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Apresentação

DOSSIÊ 120 ANOS DA ABOLIÇÃO

Apresentação

Matilde RibeiroI; Flávia PiovesanII

INúcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Sociais - Nemos (PUC/SP)

IIPontifícia Universidade Católica de São Paulo

Este dossiê, organizado por Matilde Ribeiro e Flávia Piovesan, tem o intuito de promover e divulgar reflexões e formulações de mulheres e homens (negros e brancos) - pesquisadores, estudiosos, profissionais e ativistas - que emprestam suas idéias ao necessário debate sobre igualdade e justiça racial no Brasil.

No dia em que foram completados 120 anos da Abolição da Escravidão, a dinâmica racial brasileira esteve mais uma vez estampada nas manchetes de jornais - "Um país injusto"1 1 CORREIO BRASILIENSE, 13 maio 2008. e "Negro ainda vive em região do porto".2 2 FOLHA DE S.PAULO, 13 maio 2008.

"País terá mais negros que brancos neste ano", essa foi a chamada da Folha de S.Paulo3 3 FOLHA DE S.PAULO, 14 maio 2008. anunciando estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada " Ipea no qual é apresentado o índice de negros e brancos: em 1976 o percentual era de 57,2% brancos e 40,1% negros; em 2006 o percentual passou a ser de 49,7% brancos e 49,5% negros. O mesmo estudo aponta que o universo de negros superará o de brancos na população e que, a partir de 2010, o País terá maioria absoluta de negros. No entanto, é também feito o alerta de que levará 32 anos para ocorrer uma equiparação entre as rendas de negros e brancos no País - isso se as políticas públicas continuarem sendo implementadas no mesmo ritmo de hoje.

Como vemos, a exclusão e o racismo ainda são fortes marcas de nosso tempo. O problema, contudo, não é mais a falta de reconhecimento da existência do racismo ou a ausência de caminhos institucionais que busquem assegurar direitos. Uma das facetas do problema é, sem dúvida, a descontinuidade histórica de ações políticas por parte do Estado brasileiro visando concluir a abolição decretada em 13 de maio de 1888.

Fúlvia Rosemberg e Paulo Vinicius Baptista afirmam que a abolição da escravidão foi gradual e regulamentada por legislação específica.

em 1850, proibiu-se o tráfico transatlântico de escravos africanos; em 1871, conferiu-se a liberdade aos filhos nascidos de mães escravas e, em 1885, os escravos idosos; finalmente, em 1888, promulgou-se a lei geral de libertação dos escravos.

Após a abolição da escravidão, as relações sociais e políticas entre brancos e negros são marcadas por três processos principais, destacados a seguir:

- o país não adotou legislação de segregação étnico-racial (diferente dos EUA e da África do Sul), não tendo ocorrido, portanto, a definição legal da pertença racial;

- o país não desenvolveu política específica de integração dos negros recém-libertos à sociedade envolvente, o que fortaleceu as bases do histórico processo de desigualdades sociais entre brancos e negros que perdura até os dias atuais;

- o país incentivou a imigração européia branca em acordo com a política de Estado (passagem do século XIX para o século XX) de branqueamento da população em consonância com as políticas racistas eugenistas desenvolvidas na Europa do século XIX.4 4 Paulo Vinicius Baptista SILVA e Fúlvia ROSEMBERG, 2008, p. 75.

A abolição da escravidão, embora almejada pelos que viviam a condição de escravizados, foi um projeto desenvolvido pela elite da época. O Brasil foi o último país a finalizar esse regime desumano. Contudo, a abolição da escravidão foi um ato isolado que não veio acompanhado de medidas de inclusão dos ex-escravos como cidadãos; tampouco contou com políticas voltadas a educação, moradia e trabalho, objetivando a inserção social dos ex-escravos.

