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Histórias/estórias entrelaçadas do(s) feminismo(s): introdução aos debates

Intertwined histories/stories of feminism(s): introduction to the debates

SEÇÃO DEBATES

Histórias/estórias entrelaçadas do(s) feminismo(s): introdução aos debates1 1 A conceitualização e organização desta Seção Debates contou com a participação de Simone Pereira Schmidt e Rita Therezinha Schmidt.

Intertwined histories/stories of feminism(s): introduction to the debates

Claudia de Lima Costa

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

Neste breve artigo faço uma introdução aos debates sobre "Contando estórias do feminismo", de Clare Hemmings, tecendo algumas reflexões sobre as viagens das teorias feministas e processos de tradução cultural, incluindo a prática política da citação acadêmica.

Palavras-chave: narrativas feministas; tradução cultural; políticas de citação.

ABSTRACT

This article is a short introduction to the debates around Clare Hemming's "Telling Feminist Stories", in which I take the opportunity to offer some reflections on the travels and the processes of cultural translation of feminist theories, including the political practice of academic citation.

Keywords: Feminist Narratives; Cultural Translation; Citational Politics.

Diante da globalização e da concomitante intensificação, a um nível planetário, dos fluxos de bens, finanças, informações, ideias e imagens (fluxos estes tão bem descritos por Arjun Appadurai),2 2 APPADURAI, 1996. outros cenários se abrem para a análise da circulação do conhecimento neste momento da tão discutida transnacionalização da cultura e da academia. O que antes percebíamos como um tráfego de conhecimentos se deslocando prioritariamente e de forma bastante desigual através do eixo Norte-Sul, hoje elaboramos cartografias bem mais complexas de tais deslocamentos, revelando processos de transculturação até então ocultos no bojo das formações epistêmicas ocidentais. Nesse cenário, crescentemente esgarçado pela crise do saber ocidental que, por sua vez, está amarrada a outras convulsões sociais, políticas, econômicas e ecológicas, mapear as viagens das teorias feministas e seus processos de tradução cultural vem sendo tarefa de várias pesquisadoras, entre as quais me incluo, a partir de distintos lugares geopolíticos sobrepostos.3 3 Não seria tarefa fácil fazer referência a todas as pesquisadoras cujos trabalhos tomaram esse rumo, mas gostaria de salientar uma antologia que coorganizei com Sonia E. ALVAREZ e al. (no prelo) que se debruça exatamente sobre a questão da tradução cultural dos feminismos no contexto latino-americano.

Recentemente a revista da Associação de Estudos Latinoamericanos, Lasa Forum, publicou uma seção de debates sobre a desigualdade nos estudos literários e culturais latino-americanos.4 4 Cynthia STEELE, 2009. A preocupação dos/as colaboradores/as convidados/as (tanto do Norte quanto do Sul) foi refletir de que forma esse campo de pesquisa contribuía para desafiar a dinâmica de uma globalização inerentemente desigual. Entre os/as ensaístas dessa seção, Jean Franco examina um corpo de textos literários escritos em línguas indígenas (quéchua, nauha, tupi-guarani, mapudungum, zapotec, entre outras) que estão emergindo na América Latina a partir das possibilidades de conexão da internet (viajam para além dos limites da comunidade) e cujo efeito tem sido o de utilizar as vantagens da globalização contra as mazelas da própria globalização – ou seja, contra a marginalização dessas línguas a partir da hegemonia do espanhol imperial e do inglês.5 5 FRANCO, 2009. Segundo a autora, cada vez mais nos conscientizamos de que estamos habitando espaços plurais e, portanto, precisamos nos tornar poliglotas culturais, tanto no sentido literal quanto figurativo. Citando Rubin, Franco argumenta que, se

as culturas indígenas e ocidentais tivessem se encontrado em termos mais equânimes, talvez não tivéssemos uma rejeição do ocidente nem do moderno, nem das fronteiras entre o local e o de fora, mas a criação de modernidades múltiplas a partir de conhecimentos e estilos não ocidentais.6 6 FRANCO, 2009, p. 25 (minha tradução).

