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Da chibata ao magistério: a trajetória da educação feminina no Brasil patriarcal

RESENHAS

Da chibata ao magistério: a trajetória da educação feminina no Brasil patriarcal

Daiana da Rosa Acordi

Universidade Federal de Santa Catarina

A formação da leitura no Brasil.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina.

São Paulo: Ática, 2001. 374 p.

Embora o livro A formação da leitura no Brasil, escrito pelas professoras doutoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman, tenha sido publicado em 2001, a recente leitura atenta de um dos seus capítulos motivou-me a demonstrar a sua atualidade. O capítulo "A leitora no banco dos réus" pode ser retomado em tempo para discutirmos o papel da literatura como meio à educação feminina, pois traz à baila discussões sobre as condições de leitura e educação no Brasil colonial sob o qual uma literatura inexperiente se edificava. As autoras relatam diversas visões sobre a mulher brasileira, desde opiniões de viajantes estrangeiros ao pensamento nacional, sem deixar de apontar as conseqüências desses olhares para a formação intelectual da mulher.

O início das atividades intelectuais da mulher, dizem as autoras, coincide com o nascimento da modernidade. Em um breve contexto histórico, recordamos que à época o advento do protestantismo trouxe severas preocupações à igreja. A necessidade de angariar novos aliados para a contra-reforma fez com que a burguesia ascendente fosse o alvo, vista como único caminho: "o negócio era bom para os dois lados: a burguesia fornece à igreja clientela segura, que, da sua parte, recebe instrução a investir no futuro" (p. 237). A partir desse momento, discussões sobre a educação da mulher vêm à tona: "é mister preparar a mulher para assumir as funções domésticas de que a nova camada emergente carece, destacando-se entre estas a educação das crianças" (p. 237). O sentimento da maternidade e da intimidade surge como alternativa à rigidez e distanciamento que a mãe, senhora da casa-grande, tinha do filho pequeno. A criança criada pela negra experiente tinha hábitos que se misturavam aos dos moleques da roça, e pela nova ordem familiar burguesa o filho deveria ser criado no regaço da mãe, sob a proteção de seu lar, livre de influências, principalmente dos escravos.

A instituição de um novo papel para a mulher fez dela um instrumento assaz importante na ascendência política e econômica de sua família. Ao saírem da casa-grande e se instalarem nos sobrados, as famílias de origem nobre efetuaram uma mudança que iria além do espaço físico. A cidade, tida como lar de desordeiros e vagabundos, precisou se adaptar aos novos moradores. Ruas infestadas e fedorentas foram limpas, novas tendências trazidas pela corte portuguesa eram disseminadas e aceitas, a europeização foi instaurada, elevar o Brasil ao status de país civilizado foi pré-requisito para o reconhecimento de sua independência. A incumbência feminina de cuidar da casa, dos filhos e da aparência física e social do marido era tarefa árdua. A mulher precisou se transformar, antes pesada, feia e de gestos rudes,1 1 A retomada da descrição feita por Gilberto Freyre em Sobrados e mocambos (FREYRE, 2000) serviu de contraponto às novas exigências ao sexo feminino. ela teria de ter então o aspecto doentio idealizado pelo romantismo, cuja leveza e delicadeza dos atos eram imprescindíveis. As relações se estreitavam à medida que o espaço entre uma edificação e outra aumentava. O burguês vivia só, via o seu lar como recanto, primava por sua intimidade, desde que o isolamento não fosse completo. Festas, bailes, jantares e saraus eram oferecidos à alta sociedade. Criou-se a necessidade dos bons modos, e à mulher eram dadas as possibilidades de educação, como o aprendizado de literatura e música. A elegância do vestido deveria combinar com o francês e o piano, que tornavam a senhora uma verdadeira madame. Na França do século XVIII, o assunto já tinha resultado no dilema: e se o 'esboço intelectual' feminino se transformasse em traços seguros, com mulheres intelectualizadas para apoiar com braços e idéias a revolução e, ao mesmo tempo, tornar o choque entre os sexos iminente? Era o poder que estava em jogo.

No Brasil, com uma realidade ideologicamente 'um pouco' diferente, a educação das mulheres foi admitida não exatamente pelo apelo de Nísia Floresta, mas pelo anúncio de que elas poderiam ajudar na concretização do plano político pensado para o país. Podemos, aliás, imaginar que essa "educação para todos" estaria fomentada sob o mesmo intuito do "liberdade para todos". Nos dois lemas encontramos o mesmo aspecto: "todos" não eram a maioria, "educação" e "liberdade" seriam vigiadas, mulheres e negros estariam à deriva dos caprichos do Estado. Educa-se porque é conveniente, liberta-se para gerar mais lucros.

