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EDITORIAL

Os textos que constituem a seção inicial da Revista, oriundos de submissões espontâneas e avaliados por pareceres internos e externos, podem muitas vezes ser tomados como indicadores gerais de interesses de pesquisa ou de tendências temáticas. Neste número 2 de 2011, pode-se perceber uma clara predominância de assuntos relacionados a questões teóricas. Quatro dos seis artigos aqui incluídos buscam (re)discutir conceitos caros ao feminismo e aos estudos de gênero a partir da análise de artefatos e práticas culturais contemporâneos. Os outros dois se debruçam sobre aspectos de cunho filosófico na constituição do sujeito feminino e das relações de gênero.

Ana Isabel Rodrigues de Sá Saraiva, em "Da Grécia a Cronenberg ou por que existem as mulheres", propõe uma leitura do filme Dead Ringers, a partir da produção mítico-poética e científica da Grécia Antiga. Focalizando a questão das identidades de gênero e das relações conflitantes do eu com o corpo, argumenta que as inquietações da modernidade tardia dramatizadas no filme já se encontravam presentes no universo simbólico da cultura grega.

Também partindo de representações cinematográficas, neste caso o filme argentino XXY, Mariana Viera Cherro discute, em "Que se enteren. Cuerpo y sexualidad en el zoom social. Sobre XXY", a construção sociocultural do corpo sexuado a partir do conceito de "estigma", enfatizando a importância do debate suscitado pelo filme entre o que é possível e o impossível em termos de gênero. Considerando a representação como uma forma de construção, sua análise mostra a importância de se marcar a existência de uma "sexualidade migrante", exemplificada pela quebra, no próprio corpo biológico, da polarização sexual.

Dando sequência à discussão sobre diferenças sexuais e a histórica dicotomia entre feminino e masculino, Carla Rodrigues apresenta, em "A costela de Adão: diferenças sexuais a partir de Lévinas", uma análise do pensamento do filósofo sobre o feminino. Apoiando-se nas duas perspectivas de leitura apontadas por Derrida, a autora discute a possibilidade de se enxergar o feminino levinasiano como abertura à alteridade, fazendo do feminino uma figura privilegiada da ética e da abertura ao outro.

Lina Alves Arruda e Maria de Fátima Morethy Couto, por sua vez, situam as questões de gênero no contexto do ativismo político da década de 1960 até 1980, examinando a obra da artista norte-americana Barbara Kruger, cujos trabalhos foram fundamentais para a consolidação da arte engajada feminista, ao abordarem criticamente temas relacionados à mulher, como a violência, o aborto, a identidade de gênero, entre outros. Seu artigo "Ativismo artístico: engajamento político e questões de gênero na obra de Barbara Kruger" discute, ainda, os problemas formais e estéticos do ativismo artístico e sua recepção no contexto estético e sociopolítico do período.

Com um enfoque mais contemporâneo, e a partir de um contexto pós-colonial, Maurício de Bragança, em "Corpo, imagem e registro colonial no Corazón Sangrante de Astrid Hadad", apresenta uma discussão acerca da apropriação do coração como um elemento alegórico de reconhecimento de uma identidade coletiva na América Latina. Focalizando o cabaré contemporâneo da performer mexicana Astrid Hadad, aponta a permanência de um registro colonial no interior da cultura mexicana contemporânea, representado pela utilização do coração como uma importante alegoria de apassivamento e subalternização, sobretudo da mulher.

Fechando a Seção, o artigo de Anselmo Peres Alós, "Gênero, epistemologia e performatividade: estratégias pedagógicas de subversão", discute o conceito de gênero em suas relações com a noção de performatividade, abordada nas reflexões de Judith Butler. Retomando o gênero como uma ferramenta analítica no campo dos estudos pedagógicos, o texto aborda a questão das pedagogias culturais, sublinhando a importância dos processos performativos que constituem gênero, corpo e heterossexualidade como construtos culturais marcados pela historicidade.

A entrevista deste número, realizada por Debora Diniz com a jurista Rebecca Cook, traz a questão das diferentes formas de discriminação de gênero, especialmente aquelas que afetam mais diretamente as mulheres, para o contexto jurídico das Cortes Internacionais. Salientando os tópicos abordados no livro recentemente publicado por Rebecca Cook e Simone Cusack, Gender Stereotyping: Transnational Legal Perspectives, a entrevista abre espaço para uma discussão dos estereótipos de gênero como formas de restringir direitos e violar a igualdade entre homens e mulheres, constituindo-se muitas vezes em uma ação política de controle sobre os corpos das mulheres.

