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Editorial

EDITORIAL

A notícia abaixo sobre a punição de uma mulher acusada de ter praticado aborto recentemente no Paraná mostra a atualidade do tema abordado no Dossiê deste número:

A Polícia Civil de Apucarana prendeu Marisa Rodrigues da Silva, 23 anos, sob a acusação de prática de aborto induzido aos cinco meses de gestação. Segundo o delegado-chefe Gabriel Junqueira, após pagar fiança de cerca de R$ 400, a acusada foi liberada e deve responder criminalmente pelo suposto ato em liberdade, já que era ré primária.1 1 Fonte: Bondenews ( http://www.bonde.com.br/bonde.php? id_bonde=1-3-25-392-20080916), 16.9.2008.

Num momento em que notícias similares podem ser encontradas nos jornais e as discussões sobre o aborto ocupam, mais uma vez, também em outras instâncias, boa parte do debate público sobre a saúde e os direitos reprodutivos das mulheres, o Dossiê deste número da Revista Estudos Feministas aborda esse tema que foi contemplado mais sistematicamente na mesma seção, no número 2 de 1997, e de modo mais disperso em vários outros números, na intenção de assinalar a sua complexidade e de contribuir para o debate.

O Dossiê atual reúne sete artigos que destacam, de acordo com a apresentação da seção, distintos aspectos sobre o assunto: Myriam Aldana analisa a reação católica no Congresso Nacional, enquanto Debora Diniz e Ana Cristina Gonzalez Vélez tratam da reação da Suprema Corte brasileira diante de um caso de anencefalia; Michèle Ferrand, diretora de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), da Universidade Paris 8, e associada à Unité Demographie, Genre et Sociétes, do Institut National d'Études Démographiques (INED), num artigo feito sob encomenda para este Dossiê, relaciona vários argumentos que sustentam a sua defesa do aborto como uma condição fundamental para a emancipação das mulheres.

Rozeli Porto discute as relações entre aborto, consciência e religiosidade segundo o ponto de vista de profissionais de saúde em Lisboa; Susana Rostagnol sintetiza as linhas gerais do conflito mulher/embrião no debate parlamentar no Uruguai; Lucila Scavone interpreta as políticas feministas do aborto no Brasil como expressões da capacidade de negociação dos movimentos diante das reações conservadoras; por último, Flávia Motta analisa alguns resultados de pesquisa sobre aborto provocado entre mulheres das camadas populares no Sul do Brasil.

Além do Dossiê, no presente número, a Revista Estudos Feministas mais uma vez reúne várias contribuições de pesquisadoras do campo dos estudos feministas e de gênero em suas diferentes seções. Na primeira delas foram incluídos três artigos teóricos que discutem aspectos diversos da epistemologia feminista e quatro que discutem os resultados de pesquisas empíricas. O primeiro artigo, intitulado "Gênero, o público e o privado",2 2 Publicado em PHILIPS, Anne (ed.). Feminism and Politics. New York, Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 116-141. Col. Oxford Readings in Feminism. coloca em discussão alguns fundamentos da teoria política liberal e foi escrito pela filósofa política neozelandesa Susan Moller Okin, falecida em Massachusetts em 2004, autora de obras clássicas tais como Women in Western Political Thought (1979), Justice, Gender and the Family (1989) e Is Multiculturalism Bad for Women? (1999). Nele a autora analisa os condicionantes sócio-históricos da dicotomia público-privado, problematizando sua aparência "neutra" e apontando para a sua natureza patriarcal a partir de uma perspectiva de gênero. Esse texto foi proposto e traduzido por Flávia Biroli, a quem agradecemos ainda o auxílio para a obtenção do copyright, gentilmente cedido pela Editora Polity.

No segundo artigo - "Teorias de gênero ou teorias e gênero" - Marlise Matos tenta "delimitar, através de três conjuntos distintos de reflexões, qual seria o estatuto da 'temática' e do 'conceito' de gênero hoje no contexto acadêmico-universitário brasileiro". Esses conjuntos referem-se, primeiro, a uma síntese do atual estado da arte dos estudos de gênero e feministas; segundo, à conseqüente tentativa de explicitação e delimitação teórico-conceitual destes estudos, como um campo novo nas ciências humanas e sociais e simultaneamente um novo campo epistêmico das ciências; terceiro, à discussão das implicações e conseqüências que tal iniciativa teria para o conhecimento científico, defendendo uma ciência com caráter multicultural e emancipatório.