No Centenário da Abolição, em 1988, Abdias do Nascimento argumentou:

reprimiram com toda a violência do estado policial as religiões afro-brasileiras, cujos terreiros se viram duramente invadidos, os fiéis e os sacerdotes presos, pelo crime de praticar sua fé religiosa. Temos vivido num estado de terror: desde 1890, o negro vem sendo o preso político mais ignorado desse País.5 5 Abdias do NASCIMENTO, 1988.

Ainda vale destacar as posições de Florestan Fernandes, em 1989, alertando que os negros libertos foram entregues à sua própria sorte:

[...] era expulso de uma economia, de uma sociedade e de uma cultura, cujas vigas ele forjara, e enceta por conta própria o penoso processo de transitar de escravo a cidadão. [...] Então começa a pugna feroz do negro para 'tornar-se gente', para conquistar com suas mãos sua auto-emancipação coletiva.6 6 Florestan FERNANDES, 1989.

Visando à liberdade, à inclusão sociorracial e à qualidade de vida dos negros e de toda a população, após a abolição, a organização do MOVIMENTO NEGRO7 7 Consideramos o MOVIMENTO NEGRO, ainda nos dias de hoje, como uma conjugação de esforços entre diversas frentes de trabalho. Essas frentes desenvolveram-se no campo da sociedade civil de maneira aberta, plural e diversa. As formas de organização, como podemos ver nesse breve apanhado de entidades mistas (homens e mulheres) e só de mulheres negras, abrangem diversas áreas - política, cultural, religiosa, de gênero, de juventude, entre outras. Dessa maneira, o MOVIMENTO NEGRO (de certa forma também o movimento feminista) pode ser tratado no singular, pois representa um complexo de ações que envolvem diversas frentes e uma infinidade de pessoas com posicionamentos diferenciados. por direitos continuou em desenvolvimento. Foram estruturadas entidades de âmbito local e nacional - a Frente Negra Brasileira - FNB (criada em 1931 em São Paulo, que existiu até 1937); o Teatro Experimental do Negro - TEN (organizado no Rio de Janeiro, em 1944); e o MOVIMENTO NEGRO Unificado - MNU (surgido em 1978 em São Paulo, com caráter nacional). A partir do final dos anos 1980, destacam-se a Coordenação Nacional de Entidades Negras - Conen, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas " Conaq, a União de Negros pela Igualdade " Unegro, a Articulação de Organizações de Mulheres Negras - AMNB, o Fórum Nacional de Mulheres Negras - FNMN, o Fórum Nacional de Juventude Negra - FNJN e as entidades nacionais no campo da religiosidade de matriz africana.

Nesse processo, uma construção histórica importante por parte do MOVIMENTO NEGRO foi a contestação ao 13 de maio como marca de liberdade. Tal data converteu-se em um convite para a reflexão sobre o significado da abolição inacabada. Reforça-se como referência de luta o 20 de novembro8 8 Dia de morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, líder da luta dos quilombos, tendo como referência o Quilombo dos Palmares, em Alagoas. - Dia Nacional da Consciência Negra. Vale recordar as palavras de Oliveira Silveira,9 9 Oliveira Silveira, militante do MOVIMENTO NEGRO do Rio Grande do Sul, morreu em 1 de janeiro de 2009. Em meio à sua função de professor, pesquisador e poeta, deixou-nos a bela herança de vários livros - Germinou; Poema sobre Palmares; Banzo saudade negra; Pêlo escuro; Roteiro dos tantãs, entre outros. O visionismo político de Oliveira Silveira vem de longe, assim como a energia coletiva na luta pela justiça e igualdade. Quando ouvimos hoje a frase "Valeu, Zumbi" e também quando comemoramos o "20 de novembro, o Dia Nacional da Consciência Negra", estamos sendo seguidores, também, de Oliveira Silveira. O texto de Oliveira Silveira é produto de entrevista concedida ao Portal Afro, em 2001, para o jornalista Jader Nicolau Jr. um dos idealizadores dessa mudança de visão e posicionamento político:

O 20 de novembro começou a ser delineado em encontros informais na Rua dos Andradas, aqui em Porto Alegre. Estávamos em 1971. Reuníamo-nos e falávamos muito a respeito do 13 de maio, do fato desta data não ter um significado maior para a comunidade. A partir desta constatação comecei a procurar outras datas que fossem mais significativas para o movimento. Comecei a estudar a fundo a história do negro e constatei que a passagem mais marcante era o Quilombo dos Palmares. [...] Batizamos o grupo de Palmares e registramos seu estatuto, em julho. No dia 20 de novembro do mesmo ano (1971), evocamos pela primeira vez o 'Dia Nacional da Consciência Negra', na sede do Clube Marcílio Dias.10 10 O texto de Oliveira Silveira é produto de entrevista concedida ao Portal Afro, em 2001, para o jornalista Jader Nicolau Jr.

Na época, com o surgimento do MNU, esse trabalho foi potencializado nacionalmente. Assim, o dia 20 de novembro (por força da lei) hoje é comemorado nas escolas e nos demais órgãos públicos e privados. Em comemoração ao tricentenário de sua morte, Zumbi foi reconhecido pelo Governo Federal como herói nacional, conforme Lei n. 9.315, de 20 de novembro de 1996. O nome de "Zumbi dos Palmares" (Francisco) está inscrito no Livro dos heróis da Pátria e encontra-se no Panteão da Liberdade e da Democracia, em Brasília.

Outro aspecto a ser realçado é a ação do MOVIMENTO NEGRO na denúncia do racismo, que foi negado ao longo de nossa história, pautado pela visão da democracia racial. Carlos Hasembalg11 11 Carlos A. HASENBALG, 1992. sustenta ser necessário reconhecer a existência e os efeitos nefastos da escravidão, considerando as semelhanças e as diferenças entre os países da América Latina. Quanto às semelhanças, o autor alega ser possível identificar 'sintomas do tipo latino' de relações raciais, a partir:

da visão da harmonia, tolerância e ausência de preconceito e de discriminação racial, a partir da concepção desenvolvida por elites políticas e intelectuais. Isto traz como resultado a subordinação social ou a virtual desaparição dos descendentes de africanos; e

da visão das sociedades como essencial ou preponderantemente brancas e de cultura européia. Isto traz como conseqüência o embranquecimento, entendido como projeto nacional implementado em políticas de povoamento e imigração.

Essas premissas resultam no efeito mágico do ocultamento do racismo, da discriminação e do preconceito racial. A visão da democracia racial, mesmo como farsa e hoje enfraquecida, provocou e provoca a demarcação de lugares, a depender da cor e do pertencimento racial das pessoas. Diante dessa realidade e de outros agravos históricos do ponto de vista econômico, político e social, vivemos em pleno século XXI a existência simbólica de dois Brasis: "um moderno e rico, outro anacrônico e miserável. No primeiro país, temos um povo esmagadoramente branco e amarelo. No segundo, a grande maioria é formada por afro-descendentes".12 12 Hélio SANTOS, 1999, p. 148.

Como vimos, mesmo com diversas bandeiras de luta ao longo da história, ainda há muito para a conquista de democracia racial plena e de justiça para todos. Atente-se, ainda, que mais da metade da população brasileira, que é negra, não é descendente de escravos, é sim descendente de africanos, que foram seqüestrados de suas terras e chegaram ao Brasil como mão-de-obra barata na aquisição e não paga pelos serviços prestados.

Nos dias atuais os dados persistem a demonstrar a dura realidade da exclusão dos negros e dos indígenas, em um contexto de formação de uma identidade nacional multirracial, multicultural e pluriétnica. Essa diversidade brasileira constitui-se num elemento extremamente positivo, mas, devido às marcas históricas de discriminação e de exclusão, as diferenças são transformadas em desigualdades, aliadas à má distribuição de renda. Com isso, os negros foram relegados ao segundo plano na vida social, econômica e política.

