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EDITORIAL

Em primeiríssimo lugar, gostaríamos de compartilhar nossa satisfação e alegria com as classificações da REF no Qualis/Capes. Recebemos seis conceitos A e dez conceitos B1 ou B2. São conceitos excelentes se considerarmos o perfil interdisciplinar da Revista, com seu forte engajamento social e político, o que ainda hoje tende a receber algumas restrições no âmbito acadêmico. Se nunca tivemos dúvidas sobre a excelente qualidade da REF e sua importante função, agora nos alegramos com o fato de nossos avaliadores estarem mais conscientes dessa importância. Sem dúvida, isso é consequência de um trabalho bem feito. Aproveitamos, portanto, esta oportunidade para, mais uma vez, agradecer o trabalho incansável e voluntário das várias editorias, de que participam também as colegas da UDESC e da UFPR, bem como o apoio constante e a disponibilidade das participantes dos Conselhos Editorial e Consultivo, e de nosso grande contingente de pareceristas ad hoc.

Em contraposição às boas-novas acima, tivemos, mais uma vez, a redução da verba de apoio à publicação da REF pelo CNPq, sem que se tenha alterado a exigência de publicação de três números ao ano dos periódicos acadêmicos pelas instituições governamentais. Assim, temos dependido cada vez mais do auxílio dos Centros cujas pesquisadoras estão envolvidas com a edição da Revista, de seus Programas de Pós-Graduação e da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UFSC para a publicação e a divulgação da REF.

Este primeiro número de 2010 abre com um artigo de Sabina Amantze Regueiro, que, a partir dos procedimentos de identificação de crianças apropriadas durante a última ditadura militar argentina e com base nas complexas discussões sobre a dicotomia natureza-cultura, argumenta ser o parentesco uma construção política. Para a autora, mesmo nos casos em que o parentesco parece esgotar-se no vínculo de sangue, o biológico não existe fora das práticas sociais e simbólicas.

Heloisa Hanada, Ana Flávia D'Oliveira e Lilia Schraiber analisam a inserção dos psicólogos na rede de serviços voltados para a assistência a mulheres em situação de violência, na Região Metropolitana de São Paulo. Ressaltando a necessidade de integração entre as ações de profissionais de vários setores assistenciais, observam que, pelo fato de os psicólogos estarem presentes e serem solicitados em todos os tipos de serviços, há uma grande diversidade em suas práticas e, consequentemente, uma relativa indefinição na especificidade do seu trabalho. Isso, segundo as autoras, pode representar impasses para uma melhor articulação em equipe e em rede, mas, por outro lado, criar oportunidades para inovações nessa complexa prática de atendimento.

Também na área da psicologia, mas a partir de uma abordagem discursiva, Renata Meira Véras e Martha Azucena Traverso-Yépez analisam os modelos de maternidade e família implícitos no documento oficial do Ministério da Saúde sobre o Programa Canguru, apresentado como forma de assistência humanizada para o atendimento ao bebê prematuro e/ou de baixo peso. A partir de uma investigação sobre como o programa é aplicado numa maternidade do Nordeste e focalizando o papel da linguagem na conformação da vida social e psicológica dos atores sociais envolvidos, a análise revela a existência de um discurso prescritivo, universalista e de caráter impositivo que posiciona as mulheres como objetos passivos de intervenção, por meio da idealização da maternidade saudável e da família nuclear típica da classe média.

Partindo de uma pesquisa etnográfica com contadoras/es de "causos" da região da fronteira entre Brasil e Uruguai, Luciana Hartmann focaliza os papéis sociais de gênero, colocando em relação quem narra com o que é narrado no contexto específico do evento narrativo. Verifica a existência de dois tipos específicos de performance, com as mulheres contando histórias preferencialmente para outras mulheres, em ambientes de intimidade, embora os personagens masculinos estejam presentes. Já os homens tendem a apresentar narrativas mais "completas", públicas, com início, meio e fim, e muitas vezes sem incluírem personagens femininos.

No artigo "O cinema como pedagogia cultural: ressignificações por mulheres idosas", Wânia Ribeiro Fernandes e Vera Helena Ferraz de Siqueira fundamentam-se no campo dos estudos culturais - sobretudo em noções foucaultianas e dos estudos feministas - para analisar a contribuição do cinema na formação das identidades de gênero. Partindo da investigação dos significados construídos por um grupo de mulheres idosas sobre filmes a que assistiram em sua juventude, concluem que o cinema, em sua dimensão simbólica - através de signos e sentidos -, serviu como elemento estruturante para a construção, a produção e a circulação de regimes de verdade na formação das identidades de gênero dessas mulheres.

