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As filhas de Eva: religião e relações de gênero na justiça medieval portuguesa

Eve's daughters: religion and gender relations in the portuguese medieval justice

Resumos

Este artigo analisa as representações de mulheres presentes nas Ordenações Afonsinas, código jurídico português elaborado no século XV que definiu e classificou detalhadamente vários crimes considerados tipicamente femininos e estipulou punições rigorosas. Dentre esses delitos, trataremos de alguns aspectos do adultério, do concubinato e da alcovitagem. Informado pelas representações de gênero, o discurso jurídico do Estado monárquico luso legitimou a perseguição empreendida pela Igreja às mulheres "desviantes". O olhar da justiça era influenciado pelo imaginário religioso cristão e medieval, repleto de ideias patriarcais e misóginas que associavam o feminino ao arquétipo da Eva pecadora, a primeira mulher que se deixou seduzir pelos ardis malignos do demônio.

relações de gênero; religião; justiça; Ordenações Afonsinas


This article analyzes the representations of women in the Ordenações Afonsinas, the Portuguese juridical code elaborated in the 15th century that defined and classified in detail several crimes considered typically feminine, and that stipulated rigorous punishments. Among those crimes, we will discuss some aspects of adultery, concubinage, and panderism. Informed by gender representations, the juridical discourse of the Lusitanian monarchical State legitimated the persecution of "deviating" women undertaken by the Church. The view of justice was influenced by Christian/medieval religious imaginary, full of patriarchal and misogynistic ideas that associated the feminine to Eve's archetype of the sinner, the first woman to be seduced by the Devil's evil artifices.

Gender Relations; Religion; Justice; Ordenações Afonsinas


ARTIGOS

As filhas de Eva: religião e relações de gênero na justiça medieval portuguesa

Eve's daughters: religion and gender relations in the portuguese medieval justice

Edlene Oliveira Silva

Universidade de Brasília

RESUMO

Este artigo analisa as representações de mulheres presentes nas Ordenações Afonsinas, código jurídico português elaborado no século XV que definiu e classificou detalhadamente vários crimes considerados tipicamente femininos e estipulou punições rigorosas. Dentre esses delitos, trataremos de alguns aspectos do adultério, do concubinato e da alcovitagem. Informado pelas representações de gênero, o discurso jurídico do Estado monárquico luso legitimou a perseguição empreendida pela Igreja às mulheres "desviantes". O olhar da justiça era influenciado pelo imaginário religioso cristão e medieval, repleto de ideias patriarcais e misóginas que associavam o feminino ao arquétipo da Eva pecadora, a primeira mulher que se deixou seduzir pelos ardis malignos do demônio.

Palavras-chave: relações de gênero; religião; justiça; Ordenações Afonsinas.

ABSTRACT

This article analyzes the representations of women in the Ordenações Afonsinas, the Portuguese juridical code elaborated in the 15th century that defined and classified in detail several crimes considered typically feminine, and that stipulated rigorous punishments. Among those crimes, we will discuss some aspects of adultery, concubinage, and panderism. Informed by gender representations, the juridical discourse of the Lusitanian monarchical State legitimated the persecution of "deviating" women undertaken by the Church. The view of justice was influenced by Christian/medieval religious imaginary, full of patriarchal and misogynistic ideas that associated the feminine to Eve's archetype of the sinner, the first woman to be seduced by the Devil's evil artifices.

Key words: Gender Relations; Religion; Justice; Ordenações Afonsinas.

Interpretar as leis referentes aos crimes femininos e às imagens das mulheres transgressoras presentes nas Ordenações Afonsinas1 1 As Ordenações Afonsinas foram concluídas em 1446 e publicadas em 1447, durante a regência de D. Pedro I de Borgonha. A obra recebeu o título de Ordenações Afonsinas, pois, embora D. Afonso V ainda não governasse o Reino em 1447, ele era o rei legítimo. demanda reflexões a respeito da influência da moralidade cristã sobre as concepções jurídicas forjadas pelos legistas a serviço da Coroa. As punições estabelecidas pelo poder real às adulteras, concubinas e alcoviteiras durante a Idade Média estavam informadas pelas crenças e pelos valores religiosos, machistas e misóginos.

O quinto volume das Ordenações Afonsinas trata das práticas qualificadas no período medieval como criminosas, bem como das suas respectivas penalidades. O códice afonsino é considerado um importante documento para o estudo das representações femininas e das confluências entre religião e justiça na legislação medieval portuguesa.

No período medieval as Sagradas Escrituras eram a principal fonte de conhecimento e consulta, inclusive para o pensamento jurídico. As imagens pejorativas do feminino presentes nas narrativas bíblicas, em especial no livro do Gênesis, perpassavam a definição dos crimes cometidos por mulheres, seu julgamento e condenação. Os juristas atribuíam ao monarca características sagradas e messiânicas, legitimando a origem divina do poder real. A jurisdição régia abrangia, como práticas criminosas puníveis pela lei civil, dentre outros assuntos, delitos morais e religiosos que tinham a mulher como "a verdadeira culpada" pelos desvios. Na descrição do concubinato, do adultério e da alcovitagem a legislação real balizava conceitos moralizantes, característicos do discurso eclesiástico, como o de pecado e maldade.

A forte influência de valores religiosos nas leis civis portuguesas do século XV estava relacionada à concepção de cristandade que marcou todo o imaginário medieval. Segundo a concepção de dois grandes juristas medievais, Bártolo de Sassoferrato (1314-1357) e Baldo de Ubaldis (13271400), "o direito era ao mesmo tempo sabedoria voltada para as coisas divinas, uma ciência voltada para as coisas humanas e uma disciplina prática".2 2 Bernard GUENÉE, 1981, p. 81.

A existência de fé cristã medieval é um dos fatos mais surpreendentes da história do direito: a fé na divindade da instituição deu origem ao direito da mesma instituição que, por sua vez, regulava a dita fé. [...] uma demonstração patente da anima operando como diretora do corpus [...].3 3 Walter ULMANN, 1971, p. 97-98.

