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Mulheres da floresta do Vale do Guaporé e suas interações com o meio ambiente

Women of the forest of the Guaporé Valley and their interactions with the environment

Resumos

Este trabalho analisa como as mulheres quilombolas do Vale do Guaporé, através de suas práticas cotidianas, de seus modos de vida, constroem seus saberes ambientais, promovendo o desenvolvimento sustentável. A discussão relacionada à construção de domínios dos saberes das mulheres relativos à floresta e aos rios se dará através de diálogos contidos em entrevistas realizadas com elas que retratam suas experiências no seio da floresta como seringueiras, castanheiras, pescadoras e curandeiras, revelando como utilizam os recursos naturais, preservando o meio ambiente.

gênero e meio ambiente; sustentabilidade; mulheres da floresta


This work analyzes how the quilombola women of the Guaporé Valley, through their daily activities and their ways of life, construct their knowledge about the environment, promoting the sustainable development. The discussion related to the construction of women's knowledge about the forest and the rivers will be done through dialogues contained in interviews describing their experiences within the forest as rubber extractors, nut collectors, fishers, and healers, revealing how they use natural resources, preserving the environment.

Gender and Environment; Sustainability; Women of the Forest


DOSSIÊ MULHERES E MEIO AMBIENTE

Mulheres da floresta do Vale do Guaporé e suas interações com o meio ambiente

Women of the forest of the Guaporé Valley and their interactions with the environment

Tereza Almeida Cruz

Universidade Federal do Acre

RESUMO

Este trabalho analisa como as mulheres quilombolas do Vale do Guaporé, através de suas práticas cotidianas, de seus modos de vida, constroem seus saberes ambientais, promovendo o desenvolvimento sustentável. A discussão relacionada à construção de domínios dos saberes das mulheres relativos à floresta e aos rios se dará através de diálogos contidos em entrevistas realizadas com elas que retratam suas experiências no seio da floresta como seringueiras, castanheiras, pescadoras e curandeiras, revelando como utilizam os recursos naturais, preservando o meio ambiente.

Palavras-chaves: gênero e meio ambiente; sustentabilidade; mulheres da floresta.

ABSTRACT

This work analyzes how the quilombola women of the Guaporé Valley, through their daily activities and their ways of life, construct their knowledge about the environment, promoting the sustainable development. The discussion related to the construction of women's knowledge about the forest and the rivers will be done through dialogues contained in interviews describing their experiences within the forest as rubber extractors, nut collectors, fishers, and healers, revealing how they use natural resources, preserving the environment.

Key words: Gender and Environment; Sustainability; Women of the Forest.

Neste artigo analisamos como as mulheres quilombolas do Vale do Guaporé, no Estado de Rondônia, através de suas práticas cotidianas, de seus modos de vida, constroem seus saberes ambientais, promovendo o desenvolvimento sustentável. Assim, estamos enfrentando o desafio de discutir questões relativas a gênero e meio ambiente na Amazônia, destacando a atuação dessas mulheres na preservação da natureza. Nessa discussão nos distanciamos do pensamento ecofeminista essencialista, representado principalmente por Vandana Shiva que, a partir da ideia do princípio feminino, vincula as mulheres à vida e à natureza,1 1 Vandana SHIVA, 1998, p. 4-5. reforçando o papel 'natural' delas como reprodutoras, mantenedoras e defensoras da vida e da natureza. Entendemos que mulheres e homens fazem parte da natureza e que as relações das mulheres com o meio ambiente estão relacionadas aos papéis sociais de gênero que são cultural e historicamente construídos.

Nosso trabalho se baseia em fontes orais e na bibliografia referente à temática. Selecionamos dez entrevistas de mulheres quilombolas que foram realizadas nos municípios de São Miguel do Guaporé, Costa Marques, São Francisco do Guaporé, Pimenteiras e Alta Floresta d'Oeste, no Estado de Rondônia, durante os meses de janeiro, abril e maio de 2009, quando realizamos a nossa pesquisa de campo. Essa tarefa se constituiu em um grande desafio, pois não conhecíamos a região que é de uma beleza singular e as comunidades quilombolas que são muito acolhedoras. Essas comunidades são desassistidas de políticas públicas básicas.

A região do Vale do Guaporé foi ocupada em decorrência da expansão mineradora portuguesa e dos movimentos sertanistas e bandeirantes, a partir de meados do século XVIII, nas imediações das fronteiras com a vizinha colônia castelhana do Vice Reinado do Peru, invadindo os territórios indígenas. Por ser uma região estratégica, do ponto de vista geopolítico e econômico, a Coroa Portuguesa criou a Capitânia de Cuiabá e Mato Grosso, tendo como capital Vila Bela da Santíssima Trindade. A efetivação da extração do ouro e a construção da capital só foram possíveis devido à introdução da mão de obra africana. Como em todas as regiões do país, os escravos se rebelaram, fugiram e formaram quilombos. Assim, como na região do rio Trombetas, "conhecer o meio ambiente tornara-se fundamental para o sucesso das fugas".2 2 Euripedes FUNES, 2005, p. 474. Os negros do Guaporé souberam se embrenhar nas matas em busca da liberdade, singrando os igarapés em áreas de mais difícil acesso, distanciando-se do rio Guaporé para escapar da recaptura e constituindo um novo modo de vida.

A presença das mulheres na constituição dos quilombos no Vale do Guaporé é algo quase ignorado pela historiografia regional. Se, de modo geral, os negros foram marginalizados pelo Estado e pela historiografia, as mulheres negras então é que ficaram silenciadas, sofrendo uma tríplice discriminação: por serem mulheres, por serem negras e por serem pobres.

