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A costela de Adão: diferenças sexuais a partir de Lévinas

Adam's rib: sexual differences from Levinas

Resumos

Este artigo apresenta o pensamento de Emmanuel Lévinas sobre o feminino e sobre as diferenças sexuais para explorar o que Jacques Derrida chama de duas possibilidades de leitura de Lévinas. A primeira, androcêntrica, identifica a tradicional separação hierárquica entre masculino e feminino. Na segunda possibilidade de leitura, Derrida enxerga em Lévinas a ampliação do feminino para além da mulher, amplificando as proposições levinasianas do feminino como abertura à alteridade. Lévinas faz do feminino uma figura privilegiada da ética e da alteridade. Derrida partirá desse pensamento levinasiano do feminino para pensar em hospitalidade incondicional, radicalizando essa ideia de abertura ao outro.

feminino; alteridade; ética


This paper presents the thought of Emmanuel Lévinas about women and about sex differences to explore what Jacques Derrida calls the two possibilities of reading Lévinas. The first, androcentric, identifies the traditional hierarchical separation between male and female. The second possibility of reading Lévinas, according to Derrida, sees the expansion of the meaning of women into the feminine, amplifying Levinas's propositions of feminity as an opening to otherness. Lévinas turns the feminine into a privileged figure of ethics and otherness. Derrida will depart from this idea of Lévinas about the feminine to think of unconditional hospitality, radicalizing his view of openness to others.

Women; Otherness; Ethics


ARTIGOS

A costela de Adão: diferenças sexuais a partir de Lévinas

Adam's rib: sexual differences from Levinas

Carla Rodrigues

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

RESUMO

Este artigo apresenta o pensamento de Emmanuel Lévinas sobre o feminino e sobre as diferenças sexuais para explorar o que Jacques Derrida chama de duas possibilidades de leitura de Lévinas. A primeira, androcêntrica, identifica a tradicional separação hierárquica entre masculino e feminino. Na segunda possibilidade de leitura, Derrida enxerga em Lévinas a ampliação do feminino para além da mulher, amplificando as proposições levinasianas do feminino como abertura à alteridade. Lévinas faz do feminino uma figura privilegiada da ética e da alteridade. Derrida partirá desse pensamento levinasiano do feminino para pensar em hospitalidade incondicional, radicalizando essa ideia de abertura ao outro.

Palavras-chave: feminino; alteridade; ética.

ABSTRACT

This paper presents the thought of Emmanuel Lévinas about women and about sex differences to explore what Jacques Derrida calls the two possibilities of reading Lévinas. The first, androcentric, identifies the traditional hierarchical separation between male and female. The second possibility of reading Lévinas, according to Derrida, sees the expansion of the meaning of women into the feminine, amplifying Levinas's propositions of feminity as an opening to otherness. Lévinas turns the feminine into a privileged figure of ethics and otherness. Derrida will depart from this idea of Lévinas about the feminine to think of unconditional hospitality, radicalizing his view of openness to others.

Key words: Women; Otherness; Ethics.

A metafísica seria uma forma de pensar o múltiplo a partir do um, o outro a partir do mesmo, o diferente a partir do idêntico, a alteridade como uma alteração do mesmo, o diferente como uma degradação da identidade.1 1 Sylviane AGACINSKI, 2005, p. 8. É sob essa inspiração que pretendo discutir a diferença sexual e a articulação entre feminino - esse outro pensado na tradição a partir do mesmo -, alteridade e ética.2 2 Este artigo é um excerto da tese de doutorado Rastros do feminino: sobre ética e política em Jacques Derrida, defendida na PUC-Rio, sob orientação de Paulo Cesar Duque-Estrada, a quem agradeço a hospitalidade incondicional. O título é uma referência ao artigo "Gênero e hierarquia: a costela de Adão revisitada", de Maria Luiza Heilborn, publicado no primeiro número da Revista Estudos Feministas, e principalmente o reconhecimento de uma dívida de gratidão a ela.

Partindo de proposições formuladas por Elizabeth Grosz, Tina Chanter e Drucilla Cornell e em diálogo com Emmanuel Lévinas e Jacques Derrida, este artigo articula feminilidade, neutralidade e o lugar da diferença sexual a fim de pensar como, se o neutro se confunde ao masculino, e é anterior à diferença sexual, então neutralidade e masculinidade se confundem e se sobrepõem. A partir desse suposto neutro - que carrega nele a marca implícita do masculino - a filosofia formula a pergunta "o que é", tomando o neutro (masculino) como padrão para definir o outro (feminino) numa perspectiva que essencializa o outro pelas suas diferenças. Ou, para ficar nos termos com que Sylviane Agacinski define a metafísica, a pergunta "o que é" se responde pensando o feminino (outro) como uma alteração do masculino (mesmo/neutro).

Postular a pergunta "o que é a mulher" já seria uma forma metafísica e essencialista de pensar sobre o feminino, como argumenta Chanter, para quem a origem dos essencialismos sobre o feminino se localiza nesta equação: ao tomar o neutro como masculino, a tradição precisa definir a mulher a partir da pergunta "o que é".3 3 Numa das inúmeras ocasiões em que foi convocado a explicar o pensamento da desconstrução, o filósofo Jacques Derrida respondeu: a desconstrução pensa sobre a origem e os limites da questão "o que é", trazendo um abalo à autoridade dessa pergunta, que só pode ser formulada a partir dessa estrutura em que o neutro (masculino) pergunta o que é o outro, o diferente, aquilo que não é o mesmo. Chanter seguirá os passos de Derrida ao dizer que a diferença sexual já nasce como uma forma de secundarizar o feminino e o pretensamente neutro aparece na tradição filosófica como masculino. Meu interesse aqui é pensar a neutralidade como um totalizador que elimina as diferenças, e pensar a diferença sexual como elemento que secundariza a mulher.

Lévinas buscou nas reflexões sobre diferença sexual a impossibilidade de afirmação do neutro como sinônimo de humano. Se mesmo assim o fez dentro de uma matriz androcêntrica, como tão bem aponta Derrida, isso não impede que se possa reconhecer a importância de um pensamento que, desde muito cedo, associou feminino, alteridade e ética.