O direito canônico vigorava como um padrão superior em casos que envolvessem o pecado e comprometessem a salvação dos homens. De forma geral, o discurso jurídico presente nas Ordenações Afonsinas – codificação das principais decisões jurídicas reais dos séculos XIV e XV – assegurava que a Igreja e a monarquia deveriam convergir e se auxiliar mutuamente,4 4 Na prática, o apoio mútuo entre a Coroa lusa e a Igreja não significava, obviamente, a ausência de conflitos. Um exemplo é quando em 1355 D. Pedro I de Borgonha decretou o Beneplácito Régio, pelo qual ficaria proibida a divulgação de quaisquer documentos pontifícios no Reino sem a expressa autorização do monarca. As tensões entre o poder civil luso e a Igreja foram frequentes no processo de efetivação da política de centralização do Estado monárquico português. sendo o rei considerado o braço secular da Igreja. D. Fernando I (13671383), em lei de 18 de setembro de 1368,5 5 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XXVII, 1986, p. 97-107. reconheceu a vigência do direito canônico e a obrigatoriedade das sanções aplicadas pelas leis eclesiásticas: "a todo rei cristão, como braço da Santa Igreja, pertence fazer e mandar cumprir e guardar as suas sentenças que direitamente são dadas, e fazer com que seus súditos sejam obedientes a elas nos casos que são da sua jurisdição [...]".6 6 Marcello CAETANO, 1981, p. 334. As interações entre o direito medieval e a teologia eram tão fortes que o célebre jurista Acúrsio (1180-1243) defendia que todo homem que desejasse ser um jurisconsulto, ou um especialista legal, precisava estudar teologia.7 7 Ernst Hartwig KANTOROWICZ, 1998, p. 89.

Cabe aqui destacar que no medievo as fronteiras entre pecado e crime eram muito tênues. O termo "pecado" deriva do hebraico hatta'th e do latim peccatu e significa originalmente errar o alvo ou transgredir a Lei divina, enquanto a concepção de crime estaria relacionada à violação da legislação penal civil. Como no século XV as jurisdições canônica e civil se interpenetravam, não havia distinção clara entre a natureza religiosa ou laica dos delitos.

Conforme as Ordenações Afonsinas, "[...] todo Rei, e Príncipe ante todas as outras coisas deve principalmente amar, e guardar a justiça, deve-a guardar e manter em especial acerca dos pecados, e maldades tangentes ao Senhor DEUS".8 8 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título I, artigo 1, 1986, p. 3. Tal concepção contribui para se compreender por que no códice existia a convergência entre as ideias de crime e pecado e de punição e penitência. O combate do soberano aos atos pecaminosos era simultaneamente um empenho em favor da ordem social e o fortalecimento da fé dos seus súditos.

A incorporação pelos monarcas de uma imagem de reis cristianíssimos implicava uma determinada atitude religiosa, segundo a qual o rei devia ser um exemplo vivo de cristão ideal, assim como defensor máximo dentro do reino de sua fé religiosa.9 9 José Manuel NIETO Y SORIA, 1988, p. 82.

Se considerarmos a noção patrística do pecado original, o primeiro de todos os delitos, veremos como as mulheres são diretamente associadas ao desvio e ao caos, culpabilizadas pela queda de Adão e, portanto, responsáveis pela condição sexuada, mortal e infeliz de toda a humanidade.

Pois ela [Eva] pecou duplamente, contra Deus e contra o homem. Também foi duplamente punida, não apenas por Adão, pela dor física, mas pela sujeição ao poder masculino. É por isso que, depois da queda, a mulher não deve ocultar apenas seu sexo como o faz o homem, mas também sua cabeça, apregoando duplamente a vergonha dos ardores de seu ventre e de sua "temeridade imperiosa". Nesse comentário, a leitura dos versículos do Gênese desemboca em uma peça de acusação contra os defeitos da natureza feminina, esses vícios cujas vítimas são os homens.10 10 Georges DUBY, 2001, p. 56.

No plano do imaginário, a narrativa do Gênesis consolida a ideia de Eva como a primeira ré, a transgressora primordial que fez de Adão sua vítima ao desobedecer às leis de Deus, o grande monarca e juiz. Sua culpa está associada não só à sua atitude corpórea e ardil, vinculada aos prazeres da carne, mas à sua debilidade, marcada "pela imbecillitas de sua natureza".11 11 Jean DELUMEAU, 1993, p. 317.

A articulação patrística dos sexos concebe uma relação entre o masculino e o feminino construída a partir da analogia entre o mundo da inteligência e o dos sentidos [...] O homem é associado com a inteligência – mens, ratio, a alma racional – e a mulher, com sensus, o corpo, o apetite e as faculdades animais [...] ela é aliada da serpente, que simboliza o prazer.12 12 Howard BLOCH, 1995, p. 38.

Eis as bases míticas do patriarcado cristão que vão forjar instituições de hierarquia primordialmente masculina. Assim, no Ocidente medieval Estado e Igreja eram comandados por homens, seguindo os princípios racionalizantes. O direito medieval era informado pelos valores cristãos e pelas diferenças sociais e de gênero, que serviam como fatores de hierarquização e consequente conservação dos privilégios masculinos, seguindo o pensamento dos primeiros doutores da Igreja. A desigualdade entre os indivíduos, especificamente entre os sexos, era compreendida como um fator natural e determinada pelo ordenamento divino e pelo nascimento.

Em conformidade com uma noção religiosa e política, o discurso de naturalização afirmava que cada indivíduo estava destinado a uma função que garantia privilégios e impunha deveres. Como "fazer justiça" no medievo significava garantir a cada um o que era seu por direito, os tribunais não dispensavam o mesmo tratamento a um nobre, judeu ou aprendiz de sapateiro,13 13 Miguel Luís DUARTE, 1993, p. 170. nem a homens e mulheres.

As diferenças reguladoras das relações entre os grupos sociais são características constituintes das leis afonsinas:

Quando Nosso Senhor Deus fez as criaturas, não quis que [...] fossem iguais, mas estabeleceu e ordenou a cada uma sua virtude, e poderio e partidos, segundo o grau em que as pôs. Bem, assim, os reis que são postos para reger na terra por Deus e governar o povo [...] devem seguir o exemplo daquilo, que Ele (Deus) fez e ordenou, dando, distribuindo não a todos por igual guisa, mas a cada um separadamente, segundo o grau e condição, e seu estado.14 14 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro II, 1986, proêmio.

