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O informal mas efetivo "racismo brasileiro": aparência, raça e classe na São Paulo da década de 1940

RESENHAS

O informal mas efetivo "racismo brasileiro": aparência, raça e classe na São Paulo da década de 1940

Mylene Mizrahi

Universidade Federal do Rio de Janeiro

MAIO, Marcos Chor (Org.).

São Paulo: Sociologia e Política, 2010. 190 p.

Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo.

A dissertação de Virgínia Leone Bicudo, defendida em 1945, conforma, juntamente aos trabalhos de Oracy Nogueira e Gioconda Mussolini, os primeiros resultados produzidos pela turma inaugural de mestrado da Escola Livre de Sociologia e Política - ELSP, à época ligada à Universidade de São Paulo - USP. A sua recente publicação nos oferece tanto um documento do modo como eram praticadas as florescentes Ciências Sociais no país como vem somar ao corpo de estudos sobre a questão racial, tema hoje tão caro aos já estabelecidos estudos relativos à sociedade brasileira. O argumento de Bicudo, construído a partir de pesquisa empírica conduzida em torno da percepção de racismo ou do preconceito racial do ponto de vista de negros e mulatos na cidade de São Paulo da década de 1940, situa-se em um terreno interdisciplinar. O diálogo mais evidente é estabelecido tanto com a Psicologia Social, área próxima à psicanálise, pela qual Bicudo enveredaria, como com a Sociologia. A interlocução que a autora estabelece com a Antropologia é, a meu ver, menos evidente, e a leitura que farei a seguir buscará iluminar essa interface de seu trabalho.

A dissertação de Virgínia Leone Bicudo é um estudo das "atitudes sociais" como concebidas tanto da perspectiva de Robert Park, para quem mudanças nas primeiras desencadeariam transformações nas instituições sociais, como da perspectiva de Ellsworth Faris, que defendia que as atitudes deveriam ser estudadas em momentos de crise. Bicudo, como explicitado por ela mesma no início do texto, orientou-se mais explicitamente por dois estudos: o de seu orientador, Donald Pierson - sociólogo norte-americano que, a partir de pesquisa na cidade de Salvador, argumentou que o preconceito racial poderia ser superado pela ascensão econômica -, e o da concepção de marginalidade de Everett Stonequist - sociólogo igualmente norte-americano que definiu o indivíduo marginal como aquele que, colocado entre dois mundos sociais, agiria em um quadro de incerteza. Bicudo segue ainda a sugestão de Stonequist para que se atente para o mulato e o grande rendimento analítico que ele poderia oferecer. A posição peculiar do "híbrido" - "ligado biológica e socialmente aos dois grupos raciais" - torná-lo-ia um potencial "índice do problema racial" (p. 109). É por esse mesmo caminho que seguirei para notarmos o modo pelo qual o material que Bicudo nos oferece, agora disponibilizado pela publicação deste Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, se articula com a Antropologia e com algumas de suas configurações contemporâneas, tanto no que diz respeito à sua teoria quanto ao que concerne àquele campo da disciplina que se dedica aos estudos relativos à "raça".

Através dos depoimentos que lemos ao longo do trabalho, feitos por pessoas classificadas em quatro diferentes categorias - "pretos da classe social 'inferior'", "pretos das classes sociais intermediárias", "mulatos da classe social 'inferior'" e "mulatos das classes sociais intermediárias" -, é quebrado o silêncio em relação às situações de explícita discriminação racial, silêncio este que tantas vezes vemos governar o modo pelo qual o racismo não apenas age como também é abordado no Brasil. As declarações que lemos dão conta de impedimentos da entrada de negros nos mais diversos locais - públicos ou privados - e trazem à tona o modo informal mas efetivo e atuante com que o preconceito de cor excluía sujeitos de espaços sociais da cidade de São Paulo. A autora mostra uma realidade diferente da que Pierson descreve para o negro na Bahia, onde a ascensão social permitiria apagar o preconceito, e distinta também daquela imaginada para o Rio de Janeiro, como alguns de seus informantes deixam notar. Estes, membros de um movimento negro, diziam encontrar dificuldades para a instalação de um braço carioca de sua associação, já que ali o racismo mostrar-se-ia de modo menos evidente. Tratava-se na verdade da Frente Negra Brasileira - FNB, como nos é revelado na introdução ao trabalho de Bicudo, organização política que produziu grande repercussão em São Paulo na década de 1930 e que possuía por objetivo produzir a solidariedade entre negros e assim superar, através da educação, do trabalho e da ação política, as "barreiras de cor" que limitavam a mobilidade social do grupo.