Fantasmas do feminismo

São muitas as dificuldades de escrever sobre o feminino a partir de Lévinas, e são tantas que me concentro em três que, como fantasmas, me assombrarão ao longo deste artigo. O primeiro fantasma será o risco de qualquer interpretação ou leitura essencializante do feminino - que não poderá ser tratado como aquilo que é da natureza da mulher. Pretendo resistir a qualquer essencialismo, e essa resistência se dará sob inspiração da argumentação de Drucilla Cornell a favor da especificidade do feminino, que ela distingue de essência para não cair na armadilha dos debates feministas que se prendem à dicotomia essencialismo versus antiessencialismo. Cornell é uma autora que defende a valorização das especificidades do feminino, e o faz assumindo os riscos de que sua defesa seja confundida com qualquer tipo de retorno ao essencialismo. Resisto, também, me alinhando a Tina Chanter, para quem, a partir do trabalho de Derrida e de Lévinas, é possível combater o argumento de que toda tentativa de afirmar a especificidade feminina implica um essencialismo.4 4 CHANTER, 2002, p. 130. Há singularidades, e reconhecê-las é sair da lógica em que o feminino se define tomando o masculino como padrão.

Ao lado de Chanter, lembro que a essencialização do feminino depende do que se entende por essência. Se, argumenta ela, a essência for pensada como forma de estipular características imutáveis do feminino, este seria de fato um terreno perigoso. Alinhando-se às leituras de Heidegger feitas por Derrida e Lévinas, mas também às leituras de Heidegger feitas por teóricas feministas como Luce Irigaray e Julia Kristeva, Chanter vai deslocar a maneira de pensar a essência, levando em conta as considerações heideggerianas de que a essência do Dasein está em sua existência.5 5 CHANTER, 2002, p. 144. Como ela, me proponho a correr o risco de pensar sobre a essência em termos heideggerianos, entendendo a essência como esse permanente movimento de vir a ser, não como um algo previamente dado ao sujeito.

Derrida é um autor que vai questionar a abordagem tradicional do feminino. Um dos pontos de aproximação do seu pensamento com as teorias feministas está no debate sobre a essência da mulher, a partir do qual ele abre a possibilidade de refletir sobre as proposições de Cornell: repensar o feminino através da re-metaforização do mito. Apesar da suspeita de Derrida de que nessa "remetaforização" as mulheres poderiam ser mais uma vez capturadas pelas mesmas estruturas falogocêntricas que combatem, Cornell vai defender a recriação do mito do feminino como uma estratégia de transformação do lugar da mulher, a partir de novas alegorias para o feminino. Cornell argumenta que a reinterpretação e a recriação das figuras míticas femininas serviriam à criação de outro lugar, para além do patriarcado, que estrutura a hierarquia de gênero e impede a aliança entre os sexos6 6 CORNELL, 1999, p. 175. .

Inscrevo-me e escrevo nesse arriscado caminho de remetaforização do mito ao fazer o percurso de uma releitura do Gênesis para a criação do homem e da mulher, inspirada por Cornell, mas também por Agacinski, autora que explora as contradições entre as duas passagens do Gênesis que se referem à criação. Ela mostra que, no primeiro capítulo, o gênero humano parece ser criado já considerando o homem e a mulher ("homem e mulher, Eles os criou") e é incluída imediatamente uma pluralidade. Já no segundo capítulo, o homem já existe quando a mulher é criada para servi-lo. Agacisnki observa que nesse segundo trecho do Gênesis "a razão de ser da mulher, desde a sua criação, é ajudar e assistir ao homem. Ela é essencialmente auxiliar, destinada por Deus a ajudá-lo".7 7 AGACINSKI, 2005, p. 123. Tradução minha, assim como a tradução das demais citações no texto. Segundo ela, essa ideia é que fundamentará o androcentrismo cristão, sustentando o mito da superioridade do homem em relação à mulher. Tal é a passagem do Gênesis que Lévinas vai usar para refletir sobre diferença sexual.

O segundo fantasma será o do embaralhamento entre dois termos que não deveriam ser equivalentes: "mulher" e "feminino". Esse embaralhamento aparece em Lévinas, mas deve ser evitado pelo risco de que se confundam as questões ligadas ao feminino com referências à mulher empírica, abordagem que cairia no discurso essencialista da tradição. Feminino, aqui, não é a mulher ou a essência da mulher. Repito aqui as ressalvas feitas por Lévinas:8 8 LÉVINAS, 2000, p. 140. falar de feminino não é falar da mulher empírica, embora isso aconteça muitas vezes.

Em Derrida, dirá Fernanda Bernardo,9 9 Se posso citá-la é graças a sua generosidade incondicional e a sua amizade, que me permitiram a leitura na íntegra de três de suas conferências ainda inéditas (BERNARDO, 2007, 2008 e 2009). o feminino aparece como a "Lei sem lei", como "a suspensão e a transgressão da oposição da dualidade sexual e, enquanto tal, a lei da passagem, da interrupção, da disjunção, da divisibilidade, da contaminação e, mais do que da pluralidade, da heterogeneidade da 'identidade sexuada'".10 10 BERNARDO, 2008, p. 15. Neste artigo, uma palavra vai se associar ao tema do feminino: alteridade. Será lendo Lévinas que Derrida vai propor a ideia de uma dissimetria absoluta em relação ao outro e, mais ainda, a ideia de que todo outro é totalmente outro. Longe de ser uma tautologia, essa formulação ampliaria as proposições levinasianas que ligam feminino e alteridade e marcaria a radicalidade do pensamento ético de Derrida.

O terceiro e último fantasma talvez seja o mais desafiador: o de Simone de Beauvoir e seu embate com Lévinas. Logo na introdução de O segundo sexo, ela atribui a Lévinas o que considera uma pejorativa classificação da mulher como Outro. Diz Beauvoir: "A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem, e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro".11 11 BEAUVOIR, 2009, p. 17. Nesse ponto, a autora se refere a uma passagem de Les temps et l'autre12 12 O livro reúne quatro conferências realizadas por ele entre 1946 e 1947, antes da publicação de O segundo sexo, em 1949. em que Lévinas está escrevendo sobre Eros, tema que vai reaparecer ao longo de toda sua obra. Quando diz que a diferença sexual não é a dualidade de dois termos complementares, Lévinas questiona a concepção de amor como fusão. No entanto, Beauvoir identifica uma visão androcêntrica na afirmação de que a mulher é o Outro: "Quando escreve que a mulher é mistério, subentende que é mistério para o homem. De modo que essa descrição que se apresenta com intenção objetiva é, na realidade, uma afirmação do privilégio masculino."13 13 BEAUVOIR, 2009, p. 17.