Diante da invisibilidade da participação das mulheres na sociedade no Vale do Guaporé, nos propomos a 'desvirilizar' a história, de acordo com Michelle Perrot,3 3 PERROT, 1993, p. 129-130. entendendo o conceito de gênero como um conceito relacional, pois um sexo só existe em relação ao outro.

Também buscamos discutir as experiências das mulheres da floresta dessa região amazônica, nos inspirando ainda na concepção de gênero como uma categoria de análise e um conceito relacional na visão de Joan Scott, segundo a qual "o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder".4 4 SCOTT, 1996, p. 11. É nessa perspectiva que entendemos as peculiaridades de mulheres e homens nas suas percepções e interações com o meio. As relações de poder também estão presentes na utilização dos recursos naturais, como das ervas medicinais. Nesse sentido, nos inspiramos ainda nas análises de Michel Foucault que compreende os poderes como uma rede de dispositivos que afeta a todos,5 5 FOUCAULT, 2000, p. XIV. possibilitando a análise dos micropoderes que se exercem no cotidiano, poderes periféricos e moleculares. Nesse campo, as mulheres detêm muitos saberes e poderes como as parteiras e as curandeiras que, através da utilização dos recursos naturais, sobretudo das ervas medicinais, salvam vidas no seio da floresta, tornando-se 'poderosas',6 6 Expressão utilizada pelo movimento de mulheres da floresta no qual a autora milita. respeitadas pela coletividade.

A discussão relacionada à construção de domínios dos saberes das mulheres relativos à floresta e aos rios se dará através de diálogos contidos em dez entrevistas realizadas com elas "como um meio de aproximação de modos específicos como as pessoas vivem e interpretam os processos sociais, de como estas especificidades influenciam a dinâmica histórica".7 7 Yara KHOURY, 2004, p. 123. As entrevistas foram realizadas em cinco comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé, nas casas das pessoas, tendo todo um cenário: o rio, o quintal, a floresta, o canto dos pássaros, o cacarejar das galinhas, a interferência de alguns familiares; gestos, emoções, silêncios que são impossíveis de serem transcritos. Procuramos revelar como essas narrativas expressam práticas sociais que se inserem numa cosmovisão que entende o ambiente na perspectiva da totalidade, diferente do homem moderno que possui uma ótica dualista da relação sociedade-natureza.

A partir do conhecimento e das práticas sociais presentes nos seus modos de vida, expressos nas múltiplas vozes de mulheres, poderemos apreender a diversidade histórica das interações entre as populações do Vale do Guaporé e a natureza e como estas detêm uma atitude de respeito ao meio em que vivem, embaladas nos seus ritmos. Veremos, como analisa Yara Khoury, que "tanto fatos como narrativas se constroem nas e pelas redes de relações em que estão inseridos".8 8 KHOURY, 2004, p. 123.

Destarte, podemos afirmar que as análises que faremos das relações das mulheres remanescentes dos quilombos do Vale do Guaporé se situam nas lições que a História Ambiental nos proporciona, de acordo com Marcos Lobato Martins: a necessidade de abordar o ambiente na perspectiva da totalidade, apreender a diversidade histórica das inter-relações natureza-sociedade, advertência em favor da humildade para se conhecer melhor a natureza, e o conceito de desenvolvimento sustentável.9 9 MARTINS, 2008, p. 71-76. E tudo isso produz uma consciência ecológica. Nesse sentido, podemos considerar os indígenas e afrodescendentes do Vale do Guaporé como 'cidadãos ecológicos'.10 10 Expressão inspirada no conceito de consciência ecológica, utilizada por Marcos Lobato Martins, indicado na referência bibliográfica anterior.

Conheceremos agora um pouco das experiências da 'consciência ecológica' dessas populações, iniciando por Valda Ibañez Ajuru, natural de Rolim de Moura do Guaporé, 33 anos, que, a nosso ver, representa de forma muito significativa as vivências das populações do Vale do Guaporé. Ela é cacique do povo Ajuru, filha de Natanael Braga e Maura Ibañez Ajuru. Seu pai é descendente de escravos que fugiram de Vila Bela da Santíssima Trindade e sua mãe é Ajuru. Sua família tem uma característica própria da região do Vale do Guaporé: a miscigenação entre negros e índios. E Valda vive essa 'dupla identidade' de ser indígena e ser negra ao mesmo tempo. Ela narra um pouco dessa experiência: "Olha, do mesmo jeito que eu me sinto uma remanescente de quilombo eu me sinto indígena também, as duas dividida mesmo, é as duas coisas. Mesmo que eu não quisesse essa é a realidade. Tanto eu fui criada na aldeia quanto eu fui criada pelos negros" (fonte oral).11 11 AJURU, 2009. Valda assume sem maiores conflitos a sua identidade indígena e quilombola, e o mais interessante é que, na sua trajetória de vida, ela se tornou uma liderança que defende os direitos tantos dos índios quanto dos negros.

Os povos da floresta têm todo um modo próprio de ser e viver embrenhados na mata ou às margens dos rios, extraindo da natureza os bens necessários para a sua sobrevivência, preservando os recursos naturais. Da floresta eles extraem a madeira para fazer suas casas, móveis, canoas, remos; tiram a palha para cobrir as casas, a envira para amarrar as palhas, a paxiúba12 12 É uma palmeira, cujo tronco roliço é divido em duas partes, servindo para fazer assoalhos e paredes das casas dos povos da floresta. para fazer assoalhos e paredes; coletam vários frutos que servem de alimentos, como o açaí, a bacaba, o patoá, o buriti, além de extraírem o óleo dessas palmeiras. Também a mata fornece as matérias-primas para a confecção de artesanato, como a palha de tucumã, tão utilizada pela população ribeirinha do Vale do Guaporé. A própria Valda Ajuru, que detém tantos conhecimentos a respeito da utilização dos recursos florestais, nos conta o que produzem dessa palheira e o processo de produção do artesanato:

A gente usa a palha pra fazer bolsa, do broto da palha que é uma coisa que dá, com o tempo cai e já não estraga. Utiliza pra fazer bolsa, pra fazer saia, pra fazer brinco, pra fazer rede, pra fazer manta pra cobrir. A gente tira ela de manhã cedinho, quando tá tudo frio. Tem uma forma que a gente estala ela, puxa ela, ela dá aquele vácuo, aí a gente puxa, tira aquelas linha certinha. Aí a gente deixa ela no sol, depois pega o sabugo do milho - que já não tem mais utilidade - e puxa ela no sabugo do milho, depois passa ela na perna. Na perna a gente emenda uma com a outra e vai fazendo aqueles bolo pra ocupar, pra fazer bolsa, rede, manta, coisa pra colocar de lado pra carregar a criança, todas essas coisas. E do broto da palha a gente faz cesta [...] A gente faz chapéu, faz abanador, faz esteira pra criança sentar pra comer. Tudo isso é coisa que ia ser estragada, ia cair no chão. Então, isso é reaproveitamento que a gente faz de coisa que ia estragar.

(fonte oral)

13 13 AJURU, 2009.

Essa narrativa expressa uma sabedoria que leva ao aproveitamento de recursos naturais que iriam de outra forma se deteriorar, transformando o broto dessa palha em artesanato que tem muita utilidade no cotidiano de uma aldeia, de uma comunidade ribeirinha. Não é qualquer hora que se pode extrair a palha; tem que ser cedinho e ter a forma correta de tirá-la. São técnicas que fazem parte da construção dos saberes ambientais para a confecção de produtos artesanais de qualidade dessa palha que são transmitidos pela oralidade e práticas cotidianas. E ainda há a possibilidade de comercialização, proporcionando o aumento da renda familiar. Além da palheira de tucumã, aproveitam também o coco de babaçu, a castanha, o açaí e o buriti, como continua nos ensinando esta 'doutora da floresta', a Valda Ajuru:

Tem o tucum, o babaçu, tem o najá. Então o coco é uma coisa que ele dá e por ele mesmo ele cai. A gente utiliza o coco, faz anel, pulseira, faz brinco. De todos eles a gente tira, faz o óleo, faz doce também. Tanto faz o doce quanto tira o óleo dele. [...] Aí a gente faz óleo da castanha e daquela casca que sobrou a gente utiliza no fogo, queima; ele pega bem, a gente utiliza. A castanha a mesma coisa: a gente come a castanha, faz doce, tira azeite da castanha; e do ouriço também a gente usa pra queimar, utiliza pra fazer pulseira, pra fazer colar, brinco, todas essas coisas. Tudo era coisa que ia se perder. E do açaí e do buriti, a mesma coisa. Açaí e buriti a gente não corta, sobe lá em cima e tira o açaí e o buriti, o patoá. Então a gente aproveita tudo também.

(fonte oral)

14 14 AJURU, 2009.

Nesse relato vemos experiências antigas que se aproximam do que hoje consideramos manejo sustentável dos recursos florestais, o cuidado para não destruir um açaizeiro e outras palmeiras que produzem frutos que servem de alimentos, para a extração de óleos vegetais e os restos ainda são reaproveitados para produzir artesanato ou para lenha. E ainda há um cuidado especial na hora de coletar os cachos de açaí: "Se num pé tem quatro, cinco cacho não é tirado todos aqueles cacho. A gente tira um pouco e um tem que ficar lá em cima que aí vem os pássaros comer. E outra que eles maduros o vento joga eles e ele nasce. Então não pode tirar tudo de um pé" (fonte oral).15 15 AJURU, 2009. Há a preocupação até com o alimento dos pássaros e com as sementes que produzirão outros açaizeiros. Isso revela uma sensibilidade com o meio e práticas de sustentabilidade ambiental e cultural, como aponta Sachs.16 16 Ignacy SACHS, 2002. Faz parte de um conhecimento que brota do chão cotidiano e que vai sendo transmitido de pais e mães para filhos e filhas como práticas culturais de relacionamento respeitoso com o meio ambiente.

Outra mulher remanescente de quilombo que carrega em si essa vivência de convívio intenso e respeito com a floresta é a Laís Miriam dos Santos, 35 anos, natural de Porto Velho, Rondônia, secretaria da Associação Quilombola do Forte Príncipe da Beira. Ela reside na comunidade Forte Príncipe da Beira, onde seus avôs e sua mãe residiram por muitos anos e, por problemas de saúde, tiveram que mudar para a cidade de Porto Velho. Há alguns anos, a sua avó Francisca, sua mãe Florinda e a própria família da Laís retornaram para a comunidade do Forte Príncipe da Beira, um lugar que, como a própria Laís conta:

Aqui é um lugar sossegado, é um lugar tranquilo. A gente tem as dificuldades da gente, porque viver num lugar como esse aqui que você vê é só rodeado de mata, da natureza é muito bom, mas também tem as suas dificuldades, né? Mas a gente é feliz! A gente põe uma roça, a gente colhe; a gente vai no rio pega um peixe pra comer; a gente vai na mata, mata um bicho, a gente come. Então, eu acho, é um local assim que a gente pode viver feliz, que a gente pode criar os filhos da gente com tranquilidade. Pra mim é um lugar que não existe melhor pra gente poder educar os nossos filhos, pra gente dá uma educação pros nossos filhos. Não sei se você percebeu, mas aqui os filhos da gente eles tem uma educação diferente de muitos filhos que a gente vê por aí na cidade, são rebeldes, não sabem respeitar as pessoas mais velhas. Aqui, graças a Deus, ainda se conserva isso um pouco ainda.