Como notam Elide Rugai Bastos e Marcos Chor Maio, autores, respectivamente, do prefácio e da introdução ao livro, Bicudo concede ao conflito lugar privilegiado, colocando-o como constitutivo da sociedade brasileira, distanciando-se assim das teses que advogam tanto por uma ideologia da Democracia Racial a reger as relações interétnicas no Brasil quanto por aquelas que interpretam o aspecto cordial do homem brasileiro, identificado por Sérgio Buarque de Holanda como indício de sua aversão ao confronto. Mas para além das questões relativas à socialidade e ao caráter inerentemente benigno, ou não, do entrar em relações, gostaria de destacar como Bicudo chama a nossa atenção para o aspecto relacional que necessariamente emerge ao tratarmos de relações raciais. É na relação com o outro, do negro com o branco, que se pode aceder às questões relativas à raça.

A pesquisadora, perspicazmente, recorta sua análise não apenas por meio de "classe" ("inferior" e "intermediária") mas também através das gradações de cor, assumindo uma visada multifacetada que, desde o princípio, se afasta de uma concepção de classificação de cor e de raça bipolar, mais apropriada a padrões norte-americanos e sul-africanos. Se o conflito é constitutivo da sociedade, a relação com o branco surge como constitutiva das perspectivas negras. Como nota,

Nos 13 casos até agora apresentados, seis dos entrevistados afirmaram ser criados por brancos e outros quatro tiveram íntimo convívio com brancos na posição de empregados [...].

Estes, educados pelos brancos com mais atenção, são os que demonstram consciência de cor (p. 97).

Para além das questões de raça e cor, trata-se de notar que não se pode pensar a identidade fora da relação com a alteridade, como os estudos pós-coloniais trataram de estabelecer a partir do final dos anos 1970. Esse "pensamento da diferença", por sua vez, esteve desde sempre no horizonte da ideologia e da mitologia ameríndias, que, como evidenciou Claude Lévi-Strauss, possuem um lugar permanente para a alteridade e para a problematização das relações com o outro.

Desse modo, em vez de vermos no mulato o indivíduo marginal por excelência, já que pertence "a dois grupos raciais", poderíamos tomá-lo como sintomático de uma apreensão múltipla e não radical da alteridade. Ele seria a própria síntese de que as identidades não podem ser concebidas de modo uno e a relação com o outro pensada em um registro dual, o que nos remete às questões relativas à reflexividade e às relações sujeito-objeto, tão caras às elaborações dos antropólogos pós-modernos. Ainda que Bicudo tenha buscado exercer um estreito controle de bias, tanto no modo como conduziu a pesquisa empírica quanto na maneira como empreendeu sua análise, é possível cogitar que, sendo ela mesma uma mulata pertencente à classe social "intermediária" - filha de um negro criado por um fazendeiro de café fundador do jornal O Estado de São Paulo e senador pelo Partido Republicano Paulista -, estivesse mais permeável tanto ao lugar do "híbrido" como aos "conflitos mentais" daqueles pertencentes às camadas médias.

A trajetória de Bicudo traduz uma interessante interpenetração entre gênero, raça e educação. A educação, à época, era tida como meio privilegiado de ascensão social tanto para as mulheres de classe média como para os negros. Seu pai, Teófilo Bicudo, parecendo muito ciente do valor dessa associação, foi central não apenas para a relevância que a educação assumiu no seio da família como foi quem induziu Virgínia, a filha mais velha de outros cinco irmãos, a ingressar no Curso de Educadores Sanitários do Instituto de Higiene de São Paulo, que surge justamente em um momento de crescente profissionalização das mulheres das camadas médias urbanas. As imagens reunidas ao final do livro, em um "caderno de imagens", concede um registro valioso de diversas passagens da vida de Virgínia Leone Bicudo.

Vale notar ainda que as nuances com que um e outro estrato social - as classes "intermediária" e "inferior" - é apreendido por Bicudo na pesquisa que origina a sua dissertação de mestrado podem ser explicadas também pelo fato de os entrevistados da "classe inferior" terem sido recrutados de modo aleatório - salvo o aspecto da cor da pele - e no contexto de uma investigação maior com pais de crianças de grupos escolares, sem serem informados sobre o intento do entrevistador. Já os membros das "classes intermediárias" eram recrutados a partir de uma rede de relações que Bicudo traçou por meio de "apresentações" e possuíam ciência dos objetivos de sua pesquisa.

