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Aleitamento materno ou artificial: práticas ao sabor do contexto. Brasil (1960-1988)

The artificial milk feeding or breast feeding: context dependant practices. Brazil, 1960-1988

Resumos

Este estudo teve por objetivo a análise do discurso sobre o aleitamento, no período de 1960-1988, no Brasil, em reportagens veiculadas em revistas femininas de grande circulação no País. O estudo é centrado na área de História, especialmente na história da alimentação, com uma abordagem interdisciplinar. O período inicial - 1960 - está vinculado com o final do governo de Juscelino Kubitschek, em que a economia, liderada pelo setor industrial, cresceu em termos relativos e absolutos. O período final - 1988 - caracteriza a aprovação da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes (NBCAL), que restringiu a ação do marketing do leite em pó. A mudança nos enunciados dos discursos foi uma característica evidenciada. No período em que se apregoava o aleitamento artificial, o enunciado principal dos discursos foi a condição feminina, a valorização da mulher e o seu direito à liberdade. Com o retorno do incentivo ao aleitamento materno, os discursos foram radicais na defesa dessa prática, minimizando as dificuldades enfrentadas pela mulher em seu cotidiano.

aleitamento; marketing; discurso médico


The aim of this study was the discourse analysis on breast feeding from 1960 through 1988 in Brazil, on articles published in famous women magazines. The focus of the study is the History area, mainly the Feeding History, with an interdisciplinary approach. The initial period - 1960 - is linked with the end of Juscelino Kubitschek's Government, when the economy, guided by the industrial sector, had grown in relative and absolute terms. The final period - 1988 - characterizes the Brazilian Norm of Suckling Feeding Business approval, which restricted the milk powder marketing. The change on discourses enunciates was very evident. During the period the artificial breast feeding was stimulated, the discourse main enunciate was the women's condition, women's valorization and their right of freedom. With the re-encouragement to the women breast feeding the discourses were totally on this usage defense, minimizing women's daily difficulties.

Feeding; Marketing; Medical Discourse


ARTIGOS TEMÁTICOS

CORPO, SEXUALIDADE E SAÚDE: POLÍTICAS, DISCURSOS E PRÁTICAS

Aleitamento materno ou artificial: práticas ao sabor do contexto. Brasil (1960-1988)

The artificial milk feeding or breast feeding: context dependant practices. Brazil, 1960-1988

Suely Teresinha Schmidt Passos de Amorim

Universidade Federal do Paraná

RESUMO

Este estudo teve por objetivo a análise do discurso sobre o aleitamento, no período de 1960-1988, no Brasil, em reportagens veiculadas em revistas femininas de grande circulação no País. O estudo é centrado na área de História, especialmente na história da alimentação, com uma abordagem interdisciplinar. O período inicial - 1960 - está vinculado com o final do governo de Juscelino Kubitschek, em que a economia, liderada pelo setor industrial, cresceu em termos relativos e absolutos. O período final - 1988 - caracteriza a aprovação da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes (NBCAL), que restringiu a ação do marketing do leite em pó. A mudança nos enunciados dos discursos foi uma característica evidenciada. No período em que se apregoava o aleitamento artificial, o enunciado principal dos discursos foi a condição feminina, a valorização da mulher e o seu direito à liberdade. Com o retorno do incentivo ao aleitamento materno, os discursos foram radicais na defesa dessa prática, minimizando as dificuldades enfrentadas pela mulher em seu cotidiano.

Palavras-chave: aleitamento; marketing; discurso médico.

ABSTRACT

The aim of this study was the discourse analysis on breast feeding from 1960 through 1988 in Brazil, on articles published in famous women magazines. The focus of the study is the History area, mainly the Feeding History, with an interdisciplinary approach. The initial period - 1960 - is linked with the end of Juscelino Kubitschek's Government, when the economy, guided by the industrial sector, had grown in relative and absolute terms. The final period - 1988 - characterizes the Brazilian Norm of Suckling Feeding Business approval, which restricted the milk powder marketing. The change on discourses enunciates was very evident. During the period the artificial breast feeding was stimulated, the discourse main enunciate was the women's condition, women's valorization and their right of freedom. With the re-encouragement to the women breast feeding the discourses were totally on this usage defense, minimizing women's daily difficulties.

Key Words: Feeding; Marketing; Medical Discourse.

Introdução

Talvez seja o aleitamento materno a prática alimentar mais discutida e estudada em todos os tempos. Sua exaltação ou crítica dependem do momento histórico e cultural por que passa a sociedade.1 1 Agradecemos ao Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos pelo incentivo e pela orientação, e ao Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição da Região Sul (CECAN/Sul) pelo apoio financeiro. Em determinadas épocas, amamentar era considerado um ato apenas aceito para as mulheres de classe social inferior, portanto, desvalorizado entre os grupos sociais mais abastados, e o aleitamento mercenário ou o artificial eram os responsáveis pela sobrevivência - ou pela mortalidade - das crianças.2 2 O(a) leitor(a) poderá encontrar mais detalhes em: João A. ALMEIDA, 1999; Elizabeth BADINTER, 1985; Jurandir F. COSTA, 1979; e Marília B. MARQUES, 2000. Em outros períodos, especialmente quando a desnutrição e a mortalidade infantil atingiram índices muito elevados e representaram um alto custo para os cofres públicos, os valores foram invertidos e a amamentação voltou a ser importante e até apresentada como a solução para esses problemas. Com maior ou menor intensidade, por motivos semelhantes ou diferentes, essas alternâncias no tempo fazem parte da história da amamentação.

No Brasil, as transformações sociais, econômicas, políticas e culturais que caracterizaram o século XX - especialmente a partir da sua segunda metade - tiveram influência no tipo de aleitamento ministrado à criança nos primeiros meses de vida.

A partir da consolidação industrial no período de 1955-1961,3 3 Luiz C. B. PEREIRA, 1983, p. 49. a indústria de leite em pó expandiu-se, contribuindo para a difusão do aleitamento artificial em detrimento do aleitamento materno, situação que permaneceu até o início da década de 80.