Por outro lado, é importante destacar os instrumentos que demandam a necessidade de garantia de justiça social e racial: a Constituição Federal do Brasil (a Constituição Cidadã de 1988); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD);13 13 A ICERD entrou em vigor em 1982, foi assinada pelo governo brasileiro em 1966 e até junho de 2005 tinha sido ratificada por 183 Estados. A CEDAW entrou em vigor em 1981, foi assinada pelo governo brasileiro em 1981 e até março de 2006 havia sido ratificada por 183 Estados. Constata-se que as ratificações equivalem a mais de três quartos do total de Estados-membros da ONU. a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher - (CEDAW); a resolução "A incompatibilidade entre a Democracia e o Racismo";14 14 A Resolução n. 38/04 foi instituída em 2004 pela Comissão de Direitos Humanos " CDH da Organização das Nações Unidas " ONU. a Declaração e Programa de Ação da IV Conferência Mundial da Mulher; e a Declaração e Programa de Ação da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, entre outros. A Declaração de Durban considera que: "toda doutrina de superioridade racial é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa e deve ser rechaçada, junto com as teorias que tratam de determinar a existência de raças humanas separadas".15 15 ONU, 2002, p. 15.

Com base nessas referências desenvolvem-se políticas públicas, sendo a mais recente experiência a criação em âmbito federal da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - Seppir, com a responsabilidade de articular as ações no conjunto da administração pública brasileira no campo da igualdade racial.

É notório que há um caminho legal e também institucional visando à garantia de princípios de igualdade e democracia. As expectativas são muitas, mas a distância entre as conquistas legais e a concretização das ações políticas ainda se mostra acentuada, necessitando de uma pactuação no campo executivo, legislativo e judiciário com vistas a um maior enfrentamento da realidade de discriminação racial e étnica.

Deve-se considerar que o combate ao racismo não é tarefa exclusiva dos negros, é sim de toda a sociedade que se diz democrática. No entanto, ao longo da história, por meio de resistências individuais e coletivas - como é o caso do MOVIMENTO NEGRO (destacando-se as organizações de mulheres negras) -, testemunha-se a ousadia para os enfrentamentos de um cotidiano hostil. Com toda a sua diversidade, esse movimento participou das construções mencionadas, incidindo em seus conteúdos, métodos e formas.

Essa construção está demarcada em dois dossiês publicados em números anteriores da Revista Estudos Feministas - REF, com temáticas próximas a essa nova produção, "Mulheres Negras" (em 1995) e "III Conferência Mundial contra o Racismo" (em 2002), organizados, respectivamente, por Matilde Ribeiro e Luiza Bairros.

É sob essa inspiração que organizamos o presente dossiê, contemplando a voz plural de 13 colaboradores - 9 mulheres e 4 homens -, que, em 8 artigos, condensam as mais diferentes experiências e formulações no prisma da afirmação da igualdade e da justiça racial. No sentido de enriquecer e fomentar o debate público acerca da construção da igualdade racial, o dossiê "120 anos da Abolição da Escravidão no Brasil: um processo ainda inacabado" está estruturado em duas partes.

I Ações afirmativas: debates, desafios e perspectivas

Flávia Piovesan, como acadêmica, pesquisadora e militante na área dos direitos humanos, no artigo "Ações afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas", desenvolve uma reflexão sobre as bases legais e normativas, os desafios e dilemas das ações afirmativas no Brasil, bem como as possibilidades para a afirmação da igualdade étnico-racial. Defende que a implementação do direito à igualdade racial há de ser um imperativo ético-político-social capaz de enfrentar o legado discriminatório, que tem negado à metade da população brasileira o pleno exercício de seus direitos e liberdades fundamentais.