(fonte oral)

17 17 SANTOS, 2009.

O distrito do Forte Príncipe da Beira localiza-se às margens do rio Guaporé, no município de Costa Marques/RO, a 28 km da sede do município, por via terrestre. Possui esse nome por causa da construção desse Forte pelos portugueses, no século XVIII, como forma de proteger o território de uma invasão dos espanhóis. E como a Laís nos apresenta é um lugar tranquilo, bonito e que oferece aos seus moradores os meios necessários para a sobrevivência: a caça, a pesca, o roçado. Todavia, tem as suas dificuldades ressaltadas por Laís, que são, sobretudo, a geração de renda, a carência de assistência médica, as interferências do Exército na comunidade civil, a falta de titulação do território quilombola, dentre outras. Por outro lado, muitos moradores são parentes, os mais jovens costumam respeitar os mais velhos, pedem a bênção; e há fortes laços de solidariedade entre eles e os vizinhos. Durante o momento em que estávamos entrevistando a Laís, na casa de sua avó Francisca, presenciamos a chegada de um vizinho trazendo um quarto de um porquinho do mato que ele caçou, uma prática muito comum entre eles e nas outras comunidades quilombolas do Vale do Guaporé. A própria Laís ainda detalha um pouco mais essas relações de solidariedade, de vizinhança:

Quando você pega em grande quantidade, você divide com os vizinhos. Sempre que ele [o vizinho] mata uma anta, mata um veado, qualquer coisinha que ele mata, ou peixe ele traz: "Olha aqui, dona Francisca" [a avó de Laís]. E aqui todo mundo é assim. Se você precisa de um limão, aqui, graças a Deus, você não precisa do dinheiro pra ficar comprando as coisas. Quem tem arruma pro outro. As vez o seu não tá bom, não tem ainda; vai na casa do seu vizinho e você pega um limão pra você temperar a carne, lavar uma carne, lavar um peixe. Aqui é assim. Você quer uma laranja, você vai na casa, no quintal: "Ah, eu vou pegar umas laranjas aqui". "Ah, pode pegar!". É coco, é o que for. Você percebeu que aqui nas casas sempre tem uns pés de frutas, né? Nunca tem um lugar que não tem nenhuma. [...] Aqui todo mundo é assim. Se você precisa de uma verdura, de um cheiro verde, se você não tem, você vai na casa da vizinha, a vizinha me arruma. Você arruma pra vizinha porque ela não tem o tomate. É assim!

(fonte oral)

18 18 SANTOS, 2009.

São relações bem diferentes das relações capitalistas que vemos, sobretudo, nas cidades, nas quais dificilmente uma pessoa que não tenha dinheiro poderá se alimentar. Assim, percebemos mulheres e homens remanescentes de quilombos com práticas sociais que destoam da visão do mundo individualista, que contribuem com seus modos de vida para constituir práticas que se situam em outras perspectivas tanto do ponto de vista das relações interpessoais quanto das relações com a natureza; são valores diferentes das sociedades industrialistas. Todavia, não podemos esquecer que essas pessoas não vivem totalmente isoladas, sendo envolvidas também por um mundo marcado por outros códigos.

Ignacy Sachs,19 19 SACHS, 2002. em suas pesquisas, identifica economias diferentes daquelas desenvolvidas no capitalismo. Aborda como os povos que vivem em ecossistemas especiais, como os das florestas tropicais, aproveitam os recursos disponíveis na natureza, expressando uma atitude respeitosa em relação ao espaço trabalhado. Esse aspecto está bem retratado na fala de Laís:

Eles [os moradores] têm consciência que a gente tem que preservar o que a gente tem. Eles sabem que a gente tem que preservar, que a gente tem que cuidar disso aqui [...] A gente quer conservar essa mata. Aqui a pessoa pode ir no mato, ela tira palheira pra ela cobrir uma casa... Ela tira os paus pra poder fincar na terra e fazer toda essa armação, entendeu? E aqui, você quer uma semente pra você fazer artesanato, você vai lá, você consegue. Você quer uma planta medicinal você vai no mato, as vez você encontra aquela planta que você quer. Então, as pessoas aqui, elas tem toda essa consciência que eles têm que conservar o que a gente ainda tem. Acho que todas as pessoas aqui que você falar vão te dizer a mesma coisa que a gente tem essa consciência que é da natureza que nós tira o nosso sustento, essa nossa vida boa que a gente leva aqui - isso aqui pra mim é uma vida muito boa, uma vida maravilhosa...

(fonte oral)

20 20 SANTOS, 2009.

Esta relação respeitosa com o meio ambiente, como também revela o depoimento de Laís, de acordo com Sachs, constitui um dos aspectos que justificam aprofundar os conhecimentos sobre essas culturas, para apreender como manejar recursos naturais em benefício de um equilíbrio sem prejudicar a dinâmica da vida. Ele argumenta por uma sociedade da biomassa baseada nos conhecimentos dos povos dos ecossistemas singulares, uma oportunidade particularmente desafiadora para os países tropicais como o Brasil.21 21 SACHS, 2002.

Os depoimentos de Laís e Valda também revelam uma 'consciência ecológica' que faz parte de uma concepção que Joan Martinez Alier denomina de "ecologismo dos pobres", cujo "eixo principal não é uma reverência sagrada à natureza, mas, antes, um interesse material pelo meio ambiente como fonte de condição pela subsistência,22 22 ALIER, 2007, p. 34. , pois a floresta fornece para os seus habitantes os recursos naturais necessários à sua sobrevivência que são utilizados de forma sustentável, pensando também nas gerações futuras. Essa perspectiva traz presente a ideia de desenvolvimento sustentável utilizada e definida no relatório das Nações Unidas intitulado Nosso Futuro Comum, como "aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades".23 23 COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 46.