No final da década de 70, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), em reunião conjunta, expressaram a necessidade da promoção da saúde e da nutrição infantil, tendo como principal recomendação a todos os governos o incentivo ao aleitamento materno.4 4 OMS/UNICEF, 1979, p. 5. Em 1981, foi criado o Código Internacional de Marketing dos Substitutos do Leite Materno, que o Brasil traduziu em Norma em 1988. Também em 1981 o Ministério da Saúde implantou o Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno (PNIAM), com várias estratégias de ação na área de educação, saúde, controle estatal da propaganda de alimentos infantis e respeito a leis de proteção à nutriz, entre outras.5 5 Marina F. RÉA e Tereza. S. TOMA, 2000.

Nesse sentido, este estudo teve por objetivo a análise do discurso sobre o aleitamento, no período de 1960-1988, no Brasil, em reportagens veiculadas em revistas femininas de grande circulação no País.

Embora centrado na área de História, especialmente na história da alimentação, este estudo teve uma abordagem interdisciplinar. O método utilizado foi a análise do discurso, entendendo que esse discurso se refere ao documento histórico - aqui representado pelos textos das reportagens sobre aleitamento -, considerando-se, para a sua análise, o contexto em que foram produzidos.

O período inicial do estudo - 1960 - está vinculado com o final do governo de Juscelino Kubitschek, em que a economia, liderada pelo setor industrial, cresceu em termos relativos e absolutos. Entre os diversos setores industriais expandidos e modernizados, como os de energia, transportes e indústria de base, incluiu-se também o setor de alimentação.

O período final - 1988 - caracteriza a aprovação pelo Conselho Nacional de Saúde e a homologação através de Portaria Ministerial da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes de documento que restringiu a ação do marketing da indústria de leite em pó. Consideramos, ainda, que as principais medidas estabelecidas pelo PNIAM já tinham sido implantadas, o que permitiu a análise de suas repercussões nos discursos sobre aleitamento materno.

As fontes utilizadas foram reportagens sobre aleitamento, publicadas em revistas de grande circulação e destinadas ao público feminino, como Cláudia - lançada em 1961 - e Pais e Filhos - lançada em 1968. Essas reportagens, em sua maioria, eram assinadas por um jornalista assessorado por um médico, geralmente pediatra, ou por um nutricionista. Essas, assim como outras revistas femininas da época, apresentam várias faces da mulher: ao mesmo tempo que mostram a mulher rompendo com papéis tradicionais, também reproduzem o modelo dominante. Tais características podem ser identificadas nas reportagens analisadas neste artigo.

Para complementar as informações transmitidas para o grande público, utilizamos também a revista O Cruzeiro - lançada em 1928 -, especialmente os periódicos publicados no final da década de 50 e início da de 60.

Aleitamento materno e/ou artificial: o discurso de suas práticas

No período estudado - 1960-1988 -, ocorreram importantes mudanças nos discursos de profissionais de saúde e de instituições oficiais e não-governamentais sobre a alimentação infantil no primeiro ano de vida, especialmente quanto à orientação sobre o tipo de aleitamento a ser ministrado à criança.

As reportagens sobre alimentação infantil nos primeiros meses de vida, publicadas nas revistas analisadas, especialmente no início do período em estudo, abordavam tanto a prática do aleitamento materno como a do artificial com leite em pó. Este último era apresentado, de modo explícito, como uma alternativa a ser considerada ou, de maneira implícita, ao mostrar as dificuldades para a realização da amamentação, que acabavam por conduzir a leitora a optar pelo leite em pó ou por sugerir essa opção. De uma maneira ou de outra, o leite industrializado estava presente quando o tema era a alimentação do recém-nascido.

No final da década de 50, a revista O Cruzeiro publicou uma reportagem em que orientava a mãe para a amamentação bem-sucedida, em sintonia com o discurso médico do período:

para assegurar à mãe suficiente secreção láctea, deve ela ter repouso físico e mental, bem como serenidade e confiança, ajustados a uma alimentação sadia, com taxas suficientes de proteínas, sais minerais e vitaminas. Detalhe importante no aleitamento da criança é que o lactente deverá estar bem acordado, humorado, demonstrando ter fome e o ambiente devendo ser tranqüilo, fraldas secas, sem agasalho excessivo, narinas livres e posição confortável. Isto é importante.6 6 O CRUZEIRO, Rio de Janeiro, n. .3, p. 88-95, nov. 1958.

Essas orientações descrevem uma situação possivelmente desejada pelas mães, porém o autor da reportagem idealiza o cotidiano materno e não faz referência aos problemas que, com freqüência, a mulher precisa enfrentar por ocasião do nascimento de um filho, como: conjugar o tempo a ele dedicado com os demais afazeres da casa ou até com o trabalho fora dela; estar tranqüila, serena e descansada, quando a inexperiência da maternidade a deixa insegura e quando pode ser acometida a uma depressão pós-parto; e conciliar a atenção aos outros filhos e ao recém-nascido, cuja causa do choro, na maioria das vezes, ela ainda não aprendeu a identificar. Ainda, segundo a reportagem, ela deveria ter uma alimentação equilibrada, isto é, com todos os nutrientes e na quantidade exigida pela condição especial de seu organismo de lactante.

Sabemos que todas as lactantes deveriam usufruir de condições adequadas para que a amamentação ocorresse: sem pressa, sem estresses, sem pressão, em ambiente tranqüilo e que tanto a mãe como a criança gozassem de bem-estar físico e emocional. Como tal situação, pelos motivos já abordados, seria privilégio de poucas, a insistência no ambiente ideal poderia levar a mãe a convencer-se da qualidade do leite em pó e de que a prática do aleitamento artificial não seria tão desgastante quanto a do materno, pelo menos nos aspectos físico e emocional. Tamanha exigência poderia levar a mãe a acreditar que a mamadeira exigiria menos trabalho, seu filho estaria bem alimentado e, por isso, tal troca poderia até ser-lhe benéfica.

