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Liberdade, justiça e igualdade para as mulheres: uma entrevista com Toril Moi

PONTO DE VISTA

Liberdade, justiça e igualdade para as mulheres: uma entrevista com Toril Moi

Susana Bornéo FunckI; Rita Terezinha SchmidtII

IUniversidade Católica de Pelotas

IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

Conhecidíssima entre nós desde a tradução para o português de seu livro Textual/Sexual Politics (1985), Toril Moi veio ao Brasil em agosto de 2005 como conferencista do XI Seminário Nacional / II Seminário Internacional Mulher e Literatura, organizado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sua palestra, intitulada "The Human Body is the Best Picture of the Human Soul: Women, Freedom and Marriage in Ibsen's Theater" ("O corpo humano é o melhor retrato da alma humana: mulheres, liberdade e casamento no teatro de Ibsen"), versou sobre o corpo feminino e sua representação ficcional, tendo como pano de fundo a noção de Simone de Beauvoir sobre o que é uma mulher. Esse tema, aliás, tem estado presente nas várias obras de Toril Moi, especialmente em What Is a Woman? And Other Essays (1999).

Toril Moi ocupa atualmente a cátedra James B. Duke no Departamento de Literatura e Estudos Românicos da Duke University, nos Estados Unidos, onde trabalha desde 1989. Nascida e criada na Noruega, formou-se em Literatura Comparada na Universidade de Bergen em 1985. Ainda em Bergen, foi diretora do Centro de Pesquisas Feministas nas Humanidades até 1988, tendo sido professora visitante na University of Oxford, Inglaterra.

Dentre suas publicações destacam-se o já mencionado Sexual/Textual Politics: Feminist Literary Theory (1985), Feminist Theory and Simone de Beauvoir (1990), Simone de Beauvoir:

The Making of an Intellectual Woman (1993), What Is a Woman? And Other Essays (1999) e, mais recentemente, Henrik Ibsen and the Birth of Modernism: Art, Theater, Philosophy (2006). Além disso, foi organizadora de The Kristeva Reader (1986), French Feminist Thought (1987) e Materialist Feminism, número especial do periódico The South Atlantic Quarterly (1994).

Professora visitante e conferencista em importantes universidades da Europa, da América do Norte e da Austrália, Toril Moi mostrou-se acessível e simpática ao nos receber para esta entrevista em seu hotel no Leblon.

[Após uma conversa informal sobre o paradigma pós-estruturalista, as entrevistadoras sugerem que a entrevista propriamente dita se inicie por esse tópico.]

Toril Moi: Podemos começar com esse ou com qualquer outro que vocês queiram. É incrível como eu tenho problemas com essa teoria.

REF: Achamos que seria um bom ponto de partida justamente por causa de suas restrições, e também porque o livro de Judith Butler Gender Trouble acabou de ser traduzido para o português.

TM: Isso é ótimo.

REF: Na verdade, está bem na moda.

TM: E deve estar mesmo. Esteve muito na moda nos Estados Unidos também, quando surgiu em 1990, há 15 anos. É o que acontece com todos esses livros que são traduzidos depois de muito tempo. Quer dizer, isso é normal.

REF: Você faz uma crítica aos pós-estruturalistas em um de seus artigos, especialmente a Butler.

TM: Realmente, uso Butler como exemplo porque sua versão da teoria queer é uma das melhores e, quando se vai argumentar, deve-se usar a melhor teoria possível. É muito mais fácil criticar algo que não está bem feito. Então, deve-se sempre buscar a melhor teoria. Por isso, escolhi Butler. Só acho (bem, onde devo começar?) que esse é o tipo de teoria que se auto-alimenta, que se volta para si própria. Quando ela escreve em Bodies that Matter coisas do tipo "o corpo é a materialização dos discursos de poder",1 1 No original em inglês: "The body is the materialization of the discourses of power" (N.T.). ou algo assim, e ela leva isso a sério, você começa a imaginar qual imagem do corpo e da linguagem orienta essa teoria, por que é preciso dizer isso. O que se consegue ao pensar o corpo dessa forma? E está bem claro que o que conseguimos é inscrever o corpo nas relações de poder. Quer dizer, essa é a questão. E não tenho nada contra isso, mas não acho que se precise essencialmente da idéia de que a coisa material deveria ser a manifestação de discursos. É um idealismo totalmente fora de moda. Não é teoricamente sustentável. E, se você diz isso, você se compromete. Em Bodies that Matter, ela dá um exemplo do que quer dizer com materialização. Seu exemplo é: "Deus disse: faça-se a vida, e a vida se fez".2 2 No original: "God said: let there be life, and there was life" (N.T.). Mas esse é um exemplo pessoal do que ela entende por discurso performático do poder. Não me parece uma teoria totalmente convincente. Gostaria de poder ver um corpo ser materializado a partir do discurso. Fundamentalmente, então, discordo de Butler quanto à imagem (e a palavra "imagem" é importante para mim), a imagem que tenho do que algumas coisas podem ser, o que as relações entre, digamos, poder e discurso podem ser. E Butler tem essa imagem de que, a menos que diga que o corpo como tal é a materialização de discursos, ela não pode empregar essa relação de empoderamento. Meu argumento é apenas este: sinto-me confortável com a idéia de inscrever o corpo em relações de poder. Quer dizer, é óbvio que o corpo está de muitas maneiras capturado pelo poder. Mas não se precisa de tal visão, dessa teoria completamente idealista de discursos parindo a materialidade. Essa não é a minha teoria.