Ela tomou Lévinas como exemplo de desvalorização das mulheres no contexto de um pensamento que afirmava o sujeito como o masculino, e secundarizava o outro como feminino. A intenção aqui não é retomar o diálogo entre Beauvoir e Lévinas nem reproduzir o debate feminista que se deu a partir daí,14 14 Para uma retrospectiva dos debates entre as teorias feministas e o pensamento de Lévinas, ver Levinas, feminism and the feminine (Stella SANDFORD, 2002). mas - apesar do fantasma de Beauvoir - ler Lévinas à luz de Derrida.15 15 Agradeço ao meu incondicional amigo, Rafael Haddock-Lobo, pelo apoio nesse caminho de leitura.

Tatsuru Uchida afirma que Lévinas quis fazer uma "reabilitação do feminino" numa época em que o pensamento de Beauvoir estava em voga na França. Para o autor, a intenção de responder a Beauvoir era a de apresentar uma nova ideia de mulher, ultrapassando as proposições da filósofa feminista. Uchida sustenta que O segundo sexo teria sido escrito em grande parte para refutar as ideias de Lévinas sobre o feminino, e os argumentos de Lévinas sobre o feminino em Totalidade e infinito seriam uma resposta às críticas de Beauvoir. É verdade que no sexagenário livro da filósofa francesa há muito a ser repensado - sobretudo sua ênfase num feminismo sob o signo do humanismo - mas no campo dos estudos feministas o pioneirismo de Beauvoir é inegável. A partir dela, muitas autoras16 16 Drucilla Cornell, Elizabeth Grosz e Tina Chanter, para citar as mais importantes. se interessaram em pensar sobre o feminino apresentado por Lévinas.

Para Derrida, apesar de uma atribuição tradicional e androcêntrica de alguns aspectos da mulher, o que parece importar na abordagem levinasiana do feminino é a definição do "acolhimento por excelência" que se dá a partir da feminilidade, a hospitalidade absoluta, origem pré-ética da ética.17 17 DERRIDA, 2004, p. 60.

Se, apesar de todos esses fantasmas, me arrisco nesse percurso é por saber que Derrida se refere a pelo menos duas possibilidades de leitura de Lévinas: uma leitura identifica no filósofo lituano a tradicional separação hierárquica entre masculino e feminino, dando valor ao que é masculino e atribuindo à mulher as características essencialistas da tradição (interpretação feita por Beauvoir, por exemplo). Mas é a segunda possibilidade de leitura que exploro: Derrida enxerga em Lévinas a ampliação do feminino para além da mulher, amplificando as proposições levinasianas do feminino como abertura à alteridade. Lévinas faz do feminino uma figura privilegiada da ética e da alteridade. Derrida partirá desse pensamento levinasiano do feminino para pensar em hospitalidade incondicional, radicalizando essa ideia de abertura ao outro.

Diferenças sexuais

Embora apareça no seu pensamento de forma não necessariamente linear ou coerente, há um ponto mais ou menos constante no pensamento de Lévinas sobre o feminino - é a mulher quem encarna o conceito de alteridade. "A mulher, ou mais exatamente a amante, é assim a primeira figura da alteridade", diz Matthieu Dubost.18 18 DUBOST, 2006, p. 320. A relação erótica ganha o privilégio de ser o lugar de encontro com essa alteridade.

Nessa relação erótica, está em jogo uma espécie de encontro impossível, um desejo de fusão que nunca se realiza - e, ao não se realizar, expõe a diferença. O erótico aparece como paradigma do encontro do outro como outro. E, como argumenta Dubost,19 19 DUBOST, 2006, p. 319. esse outro é feminino, porque a mulher - mais precisamente a amante da relação erótica - é a primeira figura da alteridade. O feminino aparece como a própria diferença, como o elemento que resiste a pertencer à ordem do mesmo. O feminino faz emergir a alteridade, permanecendo mistério e absolutamente outro. Não como oposição ou complemento, que faria da relação erótica uma fusão de elementos, mas apontando uma diferença, que é também sexual.20 20 Magali MENEZES, 2008, p. 22.

Na relação erótica haveria, para Lévinas, um encontro com um ser diferente, com uma "alteridade pura" que apresenta a marca de uma dualidade intransponível. Assim, a diferença entre os sexos vai ser pensada por Lévinas desde suas primeiras abordagens sobre o tema como a possibilidade de pensar a realidade como múltipla, mas não como dual porque dualidade significaria um todo preeexistente. Lévinas quer pensar "o masculino e o feminino como próprios de todo ser humano".21 21 LÉVINAS, 1982, p. 61. A relação erótica é privilegiada não apenas por ser o lugar em que se pode sair de si, mas também por ser algo que escapa ao conhecimento. O tema do erótico como experiência de ausência de fusão e de encontro com a diferença e com a alteridade será uma constante no pensamento levinasiano.

Outras duas imagens importantes no pensamento levinasiano sobre o feminino aparecem já no final de Da existência ao existente: a fecundidade e o filho. A fecundidade - capaz de gerar o filho, mas também de gerar uma obra - é a possibilidade de transcendência do eu, "momento em que criamos algo para-além de nós mesmos".22 22 HADDOCK-LOBO, 2006, p. 59. E a fecundidade é, para Lévinas, uma qualidade do feminino, que aparece também associada à amante e à mãe. O filho - ou a obra - é o terceiro, aquilo que é como eu mas não é eu: "Filho e obra, como presentes desinteressados ao mundo, como irretidão que nunca retornará ao mesmo, podem indicar o alcance do próprio infinito e a efetiva realização da ética", argumenta HaddockLobo.23 23 HADDOCK-LOBO, 2006, p. 59. Fecundidade e mulher aparecem como "lugar sensível da diferença e como possibilidade de escapar de si".24 24 DUBOST, 2006, p. 321. Com a associação entre feminino e alteridade, Lévinas estaria confrontando a ideia de totalidade e querendo pensar a diferença sexual como assimétrica - não como complementar -, o que já não suporia um todo preeexistente, todo que se inscreveria na ordem do mesmo, tema constante do seu diálogo e de suas críticas a Heidegger.