Na seqüência, Brena Paula Magno Fernandez, no artigo intitulado "A Epistemologia de Hugh Lacey em diálogo com a Economia Feminista: neutralidade, objetividade e pluralismo", chama a atenção para a importância da expansão do campo da Economia Feminista e ressalta que, apesar dessa expansão, esse campo ainda tende a ser considerado menos objetivo do que o das pesquisas tradicionais. A partir do modelo crítico proposto pelo filósofo da ciência Hugh Lacey, a autora problematiza as noções de objetividade e de neutralidade, defendendo a pluralidade de abordagens científicas como "o meio através do qual a neutralidade da ciência como uma prática social pode ser salvaguardada".

Nos artigos que discutem os resultados de pesquisas empíricas, Oralia Gómez-Ramírez e Luz Verónica Reyes Cruz analisam as relações entre o feminismo e as jovens no México, mostrando que, embora estas sejam, de modo geral, beneficiárias das conquistas daquele movimento, apenas uma minoria assume compromisos com as causas feministas; Rodrigo Borba e Ana Cristina Ostermann mostram de que maneira as travestis se utilizam do gênero gramatical como um instrumento que permite a manipulação das suas próprias identidades, bem como das identidades da própria comunidade à qual pertencem; Gema Sánchez Medero analisa o papel das mulheres na política, destacando o caso do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), averiguando em que medida a sua integração representa uma mudança real no modo de fazer política; e, por último, Teresa Cristina de Novaes Marques e Hildete Pereira de Melo interpretam os debates parlamentares sobre os direitos civis das mulheres casadas nos anos 30 e 50 no Brasil, ressaltando os poderes que os maridos detinham como tutores de suas esposas.

Nos artigos que integram a seção temática, são abordados distintos aspectos das relações entre corpo, sexualidade e saúde, atualizando-se o debate através de pesquisas recentes - documentais ou empíricas - realizadas na Argentina, no Brasil e no Chile. Conforme pode ser visto na apresentação da seção, as análises exploram os estereótipos que circulam sobre o lesbianismo, a natalidade, a sedução e o erotismo e a educação em saúde, e seus resultados certamente contribuirão tanto para o avanço das discussões teóricas quanto para subsidiar as políticas na área.

Debora Diniz e Dirce Guilhem, na seção Ensaios, sintetizam as linhas gerais do processo de consolidação da bioética durante os finais dos anos 90 na Argentina, no Chile, no México e no Brasil. Refletindo sobre a participação das mulheres à luz da sua própria experiência, as autoras concluem que estas desempenharam diferentes papéis, ora como acadêmicas, ora como "interlocutoras da bioética no espaço público".

Na seção Ponto de Vista, apresentamos uma entrevista com Martin Dufresne, jornalista e ativista do movimento pró-feminista no Canadá, concedida a Carmen Susana Tornquist em julho de 2005. Entre os principais temas abordados nessa entrevista, destaca-se o movimento anti-feminista - o masculinismo - bem como as relações dos homens com o feminismo e o debate das feministas com os homens pró-feministas no contexto canadense. Sem dúvida, a experiência acumulada pelo autor permite uma visão crítica e posicionada sobre o complexo campo dos diálogos e das negociações estabelecidas entre os sujeitos envolvidos nessas polêmicas, estimulando a elaboração de reflexões sobre outros contextos políticos.

A seção Resenhas inclui oito sínteses sobre obras atuais publicadas entre 2005 e 2007, as quais abordam um conjunto de temas variados e relevantes: teoria queer; religiões e sexualidade; conjugalidades, parentalidades e identidades; a construção do prazer; amor, poder e violências; escritoras brasileiras do século XIX; ciência, arte e política da beleza; aborto e direitos humanos.

Informamos ao nosso público que, atestando a expansão do campo de estudos de gênero e feminismo, a Revista tem recebido em média 15 artigos novos por mês. Isso nos tem garantido a oportunidade de uma seleção ampla e de apresentar às/aos nossas/os leitoras/es um grande leque de temáticas. Gostaríamos de agradecer a todas as pessoas que enviam seus textos, pois certamente têm contribuído para a qualidade desta publicação, sua multidisciplinaridade e amplitude de temas e de discussões teórico-metodológicas. Destacamos, ainda, que o número de contribuições vindas principalmente de pesquisadoras/es de vários países da América Latina tem aumentado, assegurando a conseqüente ampliação do número de artigos publicados em espanhol.