A luta para "ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade"7 7 Boaventura de Souza SANTOS, 2003, p. 25. na construção de cidadanias plurais e conhecimentos descolonizados passa, necessariamente, pela re-imaginação do saber que, por conseguinte, implica abrir espaço para novas narrativas de saberes entrelaçados e epistemologias da fronteira. Como já argumentei em outro lugar, as migrações discursivas das teorias em suas variadas rotas passam por processos de apropriação, também denominados de tradução cultural.8 8 COSTA, 2004. Ideias e conceitos, que jamais são totalmente puros ou nativos, emergem de lugares sempre já saturados por outros lugares e teorias. O itinerário segue, portanto, uma lógica do rizoma, sem um ponto de origem evidente nem um ponto inequívoco de chegada. No caso específico das teorias e estórias feministas (o tema do debate aqui publicado), mapear seus itinerários se torna mais complicado porque as categorias analíticas são produzidas no (des)encontro das formações feministas heterogêneas, marcadas pelas diferenças de raça, classe, orientação sexual, linguagem, etnia e tradição nacional, entre muitas outras. Devido a todos esses fatores, nessas migrações as teorias encontram coações epistemológicas, institucionais e políticas, fazendo com que passem por terrenos imperfeitos, peguem desvios súbitos e encontrem armadilhas ocasionais.

Há, sem dúvida, várias maneiras de realizar o escrutínio das migrações discursivas do(s) feminismo(s) na construção de narrativas menos excludentes. Clare Hemmings explora uma delas apresentando reflexões instigantes acerca do problema da representação da história do feminismo ocidental, ou seja, sobre as tecnologias narrativas feministas (suas formas, funções e efeitos) em torno do 'progresso' do feminismo dos anos 70 ao final do milênio. A estória que ela nos conta já é sabida por todas nós que, de algum modo ou outro, fomos influenciadas pelo feminismo acadêmico anglófono na nossa formação: o feminismo radical/cultural dos anos 70 encontra sua mais veemente crítica entre as feministas de cor e lésbicas dos anos 80 que, por sua vez, abriram caminho para o feminismo da diferença pós-estruturalista dos anos 90. Este último, ancorado em figuras icônicas como Judith Butler, Gayatri Spivak e Donna Haraway, propõe a desconstrução dos essencialismos e das categorias identitárias (inclusive da categoria "mulher"). Não é lugar nessa breve introdução repassar os cuidadosos e sugestivos passos argumentativos de Hemmings. Mas vale mencionar que uma das observações mais estimulantes do seu artigo foi apontar como as narrativas sobre a trajetória do feminismo ocidental – do essencialismo radical, passando pela diferença, rumo à différance pós-estruturalista – solapam a complexidade de influências e trajetórias dos feminismos e dessas feministas-chave (pós-estruturalistas, é claro) em uma narrativa única (ocidental, é claro), linear e teleológica. A forma de produção de tal efeito é mais instigante ainda: Hemmings analisa como as práticas de citações, tanto das feministas-estrelas do pós-estruturalismo contemporâneo quanto das referências feitas a elas, produzem um tipo de efeito que é uma determinada estória do progresso (ou fracasso, dependendo da perspectiva) do feminismo. Quais estórias e quais figuras feministas desaparecem quando Butler emerge no cenário das citações feministas como a teórica que desconstruiu a categoria da "mulher"? O artigo de Hemmings explora, com clareza e eloquência argumentativas, a relação entre as citações e o tropo da visibilidade (de influências, de narrativas), indagando como cânones do saber se configuram em determinados períodos históricos e contextos institucionais.

Dando continuidade à análise de Hemmings, Marcia Hoppe Navarro entabula um diálogo produtivo entre "Contando estórias feministas" e o livro de apelo mais popular da jornalista Natasha Walter, de 1998, The New Feminism, para argumentar que, apesar das diferenças de estilo de ambas as narrativas e de público (leitoras acadêmicas e leitoras em geral), as duas autoras

não visam a recuperar ingenuamente aquela 'irmandade' [feminista] apregoada nos anos 70, mas sim estabelecer relações construtivas entre os pontos em comum das várias perspectivas feministas atuais, na academia e nas ruas, visando sempre à evolução da sociedade em direção à igualdade total, num futuro em que a palavra "feminismo" possa realmente significar apenas uma luta do passado.9 9 NAVARRO, 2009, p. 248.

Liane Schneider, por sua vez, seguindo a veia argumentativa de Hemmings, explora em mais detalhes as contribuições das autoras citadas (bem como de outras não citadas) em "Contando estórias feministas", introduzindo também a presença significativa de teóricas chicanas, tais como Gloria Anzaldúa e Cherríe Moraga, na narrativa sobre os "progressos e perdas" do feminismo ocidental, em que estes,

deixando de ser pontos fixos e estagnados de uma estória não pendular, passam a representar o contínuo movimento das marés de um feminismo que se permite recuos e avanços nos caminhos de uma historiografia mais eclética e, por isso mesmo, mais promissora.10 10 SCHNEIDER, 2009, p. 261-262.