Para Lévinas, a ética da relação assimétrica com o outro se contrapõe à simetria da ontologia de Heidegger. Lévinas contesta a ideia de totalidade citando o diálogo de Aristófanes no Banquete de Platão. Ele dirá que, ao contrário do que acontece no diálogo de Platão, na tradição judaica os seres vão ter uma existência separada não como um castigo divino (Zeus teria cortado os seres pela metade para torná-los mais fracos), mas como uma "identidade de destino e de dignidade e também uma subordinação da vida sexual à relação pessoal, que é a igualdade em si".25 25 LÉVINAS, 1963, p. 56. À imagem de um ser que era completo e se separa em dois, passando a ter como destino procurar sua parte complementar, Lévinas contrapõe o fracasso dessa comunhão, que é sempre parcial.26 26 DUBOST, 2006, p. 321. O mesmo mito é evocado por Lacan como uma imagem "patética e enganadora" do amor pensado como complemento (LACAN, 1985, p. 195). Tomo essa referência como uma das muitas indicações da influência de Lévinas no pensamento contemporâneo francês, influência nem sempre reconhecida, citada ou valorizada.

Quando Lévinas afirma que essas ideias são mais antigas que os princípios em nome dos quais a mulher moderna luta pela sua emancipação, antecipa-se aqui seu diálogo com as feministas. Para ele, a questão que parece estar sempre em jogo é a manutenção de uma diferença sexual que, no seu entendimento, as lutas pelas emancipação gostariam de "esfumaçar". Repensar e valorizar a diferença sexual parece ser também um dos objetivos das leituras talmúdicas do filósofo lituano.27 27 Lévinas passa a se dedicar à leitura do Talmude entre 1946 e 1947, depois de voltar a Paris ao fim da Segunda Guerra, quando passa a dirigir a Escola Normal Israelita Oriental. Três livros reúnem as conferências de Lévinas com suas leituras talmúdicas: 1) Quatro leituras talmúdicas, com as apresentações feitas entre 1963 e 1966; 2) Do sagrado ao santo: cinco novas interpretações talmúdicas, editado em 1977, que reúne as conferências proferidas entre 1969 e 1975. É onde está publicado E Deus criou a mulher, conferência apresentada em Paris em 1972; 3) Novas interpretações talmúdicas, que finaliza a série, com três conferências realizadas depois de 1975. Lévinas dedicou outros tantos livros e textos ao tema do judaísmo, entre os quais destaco Difficile liberté: essais sur le judaïsme, onde há o ensaio "Le judaïsme et le féminin", também comentado por Derrida.

Lévinas defende que toda a história do judaísmo foi comandada pelas mulheres. Ele cita Sara, Rebecca, Lea, Raquel e Ruth e afirma que "todas as agulhas desse caminho difícil em que o trem da história messiânica mil vezes correu o risco de descarrilhar foram vigiadas e comandadas pelas mulheres".28 28 LÉVINAS, 1963, p. 52. Além de atribuir às matriarcas o papel de orientar os homens nos destinos bíblicos, Lévinas vai salientar o que a tradição considera mais importante: o papel das mulheres no desenvolvimento da interioridade, tornando "o mundo habitável". Vem daí a afirmação talmúdica de que a casa é a mulher, afirmação que Lévinas incorpora ao seu pensamento filosófico e que aparece em diversos dos seus textos. A partir dessa leitura da tradição, ele atribui ao feminino a função ontológica, quando afirma:

Iluminar os olhos cegos, trazer altivez - dominar, por consequência, uma alienação que, no limite, resulta da virilidade mesma do

logos

universal e conquistador que caça até as sombras que poderia abrigá-lo - tal seria a função ontológica do feminino, a vocação daquela que "não conquista".

29 29 LÉVINAS, 1963, p. 53.

Lévinas discute o tema da criação para afirmar que Deus chamou de Adão o homem e a mulher reunidos, colocando a dualidade na própria essência do humano, na qual a feminilidade da mulher não estaria absorvida.

E Deus criou a mulher

O feminino como decorrência do masculino vai aparecer em E Deus criou a mulher, texto de Lévinas considerado por Derrida "uma leitura maravilhosa do Gênesis".30 30 DERRIDA, 1992, p. 105. A discussão sobre esse texto aparece em Derrida em dois momentos: En ce moment lá me voici, dedicado à obra de Lévinas, e em Coreografias, entrevista de Derrida com a feminista Christie Mcdonald na qual ela interroga o papel dos textos bíblicos na determinação do lugar da mulher na cultura ocidental, sugerindo que o texto do Gênesis seria um dos mitos responsáveis pela hierarquia de gênero.

Derrida dirá que Lévinas não secundarizou, derivou ou subordinou a mulher ou o feminino, mas a diferença sexual, constatação da qual decorre a questão que vou perseguir: essa secundarização serviria para manter o "ele" no lugar do neutro inicial e fundador? A hipótese foi dada por Derrida: haveria uma matriz falogocêntrica encoberta por essa neutralidade,31 31 DERRIDA, 1992, p. 106. que apareceria, por exemplo, quando Lévinas recupera a tradição judaica que explica o feminino como uma derivação do masculino: "A mulher deriva quase gramaticalmente do homem (em hebreu, mulher se diz Ichah, que vem da palavra Iche, que designa homem)", diz Lévinas,32 32 LÉVINAS, 1977, p. 132; e 1993, p. 55. apontando para uma primazia do masculino, que seria anterior ao feminino e à diferença sexual.

Como a marca masculina poderia ser anterior à diferença sexual?, pergunta Derrida33 33 DERRIDA, 1992, p. 109. - e eu faço eco a esta pergunta. Lévinas vai associar essa derivação homem-mulher à passagem bíblica que define a mulher como "carne da minha carne, ossos dos meus ossos", imagem que mantém a prioridade do masculino. Nas palavras de Lévinas,

O sentido do feminino será esclarecido a partir da essência humana, o

Ichah

como sequência do

Iche

: não o feminino a partir do masculino, mas a divisão entre masculino e feminino - a dicotomia - a partir do humano.

34 34 LÉVINAS, 1977, p. 132.

Ou seja, primeiro haveria o humano, posteriormente dividido em dois. A questão é que nessa divisão o feminino seria secundário porque viria "a partir", como segundo ou como secundário. Catherine Chalier observa que Lévinas usa o que ele chama de "derivação quase gramatical" da mulher em relação ao homem para afirmar uma mesma identidade de destino e dignidade para o homem e para a mulher. Mas essa derivação, lembra ela, serviria de argumento para Lévinas pensar a existência de uma prioridade do homem em relação à mulher.35 35 CHALIER, 2006, p. 81.

Destaco as observações de Uchida,36 36 Tatsuru UCHIDA, 2001. para quem o texto levinasiano é uma crítica ao feminismo. Uma indicação para essa leitura pode ser encontrada nos seguintes trechos:

Não é a liberação sexual que, por si mesma, justificaria uma revolução digna da espécie humana.37 37 LÉVINAS, 2003, p. 146.