REF: Você sugere a visão de Simone de Beauvoir, do corpo situado, em contraste, em oposição à visão de Butler?

TM: É verdade. É uma alternativa. Acho que é uma imagem melhor, mais convincente. Mas o que gosto em Simone de Beauvoir – e deve-se mencionar também Merleau-Ponty, pois Merleau-Ponty e Beauvoir são muito, muito próximos – é a idéia de se tomar como ponto de partida o corpo vivo concreto, isto é, partir da crença de que há corpos no mundo. Esse é um ponto inicial fenomenológico. E então a questão se torna o que o sexo faz a nós como seres humanos localizados em um corpo. A resposta é que o corpo está sempre em uma situação e que serve a uma situação também. É uma imagem muito interessante: o que o mundo fez com isso e o que você faz com isso é uma situação muito interessante de imaginar. Mas o que isso significa? Bem, para Merleau-Ponty e para Beauvoir, o corpo é a sedimentação histórica de experiências no mundo. A maneira como entendo isso é que o mundo – significando o poder do povo, o que quer que seja – o mundo está seguramente tentando fazer algo conosco, de forma que respondemos a isso, estamos sempre tentando fazer algo com aquilo que o mundo está tentando fazer conosco. Uma reposta é aceitar passivamente, outra é resistir e lutar. E há muitas outras respostas no meio, de forma que nesse tipo de 'toma-lá-dá-cá' respondemos ao mundo de várias maneiras – manipulamos, mobilizamos, ou simplesmente inscrevemos significados em nossos corpos. É esse 'toma-lá-dá-cá' que inscreve as pessoas dentro da sedimentação histórica da humanidade, o que de fato é compensador. Ao longo do tempo, você se torna o registro histórico de seus projetos e do que o mundo faz com eles. E o fato de fazer isso como um ser humano localizado em um corpo significa que nós mulheres caminhamos pelo mundo com corpos que o mundo assume como femininos. Isso produz um número de experiências com as quais não teríamos que lidar caso nossos corpos fossem tomados como masculinos. E não se trata de essencialismo, no sentido de que esta ou aquela experiência é intrínseca ao corpo feminino. Só estou dizendo que o mundo vai tratar a mulher de maneiras completamente diversas, maneiras pelas quais não seria tratada se o mundo entendesse seu corpo como masculino.

REF: Ou robótico, ou qualquer outra coisa.

TM: Sim, mas veja que você não teria nem que ser uma mulher. Não estou dizendo que você tem que ser uma mulher; estou dizendo que, se seu corpo for tomado como feminino, sejam lá quais forem seus cromossomos, é assim que o mundo concebe você.

REF: Mas, mesmo se ambas formos consideradas mulheres, nossos corpos podem estar em situações diferentes, isto é, nós somos situadas diferentemente como mulheres.

TM: Concordo totalmente. O que me interessa é que devemos perceber as diferentes conseqüências de viver em e com um corpo feminino. De fato, acho que Judith Butler e outros teóricos pós-estruturalistas se tornaram muito... como posso dizer... muito limitados. Porque rejeitam todo o discurso como sendo discurso de poder no sentido de que esse inscreve noções conservadoras e antigas de masculinidade e feminilidade. Esses são os discursos que se manifestam nos corpos, dessa forma materializante. Tudo o que se pode fazer, de acordo com eles, é subverter tais noções ou miná-las, mas não se pode realmente fazer mais nada. Só se pode estar a favor ou contra em relação a isso. Acho, também, que a noção de poder com a qual operam é excessivamente ampla. Não haveria tipos específicos de poder em posições diferentes? Não há até mesmo coisas que fazemos que não envolvem poder? O poder é sempre a primeira questão? Quer dizer, sem dúvida há poder em todos os tipos de contato. Mas acho que eles precisam ser muito mais específicos sobre aquilo que estão dizendo. Gosto de dar o exemplo – digamos, quanto ao significado de ter um corpo de mulher em relação à reprodução – de alguém como uma freira, ou alguém que queira filhos e não possa tê-los, ou alguém que tenha seis filhos e não queira mais nenhum. Quer dizer, mesmo se considerarmos as experiências dessas três mulheres em relação ao significado da reprodução, não vamos poder formular uma teoria geral da feminilidade.