Ao contrário do direito contemporâneo, que, na teoria, tem como princípio a equidade entre os indivíduos, na Idade Média prevaleciam e se afirmavam as diferenças, privilegiando os setores sociais, o sexo e a religião dominantes.

A argumentação jurídica não se desenvolvia a partir de um princípio válido para todos os casos da mesma natureza, mas a partir de uma contraposição de vários pontos de vista conflituais e vigentes, cuja adequação e importância são verificadas para cada situação. A decisão do juiz se alicerça numa ponderação casuística [...]. A solução representa uma tradução dos valores em jogo no caso concreto [...].15 15 António Manuel HESPANHA, 1982, p. 426-427.

A gravidade de cada crime dependia do grau de incômodo causado à sociedade, que era, no imaginário medieval, concebida como o corpo político do rei, mas também do incômodo causado à ordem divina. Nessa ótica, os crimes de concubinato, adultério e alcovitagem eram de foro sexual e prejudicavam a célula mater da cristandade, a instituição familiar, assim como Eva condenou Adão e seus descendentes às misérias e às dores do mundo.

No processo de institucionalização do cristianismo, a continência sexual de clérigos e fiéis foi uma característica estruturante que o distinguiu das demais práticas religiosas, pois "a renúncia da carne tornou-se o princípio que fez do cristianismo uma religião verdadeiramente universal".16 16 BLOCH, 1995, p. 104. Se a prática sexual era considerada "o pecado por excelência"17 17 DELUMEAU, 1993, p. 316. e a mulher, sua principal agente – por despertar a busca da autonomia e do prazer individual em detrimento de uma vida comunitária e obediente no Jardim do Éden –, qualquer desvio relacionado a essa esfera estava associado diretamente ao feminino, visto como uma grave ameaça ao ordenamento e à identidade da sociedade cristã.

À medida que o cristianismo se tornava a religião estatal oficial [...] o ascetismo continuou a atuar através da interpretação do Gênesis de Agostinho, como a justificativa básica do poder dos homens sobre as mulheres e o meio de apropriação do indivíduo pelo Estado [...] A suposta bondade original da humanidade característica do cristianismo primitivo foi sobrepujada pela vontade agostiniana e emergiu como a doutrina do pecado original transmissível – prova viva em todo indivíduo de que os seres humanos eram ingovernáveis, em outras palavras, tinham necessidade de um forte controle político.18 18 BLOCH, 1995, p. 106.

Na Idade Média, o indivíduo não possuía uma identidade ou um lugar autônomo; o seu estatuto dependia completamente da sua situação em relação ao grupo ao qual pertencesse. A mulher e o homem não eram compreendidos como sujeitos isolados, mas parte integrante de uma família. Se eles se desencaminhassem, podiam comprometer o microcosmo ao qual pertenciam e, inclusive, todo o macrocosmo, em decorrência do ato pecaminoso e ilícito e do mau exemplo transmitido aos outros membros do corpo social.

Seguindo essa metáfora, na narrativa misógina do Gênesis, a parte (feminino) desvirtuou o todo (masculino), uma vez que Adão, constituído à imagem e semelhança do criador, foi traído por Eva, filha de sua própria carne (costelas), considerada, por isso, mais suscetível à luxúria. Da mesma forma, a eclesiologia paulina do corpo místico de Cristo assinalava que "o marido é o chefe (cabeça) da mulher [...]. Assim como a Igreja é submetida a Cristo, da mesma forma as mulheres são submetidas a seus maridos em todas as coisas"19 19 Romanos 5:23 citado por Jacques LE GOFF, 2006, p. 63. .

As transgressões sexuais femininas desequilibravam o corpo social, ameaçando a superioridade do rei, e, segundo a mentalidade religiosa, podiam provocar a ira divina e colocar em perigo a salvação de todos os fiéis. Um dos maiores exemplos da reciprocidade entre as noções de pecado e crime se encontra nas leis civis que condenavam o comportamento das concubinas (barregãs) de clérigos, mulheres que mantinham relações sexuais e conjugais ilícitas com religiosos:

D. João, &c. A quantos essa carta virem fazemos saber, que [...] os Procuradores dos ditos concelhos dos ditos nossos Reinos, que as ditas Cortes vieram, nos disseram, que muitos Clérigos, e Religiosos tinham barregãs em suas casas [...] vivendo com eles [...] em pecado mortal. [...] E porque disto se seguia grande dano a nossa terra, e grande perigo as almas dos ditos Clérigos, Religiosos e outrossim dos leigos. [...] e pediram-nos, que a isto olhasse-nos por nosso serviço e puséssemonos remédio.20 20 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XIX, artigos 1 e 2, 1986, p. 58-59.

No caso do concubinato clerical, a gravidade do crime era mais acentuada porque feria os dois principais estatutos sacramentais da Igreja: o matrimônio e a ordenação sacerdotal celibatária. Ao contrair matrimônio ou ordenar-se padre, os indivíduos se submetiam a papéis sociais distintos que tinham em comum o controle das práticas sexuais. A justiça atribuía a responsabilidade pelo crime de concubinato, sobretudo, às mulheres, com base na ideia de uma natureza feminina sensual e perversa. Impedida de ingressar no sacerdócio, restava à mulher a opção de manter-se solteira e virgem, contrair matrimônio ou ingressar em ordem monástica. Qualquer outra conduta era vista como condenável.

