Acessibilidade / Reportar erro

Novos rumos no feminismo

RESENHAS

Novos rumos no feminismo

Sebastião VotreI; Hugo LovisoloII

IUniversidade Gama Filho

IIUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

Rumo equivocado: o feminismo e alguns destinos.

BADINTER, Elisabeth. Tradução: Vera Ribeiro.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 174 p.

Introdução

Após breve introdução historiográfica sobre a trajetória do feminismo, Elisabeth Badinter enfrenta as estatísticas (provenientes, sobretudo, de periódicos e publicações feministas mais radicais) com humor e ironia. O texto se destaca pelo estilo vívido, e tem tradução excelente, o que torna sua leitura agradável. A autora empreende uma análise corajosa dos resultados, dificuldades, êxitos e expectativas dos projetos e movimentos de emancipação e visibilização das mulheres, com foco no que se passa na França, na Europa em geral, bem como nos Estados Unidos e Canadá.

O texto todo é varrido por considerações avaliativas da escritora, que condena veementemente a violência masculina e argumenta em favor da necessidade de se conseguir igualdade de oportunidades para homens e mulheres, superando a fase atual de luta e projetos de anulação da identidade masculina na França, fase que ela considera no risco de trilhar um rumo equivocado. Avulta no texto a insistência da autora em que o feminismo radical que ela denuncia vai além das medidas, por se transformar numa luta contra os homens, e não mais em favor das mulheres.

A crítica demolidora de Badinter

Em belo capítulo que se intitula "O novo discurso do método", Elisabeth Badinter desfaz equívocos resultantes de amálgamas de dados de distinta natureza, que resultam em números alarmantes sobre a violência perpetrada por homens contra as mulheres. Os percentuais que ela denuncia se constroem pela conjunção de estatísticas sobre violência física com dados sobre agressão verbal ou qualquer tipo de desentendimento entre membros dos dois sexos. Ela examina e avalia questionários, bem como definições de conceitos polêmicos, como o de assédio (que prevê agressão sexual, simbólica e física, sem levar em conta as relações de poder entre as pessoas envolvidas), e mostra que todos os artifícios estão a serviço de uma ideologia conspirativa, que faz avolumar-se a acusação contra os homens, de predadores, violentos, cruéis, exploradores, que se aproveitam de mulheres indefesas, fracas, infantilizadas. A autora mostra como se cria um mal-estar filosófico, com o acirramento binarista, de oposições maniqueístas, com o homem mau e a mulher inocente, em que a dominação masculina é apresentada como mascarada, multiforme e prevalente, e em que o naturalismo que parecia sepultado retorna vitorioso.

O segundo capítulo, sobre Omissões, mostra o contraponto, que tem sido silenciado ou negligenciado pelas feministas radicais. A autora faz uma série de perguntas intrigantes, que mostram que na sociedade, em geral, homens e mulheres não vivem a guerra que as feministas pintam em suas estatísticas. Pergunta por que tantas mulheres permanecem casadas, quando o divórcio permite a separação legal. Retira o véu de algo aparentemente impensável, que é a violência feminina, contra homens e contra mulheres, nos espaços público e privado. Descreve a violência das mulheres, tanto durante a Revolução Francesa, como em dois genocídios de guerras étnicas do século XX, o da Alemanha nazista e o de Ruanda. Relata com detalhes que as mulheres, nessas chacinas, batiam e torturavam o máximo que podiam. Elisabeth Badinter justifica o silêncio sobre as barbaridades cometidas pelas mulheres como decorrente de um estereótipo que vê os homens como maus e as mulheres como inocentes. Os casos de ferocidade e selvageria cometidas por mulheres, no cotidiano, raramente ganham espaço nas mídias, embora os relatos da violência feminina deixem os profissionais desnorteados e incrédulos. A imagem de inocência, associada às mulheres e às crianças, fez com que demorássemos a analisar com mais objetividade o que se passa em ambos os segmentos. Badinter nos faz ver que, no reduto do casal, a violência feminina também se manifesta, com um dado novo: geralmente os homens têm vergonha de admitir que são espancados, e tendem a continuar a conviver com a pessoa agressora. A violência feminina se manifesta por meios aparentemente não violentos, como no uso do poder de reprodução, quando a mulher se vale do esperma masculino para impor a paternidade àquele que a recusa de forma explícita. A continuarmos nessa senda argumentativa, poderíamos pensar que para esta autora, sempre polêmica em suas abordagens, desde o clássico O mito do amor materno, dos anos 1980, domina o entendimento de que as mulheres é que são violentas, e de que os homens nunca o são. Entretanto, ela quer apenas desfazer a falsa verdade, fabricada por viés ideológico, que condena os homens, sem apelação. Cabe ressaltar que a violência, conforme nos ensina Badinter, é algo inerente ao ser humano, e não uma característica pertencente a um único sexo. A violência está acima dos sexos.