REF: Queremos acrescentar uma pequena questão em relação ao corpo e sua palestra desta manhã [palestra intitulada "The Human Body is the Best Picture of the Human Soul: Women, Freedom and Marriage in Ibsen's Theater" ("O corpo humano é o melhor retrato da alma humana: mulheres, liberdade e casamento no teatro de Ibsen")]. Apesar de Nora [personagem de Casa de bonecas, de Ibsen], por exemplo, estar inscrita na feminilidade naquele contexto, poderíamos entender seu corpo não apenas como lugar de sofrimento, mas também como um lugar de empoderamento?

TM: Isso é interessante. Vejo o corpo dela como uma expressão também de uma sexualidade que é muito teatral. Como ela vem representando aquilo que seu marido acha que uma mulher deveria ser, ela certamente representa a feminilidade. Decidindo fazê-lo por amor, ela então exagera e, através do exagero, coloca-se numa posição em que tem, por um lado, o sofrimento, mas por outro lado acho que isso também é empoderamento.

REF: O que quer que faça com seu corpo, ela pressupõe que ele esteja dizendo algo.

TM: Concordo, quer dizer, o que ela faz com seu corpo fica claro no final de peça, na conversa. Então pode ser empoderador, no sentido de que aquelas são expressões de seus sentimentos para aqueles que sabem como vê-la, e nesse sentido o empoderamento está em encontrar a voz, ou, nesse caso, não a voz, mas a expressão corporal.

Acho que nosso problema, mesmo aqui, é a tendência a pensar – teoricamente, isto é – que tudo o que fazemos nos mostra como oprimidas e desempoderadas, ou que temos que fazer coisas que nos empoderam. Mas quero dizer: Olhem! Há muitas atividades diárias que fazemos que não se podem caracterizar como claramente opressivas ou empoderadoras. Digamos que você decida ir às compras. Se você é uma mulher e tem uma família, claramente há um poder sobre você; é por isso que você vai às compras. Esse é um elemento a considerar. Mas você está particularmente sem poder diante dessa compra? Não! Porque você também está comprando coisas que quer e mesmo que você não fosse casada você teria que ir e comprar algo. De modo que você tem que considerar a situação em que a cena das compras está inserida. É nisso que estou interessada, a situação, o específico, o comum e o dia-a-dia.

Mas acho que o tipo de teoria geral pós-estruturalista que temos produz, na verdade, melodrama, pois, se você for pega levando o pós-estruturalismo a extremos, você tem que dizer: "O próprio fato de ir comprar pão e café é uma mostra incrível de minha submissão aos discursos de poder do capitalismo global e às relações de poder nele contidas". O que poderia até ser verdade. Acho que pode haver um grão de verdade em uma parte disso, mas certamente há certo exagero. E o oposto é igualmente falso. Você teria que dizer: "Não, indo às compras eu exerço minha capacidade total de agência de pensamento", o que estaria igualmente errado. O que ocorre em grande parte da teoria pós-estruturalista é que você tem a impressão de que essas são as únicas opções. Ou você tem o sujeito construtivo totalmente construído pelos discursos de poder, ou você tem um tipo de sujeito tradicional, humanista liberal, que livremente se afirma fora de qualquer relação de poder.

Acho que isso é muito simplista. Não posso acreditar seriamente que há apenas duas opções filosóficas disponíveis.

REF: E eles tentam acabar com as dicotomias da cultura...

TM: Este é meu argumento no ensaio das "mulheres" [referência ao ensaio que dá título a seu livro What Is a Woman? And Other Essays (O que é uma mulher? E outros ensaios)]. Veja só, são eles que são positivamente binários. A forma tradicional de estabelecer discussões na teoria pós-estruturalista é totalmente binária: você primeiro estabelece uma oposição binária, e depois tenta ir além dela. Mas mesmo o limite entre masculino e feminino é arbitrário. Olhe para a palavra "mulher", que eu prefiro. Olhe para a palavra "mulher". A palavra "homem" seria a única palavra em relação à qual a palavra "mulher" se torna significante? Certamente que não! Menina, sobrinha, tia, avó, mãe – há toneladas de palavras em relação às quais "mulher" adquire novos significados que não têm nada a ver com "homem". Ainda assim persistimos em pensar em "homem versus mulher" como a dicotomia final que deve ser desconstruída. Não estou, claro, dizendo que algumas vezes não temos "mulher" em oposição a "homem", mas claramente isso não ocorre o tempo todo. Primeiramente, formulam a questão como uma dicotomia; depois nos dizem que têm a chave para entender como ela foi construída. Acho esse um desvio teórico inútil, que serve apenas para nos levar ao ponto de partida. E acarreta ainda ter que enfrentar uma quantidade incrível de trabalho, coisas como binários e limites e todo esse tipo de coisa.