Uma possível provocação que os artigos aqui publicados nos deixam seria redirecionar as perguntas de Hemmings sobre as tecnologias de produção de estórias do feminismo para o contexto dos feminismos latinoamericanos. Quais estórias circulam e por quais topografias? Quais são ofuscadas para que algumas se legitimem academicamente? Quais jamais foram contadas e por quais razões? Quais são as práticas de citação nessas narrativas e quais suas correntes teóricas? Quais teorias e teóricos/as foram traduzidos/as nessas narrativas? Em resumo, as perguntas buscam explicitar os processos de mediação/ tradução cultural no tráfego de teorias e narrativas do feminismo, bem como seus lugares de enunciação autorizados (por exemplo, revistas acadêmicas).

Muito já tem sido escrito sobre a política do lugar, porém sua relação com a questão da tradução cultural (que constitui a atividade central de uma revista acadêmica) não está suficientemente teorizada. A importância de se pensar sobre o lugar da enunciação (e, certamente, da teoria) não é recente nem nas teorias feministas, nem tampouco nas várias tradições hermenêuticas, seja nas humanidades, seja nas ciências sociais. Mas é no âmbito das teorias feministas, no entanto, que a questão do lugar se torna fundamental, não para avaliar unicamente suas categorias analíticas, mas também – e principalmente – para medir o seu alcance político, isto é, as maneiras como essas teorias intervêm nas estruturas de desigualdade social. Sempre situadas diferentemente nos sistemas de dominação, de privilégio e de exclusão, narramos (e publicamos) a partir de um lugar (tanto em seu sentido literal quanto metafórico, quero dizer, como imaginado, político, discursivo, etc.). Procurar entender esse lugar em todas as suas dimensões nos leva à necessidade de historicizá-lo e de politizá-lo, permitindo, então, uma avaliação mais crítica da construção e institucionalização das diferenças e das práticas políticas que as articulam.

Não obstante, gostaria de fazer duas observações sobre o conceito de lugar como categoria analítica e política. Primeiramente, esse lugar não pode ser entendido como algo reificado ou ancorado em categorias ontológicas (o fato de sermos mulheres não nos transforma naturalmente em aliadas ou em sisters in struggle). Segundo, qualquer lugar ou local se encontra pontilhado e fraturado por diferenças e tensões, por circuitos e fronteiras que não podem ser representadas por, nem contidas em, nenhum modelo binário das relações de poder. Como Appadurai explica,11 11 APPADURAI, 1996. o estudo da relação entre o global e o local pede um modelo que enfatize tanto as conexões quanto as disjunções, os interstícios, entre movimentos transnacionais de pessoas, de tecnologias, de capital e de bens culturais, considerando seus diferentes efeitos e transformações em vários níveis do local.12 12 Uma interessante conceitualização desse interstício pode ser também encontrada em Mary Louise PRATT, 1999. Assim, a especificidade de um lugar não é singular, mas múltipla, pois, como Doreen Massey argumenta, ela se constrói justamente a partir da presença, no interior desse lugar, de tudo o que lhe é exterior, isto é, das inter-relações desse lugar com outros lugares.13 13 MASSEY, 1994. Como podemos, a partir do lugar da Revista Estudos Feministas nos circuitos transnacionais de ideias e valores, desenvolver uma prática da tradução cultural (das teorias feministas e das estórias do feminismo) que responda simultaneamente às contingências locais e aos fluxos globais dos discursos sobre gênero e feminismo? Como podemos usar o tropo do lugar como forma de desenvolvermos uma análise dos aspectos materiais da produção discursiva nas páginas da revista ao longo desses mais de dez anos de publicação? Esses aspectos materiais incluiriam, necessariamente, outras formas de atividades mediadoras (como editoras, críticas/os, bibliotecárias/os, livreiras/os, consultoras/es em órgãos de pesquisa, associações profissionais, universidades, entidades filantrópicas, etc.) que, segundo Barbara Godard, contribuem para a produção do significado e valor de um trabalho.14 14 GODARD, 2002. Para essa autora, a

[a]nálise dos diferentes lugares e histórias da produção periodística (feminista) permite uma abertura para questões a respeito do valor cultural que, na formulação de Bourdieu, representam a constituição, preservação e reprodução da autoridade e do poder simbólico dentro de um campo. Considerar os lugares dos periódicos feministas dentro desse campo seria adquirir uma percepção dos processos engendrados de reprodução social e de criação de valor cultural.15 15 GODARD, 2002, p. 211 (minha tradução).