O conhecimento que essas populações remanescentes quilombolas do Guaporé possuem do meio em que vivem é algo extraordinário que se manifesta também em práticas cotidianas como a pescaria. Mais uma vez, é a Laís que nos revela a sua sabedoria:

É gostoso demais pescar. [...] E a gente escolhe os pontos que tem qualidade, tipo de peixe. Porque não é em qualquer canto que a gente pega o tipo de peixe. Por exemplo, em muita galhada, em beira de barranco, a gente pega muito pirarara. Aqui, já em local que é pedral, muita pedra e que é fundo, um pouco mais fundo as pedras, a gente não consegue ver o fundo delas, a gente pega muito é jaú. A gente chama aqui jaú, piraíba, ou filhote de piraíba. E nas locas das pedras que fica em locais mais rasos, a gente pega o tucunaré, na época do verão. E, em qualquer canto, em qualquer pedra, você sempre pega de caniço: pacu, piau, cará. [...] Que aqui eles usam muito pra pegar surubim, também é a flecha. Eles pescam de flecha também. [...] Aí de flecha tem que ir um pilotando na canoa atrás. A maioria das vezes sou eu, porque não sei pescar de flecha (risos). Aí o da frente vai em pé na proa. [...] Ele vai em pé ali na frente, olhando, né? Dá mais onde tem areia e rasa que dá para você ver bem o fundo e de longe ele tem que flechar, porque não deixa chegar muito perto, senão ele foge e vai embora. Eu já pesquei muito assim com o meu marido.

(fonte oral)

24 24 SANTOS, 2009.

Essas vivências retratam conhecimentos profundos dos locais apropriados para a pescaria, considerando os tipos de peixes que se deseja e a estação do ano. São saberes que brotam da necessidade, da observação da natureza, da curiosidade, da aprendizagem com os mais experientes, transformando a população ribeirinha em verdadeiros 'senhores dos rios' pelas suas práticas cotidianas que estão ligadas a todo um modo de vida relacionado ao rio, que é fonte de vida. Outro aspecto abordado por Laís é a pescaria com a flecha, uma prática cultural que as pessoas negras aprenderam com os povos indígenas da região. Esta é uma habilidade desenvolvida mais pelos homens. Contudo, há algumas mulheres que também são exímias pescadoras, utilizando o arco e a flecha.

Esse relato da Laís também retrata como as mulheres são companheiras, solidárias aos seus maridos no trabalho da pesca. Aliás, elas são solidárias em todas as atividades, como expressa a narrativa de dona Maria Agostinha de Macedo, 56 anos, moradora do Bom Destino: "Tudo quanto é de trabalho eu faço. Eu ajudo ele carpir, eu ajudo ele roçar, eu ajudo ele a derrubar roça. Tudo nós ajuda. Nós tudin ajunta e nós ajuda o velhinho ali. Até na colheita" (fonte oral).25 25 MACEDO, 2009. Infelizmente, esse trabalho não é devidamente valorizado, sendo considerado tanto pelos homens como pelas próprias mulheres apenas como uma 'ajuda' aos homens; o trabalho produtivo é masculino.

Todavia, na prática, as mulheres remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé são corajosas e enfrentam todo tipo de trabalho e dificuldades, embora seu trabalho produtivo seja invisibilizado. Dona Aniceta Mendes Pinheiro, 68 anos, natural de Ilha das Flores, no rio Guaporé, moradora antiga de Pedras Negras, destaca esta vida de trabalho. Até hoje, mesmo aposentada, ela não consegue parar de trabalhar no roçado, quebrar castanha e carregá-la nas costas até o porto. Vejamos o que ela nos conta:

Nós cortava seringa, arrancava poaia, quebrava castanha, trabalhava em roça. A nossa vida era sacrificada, não era como hoje. Todo mundo trabalhava. Por isso que a gente não para de trabalhar. Eu acho assim, e quando para de trabalhar acha que vai adoecer. A gente acostumou nisso. Quando a mãe da gente saía tinha de ir com ela, era pra roça, era pra poaia. Naquele tempo, arrancava poaia. Hoje acabou a poaia.[...] Terminava a poaia, ia cortar arroz; terminava a castanha, cortava arroz. Depois do arroz ia pra seringa. Era assim

. (fonte oral)

26 26 PINHEIRO, 2009.

Esse relato apresenta as atividades produtivas que eram desenvolvidas pela população negra e indígena do Vale do Guaporé: extração do látex e da poaia,27 27 Planta rampante que cresce na sombra de matas úmidas e sua raiz é utilizada para fins medicinais. Desta raiz é extraída a Emetina, substância vegetal largamente utilizada na indústria farmacêutica, principalmente como fixador de corantes. coleta da castanha e produção do roçado. E é importante destacar que as mulheres guaporeanas estavam presentes em todos esses trabalhos considerados próprios de homens, enfrentando os perigos da mata. Assim, elas quebram os estereótipos sociais de gênero. Veremos um pouco mais dessas vivências narradas por essas mulheres audaciosas.

As experiências históricas das mulheres na extração do látex na Amazônia constituem-se como uma história de 'trabalho silenciado', invisibilizado, como analisam os estudos de Lígia Simonian28 28 SIMONIAN, 1995, p. 234. e Marcos Montysuma.29 29 MONTYSUMA, 2008, p. 155-173. Esse autor busca, do ponto de vista analítico, desvirilizar o espaço do seringal, mostrando como as mulheres podiam até exercer o papel de instrutoras para novos seringueiros "aprenderem o ofício e os segredos da floresta".30 30 MONTYSUMA, 2008, p. 160. A obra de Cristina Sheibe Wolff sobre as mulheres da floresta do Alto Juruá no Acre também dá visibilidade à participação ativa das mulheres nos seringais, inclusive no processo de produção do látex.31 31 WOLFF, 1999.