REF: A desconstrução do pós-estruturalismo, então, constrói para você uma teoria.

TM: Estou interessada no concreto, nessa experiência com a qual todos temos que lidar: poder, gênero, reconhecimento... Como lidamos com isso em nosso dia-a-dia? Quer dizer, me parece que no momento em que os pós-estruturalistas tomam um exemplo real, ou eles o usam erradamente ou pegam o exemplo e o retrabalham. Você começa a desconfiar que não estão lhe contando tudo o que você precisa saber sobre o exemplo porque já o encaixaram na teoria.

REF: Estávamos tentando lembrar se foi Irigaray ou Wittig que disse que lésbicas não são mulheres

TM: Ah, foi Wittig. Tive uma discussão sobre isso com alunos num curso do verão nos Estados Unidos. Tive uma aluna que veio falar comigo justamente sobre Wittig e sua argumentação de que lésbicas não são mulheres. Não concordo. Acho que se poderia escrever um ensaio muito bom sobre como Wittig usa a palavra "mulher", porque acho que ela a usa de um modo que se aproxima da maneira usada por Simone de Beauvoir, e então, num certo momento, decide que a palavra "mulher" tem que significar heterossexual. A questão é que, se eu olho para a audiência hoje e digo que há uma centena de mulheres ali, não estou presumindo que sejam todas heterossexuais. Essa definição de mulher não convence mais. Isso ocorre por causa do nosso modo binário de pensar. Mas acho que não é muito convincente.

REF: Você prefere a palavra "mulher" à palavra "gênero", como em Women's Studies em vez de Gender Studies?

TM: Certamente. Escrevi um ensaio inteiro sobre o que uma mulher deveria ser [referência ao ensaio "What Is a Woman?" ("O que é uma mulher?")3 3 MOI, 1999. ]. Mas eu, na verdade, estaria a favor de todas essas palavras, porque acho que elas têm funções diferentes. O que sou contra é que o feminismo determine o que não podemos dizer. Isto é, você nunca chegará a lugar algum com o projeto feminista – que, pelo que sei, ainda está por conseguir liberdade, igualdade e justiça para as mulheres – se você não puder dizer "mulher". Foi por isso que fiz todo um trabalho teórico, para tentar explicar por que a palavra "mulher" não carrega de fato essa falta implícita, quer dizer, excesso, e que isso é que é divertido...

REF: Queremos perguntar sobre o essencialismo, porque podemos ver que houve muito debate nos Estados Unidos sobre essencialismo até o ponto de as feministas não usarem mais a palavra "mulher", devido à suposição de que o essencialismo traria a experiência empírica de volta. Não haveria nesse debate uma ênfase demasiada, com certo reducionismo de sentido, da categoria política, em detrimento do trabalho filosófico em torno do conceito?

TM: Acho que é verdade, que há muito desse tipo de teoria, quer dizer, há uma suposição de que a teoria é automaticamente política. Por exemplo, escrevo no ensaio "What Is a Woman..." – seria bom se pudesse ser disponibilizado em português – que a idéia de que algo tem uma essência é, em muitos casos, perfeitamente irrelevante para o projeto feminista. Pois, se eu digo que meu problema é água, se eu digo que a água tem uma essência e que a essência da água é H2O, a fórmula, então isso não é um problema para o feminismo. Pelo menos não posso imaginar como possa ser. Mas, freqüentemente, o feminismo em geral está apenas interessado em um tipo de essencialismo, aquele que argumenta que mulheres e homens têm um certo tipo de essência interior pela qual são definidos.

E acho que essa essência, além do mais, é a que geralmente corresponde às metas conservadoras para algum movimento político. Sem dúvida, devemos nos opor a isso. Mas não me importo com a essência da água, da água e de outras coisas. É bem possível que haja essências apenas para os filósofos, e não me parece necessário abordar a construção discursiva da água. Muito do debate essencialista realmente tomou um problema político real e o transformou em um problema filosófico geral, o que se torna uma questão invencível. Quer dizer, por que se trabalharia com isso? Acho que o essencialismo é um problema para os Estudos Feministas e de Gênero quando tem a ver com seres humanos, gênero e sexualidade. É aí que temos que nos opor a ele.