O movimento de moralização do clero e da sociedade cristã, ocorrido no século XII, denominado de Reforma Gregoriana21 21 Para Brenda BOLTON, 1986, a Reforma Gregoriana foi um amplo movimento de moralização da sociedade cristã que procurou atingir clérigos e laicos, ocorrido entre 1050 a 1226, data da morte de São Francisco de Assis. Segundo André VAUCHEZ, 1995, a Reforma foi adjetivada com o nome do Papa Gregório VII. No entanto, ela ultrapassou a sua figura. O nome de Gregório VII foi conferido a um movimento iniciado antes do seu papado. Apesar de a denominação justificar-se pela importância que Gregório VII assumiu no movimento reformador, é preciso não restringir o seu alcance, reduzindo-o à ação de um único homem. é fundamental para se compreender o protagonismo do controle do corpo e da sexualidade femininos, pois se estruturou, do ponto de vista de questões sexuais, a normatização do celibato, para os clérigos, e do casamento religioso, para os leigos. Essas duas instituições tinham no comportamento honrado da mulher a base do seu sucesso. Se as mulheres não cometessem adultério e obedecessem a seus maridos, sendo modelos de honestidade, o casamento religioso converter-se-ia em um poderoso instrumento para disciplinar o corpo e uma eficiente estratégia de controle social. Do mesmo modo, se as mulheres não seduzissem os sacerdotes, eles manter-seiam homens castos e santos.

Todas as relações sexuais que não se destinassem à procriação e que não obedecessem ao casamento religioso, único modelo lícito para a procriação, eram consideradas extremamente perigosas. Atentado contra a vontade de Deus, o adultério era incluído pelo códice afonsino entre os pecados mais graves, os infernais.22 22 ORDENAÇÕES AFONSINAS, título VII, artigo 1, 1986, p. 32.

A perseguição às violações da moral sexual resultava na condenação do prazer e na repressão à libido feminina. Severas exigências de honestidade eram impostas às mulheres "próprias" (esposas, filhas e irmãs solteiras), enquanto uma tendência à indulgência vigorava em relação os homens, o que os deixava mais livres para transgredir, podendo, por exemplo, usufruir dos serviços de prostitutas. Em 1436, os homens bons de Évora solicitaram ao rei D. Duarte que autorizasse as prostitutas a exercerem o seu ofício nas estalagens sempre que um "homem de bem" requisitasse. O pedido foi deferido pelo rei.23 23 Armindo de SOUSA, s./d., p. 431. Mas a tolerância às prostitutas instituía, em contrapartida, um rígido controle da prática da prostituição.

A própria história da prostituição nos informa como a sexualidade está primordialmente vinculada ao gênero feminino, uma vez que o sexo ofertado em troca de dinheiro é, na sociedade ocidental, uma atividade basicamente exercida por mulheres. A importância do papel social da prostituta no medievo luso pode ser constatada nas diversas referências legislativas reguladoras sobre a atividade, sem proibi-la totalmente, sob o risco de que as pulsões sexuais masculinas pudessem ameaçar a virtude das mulheres honradas. Os canonistas concebiam a prostituição "como um mal necessário, algo cuja existência tornava possível manter padrões sexuais e sociais estáveis para o resto da sociedade".24 24 Jeffrey RICHARDS, 1993, p. 123.

Nas Cortes de Évora, em 1481, foi outorgada uma lei que obrigava às prostitutas a viverem em habitações apropriadas ao seu ofício, onde receberiam os homens que as procurassem. Para que tudo estivesse "em ordem e bom regimento, conforme postula[va] o bem comum", as prostitutas deviam manter-se afastadas e evitar "conversação com as [mulheres] boas", trajar "vestuário adequado à profissão" e possuir "arruamento próprio da mancebia".25 25 RICHARDS, 1993, p. 123. O arruamento era a reunião de determinada profissão em uma mesma rua.

Na sociedade portuguesa dos séculos XIV e XV, as prostitutas exerciam função reconhecida pela lei e ocupavam certo espaço social. Mas à tolerância podiam seguir-se períodos de intensas perseguições. De forma geral, a condição social das prostitutas era baixa e seu cotidiano caracterizava-se pela exclusão e pela marginalização. Consideradas mulheres de "torpes ganhos, porque se mantinham desonestamente",26 26 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XXII, 1986, p. 86-87. elas eram "as mais infames mercenárias dentre todos os mercenários".27 27 CAETANO, 1981, p. 432. Segundo Jacques Rossiaud,

A criação de uma casa pública [de prostituição] pode ser compreendida (e bastante legitimamente) de maneira totalmente contraditória: quer como afirmação tranqüila, mas autoritária, do direito dos machos (em princípio solteiros) à sexualidade; quer como semiexclusão das mulheres e de seus clientes. Pois a gestão municipal é suscetível de políticas múltiplas, os caracteres do acantonamento podem modificar-se de um tempo ou de um lugar para o outro, a ecologia do bordel fracassar ou firmar-se [...]. Assim, o valor social ou moral atribuído à prostituição pública e acantonada só pode ser definido por aquilo que a rodeia.28 28 Jacques ROSSIAUD, 1991, p. 14.

Na análise dos casos de adultério podemos também vislumbrar mais um aspecto do caráter misógino da justiça medieval portuguesa. O homicídio de adúlteras era considerado como legítima defesa da honra, portanto juridicamente correto.29 29 Francisco TOMÁS YVALIENTE, 1969, p. 232. Os casos de assassinatos de esposas infiéis eram tolerados pela comunidade e perdoados pelo rei com poucas formalidades.30 30 DUARTE, 1993, p. 319.

Nas Ordenações Afonsinas, o capítulo intitulado "Do que matou a mulher por achá-la em adultério" estabelecia que toda mulher casada que cometesse "o pecado do adultério" podia ser morta pelo marido, a quem nenhuma penalidade seria imputada, mesmo se a matasse sem havêla flagrado em delito. "Toda a mulher casada, que fizer adultério a seu marido, se o marido a matar, ainda que não a ache em adultério, que não morra porém, nem haja outra pena de justiça".31 31 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XVIII, artigo 3, 1986, p. 56.

Nessas circunstâncias, o homem ainda tinha o direito de receber todos os bens da falecida mulher. As Ordenações Afonsinas justificam a lei argumentando que ela estava plenamente de acordo com o costume e o direito,32 32 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XVIII, artigo 3, 1986, p. 56. uma vez que no imaginário medieval a ideia de que o feminino era naturalmente propenso ao impudor e ao adultério estava plenamente difundida.33 33 DUBY, 2001, p. 61.

A credibilidade do depoimento marital, que dispensa o flagrante e assegura a isenção de qualquer outra imputação, demonstra a legitimidade jurídica do discurso masculino em relação às práticas femininas. Nesse caso, a verdade é concebida como uma enunciação formal, independente da comprovação da veracidade de seu conteúdo, pois é definida pelo status e pelo reconhecimento de quem pronuncia um discurso de autoridade, ou seja, o marido.