A revolução que creio ter atingido o ponto máximo destruindo a família para libertar a sexualidade acorrentada, a pretensão de cumprir no plano sexual a verdadeira libertação do homem, tudo isso se contesta aqui.38 38 LÉVINAS, 2003, p. 148.

Para Uchida, Lévinas daria mais importância à diferença do que à igualdade entre os sexos - tema feminista por excelência - a fim de responder às críticas de Beauvoir e encontrar um caminho para valorizar a mulher e o feminino. Essa intenção seria baseada numa valorização das diferenças. É o que se pode ler, por exemplo, quando Lévinas diz:

Não é, pois, em termos de igualdade que se põe todo o problema da mulher. E a partir de agora nosso texto procurará mostrar a importância de uma certa desigualdade, ainda que ela se deva puramente ao costume. [...] Das duas faces, a masculina e a feminina, qual comanda a caminhada? Aqui, a igualdade, sem mais considerações, leva ao imobilismo ou à implosão do ser humano.39 39 LÉVINAS, 2003, p. 155.

Se retomarmos aqui o que diz Cornell sobre a especificidade da mulher, poderíamos fazer uma leitura generosa das proposições levinasianas: a mulher estaria sendo entendida como diferente do homem, não como desigual.40 40 Sobre as proposições de Cornell para equivalência de direitos entre homens e mulheres, remeto ao artigo "Da igualdade à equivalência: o caso Sears 30 anos depois" (RODRIGUES, 2009). No entanto, o problema que aparece aqui também diz respeito a uma questão levantada por Cornell: como valorizar a especificidade feminina? Ao tratar a mulher como diferente, Lévinas teria essa intenção? Impossível questão, mas para a qual penso que se pode olhar sob dois aspectos, numa dupla leitura que enfatiza a ambiguidade do texto levinasiano a que tantas vezes Derrida se refere.

Primeiro aspecto: os traços da mulher levinasiana correspondem aos traços da mulher na tradição (judaica). Lévinas recupera um dos ensinamentos do Talmude sobre a mulher na tradição judaica e afirma: "a casa é a mulher".41 41 LÉVINAS, 1963, p. 52. Ele lembra que é a mulher quem torna a vida pública do homem possível, recuperando a tradição judaica segundo a qual a mulher é responsável pela vida espiritual, pela paz doméstica e por tudo aquilo que dá suporte ao homem. Sem a mulher, "o homem não conheceria nada do que transforma sua vida natural em ética".42 42 LÉVINAS, 1963, p. 53.

Aqui vale a pena recuperar uma das questões feministas na qual as proposições de Lévinas esbarram: desde a Revolução Francesa, as reivindicações de cidadania das mulheres foram negadas com a construção do argumento de que as mulheres, "naturalmente frágeis", deveriam viver protegidas no espaço doméstico, infantilizadas como crianças e tuteladas pelos seus maridos. Por isso, a confusão entre a mulher empírica e o feminino - confusão que Lévinas também faz, apesar de todas as suas ressalvas - leva ao questionamento das proposições do autor sobre a mulher, cuja posição secundária se confunde com submissão, subordinação e ausência de direitos. A outra questão tem a ver com a aproximação que se pode fazer entre o feminino pensado dentro da tradição judaica e um ideal de essência feminina que estaria ligada às características biológicas das mulheres. Nesse sentido, Lévinas estaria mergulhado num debate ainda candente na teoria feminista: como valorizar as especificidades do feminino sem se valer de argumentos essencialistas tradicionalmente evocados para definir o lugar da mulher como subordinado?

Quem resume esse debate é Carole Pateman.43 43 PATEMAN, 1989. Ela mostra que desde a Revolução Francesa as mulheres tomaram dois caminhos distintos na luta para se tornarem cidadãs. O primeiro exige que o ideal de cidadania alcançado pelos homens seja estendido às mulheres, de tal forma que a sociedade seja "neutra em termos de gênero". O segundo, chamado por ela de "Dilema de Wollstonecraft", defende que as mulheres têm capacidades, talentos, necessidades e preocupações específicas, que devem ser levados em conta na sua cidadania. No entanto, a lógica da sociedade patriarcal sustentaria esses dois caminhos como incompatíveis porque o patriarcado permite apenas que se opte entre duas alternativas: tornar-se mulher "como homens", e assim sujeito de direitos, ou afirmar a especificidade das mulheres, o que não confere nenhum valor às mulheres para torná-las cidadãs.

Quando Lévinas recorre ao lugar da mulher na tradição judaica, estaria fortalecendo esse dilema: valorizando as especificidades das mulheres, mas as mantendo fora da vida pública. Ao mesmo tempo, só com o esclarecimento - que virá aos poucos - de que Lévinas não está tratando da mulher empírica e de que o feminino e o masculino estariam presentes em homens e mulheres se ampliaria a compreensão das proposições levinasianas para além do essencialismo. Lévinas defende explicitamente essa proposição numa entrevista, quando diz:

Todas as alusões às diferenças ontológicas entre o masculino e o feminino pareceriam menos arcaicas se, ao invés de dividir a humanidade em duas espécies (ou dois gêneros), elas quisessem significar que a

participação no masculino e no feminino seria o próprio de todo ser humano

.

44 44 LÉVINAS, 1982, p. 6, grifo meu.

Dubost observa que muitas imagens da mulher em Lévinas são quase caricatas, e são imagens que fazem parte da tradição judaico-cristã. A observação sobre as ligações entre as imagens levinasianas do feminino e a tradição judaica também é feita por Fernanda Bernardo.45 45 BERNARDO, 2009, p. 23. Na tradição (judaica), a mulher é pensada como "a segunda" do homem. Nessa secundarização não haveria a intenção de desvalorizar o feminino, mas sim de reconhecer suas especificidades. A mulher seria a segunda, mas sem ela não haveria casa, família, filhos, fecundidade, sem ela não haveria sobretudo ética. A condição social da mulher na tradição judaica se define pelas suas relações com o marido e com a família.46 46 CHALIER, 1992, p. 37.

Caberia interrogar se a ideia judaica do lugar secundário da mulher poderia ser um caminho de valorização do feminino. Ela é segunda porque é assimétrica e inteiramente outra? E por que, nessa assimetria, é a mulher que deve ser a segunda? Porque, ao ser diferente, ela também é secundária? Não estaria aí a matriz falogocêntrica que Derrida identifica?