O foco nos imaginários é também a preocupação de Agueda Gómez Suárez e Silvia Pérez Freire em sua análise da prostituição na Galícia. Tomando a prostituição como um indicador da "cultura sexual" dominante nas sociedades patriarcais e capitalistas, o artigo investiga a indústria sexual a partir da análise do discurso dos clientes e dos imaginários femininos dominantes entre eles, bem como do discurso das mulheres prostitutas e dos homens que ocupam espaços masculinizados. Os resultados indicam haver uma correspondência entre os arquétipos femininos hegemônicos da cultura ocidental, heteronormativa e androcêntrica, e os padrões relacionais entre trabalhadoras e clientes do sexo.

As imagens eróticas femininas são abordadas por Luciana Klanovicz em artigo que investiga produções da televisão brasileira da década de 1980, com destaque para as telenovelas Gabriela (Rede Globo, 1975) e Pantanal (Rede Manchete, 1990). Para a autora, as personagens Gabriela e Juma são emblemáticas de uma retomada histórica da figura feminina ao apresentarem estereótipos da sensualidade brasileira, caracterizando-a por uma forte corporalidade e por atributos como brejeirice, malícia e morenice.

Após termos reproduzido uma entrevista realizada por acadêmicas estrangeiras na Holanda com Judith Butler em 2002 e termos publicado, em 2007, a tradução realizada e comentada por Selvino Assmann de texto em que a filósofa dialoga com Adriana Cavarero, apresentamos neste número a entrevista que Butler concedeu à psicanalista Patrícia Porchat Knudsen, em acordo com a editoria da REF. Julgamos esse material de particular interesse para as/os estudiosas/os de gênero e teorias feministas que dialogam com a psicanálise ou provêm desse campo.

Em resposta às interlocuções da entrevistadora, Butler reafirma a utilização contingente que faz de sua identificação como feminista, no intuito de marcar uma posição política diante de certo esforço em situá-la como pós-feminista. Transitando pelos temas de transgêneros, psicanálise e teoria cultural e citando várias/os psicanalistas, a filósofa fala de psicose, patologização, estruturas, identificação, melancolia, detendose no conceito de pulsão. À observação da entrevistadora de que parece estar sempre em interlocução com a psicanálise, ela responde que se vê buscando uma reunião entre psicanálise e movimentos sociais mais amplos, políticas culturais e questões relativas a gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e intersexo. Afirma preocupar-se com a resistência à psicanálise nesses movimentos, em que muitos/as a tomam apenas como forma de regulação/normatização, e também com o fato de algumas/uns psicanalistas trabalharem com uma psique autônoma, como se o que acontece com a transferência pudesse ser isolado dos acontecimentos do mundo exterior. Ressalta seu entendimento de que os movimentos poderiam entender melhor sua própria situação a partir de uma perspectiva psicanalítica, complexificando conceitos como desejo, identidade, solidariedade. Na continuidade da entrevista, Butler responde ainda sobre reconhecimento, inteligibilidade, ato performativo, intencionalidade, vida precária, falando também dos trabalhos que desenvolvia por ocasião da entrevista.

A seção de artigos temáticos foi organizada em torno da preocupação das/os autoras/es com a difusão, em periódico acadêmico interdisciplinar, de reflexões e de práticas clínicas, docentes e de pesquisa com enfoque nas questões de gênero produzidas no campo disciplinar da psicologia. Essa iniciativa foi especialmente motivada pela divulgação de pesquisa que destacava a relativamente pequena participação da área Psi nas publicações reconhecidas no campo dos estudos feministas e de gênero, em artigo de Débora Diniz e Paula Foltran publicado em número especial da REF, em 2004. Embora tal situação venha se alterando, conforme ressalta a organizadora na apresentação dos artigos temáticos, ela ainda pode merecer atenção das/os acadêmicas/os da área.

As editoras agradecem o apoio de todo o pessoal técnico, cujo trabalho dedicado tem sido fundamental para a publicação da REF, e às/os resenhistas que atendem ao chamado da Revista, dando uma valiosa contribuição para a divulgação de obras produzidas no país e no exterior, na área de estudos de gênero e feministas.

Susana Bornéo Funck

Mara Coelho de Souza Lago

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2010
  • Data do Fascículo
    Abr 2010
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