TREICHLER, Paula (eds.). Culture Studies. New York: Routledge, 1992. p. 96-116.

FRIEDMAN, Susan. Mappings: Feminism and the Cultural Geographies of Encounter. Princeton: Princeton University Press, 1998.

GENG, Veronica. "Requiem for the Women's Movement." Harper's, November 1976. p. 49-56, 61-68.

GOODWIN, Sarah Webster, and BRONFEN, Elisabeth. Death and Representation. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1993.

HAWKESWORTH, Mary. "A semiótica de um encontro prematuro: o feminismo em uma era pós-feminista". Revista Estudos Feministas, v. 14, n. 3, p. 737-763, 2006.

HOWELL, Jude, and MULLIGAN, Diane. "Editorial." International Feminist Journal of Politics, v. 5, n . 2, 2003. p. 157-163. Special Issue. Gender and Civil Society: Challenges for International Feminism.

MISCIAGNO, Patricia. Rethinking Feminist Identification: The Case for De Facto Feminism. Westport, Conn.: Praeger, 1997.

MODLESKI, Tania. Feminism without Women: Culture and Criticism in a "Postfeminist" Age. New York: Routledge, 1991.

RADHAKRISHNAN, Rajagopalan. Diasporic Mediation: Between Home and Location. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996.

SAID, Edward. The World, the Text, and the Critic. Cambridge: Harvard University Press, 1983.

SPIVAK, Gayatri C. "The Politics of Translation." In: BARRETT, Michèle, and PHILLIPS, Anne (eds.). Destabilizing Theory: Contemporary Feminist Debates. Stanford: Stanford University Press, 1992. p. 177-200.

  • 1
    Susan FRIEDMAN, 1998; e Gayatri SPIVAK, 1992.
  • 2
    James CLIFFORD, 1992, já assinalou que, apesar de as teorias sempre partirem de algum lugar, esse lugar deveria ser pensado como interseção de vários itinerários, desenhados a partir de diferentes histórias de pertencimento, imigração e exílio.
  • 3
    Veja Rajagopalan RADHAKRISHNAN, 1996; Edward SAID, 1983
  • 4
    Tradução nossa. Veja SAID, 1983.
  • 5
    Refiro-me a Mary HAWKESWORTH, 2006, p. 752. É importante notar que, no mesmo texto, Mary Hawkesworth considera explicitamente problemáticas as "histórias [...] do darwinismo social e [da] sociobiologia [...], as metáforas evolucionárias da 'seleção natural' e da 'sobrevivência do mais capaz'" (HAWKESWORTH, 2006, p.. 742.
  • 6
    HAWKESWORTH, 2006, p. 746.
  • 7
    MODLESKI, 1991.
  • 8
    Sarah GOODWIN e Elisabeth BRONFEN, 1993, p. 20.
  • 9
    Veronica GENG, 1976.
  • 10
    Jude HOWELL e Diane MULLIGAN, 2003.
  • 11
    MISCIAGNO, 1997.
  • 12
    Signs, v. 29, n. 4, 2004. p. 961-985.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
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