Mesmo se tratando de um período em que houve um aumento da participação feminina no mercado de trabalho, predominava ainda o conceito de que a mulher deveria dedicar-se ao lar e, por isso, era prática comum interromper seu trabalho em razão do casamento ou com a chegada do primeiro filho. Conforme aponta Carla Bassanezi, entre os anos 50 e 60, a mulher de classe média trabalhava fora de casa quando a renda do marido não era suficiente, ou seja, por necessidades econômicas. Porém, era responsável por todas as tarefas domésticas, pelo cuidado dos filhos e por adequar o salário do marido às necessidades do lar.7 7 Carla BASSANEZI, 1997, p. 625.

Se para a mãe de classe média, em sua maioria dedicada inteiramente à família, não era fácil conseguir amamentar seu filho de acordo com as condições ideais preconizadas pelos profissionais de saúde, para a mãe da camada mais pobre da sociedade, que precisava contribuir com o orçamento familiar, sujeita, portanto, a uma jornada dupla de trabalho, as dificuldades eram ainda maiores.

Embora o apoio à mulher que trabalhava e amamentava, segundo Carmen Barroso,8 8 Carmen BARROSO, 1982. estivesse previsto em Lei desde 1943, a falta de creches e a preocupação da mãe com os filhos pequenos enquanto trabalhava foram temas de publicação na revista O Cruzeiro: "não há um número suficiente de creches e berçários aptos a atender tantas mães que têm de ajudar seus esposos na luta pela vida".9 9 O CRUZEIRO, Rio de Janeiro, n. 31, p. 63-67, maio 1959. O problema é abordado como característico dos grandes centros urbanos, onde as atividades das mulheres concentravam-se nos escritórios, nas repartições públicas, nas fábricas, no comércio, nas profissões liberais. Contudo, poucos desses locais ou instituições estavam aptos a atender adequadamente a seus filhos.

Nesse sentido, mesmo que a amamentação fosse estimulada, a sociedade não apoiava a mulher para fazê-la, e a opção pelo aleitamento artificial ficou evidente na seqüência do texto da reportagem em análise: "Atualmente com os aperfeiçoamentos dos leites em pó, a composição mais próxima do leite humano e com os cuidados higiênicos com os utensílios para o seu preparo, dão os pediatras preferência a esse tipo, quando houver necessidade".10 10 O CRUZEIRO, Rio de Janeiro, n. 3, p. 88-95, nov. 1958. O enunciado não refere que tipo de necessidade justificaria a adoção do leite em pó. Entretanto, percebe-se nesse texto, como em tantos outros do período em estudo, que, com a produção dos leites modificados e com sua fórmula aproximada do leite humano, o discurso, embora defendendo a importância da amamentação, colocava-a como substituível, procurando tranqüilizar a mulher que não pudesse amamentar. O texto continuou seguindo a linha de que o aleitamento materno era fundamental, porém apontava a possibilidade do aleitamento misto e, se necessário, apenas o aleitamento artificial.

Durante todo o período em que se discursou sobre o tipo de aleitamento a ser empregado na alimentação de crianças, invariavelmente a orientação impressa ou a contida nas mensagens publicitárias foi a de que a decisão da mãe só fosse tomada em conjunto ou depois de uma consulta ao pediatra ou ao obstetra. Mesmo em situações em que amamentar ou não dependia única e exclusivamente da vontade materna, a mãe era aconselhada a consultar o médico, que sempre reivindicava sua participação em decisões sobre a alimentação infantil. Nesse sentido, a indústria utilizou o conhecimento e o prestígio da medicina para divulgar e orientar o aleitamento artificial, e, por seu lado, os médicos reafirmaram o seu poder, tomando para si a incumbência de prescrever as fórmulas lácteas a serem ministradas às crianças.

É o pediatra quem indica qual o tipo de leite adequado para o seu filho. É ele quem vai modificando o leite à medida que a criança cresce.11 11 CLÁUDIA, São Paulo, p. 241, out. 1970.

O pediatra é a única pessoa capacitada para dizer qual o tipo de leite em pó recomendado para seu filho.12 12 CLÁUDIA, São Paulo, p. 194, out. 1976.

Com tantas possibilidades de escolha [referindo-se aos leites em pó], é melhor que você siga à risca a receita de seu pediatra. Ele lhe dirá que leite escolher e como prepará-lo.13 13 PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 89, maio 1972.

Percebe-se que a implementação do aleitamento artificial está na raiz dos discursos, do mesmo modo que o pediatra passa a ser visto como um sujeito ativo na vida da mãe e do filho.

Desde as décadas de 30 e 40 até depois da Segunda Guerra, os pediatras brasileiros seguiam a orientação da escola alemã, dando um valor extraordinário ao preparo de fórmulas.14 14 Walter TELLES, 1996, p. 277-280. Esse tipo de comportamento perdurou por várias décadas, sendo observado em, praticamente, todos os discursos sobre alimentação no primeiro ano de vida.

Em fevereiro de 1969, a revista Pais e Filhos publicou uma reportagem15 15 PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 33-37, fev. 1969. em que se analisam pormenorizadamente as dificuldades que uma primípara encontrava para amamentar. Em seu relato fica evidente a preocupação com os horários das mamadas, estabelecidos pelo pediatra, os quais não conseguia cumprir porque a criança, segundo ela, tinha um "apetite voraz", levando-a a pensar que seu leite não era suficiente para alimentar o bebê. "Meu filho grita como se estivesse sofrendo muito", o que lhe causava também muito sofrimento. Nesse período, os pediatras estabeleciam um horário rígido de amamentação, geralmente de três em três horas, com duração de 15 minutos em cada seio e que deveria ser seguido pela mãe.