Sandra Jatahy Pesavento nos lembra de que o controle da vida social está relacionado à força do discurso:

[...] aquele que tem o poder simbólico de dizer e fazer crer sobre o mundo, tem o controle da vida social e expressa a supremacia conquistada em uma relação histórica de forças. Implica que esse grupo vai impor a sua maneira de dar a ver o mundo, de estabelecer classificações e divisões, de propor valores e normas, que orientam o gosto e a percepção, que definem limites e autorizam os comportamentos e os papéis sociais.34 34 Sandra Jatahy PESAVENTO, 2003, p. 41-42.

A legislação permitia ainda que o marido matasse o amante da esposa, também considerado adúltero, salvo se ele fosse fidalgo e o marido, de condição inferior. Se o marido fosse cavaleiro e fidalgo, podia matar o amante licitamente, mas, se não fosse nobre e matasse um homem de hierarquia superior, devia ser açoitado publicamente e degredado por um ano "para algum lugar do extremo".35 35 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XVIII, artigo 5, 1986, p. 56-57. Nesse caso, a hierarquia social era a referência principal para a definição do assassinato como crime e para o estabelecimento da gravidade do delito e da pena. Um fidalgo podia matar outro fidalgo se ele fosse amante da sua esposa. Um homem de condição inferior devia primeiro se informar sobre a condição social do amante da sua esposa para não correr o risco de ser penalizado por atentar contra a vida de um nobre. Se um homem vil ousasse ferir ou matar um nobre, ele seria punido com condenação à morte.

A noção da defesa de honra, tão cara entre os medievais, nos permite compreender o processo de legitimação de homicídios femininos na sociedade portuguesa do século XV. Desconheço trabalhos sobre o assunto que tratam do período, exceto o livro de Natalie Zemon Davis, Histórias de perdão, que investiga casos de assassinatos na França do século XVI. Davis analisa cartas que acusados ou condenados por crimes escreviam ao rei com o objetivo de obter o perdão ou a diminuição da pena. Várias cartas narravam a história de supostos maridos traídos que mataram suas esposas. Pedindo perdão real, tais homens alegavam ser vítimas de cônjuges adúlteras, designadas como prostitutas, desonradas, bruxas etc. Dentre os muitos casos narrados por Davis, cito o de Thomas Manny, ocorrido em 1530. Segundo conta o requerente, após seguidas humilhações sofridas perante a comunidade devido ao comportamento adúltero da esposa – como ser xingado de "cabrão", termo da época correspondente a "chifrudo" ou "corno" –, ele a matou e mutilou. Primeiro lhe deu uma pedrada na cabeça e algumas facadas. Depois cortou seu corpo em várias partes, em meio a um acesso de raiva. Como o homem tinha boa reputação, o rei determinou que ele fosse liberto sem nenhum julgamento, pena ou infâmia.36 36 Natalie Zemon DAVIS, 2001, p. 15-16.

Outras alegações de crimes conjugais se justificavam pelo simples comportamento desobediente ou rebelde da esposa. Davis cita duas histórias de homens que mataram as esposas porque elas se recusaram a preparar a refeição. Um tecelão de Lyon conta que chegou à casa com amigos trazendo uma carpa para a mulher preparar e ela se recusou: "para vergonha e grande desonra diante dos que estavam com ele", "dizendo que ele e os amigos fossem comer onde bem entendessem". Num acesso de raiva, ele a matou com vários golpes de adaga. Foi perdoado.37 37 DAVIS, 2001, p. 135.

A honra era um valor que devia ser assegurado e afirmado socialmente e que, na maioria das vezes, era defendido com sangue e morte, uma vez que vingança e justiça eram conceitos considerados muito próximos no medievo.38 38 José Roberto MELLO, 1992, p. 74. Conforme Johan Huizinga, "o ideal da virtude estava sempre ligado à convicção de que a honra, para ser válida, devia ser publicamente reconhecida, sendo esse reconhecimento, se necessário, imposto pela força".39 39 Johan HUIZINGA, 1999, p. 73.

A primazia masculina e sua propensão à honradez estão expressas nas Sagradas Escrituras e foram lembradas por São João Crisóstomo (345-407) ao referir-se às epístolas paulinas: "Formado primeiro, o homem tem o direito à honra maior. São Paulo assinala a sua superioridade quando diz que: 'o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mullher do homem'".40 40 I Coríntios 11:9 citado por BLOCH, 1995, p. 33. Em contrapartida a essa visão, procurava-se "disseminar e impor uma incapacidade feminina: sua palavra não era aceita no tribunal",41 41 Ester KOSOVSKI, 1997, p. 48. exceto em raríssimos casos como o de denúncia de heresia, confirmação de nascimentos e batismos e compadrios.42 42 Martim de ALBUQUERQUE e Eduardo Borges NUNES, 1988, p. 134. Para a justiça medieval, o corpo da mulher era concebido como mero objeto de direito de seu marido e, apenas como tal, merecia proteção. A punição dos crimes sexuais femininos era justificada tendo em vista a repercussão que o pecado provocava na sociedade, e não como proteção à vitima.43 43 Ana Lúcia SABADELL, 1999, p. 81-82.

Porém, ao mesmo tempo que autorizava a morte da mulher adúltera pelo marido, a legislação contemplava a possibilidade de o marido traído reconciliar-se com sua mulher e perdoá-la pelo pecado cometido, argumentando a legalidade do princípio que salvaguardava o matrimônio.44 44 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XVIII, artigo 5, 1986, p. 34. Segundo as Afonsinas, a prática ocorria com frequência: "algumas vezes o marido acusava a mulher de adultério e aquele com que ela pecou e depois se reconciliava com ela e a perdoava pelo pecado".45 45 ORDENAÇÕES AFONSINAS, artigo 7, 1986, p. 35. Somente o marido podia perdoar a mulher adúltera. Legar ao marido a responsabilidade integral pelo perdão da esposa reforçava a estrutura patriarcal do modelo familiar e sua posição de comando na relação matrimonial.