Segundo aspecto: ao recusar a ideia de complementaridade, Lévinas estaria fazendo uma crítica à lógica do mesmo. No diálogo de Aristófanes, a ideia do amor como restituição de uma unidade perdida e a noção de complementaridade entre masculino e feminino indicam que as duas metades podem voltar a ser um único ser: "Cada um de nós portanto é uma téssera complementar de um homem, porque cortado como os linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento".47 47 PLATÃO, 1986, p. 129.

É essa perspectiva totalizadora e complementar que Lévinas critica. Na sua concepção de relação erótica, Lévinas propõe o contrário - o encontro entre homem e mulher como o encontro com a própria diferença, com a impossibilidade da fusão, Eros como aquele que nos coloca diante da alteridade. Lévinas vai explicitamente recusar a ideia de complementaridade - "é apenas uma palavra preguiçosa" - para entrar no debate sobre o que significa, no Gênesis, a imagem da mulher criada a partir da costela de Adão. Seria uma leitura por demais generosa propor que, ao recusar a complementaridade, Lévinas poderia estar valorizando aquilo que Cornell chama de especificidades do feminino? Mais uma impossível questão.

A costela de Adão

No Tratado de Berakhot, que Lévinas está discutindo em E Deus criou a mulher, dois rabis defendem posições opostas em relação à criação do homem e da mulher. Está em jogo primeiro a questão do humano, fora da divisão entre masculino e feminino. Discute-se a dualidade e como essa dualidade participa na definição do que é o humano. O primeiro rabi pergunta por que, na frase "E Deus modelou o homem", a palavra "modelou" - vayyitzer, em hebraico - está escrita com duas vezes a letra "y"? A primeira resposta, argumenta Lévinas, é que a criação do humano é tão extraordinária que justificaria a duplicação do y - letra privilegiada no alfabeto hebraico por ser a letra inicial do nome de Deus (YHVH). Outro indicador do caráter extraordinário da criação do humano e motivo da duplicação da letra "y" seria, Lévinas argumenta, o fato de Deus ter criado "duas criaturas em uma", o que para Lévinas definiria o humano: poder ser dois sendo um.

Essa duplicidade em um seria concretizada na criação, por Deus, de um primeiro homem que teria duas faces - sem que com isso, diz Lévinas, esse primeiro homem tivesse uma "cabeça de Jano". Lévinas questiona por que os rabis não percebem nessas duas faces do humano as duas faces do casal, o que levaria à compreensão de que a criação do humano já pressupunha, desde a origem, a criação do homem e da mulher, intenção explícita no uso dos dois Y na criação. Para Lévinas, essa cabeça de duas faces é onde primeiro se inscreve a "minha responsabilidade pelo outro, sem que eu e outro formemos - e nos reconhecendo mutuamente um nos olhos do outro - uma correlação de termos, imediatamente recíprocos".48 48 LÉVINAS, 1977, p. 132. Isso que ele chama de "estranha dualidade não recíproca" anunciaria, então, a diferença entre os sexos.

Outra questão de linguagem que será discutida por Lévinas será o uso da palavra "costela" - um problema de difícil tradução, já que ele está se referindo à semelhança entre côté (lado) e côte (costela). Lévinas cita a tradução francesa do Gênesis: "bâti em femme la côte qu'il avair prise à l'homme...". A partir desse momento, o diálogo entre os dois rabis se transforma numa grande discussão: um defende que essa costela seria um rosto e o outro diz que seria uma cauda. Diz Lévinas: "O fato de que a mulher não é apenas fêmea do homem, de que ela faz parte do humano, é certamente comum aos dois debatedores: a mulher é, de saída, criada a partir do humano".49 49 LÉVINAS, 1977, p. 134.

Se até aqui os dois rabis estão de acordo, num ponto, como observa Lévinas, eles se opõem: aquele que considera a costela um rosto pensa em igualdade entre feminino e masculino e entende a diferença e a relação sexual como parte do conteúdo essencial do humano. "A criação do homem foi a criação de dois seres em um só, mas de dois seres de dignidade igual; a diferença e a relação sexual pertencem ao conteúdo essencial do humano", diz Lévinas.50 50 LÉVINAS, 1977, p. 134.

No entanto, aquele rabi que associa a costela a uma cauda, embora reconheça que a mulher veio ao mundo como um ato divino da criação, entende a particularidade do feminino como coisa secundária. Segundo Lévinas, não é a mulher que é secundária, é a relação com a mulher que é secundária, é a relação com a mulher enquanto mulher, que não pertence ao plano primordial do humano.51 51 LÉVINAS, 1977, p. 127-135. Por essa leitura, o nascimento da mulher, com sua particularidade sexual, seria dada a partir de uma articulação menor do homem ou do humano.

Lévinas defende a ideia de que a independência entre os dois seres criados por Deus seria impossível. Citando o argumento do rabi, ele diz:

Seria preciso, para criar um mundo, que [Deus] os fizesse subordinados um ao outro. Seria necessária uma diferença que não comprometesse a equidade, uma diferença de sexo; e, a partir daí, uma certa preeminência do homem, uma mulher vinda mais tarde e, como mulher, apêndice do humano.

52 52 LÉVINAS, 1977, p. 142.

A partir daí, Lévinas diz que a lição talmúdica quer nos ensinar que a humanidade não pode ser pensada a partir de dois princípios inteiramente diferentes. "A mulher foi retirada do homem, veio depois dele; a própria feminilidade da mulher está nessa posterioridade inicial".53 53 LÉVINAS, 1977, p. 142, grifo do autor.

Esse é o ponto que vai interessar a Derrida. Ele dirá que Lévinas está associando a secundaridade da diferença sexual - que viria depois do humano - com a secundaridade do feminino, que viria depois do masculino. Derrida observa que haveria uma identificação levinasiana - não assumida por ele, mas apontada por Derrida - com a leitura do Talmude na qual o humano seria compreendido como neutro, anterior e acima da diferença sexual, e a mulher seria secundária porque a própria diferença sexual seria secundária. O androcentrismo levinasiano estaria na proposição de que a diferença sexual equivaleria à marca da sexualidade feminina. Derrida argumenta que isso faria do masculino o lugar privilegiado do neutro. E observa que há um problema na abordagem levinasiana dessa diferença. Nas palavras de Derrida,

Lévinas parece ter sempre secundarizado, derivado a alteridade como diferença sexual, subordinado o traço da diferença sexual à alteridade de um todo outro sexualmente não marcado. Não secundarizado, derivado ou subordinado a mulher ou o feminino, mas a diferença sexual.

54 54 DERRIDA, 1987, p. 194.