Na terceira semana, a mãe relatou o seguinte: "O pediatra acabou de diagnosticar - é fome. Indicou um leite artificial para complementar as mamadas ao seio e aconselhou que eu dê a mamadeira sempre depois do seio, para que o leite continue".16 16 PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 35, fev. 1969. A inexperiência da mãe, aliada às orientações inadequadas ou insuficientes do médico, levou ao aleitamento misto e, em seguida, ao aleitamento artificial.

Em seu depoimento, a mãe relatou sua preocupação com o retorno ao trabalho, a influência dos familiares, as noites maldormidas, os compromissos sociais e sua culpa, especialmente quando o obstetra condena sua decisão em interromper a amamentação no final do segundo mês. Na tentativa de diminuir a culpa, prefere pensar que com o próximo filho conseguirá "conduzir as coisas de modo diferente [...]"17 17 PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 36, fev. 1969. provavelmente com base em sua malsucedida experiência, pois, durante vários anos, os profissionais de saúde permaneceram com a mesma orientação, não somente em relação à freqüência e à duração das mamadas, como também à pouca valorização do aleitamento materno.18 18 Mais detalhes sobre a atuação dos profissionais de saúde em relação ao aleitamento poderão ser encontrados em: ALMEIDA, 1999; e RÉA, 2003a e 2003b.

A preocupação das mães de amamentar seus filhos, a responsabilidade com o êxito desse processo e o sentimento de culpa quando a amamentação não é bem-sucedida têm origem no último terço do século XVIII, quando, segundo Elizabeth Badinter, a imagem, o papel e a importância da mãe no cuidado de sua prole são modificados de maneira radical. A partir daí, as publicações "impõem à mulher a obrigação de ser mãe antes de tudo" e criam o mito que perdura há mais de dois séculos: "o do instinto materno, ou do amor espontâneo de toda mãe pelo filho".19 19 BADINTER, 1985, p. 145.

A condenação da mulher pelo fato de não conseguir (ou não querer) amamentar seus filhos foi uma das tônicas do movimento higienista, que no Brasil foi importante para a definição de políticas públicas e para a formação dos médicos a partir da segunda metade do século XIX e do início do século XX, pois até então a amamentação das crianças não era tratada como uma questão de "amor materno". Além disso, ela foi considerada também uma questão de saúde pública. Pela primeira vez, segundo Jurandir Freire Costa,20 20 COSTA, 1979, p. 258. as mães estavam sendo informadas de que não sabiam cuidar dos filhos, e "os higienistas utilizavam este desconhecimento ou esta ignorância para obrigar as mulheres a amamentarem. Sem amamentação, diziam eles, não havia amor". Nesta época, a alternativa para o aleitamento materno eram as amas-de-leite, geralmente escravas, e, posteriormente (início do século XX), as não escravas, mas pobres.21 21 COSTA, 1979; e ALMEIDA, 1999.

O discurso que associa a amamentação ao amor materno voltou com toda força a partir do retorno do incentivo ao aleitamento materno, na segunda metade da década de 70, e perdura até os dias atuais.

Desde o início do período em estudo até meados da década de 70, a maioria dos discursos publicados nas revistas analisadas valorizava a amamentação, sempre destacando as vantagens dessa prática para a criança, ao mesmo tempo que considerava as dificuldades que a mulher encontrava ao tentar realizá-la, e na sua impossibilidade a orientação se dava no sentido da adoção do leite em pó. Uma reportagem, por exemplo, argumenta que havia mães que, mesmo sem apresentar nenhuma causa orgânica, não conseguiam ter leite suficiente ou o seu leite não descia, e o motivo geralmente estava na ansiedade, aliada, algumas vezes, ao choro do bebê, às responsabilidades profissionais, às influências familiares, entre outros. Para essas situações, a autora do texto recomenda que, depois da consulta ao pediatra e ao obstetra, a mãe optasse pela mamadeira, acrescentando que a prescrição de um leite artificial para substituir o natural é "mais fácil hoje do que antigamente", sugerindo que a conduta dos profissionais de saúde em relação à alimentação do lactente sofreu modificações.22 22 PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 36, dez. 1971.

O desenvolvimento da indústria de leite assim como as transformações culturais por que passava a sociedade propiciavam a apresentação de alternativas para a alimentação infantil, cabendo à mulher - juntamente com o profissional de saúde - decidir pela conduta a ser seguida. Algumas reportagens posicionavam-se francamente a favor do aleitamento artificial, liberando ou tentando liberar as mulheres de qualquer culpa ou constrangimento.

A liberdade da mulher, as exigências da modernidade e o trabalho foram razões apontadas para a opção pelo aleitamento artificial: nesse período, a mãe que amamentasse poderia ser vista como antiquada ou fora de contexto. Outra reportagem23 23 PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 136, out. 1969. refere que, nos grandes centros urbanos, a alimentação artificial é a preferida por sua facilidade e segurança, e cita que nos Estados Unidos e Japão existiam mamadeiras prontas, cujos frascos eram descartáveis depois do uso. A referência, especialmente aos Estados Unidos, considerados como o centro da modernidade e de um estilo de vida a ser copiado, estimulava as mulheres a adotar a mamadeira.

A década de 60, inserida na "Era de Ouro",24 24 Expressão usada para o período de 25 a 30 anos, posterior à Segunda Guerra, em razão de seu extraordinário crescimento econômico e transformação social por Eric HOBSBAWM, 1995. foi também importante para as mulheres, especialmente para aquelas que lutavam por seus direitos. Nessa década fundou-se, nos Estados Unidos, a National Organization for Women (NOW), movimento feminista que causou enorme repercussão em todo o mundo. O Brasil passou a viver, a partir de 1964, uma ditadura militar, e o movimento feminista, tanto aqui como na América Latina em geral, viveu um momento de resistência das mulheres ao regime. A consciência feminista foi fortalecida por mulheres que atuavam em organizações políticas, em movimentos estudantis, em organizações acadêmicas politizadas, em partidos políticos progressistas, em movimentos guerrilheiros e, inclusive, por aquelas que foram exiladas.25 25 Ana Alice Alcântara COSTA, 2005.