O trabalho das mulheres em todas as atividades produtivas se torna invisível ou considerado apenas como uma 'ajuda' aos homens, conforme já comentamos. Entretanto, esse trabalho é essencial para a economia familiar. Queremos dar visibilidade e voz a essas experiências de trabalhos no seio da floresta guaporeana, continuando com as narrativas de mulheres seringueiras, desvendando a sua intensa participação e coragem no processo de produção da borracha. As entrevistas que fizemos com várias mulheres seringueiras retratam que elas participaram ativamente do processo produtivo da borracha, seja colhendo o leite, ajudando na defumação32 32 Defumar consiste no ato de fazer fogo no buião (fogão) confeccionado para secar o leite colhido das seringueiras para formar a pela de borracha, trabalho que era feito diariamente. ou participando diretamente de todas as etapas desse processo, enfrentando todos os desafios da mata e colaborando na constituição da sociedade guaporeana e amazônica. Dona Luisa Virgolino Borges, 79 anos, nascida nas cabeceiras do rio Machado, no seringal Corumbiara, é uma destas mulheres. Ela cortava seringa com seu marido no rio São Miguel. Vejamos um pouco de sua trajetória:

Eu fui seringueira também! Fui! Eu levantava três hora da madrugada pra fazer a comida, o café, pra levar pra estrada. Aí chegava lá, ficava esperando clarear, quatro hora da madrugada. Quando clareava a gente entrava pra cortar a siringa. Eu cortava um V, enfiava as tigela pra aparar o leite, era? Até meio-dia. Quando era meio-dia vinha praí, onde fechava o corte pra comer. A barriga seca já com fome! Desde de manhã até meio-dia, cortando. Aí pegava o balde e o paneiro e ia colher o leite. Pegava a tigela e virava assim e butava lá até que ficava meio saco de leite daquele. O saco era de borracha, aí ia de novo até duas hora da tarde. Aí que nós fecha a colha, aí vinha embora pra difumar o leite. Primeiro colocava numa lata e aquecia no fogo pra engrossar o leite. Aí despejava dentro de uma bacia pra dali colocar pra difumar. Era difumada. A gente fazia tudo isso.

(fonte oral)

33 33 BORGES, 2009.

Essa narrativa de dona Luisa nos ensina, com propriedade, que a produção da borracha passa por três fases: o corte da árvore da seringueira que é feito com uma faca própria; a coleta do leite e a defumação. Portanto, as seringueiras e os seringueiros precisam percorrer as estradas de seringa duas vezes, uma para cortar e outra para colher o látex. Por isso que se torna um trabalho cansativo, pois precisa andar bastante e ainda carregar o produto nas costas para casa, onde fica o defumador. É uma atividade que se inicia de madrugada e só termina à noite com a defumação do látex. Dessa forma, os seringueiros e seringueiras passam mais tempo na mata do que em casa. Portanto, é um trabalho de interação profunda com a floresta. A fala de dona Maria de Nazaré Gomes da Silva, 82 anos, moradora antiga da comunidade de Laranjeiras, detalha mais esta relação tão próxima com a natureza:

Agora, uma estrada de centro, duzentos pau cada um pra cortar no dia é muito pé de seringueira. E a gente tinha que dá conta. E naquele ermo de mundo, só os bichinho cantando! Irmãzinha, eu ficava distraído com os bichinho cantando assim nas mata. E eu ficava olhando assim, mata linda! E eu cortando siringa [...] Ia colher o leite, com fome. [...] Eu ia naqueles matão, naquele meio mundão, pássaro de tudo quanto é tamanho, cantando na frente da gente, aquela alegria, muita fruta! Eu pegava fruta, subia no pé da fruteira tirar fruta, comia bastante fruta... Chegava, a gente já descia ia lá no porto beber um pouco de água, água do igarapé, geladinha, geladinha.

(fonte oral)

34 34 SILVA, 2009.

Dona Nazaré descreve a relação intensa que tem com a mata que se torna uma companheira de trabalho e uma fonte de alimentos, pois nem sempre as pessoas levavam comida suficiente para suprir as suas necessidades. Nesse sentido, a mata também é uma parceira, pois oferece os seus frutos para saciar a fome, o canto dos pássaros para alegrar a caminhada dessas trabalhadoras. E o igarapé disponibiliza uma água geladinha para saciar a sede, é a geladeira da floresta. Esse contato direto com o 'matão' fez com que as populações da floresta estabelecessem uma relação muito próxima com o meio, as pessoas se sentem parte da própria natureza e dependem dela para sobreviver. Por isso, defendem os seus modos de vida, a floresta.

No Guaporé o tempo da natureza é que indica as atividades das populações remanescentes de quilombos. Outra atividade extrativista é a coleta e a quebra da castanha. Ela começa a cair no mês de novembro, mas as pessoas só podem iniciar a coleta e a quebra em fevereiro, quando ela já acabou de cair, pois se um ouriço35 35 O fruto da castanheira que tem um formato arredondado. No seu interior ficam as sementes de castanhas. cair na cabeça de alguém dificilmente ele escapa com vida. Mais uma vez, as mulheres estão presentes nessa atividade produtiva, como retrata o relato da aposentada Benigna Francisca do Nascimento, da comunidade do Forte Príncipe da Beira: "Vich, quebrei foi muita castanha, carregava nas costas, caía aqui, levantava. Juntava um monte de castanha e nós ia quebrar tudin; aí juntava e nós ia quebrar com o terçado,36 36 Facão. quebrava tudin os ouriço. Era assim. Sofri muito, trabalhava muito!" (fonte oral).37 37 NASCIMENTO, 2009. Um trabalho difícil, mas que era enfrentado com coragem juntamente com os homens. Ao mesmo tempo, nos piques de castanhas há muitas pessoas nessa atividade. A castanha é um produto rico em proteína que serve para alimento, para produzir leite e óleo para uso doméstico e ainda tem valor comercial.

