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Tirar o aborto da sombra. A condição fetal: uma sociologia do engendramento e do aborto

RESENHAS

Tirar o aborto da sombra. A condição fetal: uma sociologia do engendramento e do aborto

Naara Luna

Universidade Federal do Rio de Janeiro

La condition foetale: une sociologie de l'engendrement e de l'avortement.

BOLTANSKI, Luc.

Paris: Gallimard, 2004. 420 p.

O sociólogo Luc Boltanski estuda as dimensões normativas da atividade humana, os sensos de justiça e de moral nas sociedades complexas, tendo publicado várias obras a respeito (L'amour et la justice comme compétences; De la justification; La soufrance à distance; Le nouvel esprit du capitalisme). A pesquisa sobre engendramento e aborto permite confrontar um objeto no qual a contradição é dimensão integrante e coloca disputas sobre a questão do que é justo. Boltanski constrói um modelo teórico ao contrapor dados empíricos e outras disciplinas além da sociologia, como a antropologia, a filosofia, a psicanálise, com análise das implicações legais, em abordagem original que responde à reflexão feminista.

O livro La condition foetale: une sociologie de l'engendremente et de l'avortement consta de sete capítulos, além da introdução e da conclusão. O autor pretende tratar o objeto "aborto" com distanciamento, em abordagem no domínio da sociologia moral. Seu primeiro objetivo teórico é considerar o problema da separação entre o que se sabe de modo oficial e de modo oficioso, um conhecimento tácito a respeito de que se abrem os olhos e se fecham os olhos em momentos diferentes. O segundo objetivo teórico é fazer a convergência de três abordagens distintas: 1) esboçar uma gramática do engendramento revelada pelo aborto, especificando os constrangimentos sobre a confecção de novos seres humanos, nas dimensões contraditórias dos dispositivos sociais que enquadram a geração; 2) analisar a experiência das pessoas; 3) uma terceira abordagem de caráter histórico sobre os dois constrangimentos na dimensão antropológica. A pesquisa na França foi trabalho em equipe: observação em serviços de ginecologia recolhendo dados no atendimento de cem usuárias. Houve entrevistas em profundidade com mulheres que abortaram, e com profissionais dos serviços e médicos participantes do movimento de legalização. Levantaram-se a iconografia de imagens da vida fetal e a documentação em diversos domínios das ciências sociais.

O primeiro capítulo aborda as dimensões antropológicas do aborto, uma prática conhecida e difundida em todas as sociedades. O aborto coloca para a sociologia duas questões: a primeira acerca da legitimidade (geralmente é reprovado em princípio e tolerado na prática, pertencendo ao domínio do oficioso); a segunda relaciona sua generalidade e visibilidade (embora conhecido e freqüente, o aborto é raramente representado). Essas duas propriedades (a ambigüidade quanto à normatividade e a recusa da representação) estão relacionadas a tensões acerca do engendramento: para sua inserção em sociedade os seres humanos são objeto de um processo de singularização. O estabelecimento de relações de parentesco e a singularização dos indivíduos são acompanhados do processo de desacoplamento do engendramento e da sexualidade, esta orientada para o prazer ou para a reprodução. O modelo de engendramento tem dois aspectos: a possibilidade de se desfazer de seres humanos resultantes da relação sexual é condição da criação de novos seres humanos inscritos na carne que são retomados simbolicamente e adotados para se tornar singulares; a destruição dos fetos engendrados é ato problemático, transgressivo e difícil de legitimar.

O segundo capítulo esboça o modelo (gramática) de engendramento do qual emanam os dois constrangimentos principais. A abordagem é construtivista, perguntando os pontos mínimos exigidos para fazer seres humanos: 1) o pertencimento à espécie humana; 2) seres arranjados em classes equivalentes de outros seres pertencentes à espécie humana; 3) seres singularizáveis. Tomando por referência a antropologia social, Boltanski afirma que a diferença que faz os humanos está em considerá-los humanos pela carne (nascido de mulher a partir de relações sexuais) e humanos pela palavra (reconhecidos em sua humanidade por rituais que os inserem nos coletivos). A singularização ou confirmação pela palavra permite a existência de várias classes de indivíduos sem confundi-los. Exemplos de seres humanos pela carne e não pela palavra estão nas situações de infanticídio e de escravidão. O autor define dois constrangimentos do engendramento: 1) "é necessário que seja marcada a diferença entre seres engendrados pela carne e seres engendrados pela palavra" (p. 69); 2) "os seres pela carne não podem ser distinguidos dos seres pela palavra, de sorte que não se deve fazer os primeiros sofrerem um tratamento que não se quereria fazer os segundos sofrerem" (p. 80). O primeiro constrangimento se relaciona ao processo de confirmação da humanidade pela mãe do ser vindo na gravidez, o que desencadeia o processo de singularização. Seres não confirmados seriam substituíveis porque não singularizados como nas situações do infanticídio e do aborto. Esse raciocínio estabelece uma concepção dualista de humanidade que contraria as teorias da justiça representadas no segundo constrangimento: a não-discriminação entre os seres. Há contradição entre os dois constrangimentos. O autor problematiza a noção de humanidade comum, estabelecida pelo segundo constrangimento. Enquanto o primeiro constrangimento adota o ponto de vista da mãe, o segundo adota o ponto de vista do observador externo que coloca o problema da similitude dos seres e da desigualdade de seu tratamento.