Tal posição pode ser entendida no caso das traições masculinas. Apesar de a lei estabelecer penas pecuniárias maiores às concubinas do que aos homens, o rei atentou para o fato de que era necessário aumentar ainda mais a punição feminina; caso contrário, não seria possível erradicar tal crime. Em 1438, D. Duarte defendeu a inclusão do degredo para as concubinas acusadas pela primeira vez e do açoite público para as reincidentes. Tal rigor era considerado indispensável para a correção da mulher, senão "o homem pagava a quantia por ela e os dois continuavam juntos no mesmo pecado sem se emendarem".46 46 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, artigo 28, 1986, p. 82. A fala do rei demonstra que ele estava mais preocupado em castigar as concubinas do que em punir seus parceiros. A culpa pelo crime era imputada à mulher, o que reforçava sua imagem de criatura ímpia e volúvel por natureza, responsável pelos desvirtuamentos sexuais masculinos.

Para se compreender melhor a importância social do matrimônio e de como sua preservação era um dever primordial da esposa, deve-se destacar que a imagem da concubina de homens laicos47 47 Cabe destacar que havia uma hierarquia punitiva entre as concubinas de laicos e as concubinas de clérigo. As amantes de religiosos recebiam penas maiores, justamente por serem responsabilizadas por desvirtuar homens santos, atentando contra o celibato sacerdotal. estava assimilada à condição de prostituta e recebia penas mais brandas que a adúltera. A traição de uma mulher casada era qualificada pelas Ordenações Afonsinas como um pecado gravíssimo, arrolado entre os pecados infernais,48 48 ORDENAÇÕES AFONSINAS, título VII, artigo 1, 1986, p. 32. exatamente porque representava a rebeldia do modelo de mulher honesta (esposa) contra o santo sacramento do matrimônio. Os homens casados que mantinham relações concubinárias não eram identificados pela legislação civil e pela sociedade como adúlteros. O adultério era notadamente um delito feminino.

Na teoria, a lei também punia com rigor o homem que desvirtuasse comprovadamente mulheres honestas. A condenação daqueles que "dormiam à força com uma mulher casada, religiosa, moça virgem ou viúva" desperta reflexões sobre as relações de gênero que conformavam o discurso jurídico. Para a sociedade medieval portuguesa, esse era um crime gravíssimo punido com morte. O acusado não escapava à pena capital, a não ser que se comprometesse a contrair matrimônio com a vítima e ela aceitasse.49 49 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título VI, artigos 6 e 7, 1986, p. 31.

Vemos então que a grande questão da justiça medieval lusa com relação aos desvios sexuais era primordialmente preservar o matrimônio e o ideal da honra e moral, bastante distinto para ambos os gêneros. A infidelidade do marido era tolerada, desde que não comprometesse o casamento, e a da esposa era condenada ou "perdoada" pelo próprio marido, seu senhor, garantindo a manutenção dos laços matrimoniais. As concubinas e as prostitutas atuavam como um "mal necessário", meros objetos de satisfação da libido masculina, que não devia ameaçar as mulheres de boa conduta.

Conquanto a lei prescrevesse uma penalidade rigorosa para o crime de violação de mulheres honestas, a punição somente era aplicada caso a mulher conseguisse provar que havia sido tomada à força (estupro moderno). As exigências eram excessivas e expunham a mulher a situações constrangedoras. Considero que dificilmente as vítimas submetiam-se às condições exigidas pela justiça para a confirmação do crime de violação forçada, a não ser que tomassem uma atitude intempestiva ou estivessem dominadas pelo desespero. A justiça cercava o processo de muitos cuidados antes de aceitar como válida a denúncia de violação. Era muito importante que a vítima tornasse pública a violação ou a tentativa de violação no momento subsequente à ocorrência do fato; caso contrário, podia ser acusada de conivência no crime quando fosse prestar queixa. As Ordenações Afonsinas discorrem nos seguintes termos sobre o crime de violação forçada:

[...] se a mulher se queixar ou querelar de alguém, que jaz com ela por força [...], devem-na tirar de poder do seu Pai e porem-na em casa de um homem bom, que não seja ensinada para dizer mal, ou em casa de um dos Juízes: e isto é por razão que se possa melhor ser sabida a verdade, para se fazer justiça e para se guardar ao preso todo seu direito. [...] que se alguma mulher for forçada em um povoado, deve fazer querela nesta guisa, dando grandes vozes, e dizendo, vedes o que me fazem, devendo nomear o que a forçou pelo nome. Indo por três ruas bradando esta frase. [...] E se o assim fizer, que a querela seja válida [...].50 50 ORDENAÇÕES AFONSINAS, artigo 1, 1986, p. 29, grifo nosso.

Sob a ameaça de passarem de vítimas a culpadas por cumplicidade ou conivência, a grande maioria de mulheres provavelmente silenciava tais abusos. Por trás do excesso de exigências para provar a veracidade das violações, pairava a ideia de que a mulher é um ser lascivo e instintivamente sexual que induz os homens ao pecado, assim como Eva seduziu Adão, portanto vista como possível coautora do crime. As mulheres realmente honradas e castas deveriam fazer a denúncia da violação de forma escandalosa a fim de provar seu desprezo pelo ato torpe e assegurar publicamente a acusação.

O discurso jurídico, construído ainda por representações sobre a natural propensão da mulher à mentira e ao engano, determinava que a vítima fosse retirada da casa onde habitava e mantida isolada para ser induzida a falar a verdade, o que permitiria aos juízes serem "probos". Tal atitude amedrontava as denunciantes, ao passo que assegurava ao homem acusado todos os direitos de defesa que lhe correspondiam.

Se todas as exigências não fossem obedecidas pela vítima, a justiça não aceitava a queixa. O próprio título da lei – "Do que dormia à força com uma mulher casada, religiosa, moça virgem ou viúva" – indica que, se a mulher não fosse considerada honesta, o crime não se caracterizava como violação forçada. Prostitutas, concubinas e alcoviteiras, que não se enquadravam nos modelos lícitos de conduta feminina, eram vistas como desonestas e não recebiam amparo e proteção da justiça. A posição dos poderes eclesiástico e régio obedecia às representações dominantes, que entendiam o direito penal como expressão do poder patriarcal. Somente as mulheres que se conformavam ao modelo de mulher honesta eram dignas de proteção; já "a mulher violada sofria o opróbrio e o abandono, caindo muitas vezes na marginalidade".51 51 Maria José Pimenta Ferro TAVARES, 1989, p. 40.