Nessa mesma década, a pílula anticoncepcional passou a ser fabricada e difundida no Brasil, abrindo para as mulheres a possibilidade de planejar o nascimento dos filhos e, ao mesmo tempo, proporcionando-lhes maior liberdade sexual. O trabalho feminino, no Brasil, passou a ser regulamentado, sendo proibida a discriminação de sexo para nomeações em repartições públicas, autarquias ou entidades paraestatais.

Na década de 60, portanto, a vida feminina no Brasil passou por grandes transformações: foi uma época de repressão, mas também de participação nas manifestações contra o regime, de vida cultural intensa,26 26 Helen PETRY e Roberta D. V. O. SILVA, 2004. de avanço em algumas leis que favoreciam sua participação no mercado de trabalho e de acolhida do estilo de vida americano. E amamentar, em meio a todas essas transformações e acontecimentos, poderia ser considerado um obstáculo à liberdade da mulher.

Nesse sentido, com algumas exceções, as reportagens sobre alimentação do recém-nascido seguiam a orientação da praticidade e do maior conforto para a mulher. "Cada vez se torna menor o número de bebês alimentados ao seio. Será mais fácil dar mamadeira? Talvez. A mãe não fica presa ao bebê o dia inteiro e sabe exatamen-te o quanto ele mamou de cada vez".27 27 PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 89-91, maio 1972. Ao mesmo tempo que conquistava o seu espaço, a mulher tinha a tranqüilidade do controle sobre a alimentação do filho, feita por meio de fórmulas lácteas produzidas pela indústria, com o aval e a prescrição do pediatra.

A indústria de leite em pó aproveitou o momento para divulgar com tanta ênfase os seus produtos, que muitas reportagens escritas sob a consultoria de um pediatra trazem em seus textos as descrições e as marcas de leites que poderiam substituir o leite materno. Uma dessas reportagens, publicada pela revista Cláudia,28 28 CLÁUDIA, São Paulo, p. 241-242, out. 1970. exalta a amamentação para em seguida afirmar: "Se você não pode amamentar, não se assuste: há uma infinidade de produtos que fazem o nenê ficar gordinho em pouco tempo". As fórmulas lácteas facilmente levavam ao sobrepeso ou deixavam o bebê "gordinho", o que era considerado como sinônimo de robusto ou sadio, sendo esse mais um dos motivos da preferência da população pelo leite em pó. A reportagem é ilustrada com uma imagem de embalagens de produtos industrializados, como leites em pó e outros alimentos de desmame.

O teor desses discursos e o próprio contexto social e político levaram as mães a pensar no aleitamento "não como prova de dedicação ao bebê, mas como uma coisa de que você gosta. E de maneira alguma se desesperar se não puder amamentar",29 29 CLAÚDIA, São Paulo, p. 149-152, fev. 1981. o que tornou esse momento muito diferente da época em que as mulheres se sentiam culpadas quando não amamentavam. A preocupação com o bem-estar e a tranqüilidade da mulher é uma característica importante que aparece nesses enunciados, diferente do que aconteceu após o lançamento do PNIAM, quando o foco dos discursos foi a criança.

Nesse período, o "milagre econômico", ao mesmo tempo que provocou enormes desigualdades regionais e sociais, beneficiou muitos setores da sociedade, como a classe média, que teve acesso ao crédito fácil e pôde realizar sonhos antigos, como o de adquirir o primeiro (ou o segundo) automóvel, a casa própria e os eletrodomésticos que facilitaram as tarefas domésticas.

Os meios de comunicação, particularmente a televisão, tiveram um impacto muito grande no País, especialmente a partir do momento em que se iniciaram as primeiras transmissões em rede, em 1969.30 30 Renato ORTIZ, 1999. Na televisão, os setores médios da população encontravam o seu lazer. Através das novelas, dos programas de variedades e do telejornalismo, a população foi informada, embalada, anestesiada.31 31 Daniel ARAÃO REIS FILHO, 2001. A publicidade, que teve um grande desenvolvimento e crescimento no período, teve também um papel importante na expansão da indústria cultural, como também no estímulo ao consumo de bens duráveis e outros produtos que a indústria lançava no mercado.

O novo surto desenvolvimentista caracterizou-se, também, pelos novos bens de consumo oferecidos nos recém-inaugurados supermercados. Aderir aos reclames da publicidade, bem como dos meios de comunicação em geral, que informavam, mostravam novas possibilidades, descortinavam novos horizontes, era participar de um movimento de modernidade ao qual a mulher não podia ficar alheia. Cada vez mais, a mulher era estimulada a manifestar-se, a tomar decisões em relação à sua vida e ao seu futuro.

No mesmo momento em que os discursos sobre a alimentação infantil anunciavam que a prática do aleitamento materno deveria ser adotada e no mesmo mês e ano (fevereiro de 1981) em que foi lançado o PNIAM pelo Ministério da Saúde, uma reportagem da revista Cláudia segue o sentido oposto do discurso das instituições nacionais e internacionais, que associavam os baixos índices mundiais de aleitamento materno às altas taxas de desnutrição e mortalidade infantis.

Enquanto os discursos oficiais enfatizavam a importância do aleitamento materno para o desenvolvimento físico, mental e emocional da criança, a reportagem procurava defender a mulher da classe média, cujo filho podia ter um ótimo desenvolvimento sem, necessariamente, consumir o leite de sua mãe ou de outra mulher. Argumentava que, no hospital, eram tomadas todas as medidas de segurança para manter a criança viva e, mesmo que a mãe não amamentasse, poderia criar laços afetivos com o filho de outra maneira. "Um século depois do primeiro banho de éter, descobriu-se que o recém-nascido não pode desenvolver-se normalmente sem o direito ao seio e ao carinho. Seio que não quer dizer leite, mas corpo que aninha e afaga",32 32 CLÁUDIA, São Paulo, p. 149-152, fev. 1981. distinção essa que os organismos defensores do aleitamento materno não faziam e insistiam no argumento dos higienistas, para os quais amar era amamentar.

