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O feminismo no plural: para pensar a diversidade constitutiva das mulheres

RESENHAS

O feminismo no plural: para pensar a diversidade constitutiva das mulheres

Gema Galgani Silveira Leite Esmeraldo

Universidade Federal do Ceará

Féminisme(s) Penser la pluralité. Cahiers du Genre, n. 39.

FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, Dominique; LÉPINARD, Éléonore; VARIKAS, Eleni (Coordonné).

Paris: L'Harmattan, 2005. 264 p.

A revista Cadernos de Gênero é uma publicação que tem a colaboração do Centro Nacional da Pesquisa Científica/CNRS/França; do Serviço de Direitos das Mulheres e da Igualdade; do Centro Nacional do Livro e do Laboratório Gênero, Trabalho, Mobilidades/IRESCO/CNRS – Universidades Paris 10 e Paris 8 ex-GERS.

Esse número se propõe a trazer estudos sobre a diversidade constitutiva das mulheres, a partir da problematização de uma de suas dimensões, que se refere à imbricação das dominações sexistas e racistas. Nesse sentido, o Caderno traz análises teóricas e políticas a partir de experiências do black feminism americano, que se coloca no campo central dos debates do feminismo americano, nos últimos tempos, a partir de provocações das feministas afro-americanas e de mulheres de grupos minoritários.

Esse trabalho compreende que a luta pela pluralidade humana não se limita à compreensão da existência da bicategorização hierárquica de sexo, mas deve tratar da construção homogeneizadora e da categoria normativa das mulheres, para expor as diversas experiências das mulheres, as diferentes formas de assujeitamento das mesmas, a diversidade das condições de vida e das relações de poder das mulheres que as faz alcançar a liberdade de forma desigual.

O primeiro texto é de Dominique Fougeyrollas-Schwebel, socióloga, pesquisadora do CNRS/França, e membro do comitê de redação da revista Cadernos de Gênero. Dominique analisa as divisões no interior do feminismo francês a partir das escolhas das estratégias políticas. Traz a centralidade das referências marxistas nos anos 1970 e considera essa determinante para promover rupturas com as práticas de dominação.

Nancy Fraser é professora de Filosofia no doutorado da Nova Escola para Pesquisa Social de Nova York. No seu texto aprofunda e traz esclarecimentos sobre a questão da diferença, categoria tratada pelo movimento feminista desde os anos 1960, que hoje enfrenta impasses e para a qual Fraser indica algumas possibilidades. Se no início tratava-se de trabalhar com a oposição "igualdadediferença", depois com as "diferenças entre mulheres", agora se reflete sobre "diferenças cruzadas múltiplas", para incorporar o debate sobre gênero, raça, etnia, classe e sexualidade. Fraser afirma que, no terreno mais amplo da sociedade civil, múltiplos eixos das lutas de gênero se expõem com a intersecção dos movimentos sociais e analisa os limites das correntes anti-essencialistas e multiculturalistas que ora se defrontam nos Estados Unidos e que podem colocar "num mesmo saco toda identidade". Propõe no seu texto relacionar a busca de identidades e de afirmação de diferenças a partir da exigência de justiça social, de alargamento da democracia, da igualdade social. Fraser traz ainda reflexões sobre a significação do termo democracia radical, que passa por desafios atuais, quando os movimentos feministas se voltam basicamente para desenvolver uma política cultural de reconhecimento. Tanto o anti-essencialismo como o multiculturalismo se voltam mais prioritariamente para os efeitos nefastos do não-reconhecimento cultural e relevam a importância da desigual divisão político-econômica. Para Fraser, o princípio da igualdade e justiça social deve ser tratado pelos movimentos na mesma medida que o reconhecimento cultural.

Segue-se então o texto de Kimberlé W. Crenshaw, considerado clássico. Kimberlé é professora de Direito na UCLA e na Universidade Columbia. Seu trabalho trata das violências conjugais nas comunidades afro-americanas e sugere a criação de instrumentos teóricos para pensar essa realidade. Apresenta o conceito de interseccionalidade, para analisar a intersecção entre as dominações de sexo e de raça. Para Kimberlé, as relações de dominação encontradas nas análises das categorias de sexo e de raça devem ser pensadas também como estruturas de dominação. Destaca o cuidado e a atenção para os estudos não se fecharem nessa interpretação (de sexo e raça), mas também apostarem nas reflexões sobre a pluralidade e a diversidade constitutiva das mulheres, que podem articular relações sociais de caráter e de origens diversas, como de classe e sexo, cujos trabalhos na França são exemplares. Kimberlé trata, num primeiro momento, da interseccionalidade estrutural para explicar a posição das mulheres de cor diante das suas experiências concretas de violência conjugal. A autora faz um estudo em comunidades de mulheres refugiadas em Los Angeles e identifica um quadro de subordinação em que elas vivem. A maioria é desempregada, ou com subemprego, são pobres, são as responsáveis pelas atividades familiares, e não possuem competências profissionais. Estudar a relação entre raça, gênero e classe é fundamental para compreender as suas intersecções. No segundo momento, Kimberlé trata da interseccionalidade política, em que analisa a marginalização da questão da violência contra as mulheres de cor nas políticas feministas e anti-racistas. Parte da reflexão de que a mulher de cor não vive as dimensões de sexo e de raça como os homens negros e as mulheres brancas. Para isso, serve-se do conceito de raça e de patriarcado para analisar a dupla marginalização das mulheres de cor.