Por último, destaca-se a alcovitagem como outro crime importante para ser analisado pelo olhar das relações de gênero. Apesar de as Ordenações Afonsinas não definirem a alcovitagem como uma prática exclusivamente feminina,52 52 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XVI, artigo 1, 1986, p. 52. ela estava associada, sobretudo, às mulheres.53 53 ROSSIAUD, 1991, p. 39. As alcoviteiras eram personagens depreciadas pela legislação real, pois praticavam um ato "contra a vontade de Deus e contra a comunidade", causador de "males, mortes e homizios", pelo qual "mulheres inocentes e honestas eram enganadas por essas pessoas a seguirem o caminho do pecado".54 54 ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XVI, artigo 1, 1986, p. 52. As Ordenações Afonsinas determinavam a pena de morte para as alcoviteiras.

O mau conselho, uma prática que podia conduzir as pessoas à ruína, foi, sobretudo, associado à mulher, naturalmente mais inclinada aos "ardis da fala". No Gênesis, a alcovitagem é mencionada no relato da Criação. Eva fora induzida a praticar o mal pela serpente – o animal astuto, a grande alcoviteira. Quando interrogada por Deus por que havia comido o fruto proibido, Eva respondeu: "a serpente me seduziu".55 55 BÍBLIA, Gênesis, cap. 3, vers. 13, 1995.

A visão da mulher como aquela que, por meio da fala, semeou a discórdia entre o homem e Deus está no cerne da narrativa da Queda, associação que o velho Testamento faz do feminino com a sedução verbal.56 56 BLOCH, 1995, p. 24.

Vale lembrar que a serpente foi arquetipicamente associada à imagem feminina de Lilith, o demônio em forma de mulher. Nos antigos livros hebraicos do Talmud e do Zohar, Lilith teria sido a primeira esposa de Adão que o abandonou após ser proibida de praticar relações sexuais "por cima". Deus viu, então, a necessidade de criar Eva, uma nova companheira para Adão. Todavia, mesmo sendo feita das costelas de Adão (condição primordial de submissão), Eva também desafia Deus e o marido ao ser seduzida pelos ardis da serpente (estimulada pela vingativa Lilith). As duas mulheres primordiais são agentes demoníacos responsáveis pela condição mortal e sofredora da humanidade.

O texto bíblico relata a dupla desobediência da mulher: Lilith não atende a convocação do Senhor para voltar para Adão; Eva come do fruto proibido e convence Adão a fazer o mesmo. O pecado original transforma os seres puros, criados por Deus, em seres impuros. A mulher, a principal responsável pela queda, expressa a sua impureza [...] Estruturalmente, Lilith e Eva cometeram o mesmo crime, o da desobediência ao Senhor e foram punidas da mesma forma: Todos os dias, por toda a eternidade, Lilith, "a mãe dos demônios" tem que se conformar com a morte de 100 lilim; da mesma forma, Eva é a responsável pela morte de todos os seus descendentes que poderiam ser imortais se continuassem a viver no Paraíso.57 57 Roque de Barros LARAIA, 1997, p. 158.

Em termos míticos, a grande desobediência de Eva foi experimentar o prazer sexual e tomar para si "as dores do parto", carregando o dom da procriação e da maternidade, pois, se não tivesse copulado com Adão, todos os seres seriam imortais e gerados pela graça divina, sem a intermediação humana.

Se a sexualidade é um conhecido tabu da sociedade medieval, constituída por imaginário que exaltava a abstinência e a castidade, a sexualidade feminina era vista quase como uma aberração maligna, especialmente porque estava associada à feitiçaria. O compêndio medieval Malleus Maleficarum, escrito em 1484, é um verdadeiro tratado misógino que alerta os sacerdotes e os leigos sobre os ardis demoníacos da mulher: "Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres",58 58 Heinrich KRAMER e James SPRENGER, 1991, p. 121. portanto era "maior o contingente de mulheres que se entregam a essa prática, inclusive as predispondo à cópula com o demônio, com os Íncubos".59 59 KRAMER e SPRENGER, 1991, p. 84. As perversões sexuais masculinas seriam exceções, "porque sendo intelectualmente mais fortes que as mulheres, são mais capazes de abominar tais atos".60 60 KRAMER e SPRENGER, 1991, p. 332.

O longo processo de demonização da mulher tem suas origens, em parte, na ressignificação dos cultos relacionados à Grande Mãe e às deidades femininas, difundidos em diversas sociedades tradicionais da Antiguidade. A associação da imagem mulher aos ciclos da natureza e a terra, como aquela que gera a vida e depois a consome (sepulta), foi totalmente distorcida e temida com o advento do cristianismo.

Essa ambigüidade fundamental da mulher que dá a vida e anuncia a morte foi sentida ao longo dos séculos, e especialmente expressa pelo culto das deusas-mães. A terra é o ventre nutridor, mas também o reino dos mortos, sob o solo ou na água profunda.Éo cálice da vida e da morte [...].61 61 DELUMEAU, 1993, p. 312.

Como vimos, a legislação portuguesa do século XV estava ancorada nas representações misóginas do feminino, simbolizadas pelo mito da Eva pecadora, a primeira transgressora do mundo porque ousou desafiar os ditames divinos e tornar a humanidade sexuada, levando Adão a experienciar o prazer carnal.

A imagem subalterna e pejorativa de Eva, presente na interpretação patrística do Gênesis, foi sucessivamente apropriada pelo discurso social e jurídico dominante, que, a partir de uma perspectiva filosófico-naturalista, definiu a essência feminina como sensual, instintiva e infiel, em contraposição ao caráter racional, objetivo e honrado do homem.

Nessa perspectiva pode-se inferir que, para o direito luso – profundamente influenciado pelo ideário cristão –, as mulheres são predispostas a cometer desvios sexuais e desencaminhar os homens, laicos ou clérigos, da retidão e da continência. Dessa forma, prostitutas, concubinas e alcoviteiras – seguindo o modelo desobediente de Eva – eram severamente perseguidas por burlarem os papéis femininos definidos pela moralidade cristã: o matrimônio, a virgindade e a santidade.