Subordinar a diferença sexual, argumenta Derrida, significaria admitir que aquilo que ainda não está marcado pela diferença sexual tem a marca da masculinidade. Elizabeth Grosz observa que o problema da diferença sexual em Lévinas interessa a Derrida para discutir o efeito da secundarização da diferença sexual em relação à alteridade. Se a alteridade não for sexualmente neutra, mas determinada como masculino, isso significaria retornar com a alteridade para a ordem do mesmo?

Grosz vai seguir a leitura de Derrida para afirmar que Lévinas estaria pensando o masculino como anterior à diferença sexual, o que comprometeria o neutro, já que a humanidade em geral, antes da divisão em dois sexos, seria masculina, e só com o advento posterior da diferença sexual é que viria a mulher.55 55 GROSZ, 1997, p. 91.

Poucos filósofos se interessaram pela questão da diferença sexual e foi só ao longo do século XX que o tema ingressou no campo da filosofia.56 56 DUBOST, 2006. Apesar dos aspectos androcêntricos, quando fala em diferença sexual, Lévinas estaria interrogando a neutralidade do sujeito filosófico.57 57 CHALIER, 2006, p. 9. Por isso, as críticas a Lévinas não chegariam a comprometer seu pensamento sobre a diferença sexual por indicarem a intenção de pensar para além da neutralidade - que é sempre masculina - e para além das estruturas binárias. Stella Sandford, por exemplo, reconhece que, embora essa intenção pareça estar longe das proposições de Lévinas quando ele começou a pensar sobre a diferença sexual, essa foi uma das implicações do seu pensamento.58 58 SANDFORD, 2002, p. 158.

No debate em torno da diferença sexual, Derrida faz duas importantes críticas sobre neutralidade: em Lévinas, aponta que o neutro está associado ao masculino; em Heidegger, mostra que tudo se passa como se a diferença sexual não existisse. Ao privilegiar a diferença ontológica, Heidegger reforçaria a associação tradicional, natural e automática entre neutralidade e masculino.59 59 DERRIDA, 1990. Na leitura desses dois autores, Derrida vai se interessar por um mesmo aspecto: o problema do pensamento que reduz tudo à ordem do mesmo, o que explicaria, do meu ponto de vista, todas as ressalvas que Derrida faz à visão androcêntrica de Lévinas - a intenção seria a de marcar um afastamento ali onde ele também vai fazer uma aproximação importante para os termos com que Derrida pensa a ética.

A ideia de uma dissimetria absoluta em relação ao outro e, mais ainda, a ideia de que todo outro é totalmente outro percorrerão a radicalidade do pensamento ético de Derrida, que vai se valer, para isso, principalmente das proposições levinasianas sobre feminino que aparecem em Totalidade e infinito. Nesse texto, um Lévinas mais maduro que o do embate com Beauvoir dirá que o feminino constitui a figura privilegiada da alteridade, ao lado do rosto, da linguagem e do filho, e a mulher é descrita a partir de três imagens: associada ao erótico, à maternidade, e à hospitalidade e ao acolhimento.60 60 DUBOST, 2006, p. 323.

É a qualidade do acolhimento que vai interessar a Derrida. Lévinas associa a mulher ao acolhimento hospitaleiro por excelência, e define o ser feminino como o acolhedor por excelência, como o acolhedor em si. Derrida vai recuperar as ligações levinasianas entre o feminino e a alteridade para, ao pensar sobre feminino e hospitalidade, apontar para o que ele chama de implacável lei da hospitalidade.61 61 DERRIDA, 2004, p. 57. Derrida dirá que essa precedência do acolhimento seria aquilo que Lévinas nomeia como a feminilidade da mulher, a alteridade feminina e, para isso, cita o seguinte trecho de Totalidade e infinito:

A casa que funda a posse não é posse no mesmo sentido que as coisas móveis que ela pode recolher e guardar. Ela é possuída, porque ela é, doravante,

hospitaleira ao seu proprietário

. O que nos remete à sua interioridade essencial e ao habitante que a habita

antes de todo habitante, ao acolhedor por excelência, ao acolhedor em si - ao ser feminino

.

62 62 LÉVINAS, 2000, p. 140, citado por DERRIDA, 2004, p. 60, grifos de Derrida.

Contra todas as objeções androcêntricas apontadas anteriormente, Derrida vai tomar esse trecho da escrita levinasiana para indicar que, ao definir o acolhimento por excelência a partir da feminilidade, Lévinas estaria levando em conta "a diferença sexual numa ética emancipada da ontologia" (e portanto aberta ao outro) e que essa diferença não será "nunca mais neutralizada" (como fez Heidegger). O feminino atende aqui pelo nome de hospitalidade incondicional e torna-se sinônimo de abertura ética - ou préética -, e a hospitalidade passa a ser entendida como acolhimento à alteridade absoluta. A feminilidade desenharia a dissimetria absoluta em relação ao outro, o acolhimento como feminino suspenderia "o registo do próprio e da propriedade, isto é, do ser e do poder, da autonomia".63 63 BERNARDO, 2009, p. 28. Isso, dirá Fernanda Bernardo, serve para lembrar aquilo que Derrida diz: o que há é sempre uma promessa vã de restituição, uma dívida impossível de ser quitada, uma permanente impossibilidade de apropriar-se.

O movimento de Derrida em relação a essa impossibilidade de apropriação - outro nome para o feminino - apontada pela hospitalidade em Lévinas será de potencializar a impossibilidade, de trabalhar a partir dessa impossibilidade para pensar feminino e hospitalidade como essa abertura incondicional ao outro, num gesto característico do pensamento da desconstrução. Estressando as entranhas do texto levinasiano, Derrida encontra potencialidades daquilo que nem mesmo Lévinas pôde acolher, e nomeará Totalidade e infinito como um "imenso tratado sobre a hospitalidade".64 64 DERRIDA, 2004, p. 39. Para ficar nos termos do diálogo entre os dois, Derrida acolhe incondicionalmente aquilo que haveria de mais potente no texto levinasiano: a ideia de uma ética como filosofia primeira, entendendo essa ética como um tipo de relação não totalizante com o outro, que deixa de ser pensado como secundário ou subordinado, como fez a tradição em relação ao feminino.