No artigo "Pela igualdade", Yvonne Maggie, conceituada acadêmica da área das ciências sociais, discute a política de identidade que está sendo proposta no Brasil com o fim de combater o racismo. Apresenta uma reflexão sobre o significado da racialização das políticas públicas e também dos nossos costumes. A questão central discutida é o objetivo dessas políticas. A partir de mitos de origem tanto do racismo quanto do combate ao racismo, procura descrever a história recente da introdução dessas políticas com base na "raça" e seus objetivos.

Escrito por quatro estudiosos e militantes na área racial, com diferentes inserções profissionais e políticas - Sales Augusto dos Santos, Eliane Cavalleiro, Maria Inês da Silva Barbosa e Matilde Ribeiro -, o artigo "Ações afirmativas: polêmicas e possibilidades sobre igualdade racial e o papel do Estado" analisa a importância do papel do Estado para a implementação das políticas públicas de ação afirmativa, especialmente para estudantes negros ingressarem no ensino público superior. Argumenta-se que a ação afirmativa (por meio do sistema de cotas) é uma das alternativas para reduzir ou minimizar a desigualdade de inserção entre estudantes negros e brancos e/ou de escolas públicas e particulares no ensino superior. Embora haja vários argumentos contra o sistema de cotas, os autores se concentraram em debater ou contra-argumentar apenas um: o de que o sistema de cotas poderá gerar conflitos raciais no Brasil.

Wivian Weller e Marly Silveira como acadêmicas e pesquisadoras registram a vivência do sistema de cotas na Universidade de Brasília no artigo "Ações afirmativas no sistema educacional: trajetórias de jovens negras da Universidade de Brasília", a partir das experiências de jovens universitárias que ingressaram pelo sistema de cotas nos cursos de Engenharia e Ciências Sociais, apresentando distintas trajetórias de socialização escolar. O artigo apresenta uma análise das experiências, assim como as estratégias diferenciadas no que diz respeito ao enfrentamento do preconceito e da discriminação. Mostra, ainda, as avaliações realizadas pelas jovens a respeito da implementação de cotas para estudantes negros nas universidades públicas. Segundo as autoras, as cotas não representam a única forma de luta por reconhecimento e redistribuição, mas refletem a importância e a necessidade de uma modificação mais profunda na gramática dos discursos no interior da universidade e no atendimento das demandas políticas e sociais.

Verificamos que esses quatro artigos explicitam o atual debate sobre as ações afirmativas, e em especial o sistema de cotas no sistema de educação superior, abordando suas contradições e possibilidades.

II Faces e fases da vida de homens e mulheres negros no Brasil

Acadêmicos, militantes e envolvidos com as pesquisas sobre a realidade brasileira do ponto de vista econômico e social, Marcelo Paixão e Flávio Gomes, no artigo "Histórias das diferenças e das desigualdades revisitadas: notas sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação", trazem reflexões sobre aspectos do passado e do presente da mulher negra, tanto na escravidão como na atualidade. Do tempo passado reafirmaram-se a estigmatização e a erotização do corpo da mulher negra, e no tempo presente destacam-se indicadores sociais a apontar as desigualdades no mercado de trabalho e a preponderância feminina na chefia dos domicílios das grandes regiões metropolitanas.

Ilka Boaventura Leite é uma persistente estudiosa sobre os quilombos no Brasil, questão até há pouco desconhecida nos meios acadêmicos e na sociedade em geral. No artigo "O projeto político Quilombola: desafios, conquistas e impasses atuais", demonstra que o projeto político Quilombola atravessou séculos de história para se consolidar como um direito constitucional e que as contradições entre a Legislação e a sua efetiva aplicação constituem um grande desafio. Adverte que a ação estatal de proteção às chamadas comunidades quilombolas tem se ampliado e pode até ser considerada uma prática inovadora hoje, mas se demonstra ainda muito insuficiente, requerendo uma ação redobrada de participação política por parte dos movimentos sociais negros no Brasil.

