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Estudos feministas e movimentos sociais: desafios de uma militância acadêmica em forma de revista

Feminist studies and social movements: challenges of an academic activism in a journal format

SEÇÃO ESPECIAL

REVISTA ESTUDOS FEMINISTAS 15 ANOS

Estudos feministas e movimentos sociais: desafios de uma militância acadêmica em forma de revista

Feminist studies and social movements: challenges of an academic activism in a journal format

Cristina Scheibe Wolff

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

Este artigo trata do modo como a Revista Estudos Feministas conectou, em sua trajetória, os debates acadêmicos com as discussões dos movimentos feministas, a partir da maneira como foi organizada sua publicação na qual sempre estiveram presentes, além dos artigos, dossiês e seções temáticas.

Palavras-chave: revista; militância; movimentos feministas.

ABSTRACT

This article explains how Revista Estudos Feministas has related academic debates and feminist movement discussions in its trajectory, taking into consideration the way its publication, in which there have always been articles, dossiers and thematic sections, has been organized.

Key Words: Journal; Feminist Movements; Militancy.

A Revista Estudos Feministas nasceu em 1992, a partir de um acordo realizado entre um grupo de feministas acadêmicas que colaboravam como executoras ou consultoras em um projeto da Fundação Carlos Chagas com a Ford Foudation de criação de políticas acadêmicas relacionadas aos estudos de mulheres, feministas e de gênero. A partir de um encontro, foram acordadas duas políticas que constituiriam o projeto: concursos anuais de dotações de pesquisa, que foram levados a cabo pela Fundação Carlos Chagas e que realmente foram propulsores importantes para o desenvolvimento do campo dos estudos de gênero no Brasil; e a criação de uma revista. A Revista começou sendo publicada no Rio de Janeiro, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o apoio da Ford, com um conselho editorial formado por acadêmicas feministas de várias instituições que realmente se reuniam para decidir sobre as políticas editorias e aprovar os artigos. Como nos disse Bila Sorj – que foi editora adjunta da REF de 1997 a 1999, mas que participou do encontro fundador e fazia parte do conselho editorial – por ocasião da comemoração dos 15 anos da Revista, a ênfase maior estava na palavra "estudos", sendo "feministas" um qualificativo para os estudos que seriam publicados. Ou seja, desde o início, como também se pode ver nos editoriais, a Revista ao mesmo tempo que manteve em vista compromisso e colaboração com os movimentos feministas e outros movimentos sociais ligados ao campo do gênero, como os movimentos de mulheres negras, movimentos de mulheres agricultoras, movimentos de gays, lésbicas e GLBTTT, por exemplo, propôs-se à tarefa de falar a partir da academia. A idéia era apresentar aos movimentos sociais o que era discutido na academia, tornar acessível a esses movimentos os debates e as discussões internacionais, as novas teorias, os diversos aspectos dos problemas enfrentados pelos movimentos, instrumentalizando-os em suas lutas.

Em 1998 a Revista viveu uma importante mudança com o fim do financiamento da Fundação Ford. Em sua proposta de circular por instituições, e como não havia condições no Rio de Janeiro para se assumir a tarefa de continuidade da Revista sem o financiamento, a partir de 1999 a Revista começou a ser publicada na Universidade Federal de Santa Catarina, inicialmente com um formato semelhante ao que tinha no Rio de Janeiro, com a direção de Miriam Pilar Grossi e Cláudia de Lima Costa. A partir daí a Revista passou a adotar o sistema de Peer Review, com a leitura de cada artigo por dois pareceristas ad hoc indicados pela editoria de artigos. A seriedade e a busca por indexadores internacionais e por adequar-se às normas desses indexadores (a partir de 2000, sua inclusão na SciELO) permitiram conseguir outros financiamentos para a Revista, não tão generosos como o da Ford, mas imprescindíveis para a sua continuidade, especialmente o do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A própria Ford, em 2002, financiou também um projeto para o Consórcio de Revistas e o Portal Feminista. Este último projeto manteve sua continuidade e está em processo de reformulação, agora com o apoio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República do Brasil.