Outra mulher que encara todo tipo de trabalho ainda hoje aos 74 anos é a dona Teodora Coelho dos Santos. Ela também, há décadas, quebra castanha na comunidade de Pedras Negras e narra a sua experiência: "Chegava num monte de castanha assim, ajoelhava e tocava o pau a quebrar. Num instante enchia um paneiro.38 38 Cesto de cipó trançado confeccionado pela população da floresta. É utilizado para armazenar e carregar dversos produtos agroflorestais. Aí dava três viagem no porto. Saía lá, deixava lá na beira do gapó. Aí nós carregava de canoa" (fonte oral).39 39 SANTOS, 2009. A primeira etapa do processo de quebra da castanha é juntar as castanhas em montes. Depois que se efetua o corte do ouriço, que é bastante duro, utilizando um facão, enchem-se os paneiros de castanha, que são carregados nas costas até a canoa às margens do igarapé ou do igapó. Alguns piques de castanha são próximos dos igarapés e outros são mais distantes. Esse é um processo bastante trabalhoso que as mulheres enfrentam ao lado dos homens, pois é uma forma de conseguir um dinheiro extra para suprir as suas necessidades e de seus familiares.

A luta pela sobrevivência é grande, mas as mulheres quilombolas do Guaporé enfrentam com coragem todos esses desafios de se viver em uma floresta tropical, aprendendo os seus segredos e respeitando os seus mistérios. Muitas também se tornaram 'doutoras' que salvam vidas como parteiras e curandeiras, utilizando ervas medicinais, cascas e raízes de árvores, bem como orações. Uma dessas mulheres é a dona Maria Nazaré Gomes da Silva, mãe da Mafalda da Silva Gomes:

A minha mãe ela curou muitas pessoas, adulto, criança. Assim, né, que nem eu tô dizendo com remédios assim de ervas e também de oração, porque dizem que tudo é a crença, de acreditar. Mas eu acho que existe sim o problema que dá em criança que se chama quebrante que dá em criança nova, criancinha. E ela curava através de oração. As vez, criança que já tava dismaiada assim, já não comia nem nada. E através de oração, um chazinho que ela dava ficava bem. Fazia parto também. Ela curou muitas pessoas.

(fonte oral)

40 40 GOMES, 2009

Nas comunidades remanescentes de quilombos a aprendizagem dos 'segredos das curas' se dá muito pela observação, pela curiosidade. As filhas viam as mães preparar os remédios com recursos naturais e fazer orações e acabam incorporando aquele conhecimento. Assim, a transmissão de conhecimentos relativos à manipulação de ervas e raízes, e das orações, se dá através de práticas sociais cotidianas no 'fazer-se' dessas comunidades. Também outras mulheres aprenderam com a dona Nazaré, observando-a ou com as orientações dela, como é o caso da Sara Lino, que mora há mais de 20 anos em Laranjeiras. Ela também se tornou uma grande conhecedora da manipulação de recursos naturais para a produção de remédios da mata. Ela fala de remédios que prepara com raízes de palmeiras, como do açaí e do aricuri41 41 Syagrus coronata é uma palmeira nativa do Brasil que pode chegar a ter dez metros de altura. Conhecida popularmente com ouricuri ou aricuri, seus frutos são comestíveis e de suas sementes pode-se extrair óleo vegetal. As fibras das folhas são matéria-prima para a confecção de chapéus e outros objetos análogos (Wikipédia). para anemia e combater verminoses:

Do açaí a gente pega a raiz do lado que o sol nasce, ela dá uma raiz vermelhinha, bem vermelhinha assim. Fica pra fora da terra assim. A gente tira a raiz, digamos que desse um quilo, meio quilo de cada pé. Tira cinco quilo de raiz de açaí, vai lava bem lavadinho, maceta ela, põe pra ferver em dez litro de água. Ela vai ficar em cinco litro. Aí a gente vai tomar. É bom pra pessoa que sofre de anemia, Muito bom! E tem também a raiz que a gente fala aqui aricuri, que aqui tem aricuri, né? A gente pega a raiz do aricuri, também tira, lava e maceta bem, é muito bom pra verme. Joga também qualquer tipo de verme. A gente tem muitos remédio assim que muitas vez não aproveita, mas remédio tá em casa. Eu faço aqui direto mais remédio de casa pra gente.

(fonte oral)

42 42 LINO, 2009.

É interessante observar nesse relato que a coleta da raiz do açaizeiro tem que ser feita na direção em que o sol nasce. "Nisso entendemos ocorrer significações situadas na cultura, dando sentido aos atos das pessoas, que assim agem em deferência às plantas".43 43 Marcos MONTYSUMA e Tereza Almeida CRUZ, 2008, p. 230. O sol também tem propriedades curativas dentro desse contexto cultural. A mata oferece muitos recursos medicinais, mas é preciso que as pessoas detenham as condições culturais de descobri-los e aproveitá-los, processo que é partilhado pelas comunidades do Vale do Guaporé. Temos que considerar também que, distante dos centros urbanos e da assistência médica, faz-se necessário o desenvolvimento dessas práticas de curas que salvam vidas no interior da floresta e nas margens dos rios.