Joel Zito Araújo, com especial sensibilidade artística e política, foi premiado por vários de seus trabalhos, tendo como destaque o filme Filhas do vento, um romance envolvendo a história das negras e dos negros no Brasil. No artigo "O negro na dramaturgia, um caso exemplar da decadência do mito da democracia racial brasileira", o autor alega que o mito da democracia racial brasileira, apesar de intensamente criticado pelo segmento populacional negro, persiste até hoje na indústria do cinema e da telenovela. Afirma que essa falsa democracia caracteriza-se como uma poderosa cortina que dificulta a percepção dos estereótipos negativos sobre os afro-brasileiros e provoca a falta de reconhecimento da importância dos atores e das atrizes negras na história do cinema e da televisão do País. Com isso, apresenta saídas e defende uma mudança espacial, isto é, a ampliação da presença dos negros (mulheres e homens) e de suas histórias nos diferentes meios de comunicação.

Matilde Ribeiro, com suas reflexões e ações acadêmicas e políticas, convidou diversas outras mulheres negras para escrever sobre o processo de organização das mulheres negras, porém, pelo acúmulo de tarefas, elas não puderam aceitar o convite. Sabedora da importância da temática, aceitou o desafio de, além de co-organizar o dossiê, escrever também o artigo "Mulheres negras: uma trajetória de criatividade, determinação e organização". O artigo faz uma breve revisão da produção social, política e acadêmica, no campo da participação social, partindo das questões de gênero e raça e tendo como foco as mulheres negras. Destaca a importância da participação das mulheres negras no processo de monitoramento da implementação das políticas públicas de gênero e raça em âmbito nacional e das conferências internacionais - em especial da Conferência Mundial sobre as Mulheres; da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância; e do pós-Durban.

Esse mosaico intelectual, integrado por distintas e plurais contribuições, experiências, acúmulos e trajetórias, lança instigantes reflexões a revelar os encontros e as contradições emergentes na realidade brasileira na busca da igualdade racial. A generosidade dos co-autores permitiu tornar realidade o desejo de intensificar os debates sobre os 120 anos da abolição da escravidão. Longe dos holofotes e das comemorações, essa produção tem a ambição serena de fomentar e estimular o diálogo construtivo e qualificado em prol de um Brasil mais justo, includente e igualitário, capaz de irradiar as tantas virtudes e potencialidades de sua sociedade marcadamente multirracial, multicultural e pluriétnica.