Em 2002 tivemos nova mudança importante na maneira de edição da Revista: sob a coordenação de Luzinete Simões Minella, o trabalho editorial passou a ser partilhado por um grupo maior, que a partir daí assumiu editorias específicas. Atualmente temos uma coordenação editorial e editorias de artigos, dossiês, resenhas, entrevistas, seção debates e SciELO Social Sciences. Somos 20 professoras da Universidade Federal de Santa Catarina e da Universidade do Estado de Santa Catarina e algumas de outras universidades a trabalhar diretamente na edição da Revista, além de nossas pareceristas ad hoc, que atualmente chegam a quase cem por ano.

Certamente teríamos de fazer um estudo do impacto da Revista Estudos Feministas no campo dos estudos de gênero no Brasil. Não está feito, porém, o que não impede que, como pesquisadoras da área, tenhamos uma idéia da sua importância. No Brasil, a REF, junto com os Cadernos Pagu, tem um âmbito nacional e internacional, sendo reconhecida pelas agências de governo, pelos indexadores e por outras instituições, embora nem sempre por nossos colegas de departamento e por avaliações disciplinares. Outras revistas de cunho feminista são importantes: a revista eletrônica Labrys, a revista Gênero, publicada pela Universidade Federal Fluminense, e a revista Caderno Espaço Feminino, da Universidade Federal de Uberlândia. Há também editoras especializadas, como a Editora Mulheres, e muitas teses acadêmicas de mestrado e doutorado hoje acessíveis via internet (no todo ou em parte).

A maneira como a REF é publicada tenta dar conta de certa forma de propiciar um espaço para a pluralidade e para o diálogo com os movimentos sociais. Os artigos publicados devem ter algo em relação ao gênero, ao feminismo, às mulheres, às sexualidades, às masculinidades. Esse é o requisito básico. Por outro lado, são lidos e avaliados todos os artigos pela editoria de artigos, com critérios estritamente acadêmicos. A editoria é formada por quatro a cinco professoras de diversas áreas, atualmente história, literatura, comunicação, antropologia e sociologia. Após essa etapa, os artigos são mandados para dois pareceristas, geralmente de distintas áreas. Às vezes se recorre a um terceiro parecer quando os resultados são muito díspares. Os artigos são então mandados de volta à autora ou ao autor para que reformule segundo as considerações dos pareceristas, ou são aceitos ou recusados.

A cada revista publicamos um dossiê, uma seção temática e/ou uma seção debates. Os dossiês são sempre relacionados a questões colocadas pelos movimentos sociais e podem conter tanto estudos acadêmicos como textos elaborados por protagonistas dos movimentos. As seções temáticas são coletâneas de artigos sobre um determinado tema, várias vezes resultados de mesas-redondas ou eventos transformados em artigos, que passam por todo o processo de avaliação da Revista. São eventualmente propostos e coordenados por pessoas externas à editoria. As seções debates são elaboradas por editoria própria, que propõe um texto para que várias autoras estabeleçam com ele um debate teórico. Ao final deste texto encontra-se uma listagem dos dossiês, das seções temáticas e das seções debates já publicados pela Revista, que mostram a amplitude dos temas tratados e a preocupação da editoria em acompanhar os acontecimentos no campo dos movimentos sociais e das discussões políticas da sociedade brasileira e internacional. Para começar, podemos exemplificar com o primeiro número, o número 0, de 1992, que teve o dossiê Mulher e Meio Ambiente acompanhando a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, a Eco-92, no Rio de Janeiro. Daí para frente, os temas que se sucederam foram violência, direitos reprodutivos, aborto, ações afirmativas, mulheres negras, Fórum Social Mundial, pobreza, agricultoras, velhice, masculinidades, educação, parto, religião, conjugalidades e parentalidades gays, lésbicas e transgêneros, entre outros. Mas não se sucederam aleatoriamente, senão sempre em conexão com as discussões travadas pelos movimentos e pela sociedade. A partir de 2004, começam a aparecer também as seções temáticas, que, embora com um cunho mais acadêmico, lançam questões para o debate social a partir dos estudos acadêmicos, como é o caso da seção sobre gênero e mídia, do número temático "Raça, sexualidade e saúde", dos artigos temáticos "Escrevendo a história no feminino", "Gênero e juventude", "Gênero: viagens e migrações internacionais". Já as seções debates, como se vê pelas temáticas abordadas, enfocam questões teóricas e políticas de relevância, buscando as "traduções" das teorias, para utilizar a expressão sempre enfatizada por Cláudia de Lima Costa, suas circulações nos meios feministas, as apropriações e as estratégias epistemológicas do campo. Mestiçagem e pós-feminismo são temas que foram colocados na berlinda por essa seção, conectada com os debates políticos e acadêmicos do campo.