REF: E como você se sente em relação à crítica do conceito de "experiência", que embasou o início da Segunda Onda do Feminismo?

TM: Acho que o pós-estruturalismo está muito certo ao questionar essa antiga noção simplista de experiência. Se me lembro da "autoridade da experiência" e coisas do gênero, ela simplesmente funcionaria assim: qualquer coisa que uma mulher dissesse sobre sua experiência estaria correto. E dessa maneira parecia verdade. Se você diz "eu tive esta ou aquela experiência", como posso eu negá-la? A pergunta é: "O que podemos fazer com isso?" O problema com esse tipo de noção de experiência é seu positivismo, a noção de que a experiência carrega seu próprio significado.

Em segundo lugar, também havia uma tendência a generalizar a experiência da mulher, o que fez surgir a crítica afro-americana sobre a experiência das mulheres como sendo unitária, de acordo com um ponto de vista de brancas da classe alta ou da classe média. Claramente não podemos voltar a essa noção.

Por outro lado, quero dizer que Simone de Beauvoir e Merleau-Ponty têm uma noção muito interessante de experiência, como aquilo que constrói a subjetividade e que, como explica Merleau-Ponty, faz de você quem você é. Merleau-Ponty diz que a natureza dos seres humanos é ser histórica, e que essa historicidade vem através da experiência. E eu concordo com essa noção. Então, precisamos evitar a visão de que, se você critica uma má noção de experiência, o que se segue é que você não consegue aceitar qualquer noção de experiência. Muitas feministas contemporâneas estão tentando viver como se a experiência não existisse. Eu discordo dessa idéia.

REF: O ensaio de Joan Scott sobre "afinal, experiência de quem?" levanta algumas questões interessantes.

TM: É uma crítica muito boa à idéia de que não há tal coisa como as experiências das mulheres ou as experiências dos homens, porque está evidentemente contra a tendência de dizer: foi minha experiência. Mas, por outro lado, não deve levar à crença de que a experiência nunca é relevante para ninguém. Por exemplo, sou uma crítica literária. Parece-me que a literatura trata da experiência humana e que este é um dos motivos por que a lemos. Mas, mesmo que você leia sobre a experiência de alguém, é para se reconhecer nela.

Acho, simplesmente, que a questão teórica fundamental é que tudo depende do que você quer saber. Isto é, discutir estas coisas como estamos fazendo agora no abstrato não é muito útil, pois, se você perguntar a alguém se é a favor ou contra a experiência, a resposta é que depende daquilo que se quer descobrir. Há um excelente ensaio de Cora Diamond4 4 DIAMOND, 1991. que traz um exemplo perfeito. É um exemplo sobre tornados. E ela resolve bem essa questão. Será que preciso passar pela experiência de um tornado se sou metereologista e quero saber como os tornados são formados e assim por diante? Para isso, não me seria nada útil entrar no meio de um tornado para viver essa experiência. O que necessito são instrumentos para medi-lo etc. Entretanto, poder-se-ia ter um contra-argumento, digamos, se a questão fosse o tratamento médico do parto. Se esse é meu interesse, eu deveria ir e de fato conversar com as mulheres que deram à luz, ou ir a hospitais, ou falar com administradores de hospitais, se quero melhorar as condições do parto. O metereologista que quer saber sobre um tornado poderia realizar essa tarefa muito bem sem entrevistar pessoas que estiveram em tornados. Mas, é claro, se você é uma romancista e o que quer passar é a experiência de um tornado no meio-oeste e como isso, de repente, pode transformar uma vida, eu diria ou você entrevista e conversa com as pessoas sobre tornados, pessoas que vivenciaram isso, ou você usa o máximo de sua imaginação. Como a romancista geralmente constrói sobre a experiência de outras pessoas, então a experiência é relevante, mas não totalmente necessária. Assim, não há uma só resposta para a questão da experiência para o projeto feminista.

REF: Falando de feminismo como um projeto político, gostaríamos de saber o que você acha da violência, em especial da violência sexual contra as mulheres e crianças em todo o mundo. Você diria que o feminismo falha ao não tratar dessa questão da violência mais eficientemente, mais incisivamente? É possível considerar que a violência crescente contra as mulheres e crianças é uma reação do mundo masculino contra o surgimento de uma nova mulher, uma nova mulher, digamos, mais autoconsciente sobre sua sexualidade, sobre suas necessidades? O feminismo não deixou uma lacuna ao não trabalhar e/ou questionar teoricamente a questão da sexualidade masculina para além do modelo tradicional freudiano de passivo/ativo que ainda está muito arraigado na ideologia dominante?