Diante dessa nova necessidade, as responsabilidades atribuídas à mulher irão formar um novo tipo de leitora à qual a literatura precisaria se adaptar: "os textos passam por mudanças estruturais, aparecem novos gêneros literários, mais prosaicos, e começa a desgastar-se o emprego de expressões elevadas" (p. 237).2 2 Parte dessas modificações são causadas pelo que Gilberto Freyre admite no capítulo IV do livro Sobrados e mocambos, quando diz que há na mulher um senso objetivo, técnico, enquanto o homem é descrito como um ser de acepção subjetiva, cuja abstração é mais fácil (FREYRE, 2000). De fato, o aumento de obras em prosa fez com que um número crescente de leitoras fosse abarcado. No entanto, essa relação de causa-efeito está muito mais ligada ao déficit de oportunidades do que arraigada na potência intelectual de cada sexo.

Dentre a imensidão de novos gêneros, aquele de tendência épica, "que priorizava os enredos romanescos dissociados da religião" (p. 237), ganhava cada vez mais destaque, sobretudo os textos que "valorizavam a personagem feminina enquanto protagonista de grandes amores" (p. 237). O fato de romances possuírem a religião tanto mais distante não quer dizer que eram avessos a ela: alguns mais, outros menos, encarregavam-se de transmitir valores religiosos com um novo rótulo, valores naturais, que toda mulher necessitava ter por consciência própria. A preferência feminina por obras romanescas condizia, de certa forma, com o sentimentalismo burguês que ao mesmo tempo repreendia o gosto. A mulher-mãe assume crescente status de santificação pelos sofrimentos e dificuldades que enfrentava na literatura brasileira da segunda metade do século XIX.

No entanto, como o conteúdo dos romances não era perfeitamente previsível, diziam à época que poderiam suscitar mudanças no comportamento feminino, desencadeando "rebeldia", questionamentos e "falta de juízo", opinião própria. O que mais impressionou foi a alta tolerância das mulheres em relação às histórias comoventes. Muitas acreditavam na possibilidade de transformarem-se nas protagonistas dos livros que liam freqüentemente. As solteiras sonhavam com uma união arrebatada pela paixão e felicidade, enquanto algumas já casadas pensavam apenas na possibilidade de pedir ao marido quantos livros coubessem no entrelugar do tédio que as separava de si mesmas. Não importando exatamente a causa, o crescimento acelerado da indústria gráfica era assustador. Além dos romances, os folhetins, as revistas, todos os meios de comunicação, exibiam um pequeno texto que fosse para garantir o público feminino. A venda era certa. Entre destacar-se como indivíduo ou "dissolver-se na massa",3 3 A expressão é utilizada por Gilberto Freyre ao comparar os papéis sociais dos sexos. a mulher levaria algumas décadas desde o estopim de sua aculturação para compreender a importância do primeiro.

Os primeiros indícios sobre as controversas conseqüências das novas leitoras foram glosadas por Molière, França, na segunda metade do século XVIII. Pelo teatro, o crítico divertia-se com a possibilidade de apresentar ao público os "perigos resultantes da nova situação". Para Molière, a ameaça era visível: em pouco tempo as "sabichonas" governariam, além de suas casas, seus próprios maridos. E mais, logo as conseqüências observadas dentro do lar seriam alçadas aos outros aspectos da vida social: os "pendores intelectuais" femininos, adverte Molière, poderiam dominar a literatura por meio da exigência que faziam aos autores. Não muito depois, dizem Marisa Lajolo e Regina Zilberman, o gosto feminino pela leitura seria tachado de vadiagem.

No Brasil, o ócio feminino foi combatido com o auxílio da medicina e dos meios de comunicação (estes últimos agradavam ao homem por respeito e à mulher, como vimos acima, por necessidade). Os médicos alertavam sobre os riscos do passatempo, e a moral reclamava o tempo perdido que poderia ser aproveitado para segurar moças namoradeiras em casa ou empregado em outras tarefas do lar. O fato é que sempre havia algo mais útil para fazer. Contudo, o gosto pela leitura foi responsável por introduzir a mulher no mundo das letras, sendo o hábito decisivo para a sua educação, e sem o deixar de ser para o processo de instrumentalização do sexo. Agora alfabetizada, a mãe era responsável pela educação regular do filho, ensinando-o, além dos bons costumes, aquilo que o levaria à Faculdade de Medicina. Seduzido pelo segundo objetivo, o Estado reconheceu o esforço, e nesse momento a literatura nacional perde parte do estigma.