Finalmente, assinalamos que a edição deste número se encerra em meio a uma conjuntura especialmente favorável à expansão do campo dos estudos de gênero no Brasil. Consideramos que seis acontecimentos recentes, dada a sua importância, merecem ser mencionados e celebrados:

1) na sua oitava edição, realizada no campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), entre 25 e 28 de agosto de 2008, o Seminário Internacional Fazendo Gênero superou as edições anteriores em número de participantes (3.000), reunindo 1.800 trabalhos, 72 simpósios e 22 mesas redondas, além de outras atividades.3 3 O evento recebeu o apoio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), da Fundação de Apoio à Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado de Santa Catarina (FAPESC) e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Os diálogos estabelecidos entre as/os presentes demonstraram tanto a persistência do interesse pelo campo por parte das pioneiras gerações de pesquisadoras/es, quanto a expansão desse interesse pelas novas gerações. A Mostra Áudio-visual e a Mostra Fotográfica foram também muito apreciadas.

2) depois da criação do primeiro Programa de Pós-Graduação sobre Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM) criou o primeiro curso de graduação em Gênero e Diversidade do Brasil nas modalidades de licenciatura e bacharelado. O curso será oferecido pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) a partir do vestibular de 2009. Essa iniciativa pioneira no país certamente reflete a importância do campo ao mesmo tempo que garantirá a expansão do seu potencial;

3) a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) abriu (até o dia 31 de outubro de 2008) as inscrições para a 4ª edição do Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero. O Prêmio resulta da parceria entre essa Secretaria, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Ministério da Educação e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher.

4) o Instituto de Estudos de Gênero (IEG) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) implementará o curso de formação continuada Gênero e Diversidade na Escola (GDE), que integra a Rede de Educação para a Diversidade, um programa do Ministério da Educação, em parceria com a Universidade Aberta do Brasil (UAB) e a Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM). O objetivo do curso é introduzir nas reflexões e na prática pedagógica de professoras/es da educação básica brasileira temáticas de gênero, raça/etnia e orientação sexual.4 4 O curso será oferecido na modalidade a distância para dez pólos UAB no Estado: Blumenau, Braço do Norte, Canoinhas, Chapecó, Concórdia, Florianópolis, Itajaí, Itapema, São José e Videira. O curso tem 180 horas, com início em março de 2009. As aulas serão ministradas por professoras/es formadoras/es através de um Ambiente Virtual de Ensino Aprendizagem (AVEA) e CD-ROM. Haverá encontros presenciais e o apoio permanente de tutoras/es, presenciais e a distância.

5) o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), através do Edital nº 57/2008, abriu inscrições para financiar projetos de pesquisas nas áreas de relações de gênero, mulheres e feminismo. As inscrições puderam ser feitas até o dia 20 de outubro de 2008. O valor global a ser investido atinge cinco milhões de reais.

6) foi aprovado pelo Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (PROCAD), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), o projeto intitulado "Gênero e Ciências: Feminismos, Sexualidades e Violências", tendo como objetivo a consolidação do campo de estudos de gênero no Brasil, através da articulação entre a área de concentração de Estudos de Gênero do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - parceira do Instituto de Estudos de Gênero (IEG) - e o Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGEIMGF), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), vinculado ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher (NEIM). Entre 2008 e 2011, estão previstas várias atividades que fortalecerão o diálogo entre os programas envolvidos, facilitando-se, entre outras iniciativas, a circulação entre docentes e discentes e a elaboração de publicações conjuntas.

Entre o pesar diante da persistência da condenação de mulheres por realizarem abortos e a esperança diante do debate público que sinaliza os resultados positivos de uma maior discussão das questões relativas ao gênero, aos direitos das mulheres e ao feminismo na sociedade brasileira, desejamos a todas e todos uma leitura proveitosa e crítica deste número. Esperamos continuar recebendo contribuições para esta revista que pretende prosseguir como um fórum de debates - teóricos, políticos, críticos, culturais - no campo dos estudos feministas.

Cristina Scheibe Wolff e Luzinete Simões Minella

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    Fonte: Bondenews (
  • 2
    Publicado em PHILIPS, Anne (ed.).
    Feminism and Politics. New York, Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 116-141. Col. Oxford Readings in Feminism.
  • 3
    O evento recebeu o apoio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), da Fundação de Apoio à Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado de Santa Catarina (FAPESC) e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
  • 4
    O curso será oferecido na modalidade a distância para dez pólos UAB no Estado: Blumenau, Braço do Norte, Canoinhas, Chapecó, Concórdia, Florianópolis, Itajaí, Itapema, São José e Videira. O curso tem 180 horas, com início em março de 2009. As aulas serão ministradas por professoras/es formadoras/es através de um Ambiente Virtual de Ensino Aprendizagem (AVEA) e CD-ROM. Haverá encontros presenciais e o apoio permanente de tutoras/es, presenciais e a distância.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2008
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