Talvez a conclusão mais fundamental a que chega Bicudo e que, nesse sentido, se contrapõe às teses defendidas por seu orientador é a de que o preconceito racial persiste com a ascensão econômica e social. Contudo, diferentemente dos Estados Unidos e da África do Sul, aqui o preconceito se dá não tanto em relação à raça mas em relação à cor. O que está em jogo não são os ancestrais de um "branco neto de preto" ou dos "brasileiros brancos mestiços" (p. 152), mas aquilo que a visualidade informa. Menos relevante do que o conhecimento dos antecedentes raciais, o que importa é a beleza e a aparência. Nota-se assim a ascendência de Oracy Nogueira, que identificou um atuante preconceito de cor no Brasil em detrimento do preconceito de raça, como mostra Marcos Chor Maio na introdução ao livro. Apesar de Bicudo recortar sua análise através de classe, é a aparência que surge como categoria fundamental na "produção de desigualdades sociais". Como coloca uma mulata entrevistada, se ela fosse "branca", estaria menos preocupada com o "ponto de vista estético". Essa proeminência da aparência parece acompanhar, hoje, as classes populares do país, de modo que Bicudo chama atenção para o lugar crucial que possui a exterioridade para a cultura brasileira e para as interações sociais que lhe correspondem.

A centralidade que possui a aparência no trânsito dos entrevistados de Bicudo pelos diferentes espaços sociais da cidade está presente ao longo de todo o texto. Contudo, no momento de ela explicitar essa constatação, ela o faz de modo sutil e um tanto ambíguo, podendo confundir o leitor. Essa pouca clareza pode ser decorrente da suspeita de que suas conclusões poderiam entrar em choque com as teses de Pierson.

Entre nós, a cor apresenta o mesmo característico das classes sociais, no sentido de poder ser superada, constituindo, portanto, um dos fatores a se levar em conta na determinação do

status

social. As atitudes de consciência de cor do mulato, apesar de integrado no grupo dominante, seriam a manifestação do fenômeno semelhante àquele que se verifica em indivíduos que subiram de uma classe à outra (p. 123).

Para ser incluído pela sociedade envolvente é preciso "superar a cor", mas a cor é também um dos fatores determinantes do status social. Portanto, se a cor permanece determinando posição social, ela não pode ser "superada" somente por meio da "competência individual", que seria, por sua vez, objetificada através de uma ascensão econômica. É preciso que o indivíduo "branqueie" não apenas a sua personalidade social como a sua aparência, como Bicudo coloca mais claramente em um trecho anterior (p. 122). "Branquear" pode ser facilitado através da adoção de símbolos mais próprios ao gosto hegemônico branco e é potencializado pela cor indefinida da pele, de modo que, dessa perspectiva, ser mulato pode ser conveniente de um ponto de vista social, na medida em que é mais fácil para ele "passar por" branco.

A publicação da dissertação de Virgínia Leone Bicudo se coaduna assim com diferentes entradas que os estudos relativos à raça e à cor vêm utilizando, com o objetivo de, até certo ponto, descolonizar a noção de raça, evitando tomar a categoria como um pressuposto. O trabalho possui um importante viés reflexivo, revelado pela introdução que faz o organizador do volume, que desvenda dados da biografia da autora, alguns deles expostos acima. Como Bicudo mesma afirma, ela busca o curso de Ciências Sociais para compreender as "causas da dor" que lhe causaram tanto "sofrimento" nas situações em que vivenciou o preconceito (p. 31). Por outro lado, o cruzamento que a autora faz com diferentes marcadores sociais, como gênero e classe, se alinha com a atualidade das abordagens que apostam na interseccionalidade, em vez de elegerem um marcador único para recortar o grupo a ser investigado. Ao mesmo tempo, Bicudo indica o quão profícua pode ser a pesquisa empírica no âmbito de um grupo circunscrito, como a associação de negros que investigou. Ela também coloca em evidência a grande relevância que a estética, a aparência, os símbolos e a cultura material assumem nas negociações de identidades relativas ao negro e ao mulato, como trabalhos contemporâneos vêm tratando de evidenciar. Por fim, a relevância que ela atribui à ambiguidade, como pode ser notado no tratamento que ela dá ao "mulato", se harmoniza com as exigências de uma etnografia do detalhe que foge dos grandes modelos e das grandes explicações.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011
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