  • BAIRROS, Luiza. "Apresentação". Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão, v. 10, n. 1, p. 169-170, 2002. Dossiê III Conferência Mundial contra o Racismo.
  • CORREIO BRASILIENSE, 13 maio 2008.
  • FERNANDES, Florestan. O significado do protesto negro São Paulo: Cortez e Autores Associados, 1989. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo, v. 33).
  • FOLHA DE S.PAULO, 13 maio 2008.
  • FOLHA DE S.PAULO, 14 maio 2008.
  • HASENBALG, Carlos A. "Notas sobre relações raciais no Brasil e na América Latina". In: HOLANDA, Heloísa B. (Org.). Y noutras latino americanas? Estudos sobre gênero e raça São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1992. p. 115-143.
  • NASCIMENTO, Abdias. "13 de maio: Dia de Denúncia contra o Racismo". Suplemento Literário, Minas Gerais, n. 1.098, 7 maio 1988.
  • ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração e Programa de Ação da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância Nova Iorque, 2002.
  • ______. Resolução n. 38/04 Comissão de Direitos Humanos. 2004.
  • RIBEIRO, Matilde. "Apresentação". Revista de Estudos Feministas, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 434-5, 1995. Dossiê Mulheres Negras.
  • SANTOS, Hélio. "Políticas públicas para a população negra no Brasil". Observatório da cidadania, Rio de Janeiro: Ibase, 1999.
  • SILVA, Paulo Vinicius Baptista; ROSEMBERG. Fúlvia. "Brasil: lugares de negros e brancos na mídia". In: DIJK, Teun A. van (Org.). Racismo e discurso na América Latina São Paulo: Contexto, 2008. p. 73-118.
  • SILVEIRA, Oliveira. Germinou Porto Alegre: Edição do Autor, 1968.
  • ______. Banzo, saudade negra. Porto Alegre: Edição do Autor, 1970.
  • ______. Pêlo escuro. Porto Alegre: Edição do Autor, 1977.
  • ______. Roteiro dos tantãs Porto Alegre: Edição do Autor, 1981.
  • ______. Poema sobre Palmares Porto Alegre: Edição do Autor, 1987.
  • ______. Entrevista concedida ao Portal Afro, em 2001, para o jornalista Jader Nicolau Jr. Disponível em: www.portalafro.com.br/ Acesso em: set. 2008.
  • 1
    CORREIO BRASILIENSE, 13 maio 2008.
  • 2
    FOLHA DE S.PAULO, 13 maio 2008.
  • 3
    FOLHA DE S.PAULO, 14 maio 2008.
  • 4
    Paulo Vinicius Baptista SILVA e Fúlvia ROSEMBERG, 2008, p. 75.
  • 5
    Abdias do NASCIMENTO, 1988.
  • 6
    Florestan FERNANDES, 1989.
  • 7
    Consideramos o MOVIMENTO NEGRO, ainda nos dias de hoje, como uma conjugação de esforços entre diversas frentes de trabalho. Essas frentes desenvolveram-se no campo da sociedade civil de maneira aberta, plural e diversa. As formas de organização, como podemos ver nesse breve apanhado de entidades mistas (homens e mulheres) e só de mulheres negras, abrangem diversas áreas - política, cultural, religiosa, de gênero, de juventude, entre outras. Dessa maneira, o MOVIMENTO NEGRO (de certa forma também o movimento feminista) pode ser tratado no singular, pois representa um complexo de ações que envolvem diversas frentes e uma infinidade de pessoas com posicionamentos diferenciados.
  • 8
    Dia de morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, líder da luta dos quilombos, tendo como referência o Quilombo dos Palmares, em Alagoas.
  • 9
    Oliveira Silveira, militante do MOVIMENTO NEGRO do Rio Grande do Sul, morreu em 1 de janeiro de 2009. Em meio à sua função de professor, pesquisador e poeta, deixou-nos a bela herança de vários livros - Germinou; Poema sobre Palmares; Banzo saudade negra; Pêlo escuro; Roteiro dos tantãs, entre outros. O visionismo político de Oliveira Silveira vem de longe, assim como a energia coletiva na luta pela justiça e igualdade. Quando ouvimos hoje a frase "Valeu, Zumbi" e também quando comemoramos o "20 de novembro, o Dia Nacional da Consciência Negra", estamos sendo seguidores, também, de Oliveira Silveira. O texto de Oliveira Silveira é produto de entrevista concedida ao Portal Afro, em 2001, para o jornalista Jader Nicolau Jr.
  • 10
    O texto de Oliveira Silveira é produto de entrevista concedida ao Portal Afro, em 2001, para o jornalista Jader Nicolau Jr.
  • 11
    Carlos A. HASENBALG, 1992.
  • 12
    Hélio SANTOS, 1999, p. 148.
  • 13
    A ICERD entrou em vigor em 1982, foi assinada pelo governo brasileiro em 1966 e até junho de 2005 tinha sido ratificada por 183 Estados. A CEDAW entrou em vigor em 1981, foi assinada pelo governo brasileiro em 1981 e até março de 2006 havia sido ratificada por 183 Estados. Constata-se que as ratificações equivalem a mais de três quartos do total de Estados-membros da ONU.
  • 14
    A Resolução n. 38/04 foi instituída em 2004 pela Comissão de Direitos Humanos " CDH da Organização das Nações Unidas " ONU.
  • 15
    ONU, 2002, p. 15.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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