TM: Primeiro, é uma situação horrorosa. Há uma quantidade imensa de tráfico de mulheres agora na Europa, principalmente de mulheres do antigo Bloco Oriental. É horrível! Então, antes de qualquer coisa, quando temos uma questão de violência, acho que, realmente, não tem que ser um problema somente feminista; deve ser uma questão que deveria chocar e horrorizar igualmente a homens e mulheres, e igualmente interessá-los em lutar contra isso. Como se vê, essa é a visão utópica. A violência não deve ser algo para o feminismo abordar sozinho. A responsabilidade de se fazer algo deveria ser também colocada sobre os homens e sobre as não-feministas. Que tipo de gente é essa que diz: "Bem, vocês feministas não fizeram um trabalho suficientemente bom com essa coisa da violência, então vou deixar como está, pois eu não vou fazer nada"? Antes de tudo, quero dizer que isso é terrível.

Em segundo lugar, claro, este é um problema feminista. Pois transformar a violência contra a mulher em uma questão feminista é colocar a responsabilidade sobre as mulheres que não estão violentando ninguém, pois toda essa violência está sendo perpetrada em sua maioria por homens, incluindo até estupros de bebês e coisas assim; é horrendo. Então quero propor uma responsabilidade para todos e, assim, penso que uma causa feminista poderia ser a de tornar essa questão uma responsabilidade de todos, colocando-a numa agenda política geral. Os políticos não deveriam poder se eleger a menos que dissessem que iriam fazer algo sobre o problema. Esta é a tarefa feminista: trazer a questão para a agenda geral. No que se refere à prática, até onde sei, as mulheres que estão trabalhando ativamente contra o tráfico, proporcionando abrigo ou tentando pôr um fim a essa situação, são feministas que não conseguem recursos e ajuda suficientes da sociedade em geral. Como membros da sociedade, queremos ser membros de uma sociedade que acha que está certo traficar crianças de dez anos? Esta é uma coisa tão absurda que, no meu entender, realmente tem potencial político para ser colocada em uma agenda geral, pois há poucos políticos que se atreveriam a sair e dizer que são a favor da violência. Acho que precisamos de um trabalho mais concreto. Quer dizer, se você perguntar o que um intelectual pode fazer, creio que as feministas sempre abraçaram esse trabalho, mas há muito poucas e essas não têm tido apoio suficiente. Penso, antes de tudo, que intelectuais podem fazer pesquisa sobre informação. Gostaria, no momento, de ver mais pesquisa sobre os lucros dessa atividade. Para onde vai o dinheiro de todo esse tráfico? Não é uma boa tarefa para os intelectuais? Onde vai parar esse dinheiro, quem lucra com isso? Não seria uma excelente exposição do problema se se pudesse provocar um escândalo mostrando para onde esse dinheiro vai? Talvez já tenha sido feito. Mas, se foi feito, precisamos de mais publicidade. Depois, acho que também há necessidade de se fazer mais pesquisa sobre a violência sexualizada em geral. E não creio que seria através da compreensão de como ela surge. Acho que o esquema teórico do ativo/passivo – ou seja lá o que for – não serve, principalmente porque minha visão geral é: você não vai chegar a lugar algum com esse tipo de pesquisa se você tiver uma noção preconcebida de que, digamos, os homens são uns brutos, são todos uns animais; você não precisa nem pesquisar nada porque, se parte do princípio de que são todos animais, então o que você vai fazer? Eliminá-los? Não sei. Assim, se há algo que podemos fazer é tentar descobrir mais sobre as causas e mais sobre como parar isso. Mas, novamente, nós somos críticas literárias. O que pode fazer uma crítica literária? O tipo de trabalho sobre o qual eu estava falando me parece mais adequado para pessoas estudando psiquiatria e medicina, sociólogos e pessoas que lidam com tendências sociais. Assim, a questão que permanece é: o que pode uma crítica literária fazer? Bem, podemos escrever sobre filmes e romances e coisas que acontecem. Um filme que me impressionou incrivelmente sobre esse assunto foi um filme sueco chamado Lilja 4ever, dirigido por Lukas Moodysson. É um pequeno filme independente. Mas é um filme fantástico e horripilantemente bom sobre uma garota de 15 anos que é importada da Ucrânia para ser trabalhadora do sexo, e acaba por se suicidar. É muito, muito impressionante e horrível. Você poderia mostrá-lo às pessoas, creio. Se você é uma escritora ou diretora de cinema, você pode fazer disso uma parte de si mesma, parte de seu trabalho. Se você é uma crítica literária, realmente acho que precisamos ter uma visão muito mais séria do que a literatura pode fazer. Por um longo período, os críticos literários pensavam que de alguma maneira poderiam justificar seu trabalho dizendo que eram políticos. Mas, se seu principal objetivo na vida é ser político, por que você se tornou um crítico literário?