Aleitamento materno: a sacralização de uma prática

Durante décadas, a indústria de leite em pó desenvolveu-se a pleno vapor, sensibilizando profissionais da saúde para a divulgação e a prescrição dos chamados leites "maternizados" na alimentação dos lactentes. Nesse mesmo período, o governo brasileiro adquiriu leite em pó e distribuiu para crianças de famílias de menor renda, em postos de saúde e de puericultura, em todo o Brasil.

A partir de 1979, na reunião conjunta OMS/UNICEF sobre a alimentação de lactentes e crianças na primeira infância foi retomada a questão do "natural ou da natureza", já utilizada em outras épocas, para sensibilizar as mulheres e a sociedade sobre a importância do aleitamento materno e recomendar a todos os governos nacionais (inclusive o brasileiro) a fazê-lo. Os motivos dessa recomendação foram os altos índices de desnutrição e mortalidade infantil no Terceiro Mundo.33 33 OMS/UNICEF, 1979, p. 5-7.

Esses altos índices, provavelmente, tenham sido motivados pelas crises econômicas ocorridas em meados da década de 70, que, em razão do avanço tecnológico e da automatização na indústria, levaram milhões de trabalhadores ao desemprego e também pela crise do petróleo, que provocou recessões econômicas em todo o mundo e graves repercussões nos indicadores sociais dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Durante as "décadas de crise", como refere Eric Hobsbawm,34 34 HOBSBAWM, 1995. que compreenderam o período entre o início dos anos 70 até o início dos anos 90, os bens reais dos países pobres não acompanharam o crescimento de suas dívidas, tanto que os países que mantinham investimentos no Terceiro Mundo resolveram cancelar uma grande parte deles. Em conseqüência, as condições de vida, já precárias, de uma grande parcela da população agudizaram-se, dificultando ainda mais o seu acesso aos serviços de saúde e alimentação e aumentando as taxas de morbimortalidade infantil.

Outro fator que, possivelmente, influenciou a decisão dos organismos internacionais a manifestar-se e recomendar que novos rumos fossem tomados em relação à alimentação de lactentes e crianças foi a polêmica entre a indústria de leite em pó e os diversos grupos sociais. A causa dessa polêmica foi a publicação, em 1974, do livro The baby killer, escrito por Mike Muller, um jornalista inglês. Nessa publicação, Muller denunciou que a elevação dos índices de desnutrição e mortalidade infantil nas populações pobres da África, Ásia e América Central devia-se ao marketing das indústrias desses alimentos.35 35 ALMEIDA, 1999, p. 42.

Também no Brasil, na década de 70, especialmente a partir de 1975, foram publicados em revistas científicas, particularmente no Jornal de Pediatria - um dos mais importantes periódicos da área -,36 36 Luciana M. B. M. SOUZA e ALMEIDA, 2005. artigos que defendiam o aleitamento materno, destacando suas vantagens imunológicas e econômicas e sua importância como redutor da mortalidade infantil.

A declaração da OMS/UNICEF considerava o retorno ao aleitamento materno como uma estratégia de desenvolvimento. Em épocas anteriores, alguns pediatras brasileiros, preocupados com o descaso do governo e da sociedade em relação aos altos índices de mortalidade infantil, apelavam para a representação dessas mortes na economia do País.37 37 Ver textos de Martagão GESTEIRA, cujo original foi publicado em 1943, e de Fernando FIGUEIRA, 1989, os quais podem ser encontrados em Álvaro AGUIAR e Reinaldo M. MARTINS, 1996, p. 49-50 e p. 61-65, respectivamente. A salvação dos bebês estava ao alcance de todos os países, muito mais próxima e mais econômica do que se podia imaginar: no seio de suas mães.

Embora práticas aparentemente simples e eficientes como a amamentação pudessem contribuir para a diminuição dos óbitos infantis, não poderiam ser consideradas como única solução em países ou regiões onde a miséria predominava. Ao seu lado, deveriam ser implementadas políticas de distribuição de renda, medidas de saneamento básico, educação e acesso à saúde, entre outras.

Antecipando-se ao lançamento do PNIAM, em 1981, a maior parte das reportagens publicadas pelas revistas Cláudia e Pais e Filhos, a partir da segunda metade da década de 70, mostrara-se integralmente favorável ao aleitamento materno. Se em outras publicações - às vezes em revistas do mesmo ano - o aleitamento artificial era aceito e até incentivado, nessas não se aceitava sob nenhuma hipótese que a mulher não amamentasse. Não existiam contra-indicações ou impedimentos para o aleitamento materno. Se, até então, aceitava-se que a mulher poderia ter pouco leite ou simplesmente não ter, agora, "qualquer mulher sadia terá obrigatoriamente leite e a própria gestação e nascimento de um filho são a maior prova de que se é sadia",38 38 PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 41, jun. 1978. escamoteando-se, portanto, a possibilidade de qualquer enfermidade no período pré ou pós-natal.

Associado às chamadas de cunho científico, em que se orientava sobre a fisiologia das mamas ou o processo biológico da lactação, procurava-se provar que "a natureza é sábia"39 39 PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 121, maio 1979. comparando-se a mulher às fêmeas animais e invocando-se para a beleza e quase santidade que representa a maternidade: "não é possível conceber imagem mais perfeita da maternidade do que a visão de uma mulher amamentando. O leite que nela se forma através de intrincado mecanismo revela o mistério da vida".40 40 PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 118, out. 1979. Percebe-se, nesses discursos, a mesma associação entre natureza e divindade, apontada por Badinter,41 41 BADINTER, 1985. nos argumentos de militantes do aleitamento materno dos séculos XVIII e XIX, para os quais "lei da natureza" significava "lei divina".

