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Livros, religiosas e censura na América portuguesa

RESENHAS

Livros, religiosas e censura na América portuguesa

Maria Lucília Viveiros Araújo

Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP

Livros de devoção, atos de censura: ensaios de história do livro e da leitura na América portuguesa (1750–1821).

ALGRANTI, Leila Mezan.

São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2004. 303 p.

Leila Mezan Algranti é livre-docente em História, professora da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Publicou seu trabalho de doutorado, Honradas e devotas: mulheres da Colônia estudo sobre a condição feminina através dos conventos e recolhimentos do Sudeste (17501822). Atua também no Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da UNICAMP.

O livro resenhado reúne ensaios sobre a leitura e a circulação das obras de devoção na América portuguesa da segunda metade do século XVIII e início do século XIX. Esses escritos foram agrupados em duas partes. A primeira parte, mais homogênea, contendo três capítulos, analisa o significado dos recolhimentos e conventos femininos na Metrópole e na Colônia, particularmente o processo de criação do primeiro recolhimento na cidade do Rio de Janeiro do século XVIII por Jacinta de São José. Já a segunda parte, compreendendo quatro capítulos, trata da censura aos livros instalada na Corte do Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XIX.

A autora se propôs a refletir sobre alguns aspectos das práticas de leitura dos livros religiosos, bem como sobre o sistema de censura ao qual estavam submetidos. O pensamento de Robert Darnton, que introduz a obra, aponta a relação ativa dos livros sobre a história. Nos anexos finais, há uma lista dos livros à espera de liberação na alfândega do Rio de Janeiro entre 1808 e 1821 para nos informar sobre os títulos em vias de circulação no Brasil dos primeiros anos do Oitocentos, como também para incentivar novas pesquisas sobre livros e leitura desse período.

Os capítulos produzidos para congressos apresentam considerações finais. O primeiro ensaio tem essa característica, compara os recolhimentos e conventos da Metrópole com seus similares na Colônia, e conclui que o mesmo tipo de vida e cultura religiosa floresceu nas instituições de reclusão tanto na Colônia quanto na Metrópole. Consta também uma tabela da lista dos conventos e recolhimentos femininos na América portuguesa criados nos séculos XVII e XVIII.

A seguir, no segundo ensaio é narrada a saga de madre Jacinta de São José para fundar o Recolhimento de Santa Teresa, enquanto o terceiro apresenta suas idéias e leituras. No epílogo, Algranti arremata que "Jacinta apresenta-se como uma típica representante da cultura religiosa barroca, quando os arroubos místicos das devotas eram freqüentes, especialmente nos claustros dos conventos" (p. 128).

A segunda parte examina os mecanismos da censura, sua implantação, objetivos e procedimentos. Analisa a censura do tempo de D. João VI, demonstrando sua incoerência, e investiga o impacto do pensamento ilustrado sobre os hábitos de leitura dos livros religiosos. Nessa parte, são utilizadas as listas de livros submetidos aos censores no século XIX e, para o século XVIII, o material da Real Mesa Censória e o estudo de Luís Carlos Villalta. A historiadora conclui que

A transferência da Corte para o Rio de Janeiro colaborou, portanto, para mudar o perfil do mercado livreiro e dos leitores, da mesma forma como agiu em relação a outros aspectos do comportamento, introduzindo novos hábitos alimentares, um modo de vestir mais apurado e o gosto pela vida com mais conforto" (p. 202).

A autora utiliza também de alguns procedimentos quantitativos, isto é, constrói três tabelas especificando a origem, a classificação dos livros em geral e dos livros religiosos, e um anexo com o nome dos livros religiosos à espera de liberação na alfândega.

Em Leituras e leitores, Algranti aproveita-se de um estudo de caso quiçá fictício em que o bispo D. José Joaquim da Cunha de Azevedo Coutinho discorre sobre o impedimento e anulação do casamento de Pedro e Maria da paróquia de Pernambuco, para apresentar duas formas diferentes de se ler um livro moral.

Por fim, ela traça o perfil dos censores e narra alguns acontecimentos dos bastidores do Desembargado do Paço, isto é, o ápice da carreira do Judiciário português, considerando que "foi possível acompanhar certa mudança nos hábitos de leitura dos colonos entre os séculos XVIII e XIX [...] por outro [lado,] ficaram evidentes a permanência e a continuidade, por mais de meio século, de certas práticas de censura do Estado português" (p. 256).

Apesar dos diversos ensaios com considerações finais e epílogo, restou para o leitor concluir a proposta inicial, isto é, de que forma esses livros fizeram história, conforme a sugestão de Darnton. Podemos estabelecer diversas relações: por exemplo, as leituras da Ilustração introduzidas no Brasil, apesar da censura, estavam substituindo as leituras da fé; ou o processo de ampliação da leitura no Brasil no século XIX estimulou a diversificação dos temas e dos títulos. Ou seja, a reunião dos ensaios possibilitou uma obra aberta.

A nosso ver, os ensaios apresentaram convincentemente a documentação e conclusões, no entanto, gostaríamos de alertar os historiadores, tão preocupados hoje com os anacronismos, sobre o uso do conceito "barroco" ligado à teoria da pura visibilidade no discurso historiográfico. Sobre os anacronismos na História da Arte, ler o artigo do professor João Adolfo Hansen.1 1 HANSEN, 2001.

O livro introduz uma questão esquecida da história brasileira, as leituras e bibliotecas dos conventos, tema fundamental para a compreensão da história cultural e da arte da América portuguesa. Algranti voltou-se para esse assunto, após escrever sobre os recolhimentos femininos e perceber que as obras dos conventos e mosteiros constituíram as primeiras bibliotecas públicas destas terras. Seu texto dialoga com diferentes campos da História, tais como a religião, a cultura, a política, o gênero, contudo, visa a contribuir principalmente com os estudos da História do livro e da leitura. O livro deve agradar tanto aos especialistas quanto aos apreciadores da História do Brasil

Notas

Referência bibliográfica

HANSEN, João Adolfo. "Barroco, neobarroco e outras ruínas". Teresa: Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, FFLCH-USP, n. 2, p. 10-66, 2001.

  • 1
    HANSEN, 2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007
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