[Recebido em 30 de abril de 2010 e aceito para publicação em 6 de outubro de 2010]

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  • 1
    Sylviane AGACINSKI, 2005, p. 8.
  • 2
    Este artigo é um excerto da tese de doutorado Rastros do feminino: sobre ética e política em Jacques Derrida, defendida na PUC-Rio, sob orientação de Paulo Cesar Duque-Estrada, a quem agradeço a hospitalidade incondicional. O título é uma referência ao artigo "Gênero e hierarquia: a costela de Adão revisitada", de Maria Luiza Heilborn, publicado no primeiro número da Revista Estudos Feministas, e principalmente o reconhecimento de uma dívida de gratidão a ela.
  • 3
    Numa das inúmeras ocasiões em que foi convocado a explicar o pensamento da desconstrução, o filósofo Jacques Derrida respondeu: a desconstrução pensa sobre a origem e os limites da questão "o que é", trazendo um abalo à autoridade dessa pergunta, que só pode ser formulada a partir dessa estrutura em que o neutro (masculino) pergunta o que é o outro, o diferente, aquilo que não é o mesmo.
  • 4
    CHANTER, 2002, p. 130.
  • 5
    CHANTER, 2002, p. 144.
  • 6
    CORNELL, 1999, p. 175.
  • 7
    AGACINSKI, 2005, p. 123. Tradução minha, assim como a tradução das demais citações no texto.
  • 8
    LÉVINAS, 2000, p. 140.
  • 9
    Se posso citá-la é graças a sua generosidade incondicional e a sua amizade, que me permitiram a leitura na íntegra de três de suas conferências ainda inéditas (BERNARDO, 2007, 2008 e 2009).
  • 10
    BERNARDO, 2008, p. 15.
  • 11
    BEAUVOIR, 2009, p. 17.
  • 12
    O livro reúne quatro conferências realizadas por ele entre 1946 e 1947, antes da publicação de
    O segundo sexo, em 1949.
  • 13
    BEAUVOIR, 2009, p. 17.
  • 14
    Para uma retrospectiva dos debates entre as teorias feministas e o pensamento de Lévinas, ver
    Levinas, feminism and the feminine (Stella SANDFORD, 2002).
  • 15
    Agradeço ao meu incondicional amigo, Rafael Haddock-Lobo, pelo apoio nesse caminho de leitura.
  • 16
    Drucilla Cornell, Elizabeth Grosz e Tina Chanter, para citar as mais importantes.
  • 17
    DERRIDA, 2004, p. 60.
  • 18
    DUBOST, 2006, p. 320.
  • 19
    DUBOST, 2006, p. 319.
  • 20
    Magali MENEZES, 2008, p. 22.
  • 21
    LÉVINAS, 1982, p. 61.
  • 22
    HADDOCK-LOBO, 2006, p. 59.
  • 23
    HADDOCK-LOBO, 2006, p. 59.
  • 24
    DUBOST, 2006, p. 321.
  • 25
    LÉVINAS, 1963, p. 56.
  • 26
    DUBOST, 2006, p. 321. O mesmo mito é evocado por Lacan como uma imagem "patética e enganadora" do amor pensado como complemento (LACAN, 1985, p. 195). Tomo essa referência como uma das muitas indicações da influência de Lévinas no pensamento contemporâneo francês, influência nem sempre reconhecida, citada ou valorizada.
  • 27
    Lévinas passa a se dedicar à leitura do
    Talmude entre 1946 e 1947, depois de voltar a Paris ao fim da Segunda Guerra, quando passa a dirigir a Escola Normal Israelita Oriental. Três livros reúnem as conferências de Lévinas com suas leituras talmúdicas: 1)
    Quatro leituras talmúdicas, com as apresentações feitas entre 1963 e 1966; 2)
    Do sagrado ao santo: cinco novas interpretações talmúdicas, editado em 1977, que reúne as conferências proferidas entre 1969 e 1975. É onde está publicado
    E Deus criou a mulher, conferência apresentada em Paris em 1972; 3)
    Novas interpretações talmúdicas, que finaliza a série, com três conferências realizadas depois de 1975. Lévinas dedicou outros tantos livros e textos ao tema do judaísmo, entre os quais destaco
    Difficile liberté: essais sur le judaïsme, onde há o ensaio "Le judaïsme et le féminin", também comentado por Derrida.
  • 28
    LÉVINAS, 1963, p. 52.
  • 29
    LÉVINAS, 1963, p. 53.
  • 30
    DERRIDA, 1992, p. 105.
  • 31
    DERRIDA, 1992, p. 106.
  • 32
    LÉVINAS, 1977, p. 132; e 1993, p. 55.
  • 33
    DERRIDA, 1992, p. 109.
  • 34
    LÉVINAS, 1977, p. 132.
  • 35
    CHALIER, 2006, p. 81.
  • 36
    Tatsuru UCHIDA, 2001.
  • 37
    LÉVINAS, 2003, p. 146.
  • 38
    LÉVINAS, 2003, p. 148.
  • 39
    LÉVINAS, 2003, p. 155.
  • 40
    Sobre as proposições de Cornell para equivalência de direitos entre homens e mulheres, remeto ao artigo "Da igualdade à equivalência: o caso Sears 30 anos depois" (RODRIGUES, 2009).
  • 41
    LÉVINAS, 1963, p. 52.
  • 42
    LÉVINAS, 1963, p. 53.
  • 43
    PATEMAN, 1989.
  • 44
    LÉVINAS, 1982, p. 6, grifo meu.
  • 45
    BERNARDO, 2009, p. 23.
  • 46
    CHALIER, 1992, p. 37.
  • 47
    PLATÃO, 1986, p. 129.
  • 48
    LÉVINAS, 1977, p. 132.
  • 49
    LÉVINAS, 1977, p. 134.
  • 50
    LÉVINAS, 1977, p. 134.
  • 51
    LÉVINAS, 1977, p. 127-135.
  • 52
    LÉVINAS, 1977, p. 142.
  • 53
    LÉVINAS, 1977, p. 142, grifo do autor.
  • 54
    DERRIDA, 1987, p. 194.
  • 55
    GROSZ, 1997, p. 91.
  • 56
    DUBOST, 2006.
  • 57
    CHALIER, 2006, p. 9.
  • 58
    SANDFORD, 2002, p. 158.
  • 59
    DERRIDA, 1990.
  • 60
    DUBOST, 2006, p. 323.
  • 61
    DERRIDA, 2004, p. 57.
  • 62
    LÉVINAS, 2000, p. 140, citado por DERRIDA, 2004, p. 60, grifos de Derrida.
  • 63
    BERNARDO, 2009, p. 28.
  • 64
    DERRIDA, 2004, p. 39.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Recebido
      30 Abr 2010
    • Aceito
      06 Out 2010
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