Muitos dos motivos e apelos que pretendiam chamar a atenção das mulheres, no final do século XVIII e durante todo o século XIX, para que amamentassem seus filhos assemelhavam-se aos apresentados no último quarto do século XX. Embora um longo período de tempo tenha se passado, as razões que as mulheres contemporâneas apontam para não amamentar não diferem, na essência, daquelas de séculos anteriores, ou seja, a preocupação com o corpo e a sexualidade, as atividades e responsabilidades sociais e domésticas e o trabalho fora de casa ou (nos dias atuais) a realização profissional.

O prazer que a mulher sente ao amamentar - mesmo estando exposta aos maiores sacrifícios - e a recuperação mais rápida de sua forma física anterior à gestação, pois "os hormônios da amamentação embelezam"42 42 CLÁUDIA, São Paulo, p. 199-202, mar. 1984. e aceleram a involução do útero, são algumas das promessas dos discursos analisados.

Outra reportagem sugere que o fato de a mãe trabalhar fora, ter que cumprir horários rígidos, enfrentar trânsito ou ônibus superlotados, correr, realizar ou administrar todas as demais tarefas domésticas não a impedem de amamentar e nem diminuem a quantidade de seu leite: "Só não amamenta quem não quer. Esta é uma verdade que deve ser repetida, porque muita gente ainda a põe em dúvida".43 43 CLÁUDIA, São Paulo, p. 191, maio 1979. Assim, o processo da lactação e o ato de amamentar, nessas reportagens, estão na dependência total da vontade individual de cada mulher. De acordo com esses discursos, a possibilidade de não querer ou não desejar amamentar é considerada um capricho e por isso deve ser ignorada.

Nesse sentido, parece-nos que houve um exagero na construção desses enunciados, pois no afã de conseguir-se que todas as mães amamentassem seus filhos, o que, sem dúvida, seria o ideal, não se admitia qualquer impossibilidade, fosse ela orgânica, fisiológica, emocional ou social. Quando se trata da amamentação, os discursos são quase unânimes em associá-lo à grandeza do amor materno.

Qualquer dificuldade ou insucesso em relação à amamentação passou a ser atribuído, pelas instituições favoráveis ao aleitamento, a três personagens: em primeiro lugar, à mãe, pois como aceitar que "[...] negue a seu filho esse gesto de amor"?44 44 PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 82, nov. 1976. Até mesmo a rejeição ao leite materno pelo bebê devia-se à insegurança, revolta ou angústia da mãe que afetavam a criança, a qual passava a ter, segundo a reportagem, "ojeriza" não apenas ao leite mas até ao seu contato físico; o segundo responsável era o profissional de saúde, especialmente os pediatras, já que 30% dos recém-nascidos em São Paulo saíam das maternidades alimentados com mamadeira, por sua orientação.45 45 PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 86-87, jan. 1978. A desinformação desses profissionais sobre o aleitamento materno era muito grande, pois desde a década de 40 haviam sido sensibilizados para a utilização de substitutos do leite materno, de acordo com os preceitos da pediatria alemã e, mais tarde, da americana; e à medida que a indústria do leite em pó - o terceiro responsável pelos baixos índices de aleitamento materno - expandia-se e utilizava todos os recursos de marketing para a divulgação de seus produtos, intensificou-se a motivação dos profissionais de saúde para a adoção do aleitamento artificial.

Ao atribuírem parte da responsabilidade pelo declínio da amamentação às mães e aos profissionais de saúde, as instituições governamentais davam uma resposta ao problema e tentavam saná-lo com medidas de orientação e treinamento aos dois segmentos. Em relação à indústria, em 1988, o governo aprovou a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes, a qual foi revisada em 1992.

Considerações finais

A mudança nos enunciados dos discursos foi uma característica que evidenciamos em nosso estudo. Os discursos favoráveis a uma ou outra forma de aleitamento estiveram sempre ao sabor do contexto ou de acordo com interesses sociais, econômicos e políticos. Determinadas condições biológicas ou psicológicas da mãe poderiam ser razões para justificar a opção pelo aleitamento artificial em determinado momento ou serem consideradas como tabu ou má vontade para amamentar em outro.

No período em que se apregoava o aleitamento artificial, o enunciado principal dos discursos foi a condição feminina, a valorização da mulher e seu direito à liberdade. O marketing da indústria de alimentos soube explorar, com muita competência, esse contexto histórico. A ênfase no trato com a criança ficava por conta de uma alimentação nutricionalmente equilibrada, semelhante ou até superior ao leite materno e ao afeto dispensado pela mãe. Contudo, o afeto não estava vinculado ao ato de amamentar. Benefícios que somente o leite materno é capaz de proporcionar, como a proteção imunológica, nesse momento, não foram valorizados. Nesse período, práticas como a amamentação ou o preparo de alimentos para crianças, nas cozinhas domésticas, não combinavam com a mulher que se julgava moderna. A indústria com toda a oferta de alimentos prontos e semiprontos, especialmente preparados para nutrir adequadamente as crianças, assumiria essas tarefas.

Por ocasião do retorno do incentivo ao aleitamento materno, os discursos que tentaram convencer as mulheres de que deveriam amamentar foram radicais na defesa dessa prática, deixando de considerar ou minimizando as dificuldades enfrentadas em seu cotidiano. A amamentação foi sacralizada e passou a ser confundida com amor e dedicação ao filho, enquanto a culpa voltou a assediar as mulheres que não desejavam ou que não conseguiam amamentar. Nesse momento, a valorização da criança, seu crescimento e desenvolvimento adequado e sua proteção contra morbidades que poderiam facilmente levá-la à morte foram o argumento dos discursos em defesa do aleitamento materno.