A seção Ponto de Vista tem sido também uma das muito importantes da Revista. Muitas vezes contém textos bastante explorados por estudantes, por exemplo, desejosas e desejosos de compreender com mais minúcias o pensamento de autoras/es importantes, que em entrevistas acabam por explicar sua trajetória e os caminhos teóricos que as/os levaram às categorias de análise com que trabalham, como Joan Scott, Michele Fèrrand, Jane Flax, Michelle Perrot, Françoise Thébaud, entre tantas/os outras/os. Outras vezes são publicados ensaios e diálogos, que fogem da forma estabelecida dos artigos, apresentando idéias e questões para o debate.

Se anos atrás a Revista via-se obrigada a convidar pessoas a escreverem resenhas, buscava em todos os eventos encorajar esse tipo de texto, hoje a oferta de resenhas que chegam espontaneamente à editoria é bastante satisfatória, superando os números esperados e também dando conta de parte significativa da produção do campo com qualidade.

A publicação de uma seleção de artigos de cada ano em inglês no SciELO Social Sciences1 1 English Edition: http://socialsciences.scielo.org/. vem sendo um trabalho a mais da editoria da Revista. É quase como publicar um outro número, pois envolve seleção de artigos, contato com as autoras e os autores, tradução, revisão da tradução e envio dos artigos.

Publicar uma revista como a REF é um ato político. O fato de termos uma revista reconhecida por indexadores e portais internacionais é um grande espaço de legitimidade da produção acadêmica feminista e do campo dos estudos de gênero. Atualmente a REF está no SciELO, SciELO Social Sciences e Redalyc, e recentemente tivemos o convite do Portal Quorum de Revistas Iberoamericanas, da Universidad Alcalà de Henares, Espanha. Além disso, ela é parcialmente financiada pelo CNPq e pela Capes e atinge qualificações com A internacional e A nacional pelo Qualis. Isso possibilita que nossas pesquisas, nossos debates e nosso diálogo com os movimentos sociais sejam mais efetivos e obtenham importantes apoios institucionais e financeiros.

Recentemente fizemos um experimento nesta área publicando uma separata com o Manifesto para uma Convenção Interamericana dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos. O fato de recebermos a solicitação para publicar o Manifesto assinado por diversos movimentos feministas e pelas ONGs da América Latina já demonstra que a REF tem uma relação relevante com esses movimentos, e, como o Manifesto propõe justamente o respeito à pluralidade e à diversidade, a Revista resolveu publicá-lo.

Outro aspecto importante da questão dos relacionamentos da Revista tem sido em torno da concretização de nossas lutas. Se apoiamos os movimentos feministas, se nascemos deles e nos fizemos nessa relação, como deve ser a nossa atuação diante das políticas públicas implantadas pelo governo? Desde o início do Governo Lula, temos uma Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, com status de Ministério, que adquiriu espaços no orçamento e nas políticas em que tem se destacado: especialmente com a aprovação da Lei Maria da Penha, que penaliza a violência contra as mulheres de maneira efetiva; com as políticas de eqüidade de gênero em empresas públicas; com os concursos de monografias e as pesquisas sobre gênero e mulheres; além das conferências de políticas para as mulheres e dos conselhos, entre outras ações. Se por um lado nos beneficiamos dessas políticas e participamos delas algumas de nós como consultoras e como cidadãs, por outro lado a REF tem apoiado os concursos, por exemplo, oferecendo assinaturas da Revista como prêmios, e tem recebido apoios-chave na continuidade de sua publicação em períodos de dificuldade. Porém, em nenhum momento estivemos atreladas ao que a Secretaria propõe ou deixa de propor. De certa forma, a qualidade acadêmica mais uma vez é nossa garantia que permite e exige a crítica e a pluralidade de opiniões. Mas esses são desafios que enfrentamos com prazer, na medida em que muitas vezes são a concretização de alguns dos projetos e sonhos. Esperamos enfrentar mais e mais desafios como esses pela frente, especialmente com relação a questões tão candentes no Brasil como a descriminalização do aborto, a criminalização do preconceito contra os homossexuais, a velha e sempre presente questão da eqüidade de gênero nos espaços de trabalho e da política. Temos ainda muitos projetos.