O capítulo 3 trata dos arranjos: os dispositivos que permitem suavizar a tensão entre os dois constrangimentos ao organizar a relação entre sexualidade e engendramento. Nos arranjos, o poder da mãe é subordinado a uma autoridade superior que assegura a confirmação pela palavra do ser engendrado na carne. Aí se contrapõem a ordem do oficial e a ordem do oficioso, tendo hipocrisia e má-fé por propriedades estruturais. Há quatro arranjos: com o Deus Criador que pré-confirma o engendramento, estando a sexualidade a serviço deste; o arranjo doméstico com o parentesco que pré-confirma apenas crianças a nascer em legitimidade e dispõe homens e mulheres em posições diferentes e assimétricas; com o Estado-nação, que visa a gerar população de boa qualidade, fazendo da reprodução objeto de intervenção pública e eliminando entes inúteis para a sociedade. O Estado mostra autoridade sobre o engendramento, descriminando ou não o aborto segundo políticas populacionais.

O último arranjo é o tema do quarto capítulo: o projeto parental, esboçado durante mudanças sociais recentes no contexto social da legalização do aborto em diversos países. O autor formula esse arranjo com base nas justificativas para o aborto dadas pelas informantes. No projeto parental, também se dissociam engendramento e sexualidade, com ênfase na última, o que depende da eficácia dos métodos de contracepção. O aborto legalizado seria paliativo para as falhas da contracepção. O projeto parental constitui a instância supra-individual de pré-confirmação da criança a nascer: o engajamento dos genitores é condição para singularizá-la e inscrevê-la plenamente no mundo. A incidência do aborto dever-se-ia menos a falhas da contracepção do que a falhas no engendramento, quando este escapa ao quadro do projeto. Constatam-se três situações básicas: a gravidez acidental na ausência de projeto (sexo casual); o aborto como instrumento de um projeto diferido (projeto de gravidez no futuro); o projeto posto em xeque (divergência das intenções do casal diante da gravidez). Muitas vezes o companheiro recusa a gravidez, porém, quando a mulher decide pelo aborto, ela se justifica não apenas por dificuldades materiais ou por outros projetos, mas também pela insuficiência do genitor. Foram raras as respostas sobre o aborto como escolha autônoma e direito pessoal, ou de a mulher assumir a gravidez fora do projeto parental. O discurso libertário dos anos 60 decai no contexto da legalização e de surgimento do arranjo parental, em que o aborto permanece marginal e tem papel oficioso.

O capítulo 5 traz a construção de categorias fetais deduzidas do discurso dos informantes, de peritos e dos textos jurídicos. No arranjo parental, há engendramento com características opostas: valoriza-se o feto autêntico integrado ao projeto parental, acompanha-se seu desenvolvimento e este é reconhecido como pessoa e destinado ao futuro, enquanto o feto tumoral não integrado ao projeto volta ao nada. O feto essencialista (do arranjo com Deus) se pretende fora da história, designado de naturalista, pois oriundo da ordem natural fundada no Criador. A autoridade da Ciência legitima sua singularidade a partir da dotação genética e das técnicas de imagem. O feto bárbaro (arranjo com parentesco) brota como vida animal fora do projeto, sem singularidade, ou resulta da dominação patriarcal. O feto totalitário (arranjo com o Estado) relaciona-se às políticas de população e à eugenia, com técnicas de diagnóstico pré-natal que permitem evitar nascimentos mediante o aborto terapêutico. Os meios tecnológicos como a reprodução assistida e os dispositivos jurídicos criam novas categorias, ao estabelecer direitos do feto dentro do útero, ou cirurgias fetais. A categoria de tecnofeto surge do desenvolvimento tecnológico como embriões congelados da fertilização in vitro. O debate sobre o estatuto legal do embrião fora do corpo relaciona-se às fronteiras da humanidade. Desestabiliza-se a distinção entre o feto autêntico e o tumoral com o advento do tecnofeto, e da visualização dos fetos no útero por tecnologias de imagem e no uso de fotografias por grupos anti-aborto. Os conflitos envolvendo o feto e as tecnologias que o tornaram acessível aos sentidos permitiram sua entrada na sociedade. Desconstrucionistas contestam a crença no feto em si dotado de atributos permanentes e o mostram como ser histórico e social. Boltanski propõe a abordagem construcionista a partir de categorias seguindo os delineamentos da língua e as construções metafísicas da cultura. O feto tumoral corresponderia à categoria aristotélica de acidente e à contingência; o feto autêntico, à virtualidade e ao projeto; e o tecnofeto à potência da humanidade questionada.

