Acessibilidade / Reportar erro

Cruzando fronteiras na América Latina

RESENHAS

Cruzando fronteiras na América Latina

Maise Caroline Zucco

Universidade Federal de Santa Catarina

Marcar diferenças, cruzar fronteiras.

FRANCO, Jean. Tradução: Alai Garcia Diniz.

Florianópolis: Mulheres; Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2005. 181 p.

A Segunda Onda Feminista, caracterizada pela institucionalização do Ano Internacional da Mulher e marcada por novas propostas para esse movimento, é temática propulsora de um grande número de trabalhos acadêmicos. Concomitantemente ao desenvolvimento desse tema, nos deparamos com a perspectiva teórica de gênero, que a partir da década de 1980 passa a figurar com maior visibilidade nos meios universitários.

É nessa linha que Jean Franco desenvolve os artigos que compõem o livro Marcar diferenças, cruzar fronteiras. Publicado no ano de 1996 em Santiago do Chile pela Editorial Cuarto Próprio, a obra ganha uma edição brasileira apenas no ano de 2005, em uma parceria entre a Editora PUC Minas e a Editora Mulheres. Nascida na Inglaterra, Jean Franco é conhecida pesquisadora de literatura hispano-americana e engajada com os movimentos de esquerda. Crítica em busca do direito de interpretação das mulheres, conquista espaço nos Estados Unidos na área de estudos latino-americanos, trazendo como bagagem os estudos culturais ingleses. Nos seis artigos publicados nessa coletânea, ela deixa claro seu interesse pela literatura, pelas obras de arte, mas, principalmente, pelos meios de comunicação de massa, resultando em uma produção textual militante.

No primeiro artigo selecionado para essa publicação, Jean Franco trata da figura de La Malinche, também conhecida pela literatura como Dona Maria, amante e intérprete de Cortês. Trazendo as formas como essa personagem foi narrada por autores como Octavio Paz, Tzvetan Todorov, Stephen Greenblat, entre outros, a autora apresenta o simbolismo que envolveu La Malinche em obras que tematizaram a conquista da América.

Eventualmente amante de Cortês, mãe de seu filho bastardo legitimado por decreto papal, intérprete das negociações entre indígenas e espanhóis, mais poderoso membro da comunidade indígena depois de Montezuma, considerada traidora pelos astecas, Dona Maria foi retratada pela literatura sob um prisma muito variado no qual, segundo Jean Franco, ela pode ser caracterizada como símbolo transfigurado do multiculturalismo. Essa personagem encontra-se entre o ser indígena e o ser espanhol, ou, como relata a autora, ela é o "grotesco híbrido". Tendo como foco a literatura latino-americana e as questões de gênero, Jean Franco mostra como a conquista colonialista se torna mestiçagem. Dessa forma, a autora se debruça sobre essa questão pós-colonialista, na qual La Malinche encontra-se até hoje estigmatizada pela bastardização dos indígenas mexicanos.

Em seu segundo artigo, Jean Franco trabalha com a iconização de Frida Kahlo, tomando como ponto de partida a campanha cultural e publicitária realizada pelo México no outono de 1990. Essa campanha levou para Nova York um grande número de exposições nas quais as obras das mulheres fizeram a ponte entre o antigo México revolucionário e o novo México, menos agressivo diante da política estrangeira. Foi na introdução do catálogo de uma das exposições de maior sucesso que Octavio Paz, um dos planejadores dessa amostra, intitulada "México: Esplendores de Trinta Séculos", apresentou a figura da Virgem como ícone pacifista da relação mexicana com os Estados Unidos.

Contudo, como principal figura da campanha publicitária dessa exposição foi escolhida Frida Kahlo, ficando sua obra Auto-retrato com Monos presente em vários murais e revistas. As problemáticas tomadas como de âmbito privado, muito fortes nas obras de Frida Kahlo, haviam se tornado, além de públicas, publicitárias; resultando, a partir dessa escolha, na substituição de um México nacionalista por uma representação de um México de exuberâncias e exotismos.

No capítulo seguinte, a autora trabalha com a publicidade da literatura de massa nos Estados Unidos voltada às mulheres, compreendida em dois moldes: as novelas românticas, histórias fantasiosas para consumidoras em potencial; e as histórias em quadrinhos em formato de novelas, dirigidas às mulheres participantes da força de trabalho. No primeiro desses estilos literários as mulheres são convidadas a inibirem sua inteligência, pois somente através da supressão de seu lado pensante e da negação de sua carreira profissional o final feliz da história pode ser concretizado. Dessa forma, a novela romântica, ou também caracterizada por Jean Franco como romance rosa, tem como público-alvo mulheres de classe alta num processo de conciliação entre seu desejo individual e sua aceitação social. Em contrapartida, a novela semanal, literatura direcionada para as classes baixas, denominada pela autora como romance vermelho, tem como característica o sacrifício do final romântico em benefício da carreira profissional e da emancipação, o que livrará a personagem de uma situação familiar violenta.