Elsa Dorlin é mestre de conferências em Filosofia na Universidade Paris I – Pantheon-Sorbonne. Recuperando a historicidade das mulheres negras nos Estados Unidos, Dorlin problematiza as colisões entre "sexo" e "raça" e feminismo e racismo. Lembra ela que durante a luta pelo sufrágio feminino, quando as mobilizações feministas americanas apontavam para uma única campanha pelo sufrágio, as mulheres brancas reagiram defendendo a sua condição de mulher. A dimensão de dominação parecia atravessar essa relação e foi decisiva na criação de uma fronteira entre mulheres brancas e negras, maior até que entre homens e mulheres brancas. A prioridade da luta das mulheres brancas obscureceu e anulou outros sujeitos do feminismo a mulher negra. A partir dessa experiência, Dorlin passa a problematizar a dificuldade do feminismo de tratar, nos tempos atuais, a questão do racismo e dos direitos da mulher negra. Assim é que nos Estados Unidos o surgimento do black feminism se constitui numa verdadeira revolução. Questiona o sujeito mesmo do feminismo – as mulheres – e a sua categorização homogênea, mas o debate está se abrindo para a teoria anglo-saxônica. A produção de um conceito de subjetivação parece ser um caminho para compreender os processos pelos quais os indivíduos forjam uma identidade política por onde eles lutam e se afirmam como sujeitos de sua própria libertação. A partir dessa análise, o sujeito do feminismo está em constante produção e não se aprisiona em nenhuma definição normativa. Escavar as formas de dominação sobre as mulheres e as suas formas de luta e de resistência para superar essa dominação é invenção de uma outra linguagem política.

O texto de Eleonore Lépinard (doutora em Sociologia/Canadá) avalia que a categoria da diferença é central dentro do projeto feminista e deve ser enfrentada na sua dimensão teórica e política. Lépinard analisa a impotência da França de pensar a configuração particular do sexismo e do racismo que se abate sobre as mulheres imigrantes ou francesas, frutos da escravidão e da colonização. O feminismo francês não tem construído instrumentos para compreender a divisão interna entre as mulheres.

Para as francesas, apesar de reconhecerem a existência de análises rigorosas sobre os mecanismos de categorização de sexo e de raça, o dilema de desenvolver na França uma política anti-racista feminista ainda está presente.

Historicamente, no seio do feminismo europeu trabalhou-se o sexo a partir de uma clivagem de classe, que resultou em inúmeros estudos sobre o trabalho e a família, a transversalidade das relações sociais de sexo e de classe, a relação entre capitalismo e patriarcado. O desafio ora colocado para as feministas européias refere-se à necessidade de compreender "os interesses divergentes, senão contraditórios, entre mulheres diplomadas, mulheres não qualificadas, mulheres do Norte, mulheres do Sul", ou seja, de "compreender segundo quais modalidades certas mulheres participam dessas relações de dominação" (p. 8).

O feminismo é então trazido para ser refletido como um posicionamento, um modo de agir político, e nesse sentido deve ser pensado no plural, para garantir a incorporação das diferenças nas relações de poder, vivenciadas entre mulheres que guardam interesses diversos e até contraditórios.

Sonia Dayan-Herzbrun faz reflexões a partir de seu locus de observação, "le Proche-Orient", e das práticas de resistência dos palestinos dos territórios ocupados, como os campos do Líbano. Seu trabalho leva em conta os investimentos políticos do privado, suas práticas de resistência e coloca-se na escuta do que falam e fazem os palestinos e como são categorizados como dominados.

A questão do feminismo perpassa todos os textos em uma perspectiva de tratá-lo como um projeto político, que não pressupõe uma via única, mas a reunião de solidariedades a se construir.

A revista Cadernos de Gênero traz ainda três contribuições de autores sobre temas diversos: o texto que trata das transformações das relações sociais de sexo e de suas novas problematizações pelas ciências sociais; o texto a respeito de uma pesquisa realizada na Espanha sobre abuso sexual em três lugares de trabalho e os diferentes comportamentos das mulheres diante das práticas masculinas que poderiam ser compreendidas como assédio sexual; e o texto em torno de uma outra pesquisa também realizada na Espanha sobre as mais variadas dimensões do trabalho não remunerado na rede familiar e assumidos pelas mulheres.

No final nos brinda com algumas resenhas de livros como Identidade nacional e procriação no Brasil: sexo, classe, raça e esterilização feminina, de Valeria Ribeiro Corossacz; e Cultura hip-hop, jovens das cidades e políticas públicas, de Sylvia Faure e Marie-Carmen Garcia, dentre outros trabalhos resenhados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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