Motivadas pela "Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres" (também conhecida como "Convenção das Mulheres"), cujo artigo 5A requer que os Estados membros tomem todas as medidas apropriadas para eliminar preconceitos em todas as práticas, habituais ou não, baseadas na ideia de inferioridade ou superioridade de um dos sexos, as autoras buscam verificar como essa provisão está sendo aplicada mundialmente. Conforme declara Cook na entrevista, "se os países querem progredir, têm de fazer mais do que desmanchar estereótipos de gênero. Eles têm que nomear os estereótipos comuns de gênero em cada setor, criar consciência e entendimento de como eles inibem as mulheres, e implementar estratégias, incluindo a reforma legal, para eliminá-los".

Neste número da REF apresentamos, ainda, no Dossiê Gênero e Sexualidade no Espaço Escolar, questões de interesse permanente e de muita atualidade, quando o sistema educacional do país se propõe a incentivar a formação de professores em temas como gênero e diversidade na escola, e a enfrentar o bulling e a discriminação das diferenças sexuais nas instituições escolares.

Ao mesmo tempo, tivemos de assistir consternadas/os ao retrocesso infringido pelo veto ao material produzido para combater a homofobia na escola. Um governo comprometido com as questões sociais e aberto para reivindicações feministas e de gênero (malgrado as vicissitudes da campanha eleitoral) não resistiu, nesse episódio, às exigências das forças mais conservadoras da política nacional, determinadas a embaçar as fronteiras entre Estado e religião, em um país que se define como laico.

O dossiê organizado por Cristiani Bereta da Silva e Paula Regina Costa Ribeiro está composto por 11 artigos, os primeiros discutindo as diferenças entre masculino e feminino no acesso a escolas e cursos, nas representações e relações escolares; os últimos trabalhando com textos de crianças sobre gênero e sexualidade, em produções fílmicas, em narrativas literárias produzidas pelas próprias crianças, ou textos em que essas apresentam personagens de histórias infantis, dando a perceber as maneiras como ainda se prendem a estereótipos sobre masculinidades e feminilidades hegemônicas.

O artigo de June Hahner, "Escolas mistas, escolas normais: coeducação e a feminização do magistério no século XIX", constitui-se em texto de muito interesse para a abertura do Dossiê, na medida em que recupera documentos históricos que legislam sobre a formação de professoras/es para a educação de crianças. Na análise desses documentos oficiais surgem as decisões sobre escolas mistas e a abertura das Escolas Normais (de formação de professores) para a admissão de mulheres no magistério, enfatizando sua capacidade "natural" para a maternidade e os cuidados.

O texto "Ser professora, ser mulher: um estudo sobre concepções de gênero e sexualidade para um grupo de alunas de pedagogia", de Ana Paula Costa e Paulo Rennes Marçal Ribeiro, detalha uma pesquisa atual com alunas de curso de Pedagogia que trabalham como professoras de crianças. Suas falas reiteram ainda estereótipos de mulheres cuidadoras, no entendimento das relações de gênero segundo o modelo heterossexual.

O artigo de Helena Altmann, Eliana Ayoub e Silvia Franco Amaral, "Gênero na prática docente em Educação Física: 'meninas não gostam de suar, meninos são habilidosos ao jogar'?", apresenta/analisa resultados de pesquisa com professoras/es de Educação Física, detendo-se nas formas como gênero perpassa a prática docente desde o planejamento das aulas à seleção dos conteúdos. O texto apresenta a discussão das diferenças de desempenho entre meninos e meninas e da conveniência das aulas mistas, com potencial para problematizar concepções estereotipadas de feminino e masculino.

Ana Paula Poças Zambelli dos Reis e Candido Alberto Gomes, no artigo "Práticas pedagógicas reprodutoras de desigualdades: a sub-representação de meninas entre alunos superdotados", analisam o privilegiamento de meninos no Programa de Atendimento ao Aluno com Altas Habilidades/ Superdotação, em um sistema de ensino que atingiu a paridade entre os sexos. Concluem que a sub-representação de meninas no Programa está relacionada à indicação de professoras/es nas escolas, revelando sua valorização do investimento nas capacidades de meninos.