O terceiro capítulo analisa a Contradição entre a realidade sexual e a nova moral sexual que se definiu e consolidou na Europa em geral, e na França, em particular. Mostra que na busca da liberdade total, favorecida pelos anticoncepcionais, parte das mulheres francesas banalizou o sexo e a relação sexual, o que por sua vez contribuiu para inflamar a violência masculina. Na complexidade de gestos e atitudes que se deflagraram no campo do gênero, dois movimentos se manifestaram fortes. Por um lado, as mulheres virilizadas, independentes, que requerem uma ordem de liberdade absoluta, e de poder sem limite, que lhes permita cavalgar os homens, utilizar-se deles como escravos de seus projetos e desejos. Para esse segmento, cabe denunciar, sempre, os homens, que levam as mulheres a aviltar o próprio corpo, representadas pela atriz pornô, pela dançarina e strip-tease e pela prostituta, todas representantes do abuso de poder masculino, e num certo sentido (para as feministas radicais) objetos de estupro. De outro lado, a sacralização do corpo feminino, a volta ao modelo judaico-cristão, de valorização da maternidade, em suma a volta do mito do amor materno como instinto e não como construção cultural. O feminismo do retorno moral prega a libertação das mulheres diante da opressão da dominação e defende a igualdade dos papéis de homens e de mulheres, embora não aceite a prostituição como uma possibilidade de escolha por livre-arbítrio das mulheres e sim como algo imposto violentamente. Esse movimento sacralizador silencia sobre os projetos de emancipação e liberação absoluta das mulheres e se concentra nos casos em que há vitimalização. Tem um compromisso com a volta da ordem moral, contra a sociedade de consumo, do capitalismo exagerado. Nesse capítulo, também é relatado que o corpo às vezes é explorado até a destruição, ao ser associado aos atos sexuais e filmes pornográficos, que transmitem a idéia de obsessão dos homens pelos seus desempenhos e das mulheres pela sua aparência.

Por fim, o capítulo sobre Regressão analisa o quanto o feminismo avançou e/ou retrocedeu nos últimos 15 anos. Elisabeth Badinter aponta o desconforto vivido pelo homem, atualmente, com os avanços da mulher na sociedade. Mostra também o retrocesso no sentido da revalorização da diferença biológica entre homens e mulheres. Salienta como as mulheres se apresentam como vítimas dos homens e reclamam por condições particulares de tratamento, contrariando o ideal de igualdade social. A regressão constatada pela autora remete enfim a algumas conseqüências como: homens e mulheres se julgando vítima um do outro, uma vez que os homens começam a se sentir dominados pelas mulheres, as quais, de forma paradoxal, não reconhecem essa dominação; a (re)valorização das diferenças entre os gêneros, pautada na cultura e na biologia, na medida em que não mais se reconhece a igualdade como valor universal, retornando a discussão acerca de papéis masculino e feminino. A autora toma como exemplo a religião muçulmana e a polêmica nas escolas francesas sobre a aceitação do uso do véu pelas meninas adeptas dessa religião. E, finalmente, fala de uma armadilha na qual corremos o risco de cair quando retornamos ao fator biológico para solucionar as questões entre os homens e as mulheres. Ao reforçarmos a situação particular da mulher relacionada à reprodução, estamos indo contra o ideal de igualdade batalhado por tantos anos. Essa diferença deve, sim, ser valorizada, como diz Badinter, sem, no entanto, idealizar a educação de homens-femininos. Na obra da intelectual francesa propõe-se, em suma, o seguinte paradoxo: as diferenciações particulares a cada sexo devem ser levadas em consideração, como a condição de reprodução e amamentação que as mulheres detêm, para que assim possa se constituir um caminho de igualdade entre os sexos. Sendo assim, outros recursos são interessantes para favorecer a relação homem mulher, e não apenas uma batalha de poderes entre os mesmos. A autora aponta, em seu discurso final, para o risco do rumo equivocado, que consiste no restabelecimento das fronteiras e na deterioração da relação das mulheres com os homens.

Nosso posicionamento

Temos a impressão de que a realidade brasileira apresenta semelhanças e diferenças com a apresentada na obra de Badinter, uma vez que o contexto sociocultural brasileiro constitui-se de forma distinta do europeu. Há, no entanto, traços em comum. O casamento continua sendo fortemente valorizado no Brasil, apesar do crescimento na participação das famílias chefiadas por mulheres, e se insiste sobre a maternidade das mulheres jovens por vezes de forma moralista ou condenatória. Contamos com propagandistas tanto da luta antimasculina, absorvida por muitos homens, quanto da igualdade, sem que as contradições sejam claramente debatidas. No Brasil foi gerado um complexo legal que favorece a mulher em vários sentidos, contudo, não parece ser resultado da ação coletiva ou organização das mulheres.

O exposto acima pode nos estimular no sentido de realizar pesquisas semelhantes em nosso contexto e verificar o quanto as formulações da autora podem ser aproveitadas em nossos estudos. Ressaltamos que não é nossa intenção desautorizar suas conclusões, e sim verificar a viabilidade de suas idéias no Brasil, o que se poderá fazer com o aprofundamento no conhecimento da realidade na qual fazemos intervenções e pesquisas. O aproveitamento crítico da obra dessa autora nos favorece um (re)pensar das teorias feministas discutidas no Brasil e, sobretudo, adverte que, também aqui, enfrentemos o risco de escolher um rumo equivocado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br