O enfoque sobre a justificação do aborto encontra-se no capítulo 6. Com base na filosofia moral anglo-saxônica, examina-se: o estabelecimento de leis de despenalização, a tentativa de fazer do aborto legalizado um direito e a busca de sua legitimação moral. No momento de despenalização, a colocação do aborto no espaço público transgrediu a separação entre as dimensões oficiais e as oficiosas dos arranjos do engendramento que são questionados. Mudou o regime político do feminino. Apaga-se a cidade doméstica (cf. De la justification), a ordem política apoiada nas formas de subordinação associadas ao modelo do parentesco, com cadeias de dependências pessoais. A crítica ao mundo doméstico se estende aos poderes institucionais, e desemboca na apologia da autonomia e da realização de si. As leis de despenalização do aborto na França e nos Estados Unidos tratam ambiguamente o feto. Definir se o feto é ou não pessoa constitui o eixo da discussão sobre a possibilidade de opor os direitos da mulher e do feto. No debate filosófico, constrói-se o feto a partir de sua substância ou a partir de sua relação com a mãe. Na concepção do feto como substância, o autor limita-se a descrever posições que atribuem ou negam ao feto uma substância própria. Há posições de caráter gradualista debatendo a etapa a partir da qual o embrião se torna pessoa,1 1 Cf. Tânia SALEM, 1997. ignoradas no livro. Boltanski descreve abordagens utilitaristas que propõem a distinção entre pessoa e ser humano, ou que calculam o valor moral dos entes. Outros argumentos enfocam a relação do feto com a mãe na comparação do feto a um intruso, e no reconhecimento do feto como condição do direito à vida. As posições desconstrucionistas das ciências sociais questionam o "naturalismo", que trata como oriundas da natureza crenças e práticas pertinentes a arranjos sociais variáveis. Para Boltanski, o principal problema nesses esquemas de argumentação é a desqualificação da noção de humanidade comum. Os filósofos morais esqueceram a experiência de sofrimento das mulheres no aborto, o que remete à abordagem jurídica em termos do mal menor.

O capítulo 7 aborda a experiência do aborto. Enquanto as filosofias feministas enfatizam o sofrimento da mulher e contestam a concepção liberal que contrapõe os direitos da mãe e os do feto, Boltanski conclui que as categorias que organizam o discurso político ou moral sobre o aborto são pouco úteis para compreender o que as entrevistadas dizem. Elas não se separam como sujeito autônomo do outro ser distinto em seu corpo. O autor desenvolve um modelo de inspiração freudiana. As informantes manifestam tensão entre diferentes vontades: vontade da carne (ligada à instância do Si, à experiência da carne grávida, inscrita no presente), vontade de domínio (ligada à instância do Eu, ao projeto, dirigida ao futuro) e vontade de legitimação (ligada à instância da justificação, à explicação, retrospectiva). A gravidez ocorre entre plenitude e inquietude, e há ambivalência no conflito entre vontade de domínio e vontade da carne. No projeto, conferem-se ao feto estatutos diferentes: o autêntico que vai nascer ou o tumoral, sem futuro. A vontade de legitimação explica circunstâncias e dá sentido à ação em três registros observados: segundo a vontade (lógica do projeto), a necessidade diante de circunstâncias externas e correspondências entre fatos. A carne não faz diferença entre fetos, por isso é difícil realizar a vontade de domínio. Fazer filhos com seres inscritos na carne, ou se desfazer deles recusando o reconhecimento pela palavra, jamais esteve completamente sob o império do "Eu" e da vontade de domínio.

Que razões para fazer o aborto desaparecer? Fecham-se os olhos ao aborto por ser uma ação orientada pela lógica do menor mal. Os contrários querem proibição e repenalização do aborto, que retornaria à clandestinidade. Os favoráveis o encobrem ao propor sua "desdramatização" como ato banal, posição pouco sensível ao sofrimento das mulheres, tachado de feminilidade dependente da maternidade. Na ausência da dimensão trágica de se desfazer do engendrado, há a questão de definir as fronteiras da humanidade. O aborto é objeto de conflito por expor tensões inerentes ao engendramento, reveladas como contradição. O problema da condição humana subjaz às perguntas sobre engendramento e condição fetal.

A análise de Boltanski desafia estudos de gênero e movimentos feministas que, na defesa de bandeiras políticas, afastam-se da percepção das mulheres não militantes. O aborto se mantém na sombra mesmo nos países onde é legalizado, o que remete aos sistemas de engendramento e à condição de pessoa, um contexto do qual fazem parte as técnicas de imagem fetal, a produção dos tecnofetos, o aparato jurídico e a experiência das mulheres.

Nota

Referência bibliográfica

SALEM, Tania. "As novas tecnologias reprodutivas: o estatuto do embrião e a noção de pessoa". Mana, v. 3, n. 1, p. 75-94, 1997.

  • 1
    Cf. Tânia SALEM, 1997.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2007
    • Data do Fascículo
      Abr 2007
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