O artigo "Sexualidade na sala de aula: tecendo aprendizagens a partir de um artefato pedagógico", de Benícia Oliveira da Silva e Paula Regina Costa Ribeiro, analisa a seção Sexo da revista Capricho como um artefato cultural. É uma revista lida por adolescentes brasileiras que as autoras consideram constituir-se em uma pedagogia cultural, na medida em que produz e divulga significados sobre sexualidade entre as leitoras que vão além dos temas abordados nos currículos escolares.

O artigo seguinte, de autoria de Shirlei Rezende Sales e Marlucy Alves Paraíso, "Juventude ciborgue e a transgressão das fronteiras de gênero", discute a ciborguização da juventude, em pesquisa que analisou a interface entre o currículo de uma escola pública de ensino médio e as comunidades e perfis de alunas e alunos da escola, no site Orkut, de relacionamentos na Internet.

Permeando esses artigos e os que finalizam o Dossiê, temos

o texto de Berenice Bento, "Na escola se aprende que a diferença faz a diferença", em que a autora elucida formas como escolas podem discriminar alunas/os, pela instituição de um verdadeiro heteroterrorismo que acaba por expulsar sujeitos trans e/ou homossexuais dos sistemas formais de educação. A autora questiona a inclusão desses casos nas estatísticas de evasão escolar, quando na verdade as/as alunas/os não puderam permanecer em escolas que, por sua adesão às normas da heterossexualidade compulsória, acabam por expulsá-las/los dos bancos escolares, depois de repetidas experiências causadoras de sofrimentos psíquicos e de várias ordens.

O artigo de Fernando Seffner, "Um bocado de sexo, pouco giz, quase nada de apagador e muitas provas...", discute gênero e sexualidade através de cenas escolares registradas por ele em diário de campo, no trabalho de supervisão de estágios docentes de suas/seus alunas/os. Nas conclusões do texto o autor destaca aspectos da formação pedagógica que contribuem para posições de professoras/es e instituições escolares públicas e laicas, voltados para a garantia dos direitos à equidade e respeito às diferenças.

No artigo "Análisis de textos literarios infantiles: avanzando em la des-construcción de códigos patriarcales", Sylvia Contreras Salinas e Mónica Ramirez Pavelic analisam textos vencedores do primeiro concurso infantil de literatura com enfoque em gênero, realizado no Chile pelo Ministério de Educação, verificando que nas representações das crianças premiadas predominam ainda modelos patriarcais de relações de gênero.

Em "Era uma vez uma princesa e um príncipe...: representações de gênero na narrativa de crianças", Constantina Xavier Filha relata pesquisa realizada com crianças do ensino fundamental em que meninos e meninas produzem representações de personagens de contos de fadas, nas/nos quais projetam suas concepções de feminilidade e masculinidade, ainda marcadas por estereótipos heterossexuais.

O artigo "Crianças, gênero e sexualidade: realidade e fantasia possibilitando problematizações", de Cláudia Maria Ribeiro, trabalha com a narrativa de filmes sobre infância e sexualidade e relata atividades desenvolvidas em projeto de extensão sobre a introdução do tema da sexualidade infantil na educação, envolvendo escolas, crianças, professoras, pais e mães, na análise do cotidiano de processos educativos.

O Dossiê apresenta, como se pode perceber, uma grande diversidade de temas, através de relatos de pesquisas que analisam documentos, abrangem a educação de gerações de crianças, adolescentes, jovens universitárias, professoras e professores de educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e universitário, com enfoque nas questões de gênero e sexualidades. Essas pesquisas, que atravessaram fronteiras, indo até o Chile, estenderam-se por diferentes cidades e regiões do país.

As resenhas deste número apresentam novas obras de cunho literário, educacional, racial, sobre movimentos sociais e econômicos, e duas coletâneas recentemente publicadas.

Infelizmente, não podemos encerrar este Editorial sem registrar e lamentar saudosamente a perda de nossa querida companheira feminista Maria Lúcia de Barros Mott, incansável colaboradora da REF desde sua fundação.

Mara Coelho de Souza Lago e Susana Bornéo Funck

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011
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