[Recebido em setembro de 2009 e aceito para publicação em março de 2010]

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  • VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
  • 1
    As Ordenações Afonsinas foram concluídas em 1446 e publicadas em 1447, durante a regência de D. Pedro I de Borgonha. A obra recebeu o título de Ordenações Afonsinas, pois, embora D. Afonso V ainda não governasse o Reino em 1447, ele era o rei legítimo.
  • 2
    Bernard GUENÉE, 1981, p. 81.
  • 3
    Walter ULMANN, 1971, p. 97-98.
  • 4
    Na prática, o apoio mútuo entre a Coroa lusa e a Igreja não significava, obviamente, a ausência de conflitos. Um exemplo é quando em 1355 D. Pedro I de Borgonha decretou o Beneplácito Régio, pelo qual ficaria proibida a divulgação de quaisquer documentos pontifícios no Reino sem a expressa autorização do monarca. As tensões entre o poder civil luso e a Igreja foram frequentes no processo de efetivação da política de centralização do Estado monárquico português.
  • 5
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XXVII, 1986, p. 97-107.
  • 6
    Marcello CAETANO, 1981, p. 334.
  • 7
    Ernst Hartwig KANTOROWICZ, 1998, p. 89.
  • 8
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título I, artigo 1, 1986, p. 3.
  • 9
    José Manuel NIETO Y SORIA, 1988, p. 82.
  • 10
    Georges DUBY, 2001, p. 56.
  • 11
    Jean DELUMEAU, 1993, p. 317.
  • 12
    Howard BLOCH, 1995, p. 38.
  • 13
    Miguel Luís DUARTE, 1993, p. 170.
  • 14
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro II, 1986, proêmio.
  • 15
    António Manuel HESPANHA, 1982, p. 426-427.
  • 16
    BLOCH, 1995, p. 104.
  • 17
    DELUMEAU, 1993, p. 316.
  • 18
    BLOCH, 1995, p. 106.
  • 19
    Romanos 5:23 citado por Jacques LE GOFF, 2006, p. 63.
  • 20
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XIX, artigos 1 e 2, 1986, p. 58-59.
  • 21
    Para Brenda BOLTON, 1986, a Reforma Gregoriana foi um amplo movimento de moralização da sociedade cristã que procurou atingir clérigos e laicos, ocorrido entre 1050 a 1226, data da morte de São Francisco de Assis. Segundo André VAUCHEZ, 1995, a Reforma foi adjetivada com o nome do Papa Gregório VII. No entanto, ela ultrapassou a sua figura. O nome de Gregório VII foi conferido a um movimento iniciado antes do seu papado. Apesar de a denominação justificar-se pela importância que Gregório VII assumiu no movimento reformador, é preciso não restringir o seu alcance, reduzindo-o à ação de um único homem.
  • 22
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, título VII, artigo 1, 1986, p. 32.
  • 23
    Armindo de SOUSA, s./d., p. 431.
  • 24
    Jeffrey RICHARDS, 1993, p. 123.
  • 25
    RICHARDS, 1993, p. 123. O arruamento era a reunião de determinada profissão em uma mesma rua.
  • 26
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XXII, 1986, p. 86-87.
  • 27
    CAETANO, 1981, p. 432.
  • 28
    Jacques ROSSIAUD, 1991, p. 14.
  • 29
    Francisco TOMÁS YVALIENTE, 1969, p. 232.
  • 30
    DUARTE, 1993, p. 319.
  • 31
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XVIII, artigo 3, 1986, p. 56.
  • 32
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XVIII, artigo 3, 1986, p. 56.
  • 33
    DUBY, 2001, p. 61.
  • 34
    Sandra Jatahy PESAVENTO, 2003, p. 41-42.
  • 35
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XVIII, artigo 5, 1986, p. 56-57.
  • 36
    Natalie Zemon DAVIS, 2001, p. 15-16.
  • 37
    DAVIS, 2001, p. 135.
  • 38
    José Roberto MELLO, 1992, p. 74.
  • 39
    Johan HUIZINGA, 1999, p. 73.
  • 40
    I Coríntios 11:9 citado por BLOCH, 1995, p. 33.
  • 41
    Ester KOSOVSKI, 1997, p. 48.
  • 42
    Martim de ALBUQUERQUE e Eduardo Borges NUNES, 1988, p. 134.
  • 43
    Ana Lúcia SABADELL, 1999, p. 81-82.
  • 44
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XVIII, artigo 5, 1986, p. 34.
  • 45
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, artigo 7, 1986, p. 35.
  • 46
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, artigo 28, 1986, p. 82.
  • 47
    Cabe destacar que havia uma hierarquia punitiva entre as concubinas de laicos e as concubinas de clérigo. As amantes de religiosos recebiam penas maiores, justamente por serem responsabilizadas por desvirtuar homens santos, atentando contra o celibato sacerdotal.
  • 48
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, título VII, artigo 1, 1986, p. 32.
  • 49
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título VI, artigos 6 e 7, 1986, p. 31.
  • 50
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, artigo 1, 1986, p. 29, grifo nosso.
  • 51
    Maria José Pimenta Ferro TAVARES, 1989, p. 40.
  • 52
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XVI, artigo 1, 1986, p. 52.
  • 53
    ROSSIAUD, 1991, p. 39.
  • 54
    ORDENAÇÕES AFONSINAS, livro V, título XVI, artigo 1, 1986, p. 52.
  • 55
    BÍBLIA, Gênesis, cap. 3, vers. 13, 1995.
  • 56
    BLOCH, 1995, p. 24.
  • 57
    Roque de Barros LARAIA, 1997, p. 158.
  • 58
    Heinrich KRAMER e James SPRENGER, 1991, p. 121.
  • 59
    KRAMER e SPRENGER, 1991, p. 84.
  • 60
    KRAMER e SPRENGER, 1991, p. 332.
  • 61
    DELUMEAU, 1993, p. 312.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      Set 2009
    • Aceito
      Mar 2010
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