REF: Butler?...

TM: Butler não é crítica literária, ela é formada em filosofia. Mas essa mesma questão se aplica de certa forma: de quantos filósofos você precisa e quantos lidam com a questão de violência contra as mulheres? Creio que é necessária uma reflexão intelectual sobre a violência e penso que tanto críticos literários quanto filósofos deveriam trabalhar nisso, mas não vejo como podemos contribuir de forma significativa. Não consigo ver isso claramente. Talvez uma nova teoria sobre violência poderia nos levar a novos caminhos de investigação

REF: O que leva ao problema da academia versus o assim chamado 'mundo real' nosso dilema.

TM: Sou na verdade muito pró-intelectual, primeiro porque sou uma, e creio que a academia pode fazer uma porção de coisas; de fato, escrevi um artigo sobre isso. Chama-se "A política da teoria, ou a responsabilidade do intelectual". Está publicado num livro chamado The Legacy of Simone de Beauvoir, editado por uma mulher chamada Emily Groholz.5 5 MOI, 2004. Acho que a sociedade precisa de intelectuais e me parece que todos os movimentos por mudanças políticas começaram com os intelectuais ou, se não começaram com eles, ao menos os tiveram como importantes instigadores. Estou pensando em gente como Marx ou Simone de Beauvoir, e tantos outros. O mundo precisa de intelectuais e os intelectuais deveriam ser livres para investigar o que quiserem, o que também é verdade em relação ao feminismo; se a intelectual feminista decidir que quer escrever sobre outra coisa, o feminismo não deveria ser um tipo de movimento censor e dizer: "Não se espera que você faça isso". Pois é preciso liberdade de pensamento, e nunca se sabe o que vai surgir a partir disso. Assim, nesse sentido, parte das intelectuais que pensam o melhor que podem sobre problemas que consideram interessantes deveria ter essa liberdade. Aí você pode chegar e dizer: "Você pode justificar seu interesse?", e então ela deveria saber responder.

REF: Então, como você justifica seu trabalho sobre Ibsen?

TM: Não vou fazer isso, mas essa questão não pode ser respondida no abstrato, depende do porquê de sua pergunta. Digamos que eu tenha uma pessoa muito tradicionalista perguntando como eu justifico ter escrito um livro sobre Ibsen. E eu digo: "Bem, o que você acha que eu deveria estar fazendo ao invés disso?" E ele diria: "Você deveria estar estudando isto ou aquilo". Aí, então, eu poderia dar uma justificativa. Mas ele vem e diz: "Você deveria estar trabalhando a questão da raça ou outra coisa, ao invés de escrever isso", e então eu teria que justificar de outra forma. Assim, a idéia é que parte dessa justificativa, mais especificamente, é que algumas vezes você é melhor em uma coisa que em outra. A pergunta que deve ser feita é: "Você é boa naquilo que faz?" O mundo precisa de um intelectual medíocre ou de um trabalhador medíocre na cozinha? Não sei... Por exemplo, há uma tendência a pensar que, se você sente muito em relação à pobreza do mundo, por que você não se torna médica, ou enfermeira, ou algo assim?

REF: Uma má enfermeira poderia ser pior que nenhuma enfermeira.

TM: Bem, antes de mais nada, você tem talento para isso, e de que serve ocupar lugar em um curso de enfermagem se você fica um ano e desiste? Depois, acho que a pergunta "O que podem os intelectuais fazer?" tem que ser mudada para "O que é que podemos fazer melhor do que outras pessoas?" Por exemplo, há uma pessoa admirável chamada Paul Farmer, um médico americano, que está basicamente sediado em Harvard, mas cujo trabalho tem sido viajar pelo mundo para estabelecer clínicas médicas que trabalhem diretamente com os pobres em muitos países. Ele tem clínica na África, no Haiti etc, e é fantástico, é incrivelmente importante para nós. Mas não sou médica. Se ele é tomado como modelo para o que eu deveria estar fazendo, ficarei me sentindo horrível, infeliz. Não creio que intelectuais devem ter a consciência pesada. Há espaço para escrever e pensar neste mundo. E aqui há um aspecto que eu quero enfatizar: nós vivemos – ao menos eu vivo – na América, em um mundo cada vez mais caracterizado pelo capitalismo globalizado, com produtos de consumo instantâneos, comunicação excessivamente rápida e nenhum espaço para o pensamento, a discussão e a argumentação séria. Estou começando a me preocupar com o fato de vivermos em uma cultura que está deliberada e sistematicamente treinando as pessoas a não fazer perguntas, a não pensar.