A interseção entre a questão do lugar com a problemática da tradução cultural e das publicações feministas abarcaria outros tipos de questionamentos, igualmente cruciais: que formas são impostas nos textos das teorias feministas e das estórias do feminismo como condição da circulação destes através dos diferentes espaços sociais? Até que ponto o espaço social, por meio do qual esses textos circulam, é constitutivo dessa própria circulação? A partir de quais tipos de 'institucionalidades' e práticas de citação os textos feministas ganham acesso à tradução e se transformam em estórias do feminismo latino-americano? Eis algumas questões que as reflexões de Clare Hemmings, Marcia H. Navarro e Liane Schneider nos espicaçam a explorar.

[Recebido em junho de 2009

e aceito para publicação em junho de 2009]

  • ALVAREZ, Sonia E., COSTA, Claudia de Lima, FELIÚ, Verónica, HESTER, Rebecca, KLAHN, Norma, and THAYER, Millie, with BUENO, Cruz C. (eds.). Translocalities/ Translocalidades: Feminist Politics of Translation in the Latin/a Américas. Durham: Duke University Press, no prelo.
  • APPADURAI, Arjun. Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996.
  • HEMMINGS, Clare. "Telling Feminist Stories". Revista Estudos Femistas, v. 17, n. 1, p. 215-241, 2009.
  • COSTA, Claudia de Lima. "Feminismo, tradução, transnacionalismo." In: COSTA, Claudia de Lima; SCHMIDT, Simone Pereira (Orgs.). Poéticas e políticas feministas Florianópolis: Editora Mulheres, 2004. p. 187-196.
  • FRANCO, Jean. "Overcoming Colonialism: Writing in Indigenous Languages." Lasa Forum, v. xl, n. 1, 2009. p. 24-27.
  • GODARD, Barbara. "Feminist Periodicals and the Production of Cultural Value: The Canadian Context." Women's Studies International Forum, v. 25, n. 2, 2002. p. 209-223.
  • MASSEY, Doreen. "Double Articulation: A Place in the World." In: BAMMER, Angelika (ed.). Displacements: Cultural Identities in Question Bloomington: Indiana University Press, 1994. p. 110-121.
  • NAVARRO, Márcia Hoppe. "Entre o acadêmico e o popular: os rumos do feminismo atual. Revista Estudos Feministas, v.17, n.1, p. 243-249, 2009.
  • PRATT, Mary Louise. "A crítica na zona de contato: nação e comunidade fora de foco". Travessia: Revista de Literatura, n. 38, p. 7-29, 1999.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa. "Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade". In: ______ (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 25-68.
  • SCHNEIDER, Liane. "'Contando estórias feministas' e a reconstrução do feminismo recente". Revista Estudos Feministas, v.17, n.1, p. 251-263, 2009.
  • STEELE, Cynthia (ed.). "Inequality in Latin American Literary and Cultural Studies." Lasa Forum, v. xl, n. 1, 2009. p. 19-40.
  • 1
    A conceitualização e organização desta Seção Debates contou com a participação de Simone Pereira Schmidt e Rita Therezinha Schmidt.
  • 2
    APPADURAI, 1996.
  • 3
    Não seria tarefa fácil fazer referência a todas as pesquisadoras cujos trabalhos tomaram esse rumo, mas gostaria de salientar uma antologia que coorganizei com Sonia E. ALVAREZ e al. (no prelo) que se debruça exatamente sobre a questão da tradução cultural dos feminismos no contexto latino-americano.
  • 4
    Cynthia STEELE, 2009.
  • 5
    FRANCO, 2009.
  • 6
    FRANCO, 2009, p. 25 (minha tradução).
  • 7
    Boaventura de Souza SANTOS, 2003, p. 25.
  • 8
    COSTA, 2004.
  • 9
    NAVARRO, 2009, p. 248.
  • 10
    SCHNEIDER, 2009, p. 261-262.
  • 11
    APPADURAI, 1996.
  • 12
    Uma interessante conceitualização desse interstício pode ser também encontrada em Mary Louise PRATT, 1999.
  • 13
    MASSEY, 1994.
  • 14
    GODARD, 2002.
  • 15
    GODARD, 2002, p. 211 (minha tradução).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009
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