Os enunciados desses discursos enfatizavam que todas as mulheres, independentemente de sua condição social, física ou emocional, tinham condições de amamentar. As vantagens do aleitamento materno foram enfatizadas de modo a não deixar dúvidas sobre sua importância no desenvolvimento orgânico e emocional da criança. Porém, as dificuldades na realização dessa prática não foram colocadas em pauta, o que foi um equívoco. Os problemas que a mulher enfrenta para amamentar, independentemente de sua intensidade, não devem ser omitidos ou subestimados.

Ao afirmarem que toda mulher tem condições e deve amamentar, os órgãos promotores do aleitamento desconsideraram sua capacidade de decisão. Enquanto o marketing da indústria se fez maternal, ao divulgar os benefícios que seus produtos traziam à mulher e à criança, os enunciados dos discursos analisados, favoráveis à amamentação, escamoteavam qualquer possibilidade contrária à realização dessa prática.

Ao compararmos os discursos do período de 1960 até o final da década de 70, quando se disseminou o aleitamento artificial, com o período posterior, radicalmente favorável à amamentação, verificamos que ambos subestimaram a capacidade de decisão da mulher. No primeiro momento, em pleno movimento feminista, embora se valorizasse a mulher, a decisão sobre a alimentação de seu filho foi transferida ou, no mínimo, compartilhada com o pediatra. Foi a estratégia utilizada pela indústria, com importantes resultados a seu favor. No segundo momento, a decisão já havia sido tomada pelas instituições oficiais de saúde: toda mulher tinha condições e deveria amamentar.

A mulher, de qualquer camada social ou econômica, de qualquer nível de instrução, deve ser considerada como um ser que tem condições de decidir seu próprio destino e, nesse caso, o tipo de aleitamento de seu filho, desde que lhe sejam dadas informações e possibilidades de escolha.

Em todo o processo de disseminação do aleitamento artificial, a indústria teve como aliados o Governo e a própria conjuntura histórica, política e cultural da sociedade brasileira no período. A cultura do aleitamento artificial foi implantada com tanta ênfase que reverter o processo não tem sido uma tarefa fácil para as instituições oficiais e os órgãos não-governamentais específicos.

Recebido em setembro de 2006 e aceito para publicação em abril de 2007

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  • 1
    Agradecemos ao Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos pelo incentivo e pela orientação, e ao Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição da Região Sul (CECAN/Sul) pelo apoio financeiro.
  • 2
    O(a) leitor(a) poderá encontrar mais detalhes em: João A. ALMEIDA, 1999; Elizabeth BADINTER, 1985; Jurandir F. COSTA, 1979; e Marília B. MARQUES, 2000.
  • 3
    Luiz C. B. PEREIRA, 1983, p. 49.
  • 4
    OMS/UNICEF, 1979, p. 5.
  • 5
    Marina F. RÉA e Tereza. S. TOMA, 2000.
  • 6
    O CRUZEIRO, Rio de Janeiro, n.
    .3, p. 88-95, nov. 1958.
  • 7
    Carla BASSANEZI, 1997, p. 625.
  • 8
    Carmen BARROSO, 1982.
  • 9
    O CRUZEIRO, Rio de Janeiro, n. 31, p. 63-67, maio 1959.
  • 10
    O CRUZEIRO, Rio de Janeiro, n. 3, p. 88-95, nov. 1958.
  • 11
    CLÁUDIA, São Paulo, p. 241, out. 1970.
  • 12
    CLÁUDIA, São Paulo, p. 194, out. 1976.
  • 13
    PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 89, maio 1972.
  • 14
    Walter TELLES, 1996, p. 277-280.
  • 15
    PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 33-37, fev. 1969.
  • 16
    PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 35, fev. 1969.
  • 17
    PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 36, fev. 1969.
  • 18
    Mais detalhes sobre a atuação dos profissionais de saúde em relação ao aleitamento poderão ser encontrados em: ALMEIDA, 1999; e RÉA, 2003a e 2003b.
  • 19
    BADINTER, 1985, p. 145.
  • 20
    COSTA, 1979, p. 258.
  • 21
    COSTA, 1979; e ALMEIDA, 1999.
  • 22
    PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 36, dez. 1971.
  • 23
    PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 136, out. 1969.
  • 24
    Expressão usada para o período de 25 a 30 anos, posterior à Segunda Guerra, em razão de seu extraordinário crescimento econômico e transformação social por Eric HOBSBAWM, 1995.
  • 25
    Ana Alice Alcântara COSTA, 2005.
  • 26
    Helen PETRY e Roberta D. V. O. SILVA, 2004.
  • 27
    PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 89-91, maio 1972.
  • 28
    CLÁUDIA, São Paulo, p. 241-242, out. 1970.
  • 29
    CLAÚDIA, São Paulo, p. 149-152, fev. 1981.
  • 30
    Renato ORTIZ, 1999.
  • 31
    Daniel ARAÃO REIS FILHO, 2001.
  • 32
    CLÁUDIA, São Paulo, p. 149-152, fev. 1981.
  • 33
    OMS/UNICEF, 1979, p. 5-7.
  • 34
    HOBSBAWM, 1995.
  • 35
    ALMEIDA, 1999, p. 42.
  • 36
    Luciana M. B. M. SOUZA e ALMEIDA, 2005.
  • 37
    Ver textos de Martagão GESTEIRA, cujo original foi publicado em 1943, e de Fernando FIGUEIRA, 1989, os quais podem ser encontrados em Álvaro AGUIAR e Reinaldo M. MARTINS, 1996, p. 49-50 e p. 61-65, respectivamente.
  • 38
    PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 41, jun. 1978.
  • 39
    PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 121, maio 1979.
  • 40
    PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 118, out. 1979.
  • 41
    BADINTER, 1985.
  • 42
    CLÁUDIA, São Paulo, p. 199-202, mar. 1984.
  • 43
    CLÁUDIA, São Paulo, p. 191, maio 1979.
  • 44
    PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 82, nov. 1976.
  • 45
    PAIS E FILHOS, Rio de Janeiro, p. 86-87, jan. 1978.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2008

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2007
    • Recebido
      Set 2006
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