REF: Começamos a nos dar conta de que informação não é conhecimento.

TM: Claro que não é e, nesse sentido, acho que temos uma função. Por exemplo, na crítica literária é incrivelmente importante ensinar as pessoas a lerem muito cuidadosamente e pensar sobre o que significa para elas poder articular pontos de vista divergentes. Se você olhar a universidade, a maior parte das disciplinas, não todas, é dominada pelos modelos matemáticos e isto e aquilo. Assim, acho que estamos chegando a uma situação em que as Ciências Sociais e as Humanidades podem ser o lugar onde se pode cultivar algum questionamento sério de discursos. Esta pode ser uma visão otimista, certo, mas...

REF: Mas a tarefa verdadeira das humanidades é não dar quaisquer respostas, mas ler bem e questionar o que se lê.

TM: ... mas também quero dizer mais uma coisa. Sempre se escuta falar que a universidade deveria treinar os estudantes no pensamento crítico. O pensamento crítico existe na América como um grande mantra; todo o mundo é a favor do pensamento crítico. Mas me parece que essa afirmação se esquece de uma coisa. É evidente que, uma vez que eu disse que todo o mundo está a favor do pensamento crítico, segue-se que eu também estou a favor do pensamento crítico. Claro que é uma boa idéia. Quem é a favor de pensamento acrítico? Bem, os anunciantes e as populações globais, sem dúvida, mas ninguém na universidade. Mas o que também temos que ser capazes de fazer é cultivar algo como entusiasmo ou pensamento afirmativo. O tipo de posição crítica absoluta é a epítome do pós-modernismo, pós-modernismo como aquela coisa cínica, irônica, sardônica. Parece-me que chegamos ao ponto em que, para algumas pessoas, é muito fácil criticar. Mas o que é que vamos afirmar? Estamos afirmando, como feministas, que nossa questão é a questão central. Mas, pelo fato de estarmos afirmando algo, não podemos ter como objetivo apenas a tarefa de encontrar erros na ideologia sexista. Para nossa vida política, temos que ter algo como uma visão utópica, dizendo: "É isso que estou a favor de", o que, no meu caso, sempre pode ser resumido em liberdade, igualdade e justiça para as mulheres. Essa é a primeira coisa.

REF: Algumas vezes temos a impressão de que nossos alunos estão sendo ensinados a apenas a descrever coisas ao invés de interpretar e afirmar.

TM: Bem, eles precisam fazer as duas coisas. Claro, se você afirma algo, é bastante arriscado. No momento em que você afirma algo, é fácil ser criticado, enquanto que, se você tenta ficar completamente na negativa, é fácil se sentir perfeito, o que lhe coloca na posição intelectual definitiva, certo?

REF: E isso acontece com muita freqüência na academia.

TM: Se você lhes pergunta: "E então? Na verdade, o que você está defendendo, quais relações sociais e humanas você gostaria de ver?", é um pavor.

REF: Poderíamos intitular nossa entrevista "Liberdade, igualdade e justiça para mulheres"?

TM: Se puderem fazer isso, sim. Uma coisa importante para o intelectual é liberdade de expressão ou liberdade expressiva; é uma coisa romântica, mas é algo que necessitamos. Não estamos livres para dizer o que queremos se estivermos completamente dominados por uma estrutura teórica passional... Sim, "liberdade, justiça e igualdade para mulheres" ou poderiam chamá-la "acesso ao universal", se quiserem.

REF: Muitíssimo obrigadas.

Rio de Janeiro, agosto de 2005.

Referências bibliográficas

DIAMOND, Cora. "Knowing Tornadoes and Other Things." New Literary History, n. 22, 1991. p. 1001-1015.

MOI, Toril. "What's a Woman? Sex, Gender and the Body in Feminist Theory." In: ______. What's a Woman? And Other essays. Oxford: OUP, 1999. p. 3-120.

______. "Meaning What We Say: The 'Politics of Theory' and the Responsibility of Intellectuals." In: GROSHOLZ, Emily R. (ed.). The Philosophical Legacy of Simone de Beauvoir. Oxford: Clarendon Press, 2004. p. 139-160.

Tradução: Maria Isabel de Castro Lima

  • 1
    No original em inglês: "The body is the materialization of the discourses of power" (N.T.).
  • 2
    No original: "God said: let there be life, and there was life" (N.T.).
  • 3
    MOI, 1999.
  • 4
    DIAMOND, 1991.
  • 5
    MOI, 2004.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Maio 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2007
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