Através da cultura de massa a diferença social entre esse público leitor é acentuada e, segundo Jean Franco, esse processo segue conforme os moldes da divisão internacional do trabalho. Em países latino-americanos como o Brasil e o México traçar uma proposta literária de mulheres consumidoras torna-se muito difícil, uma vez que elas encontram-se direcionadas ao mercado de trabalho. Contudo, a autora nos aponta a incorporação das mulheres na sociedade por meio das novelas semanais, o que, em contrapartida, confina mulheres e homens na representação de trabalhadores oprimidos.

Em "Matar sacerdotes, freiras, mulheres e crianças", quarto capítulo do livro, Jean Franco escreve sobre a dessacralização de determinados símbolos pelos governos militares na América Latina. A Igreja e a família sempre foram consideradas instituições fortes e assinaladas como locais de imunidade dentro do regime militar, mas, segundo a autora, esse espaço perde seu poder durante os anos sessenta. Em resposta às guerrilhas os exércitos se aprimoram, passando a praticar novos métodos de tortura e a se especializar na prática do desaparecimento. Para Franco, esse ponto teria ocasionado a abstração dessas instituições sacralizadas, fazendo com que tanto freiras, sacerdotes, mulheres e crianças passassem a figurar como personagens de atentados militares. Contudo, não podemos deixar de ressaltar que, se por um lado essas instituições foram ameaçadas, a Igreja e as mães tornaram-se símbolos de resistência, abrigando pessoas perseguidas pela ditadura e reivindicando informações sobre familiares desaparecidos.

No quinto capítulo do livro é estudada a atual participação das mulheres nos movimentos sociais, que para a autora foi alterada com a reestruturação das relações que se modificam diante de um regime militar e diante de um período de crise ocasionado pela dívida externa. Jean Franco traça um panorama das dificuldades encontradas pelas mulheres para atingirem um espaço de atuação pública e política, muito limitado mesmo em meio à esquerda. As mulheres sempre estiveram muito associadas à noção de privado (que por sua vez é tomado como rotineiro, banal), impedindo-as de se constituírem enquanto sujeitos públicos, dotados de autoridade para realizar uma obra testemunhal que tenha como caráter a sua autoridade interpretativa. Contudo, o que há de mais interessante nesse artigo de Franco é a extrapolação das concepções de gênero. Sua atenção encontra-se focada no pluralismo que vivenciamos atualmente, que estimula as diferenças e faz das diversas categorias de análise histórica – como gênero, classe e etnia – indissociáveis.

Trazendo a questão da sexualidade, Jean Franco introduz o último capítulo, que tem por objetivo tratar das recentes tendências na teoria feminista. Abordando as noções essencialista e construcionista a respeito do gênero, a autora busca em teóricas como Dona Haraway e Judith Butler como se deu o processo de rompimento com a noção de heterossexualidade obrigatória, utilizando como pano de fundo para essa discussão um pastiche de obra de arte, filmes e livros que trazem à tona as diversas performances de gênero. Não necessariamente associados a liberação sexual e concessão de direitos, travestis, homossexuais, transexuais, prostitutas fazem parte cada vez mais do cenário cultural latino-americano. Nesse sentido, segundo Jean Franco, o que a recente tendência teórica do feminismo fez foi trazer para o campo acadêmico sujeitos por muito tempo marginalizados socialmente.

Direcionando seu olhar para a América Latina, Jean Franco, em Marcar diferenças, cruzar fronteiras, mantém um constante diálogo com os regimes ditatoriais que passaram a vigorar a partir da década de 1960. Tendo em vista que as publicações originais desses artigos ocorreram entre os anos de 1985 e 1992, podemos crer que seu principal objetivo no agrupamento desses textos foi realizar uma pontual crítica a esse regime. Entretanto, é para o México que a autora despende grande parte de sua atenção, destacando a produção cultural mexicana e realizando constantes comparações entre o México revolucionário e a atual situação do país.

Caracterizada dentro dos estudos de gênero, Jean Franco utiliza um grande número de teóricos/as que percorrem as mais variadas perspectivas como Homi Bhabba, Judith Butler, Pierre Bourdieu, Gilles Deleuze, Terry Eagleton, entre inúmeros outros autores e autoras. Com constantes críticas ao capitalismo, sua análise está sempre associada ao rompimento de hierarquias de gênero, esfacelamento da divisão étnica, rompimento das camadas de classe, inteirando o público leitor de suas concepções políticas.

Os textos de Marcar diferenças, cruzar fronteiras estão longe de serem imparciais. Em cada trecho lido encontramos a autora presente, estimulando as mulheres a saírem da esfera privada e a adquirirem autoridade intelectual. Criticando, debatendo, instigando, Jean Franco se faz militante em seus escritos, agrupando causas dos movimentos sociais em uma escrita acadêmica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br