Na segunda metade do capítulo, as autoras abordam o interesse da colônia, recém-desligada da metrópole, em constituir uma nova nação com traços objetivos da europeização. A educação tida como meta chegava à mulher sob o intuito de melhorar a educação dos filhos, homens, obviamente. Descritas como ignorantes e frívolas, mais violentas que seus maridos, as mulheres brasileiras do século XVIII desenvolviam atividades essencialmente coloniais e domésticas, como dar ordens aos negros, reger as atividades da casa, zelar pelo bem-estar da família. Sua intelectualidade não era sequer mencionada pelos viajantes estrangeiros que deixavam suas impressões sobre os costumes do país. Para um deles, Henry Koster, o fato mais assombroso era vê-las menos "humanas que os homens". A justificativa era dada pelo "estado de ignorância em que o sexo vivia", como se somente ao homem uma "desumanização" fosse permitida, sendo ele à época tão ignorante quanto a "fêmea". Da chibata ao magistério, a mulher brasileira do século XVIII passa ao século XX em uma escala ascendente de conquistas, o que não a livraria de características como instrumento para a consolidação de políticas sociais.

Como requisito à modernização, a educação de base deveria ser fornecida pelo Estado, e por que não de forma mais agradável? Menos homens humilhados, mais mulheres no magistério. A escola seria consolidada como segundo lar, e a professora, caracterizada pelo 'instinto' maternal, seria tão doce e severa tal qual na educação de seus próprios filhos. O século XIX tornou-se decisivo para a manutenção da cultura patriarcalista no Brasil, que então poderíamos chamar de "descentralizado", devendo a mulher prestar contas não só ao marido, mas também a toda a sociedade e, se isso não bastasse, ao Estado. Reafirmamos, junto a Lajolo e Zilberman, que a educação feminina foi fomentada sob pena de atrasar o progresso da nação. A participação da mulher no plano social deveria ser treinada e exercitada, ainda que necessitasse de 'apoio', vigilância, ao longo das décadas.

O papel dos romancistas brasileiros para a "autopromoção" da literatura impulsionava as vendas de exemplares recheados de histórias cujas personagens femininas, instruídas e refinadas, serviam para esclarecer a dicotomia entre a ficção e realidade. Do mesmo jeito, romances indianistas traçavam a figura nacional, valendo-se de parâmetros da cultura européia. A "voz dissonante" de Machado de Assis destacava-se ante o coro unilateral, tendo o autor passeado pelos extremos do pensamento nacional e construído suas personagens sob um conjunto de valores controversos à época. De todo modo, a participação dos romancistas foi crucial para que se desenvolvesse um processo de emancipação feminina, tal qual demonstravam ser as personagens impressas.

Quem também teve um papel importante na ascensão da literatura dita feminina foi a figura do ledor, posição ocupada pelo jovenzinho da casa. Segundo as autoras, ele era um ícone da manifestação do gosto literário das mulheres, que faziam da hora da leitura um culto, largavam seus afazeres domésticos e, absortas nas palavras entoadas pelo menino alfabetizado, deixavam-se levar por histórias arrebatadoras, de onde a moral patriarcal jamais saiu das entrelinhas.

Durante essa trajetória, as professoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman narram parte da história da mulher brasileira em um período marcado por sua inclusão social sob o signo da instrumentalização do sexo. Pouco a pouco, concessões foram feitas às mulheres e transformadas em contingência. Da casa-grande para o sobrado, deste para a escola, em cada lugar a mulher desempenha uma função de retorno garantido ao patriarca e ao Estado. Aquele entrelugar ainda ressoava: quanto do homem restava entre a mulher e ela mesma? As dúvidas continuavam ontológicas e devidamente maquiadas para que, enquanto a mulher buscar respondê-las, permaneça instrumento para o bem da nação.

Notas

  • FREYRE, G. Sobrados e mocambos 12. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
  • 1
    A retomada da descrição feita por Gilberto Freyre em
    Sobrados e mocambos (FREYRE, 2000) serviu de contraponto às novas exigências ao sexo feminino.
  • 2
    Parte dessas modificações são causadas pelo que Gilberto Freyre admite no capítulo IV do livro
    Sobrados e mocambos, quando diz que há na mulher um senso objetivo, técnico, enquanto o homem é descrito como um ser de acepção subjetiva, cuja abstração é mais fácil (FREYRE, 2000).
  • 3
    A expressão é utilizada por Gilberto Freyre ao comparar os papéis sociais dos sexos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007
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