Recebido em janeiro de 2008 e aceito para publicação em março de 2008

Anexo: Dossiês, seções temáticas e seções debates da REF (1992-2008)

Volume – 1992

N.º 0 – Dossiê: Mulher e Meio Ambiente

Volume 1 – 1993

N.º 1 – Dossiê: Mulher e Violência

N.º 2 – Dossiê: Mulher e Direitos Reprodutivos

Volume 2 – 1994

N.º Especial – Colóquio Internacional: Brasil, França e Quebec

N.º 2 – Dossiê: Leila Diniz

N.º 3 – Dossiê: O Feminismo Hoje

Volume 3 – 1995

N.º 1 – A IV Conferência Mundial da Mulher

N.º 2 – Dossiê: Mulheres Negras

Volume 4 – 1996

N.º 1 – Dossiê: Ações Afirmativas

N.º 2 – Dossiê: Políticas Públicas e Pobreza

Volume 5 – 1997

N.º 1 – Dossiê: Gênero e Velhice

N.º 2 – Dossiê: Aborto

Volume 6 – 1998

N.º 1 – Dossiê: Novas Tecnologias Reprodutivas

N.º 2 – Dossiê: Masculinidade

Volume 7 – 1999

Special Issue

Duplo (N.º 1 e N.º 2) – Dossiê: Mulheres Indígenas

Volume 8 – 2000

N.º 1 – Relações de Gênero e Saúde Reprodutiva

N.º 2 – Advocacy Feminista

Volume 9 – 2001

N.º 1 – Dossiê: Mulheres na Política, Mulheres no Poder

N.º 2 – Dossiê: Gênero e Educação

Volume 10 – 2002

N.º 1 – Dossiê: III Conferência Mundial contra o Racismo

N.º 2 – Dossiê: Parto

Volume 11 – 2003

N.º 1 – Dossiê: Publicações Femininas Brasileiras

N.º 2 – Dossiê: Feminismo e Fórum Social Mundial

Volume 12 – 2004

N.º 1 – Dossiê: Agricultoras do Sul do Brasil

N.º 2 – Seção temática: Gênero e Trabalho

N.º Especial – Publicações Feministas

Volume 13 – 2005

N.º 1 – Seção temática: Gênero e Juventude

N.º 2 – Dossiê: Gênero e Religião

N.º 3 – Artigos temáticos: Escrevendo a história no feminino

Seção Debates: Mestiçagem

Volume 14 – 2006

N.º 1 – Número temático: Raça, sexualidade e saúde

N.º 2 – Dossiê: Conjugalidade e Parentalidade de Gays, Lésbicas e Transgêneros no Brasil

N.º 3 – Seção Debates: Traduções do pós-feminismo

Volume 15 – 2007

N.º 1 – Artigos temáticos: Gênero e mídia

Separata: Manifesto para uma Convenção Interamericana dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos

N.º 2 – Dossiê: Mulheres em Áreas Rurais nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil

N.º 3 – Artigos temáticos: Gênero, viagens e migrações

Volume 16 – 2008

N.º 1 – Seção comemorativa dos 15 anos da Revista Estudos Feministas

Artigos temáticos: A contribuição do feminismo às pesquisas sociológicas contemporâneas

  • 1
    English Edition:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008
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