Há também uma variedade de remédios produzidos a partir de banha de animais da floresta e do rio que faz parte do assim chamado patrimônio imaterial dessas populações do Guaporé. Valda Ajuru expõe parte de sua sabedoria:

A banha do jacaré é usado mais pra bronquite, pra asma, pra pneumonia que é usado a banha de jacaré com o mel. Da mesma forma é usada a banha de arraia também pra bronquite, pneumonia. Pra asma é usado mais o ovo do pato do mato. Bate ele e dá a clara pra tomar [...] A banha e o osso da capivara é usado pra reumatismo que a gente usa. E a banha da traíra pra dor de ouvido. A gente usa a banha da traíra com a flor do mamão, o mamão macho, aquele mamãozinho. Guarda, coloca num vidro também pra dor de ouvido.

(fonte oral)

44 44 AJURU, 2009.

Esta 'doutora da floresta' também tem um vasto conhecimento tanto de raízes e cascas de árvores quanto de ervas que ela cultiva no seu quintal, podendo preparar os remédios quando necessários. Com tantos recursos naturais disponíveis, a Sara analisa: "A gente usa mais aqui é remédio natural, né? Eu prefiro o remédio natural que o de farmácia, porque muitas vez a gente bebe o remédio de farmácia, ele cura uma coisa e ataca outra. E o remédio natural não, ele cura tudo" (fonte oral).45 45 LINO, 2009. Há uma defesa da saúde que brota da natureza que não produz os efeitos colaterais dos medicamentos alopáticos, embora nem sempre as doenças sejam curadas com esses remédios naturais. De qualquer forma, é importante conhecer e manipular o que a natureza oferece. Há uma produção de conhecimento materializado nos preparos de remédios com os recursos que a mata oferece abundantemente na região do Guaporé e que faz parte do patrimônio cultural dessas populações.

A manipulação de raízes e cascas de árvores, das ervas e banhas medicinais torna as mulheres, que detêm esses conhecimentos, poderosas e respeitadas na região. São Nazarés, Luisas, Anicetas, Saras, Valdas, e tantas outras que, incansavelmente, colocam seus conhecimentos a serviço da vida de suas famílias, de suas comunidades. Isso faz parte de práticas de curas milenares que são transmitidas de gerações a gerações. Esse patrimônio cultural não é exclusivo das mulheres. Ainda como aborda Lígia Simonian, os conhecimentos ancestrais de plantas medicinais são em grande parte produzidos pelas mulheres amazônidas e se constituem em um patrimônio delas; entretanto, os homens também têm domínios a respeito.46 46 SIMONIAN, 2009, p. 11. Isso também percebemos em nossa pesquisa de campo, pois encontramos homens que são profundos conhecedores dos 'segredos das curas' a partir da manipulação dos recursos naturais e da força da oração.

Enfim, as mulheres quilombolas do Guaporé, na nossa visão, são lutadoras e 'atrevidas'; assim como os homens; aprenderam as manhas da floresta e as formas de viver na região, extraindo os recursos naturais de forma sustentável, aparando vidas, cuidando de suas famílias e colaborando no processo de construção de um desenvolvimento sustentável. Esta ideia de desenvolvimento sustentável é tão forte e atual que José Eli da Veiga chega a considerá-la como a utopia que tomará o lugar do socialismo no terceiro milênio, trazendo em seu bojo o desafio da superação do industrialismo, do capitalismo.47 47 VEIGA, 2006.

Essas experiências das populações da floresta do Vale do Guaporé que apresentamos, sobretudo através das narrativas e práticas das mulheres quilombolas, fazem parte de "uma civilização original dos trópicos" que se constitui em práticas culturais de aproveitamento racional da natureza que, segundo Sachs, "estarão contribuindo para um gerenciamento global inteligente da biosfera".48 48 SACHS, 2002.

Fontes orais

[Recebido em junho de 2010 e aceito para publicação em outubro de 2010]

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  • 1
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  • 2
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  • 4
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  • 5
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  • 6
    Expressão utilizada pelo movimento de mulheres da floresta no qual a autora milita.
  • 7
    Yara KHOURY, 2004, p. 123.
  • 8
    KHOURY, 2004, p. 123.
  • 9
    MARTINS, 2008, p. 71-76.
  • 10
    Expressão inspirada no conceito de consciência ecológica, utilizada por Marcos Lobato Martins, indicado na referência bibliográfica anterior.
  • 11
    AJURU, 2009.
  • 12
    É uma palmeira, cujo tronco roliço é divido em duas partes, servindo para fazer assoalhos e paredes das casas dos povos da floresta.
  • 13
    AJURU, 2009.
  • 14
    AJURU, 2009.
  • 15
    AJURU, 2009.
  • 16
    Ignacy SACHS, 2002.
  • 17
    SANTOS, 2009.
  • 18
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  • 19
    SACHS, 2002.
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  • 23
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  • 24
    SANTOS, 2009.
  • 25
    MACEDO, 2009.
  • 26
    PINHEIRO, 2009.
  • 27
    Planta rampante que cresce na sombra de matas úmidas e sua raiz é utilizada para fins medicinais. Desta raiz é extraída a Emetina, substância vegetal largamente utilizada na indústria farmacêutica, principalmente como fixador de corantes.
  • 28
    SIMONIAN, 1995, p. 234.
  • 29
    MONTYSUMA, 2008, p. 155-173.
  • 30
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  • 31
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  • 32
    Defumar consiste no ato de fazer fogo no buião (fogão) confeccionado para secar o leite colhido das seringueiras para formar a pela de borracha, trabalho que era feito diariamente.
  • 33
    BORGES, 2009.
  • 34
    SILVA, 2009.
  • 35
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    LINO, 2009.
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    SIMONIAN, 2009, p. 11.
  • 47
    VEIGA, 2006.
  • 48
    SACHS, 2002.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      Jun 2010
    • Aceito
      Out 2010
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