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Lutadora, pesquisadora: lugares, deslocamentos e desafios em uma prática investigativa

Fighter, researcher: places, movements and challenges in a research practice

Resumos

O presente trabalho relata aspectos de uma etnografia realizada em um dojo de caratê, cujo objetivo foi pesquisar a produção e as relações com dor e sofrimento corporal aliadas a afirmações de masculinidade. Não tratamos aqui dos resultados da pesquisa, mas do percurso, das questões que deram forma a ela, considerando uma especificidade: a responsável pelo trabalho de campo é carateca desse dojo e seu movimento de respeitada faixa preta para pesquisadora produziu novas formas de desafio naquele espaço. Problematizamos essa questão tentando demonstrar as dificuldades desse embate que combina um conflito de gênero com a conciliação possível da condição do/a pesquisador/a em relação ao campo do qual faz parte e no qual, inevitavelmente, se conflagra.

caratê; esporte e gênero; pertencimento


This work reports aspects of an ethnography carried out at a karate dojo. The aim of the investigation was to observe the production and the relationship between the pain and body suffering and the affirmation of masculinity. We do not discuss here the results of the research, but the issues involved in its construction, considering a specificity: the responsible for this field work is a fighter of that dojo, and her movement from a respected black belt karate fighter to a researcher produced new forms of challenges in that space. We problematize the question, trying to show the difficulties in the debate which combines a gender conflict with the probable conciliation between the condition of researcher and the field in which he/she is involved, and with which he/she will inevitably confront.

Karate; Sport and Gender; Relating


SEÇÃO TEMÁTICA

A CONSTRUÇÃO DOS CORPOS NO ESPORTE

Lutadora, pesquisadora: lugares, deslocamentos e desafios em uma prática investigativa

Fighter, researcher: places, movements and challenges in a research practice

Fabiana Cristina Turelli; Alexandre Fernandez Vaz

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

O presente trabalho relata aspectos de uma etnografia realizada em um dojo de caratê, cujo objetivo foi pesquisar a produção e as relações com dor e sofrimento corporal aliadas a afirmações de masculinidade. Não tratamos aqui dos resultados da pesquisa, mas do percurso, das questões que deram forma a ela, considerando uma especificidade: a responsável pelo trabalho de campo é carateca desse dojo e seu movimento de respeitada faixa preta para pesquisadora produziu novas formas de desafio naquele espaço. Problematizamos essa questão tentando demonstrar as dificuldades desse embate que combina um conflito de gênero com a conciliação possível da condição do/a pesquisador/a em relação ao campo do qual faz parte e no qual, inevitavelmente, se conflagra.

Palavras-chave: caratê; esporte e gênero; pertencimento.

ABSTRACT

This work reports aspects of an ethnography carried out at a karate dojo. The aim of the investigation was to observe the production and the relationship between the pain and body suffering and the affirmation of masculinity. We do not discuss here the results of the research, but the issues involved in its construction, considering a specificity: the responsible for this field work is a fighter of that dojo, and her movement from a respected black belt karate fighter to a researcher produced new forms of challenges in that space. We problematize the question, trying to show the difficulties in the debate which combines a gender conflict with the probable conciliation between the condition of researcher and the field in which he/she is involved, and with which he/she will inevitably confront.

Key Words: Karate; Sport and Gender; Relating.

Prólogo

Já sabemos que o vínculo do/a pesquisador/a com aquilo sobre o qual não apenas se debruça, mas se mistura, capta e se deixa captar, familiariza e estranha, não constitui qualquer tabu para a atividade de pesquisa, especialmente quando falamos do que se convencionou chamar de ciências humanas.1 1 Uma versão preliminar do trabalho apareceu nos anais da Reunião Anual da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), de 2007, sob o título Rituais, masculinidade e representações da dor em caratecas. A autora e o autor deste trabalho agradecem aos/às pareceristas anônimos/as e ao Conselho Editorial da Revista Estudos Feministas pelas sugestões apresentadas à primeira versão do artigo O recorte temático, a delimitação do que será pesquisado, as opções metodológicas, o caráter histórico dos instrumentos de pesquisa - sejam eles "físicos" ou conceituais -, nos fazem lembrar da impossibilidade de uma relação de isenção, sem falar da história do/da próprio/a pesquisador/a antes e durante a realização da investigação.

O movimento de aproximação e distanciamento é parte do ofício de quem pesquisa, e se não é possível - e tampouco desejável - pretender uma imunidade em relação ao objeto e ao movimento em direção a ele, é preciso, no entanto, que a questão seja trazida para o centro mesmo da reflexão investigativa. O problema ganha complexidade quando a relação é, por alguma razão, orgânica, visceral, sugerindo que o/a pesquisador/a não apenas considere essa sua situação, mas que a problematize, uma vez que se coloca como reveladora das condições de possibilidade da investigação e do desdobramento da coleta e análise de dados, da reflexão sobre eles, bem como da produção de resultados e conclusões.

Deparamo-nos com uma problemática vinculada a essas questões ao desenvolvermos uma pesquisa sobre a expressão de masculinidade e de formas de produção e relação com a dor em praticantes de uma luta2 2 A pesquisa foi realizada em um dojo em bairro de Florianópolis, Santa Catarina. Os dados foram coletados durante três meses, por meio de observações de 13 aulas (nove de adultos e quatro de crianças, as primeiras com duração aproximada de duas horas, as últimas em torno da metade desse tempo) e de uma competição, além de três entrevistas narrativas. Todas as aulas foram anotadas em caderno de campo, e as entrevistas foram gravadas. Os resultados originalmente compuseram parte de uma dissertação de mestrado (Fabiana Cristina TURELLI, 2008). que é também esporte3 3 O esporte pode ser entendido como um conjunto de técnicas corporais (Marcel MAUSS, 1974) que organiza o corpo e suas expressões no sentido de simultaneamente restringi-lo em sua espontaneidade e potencializá-lo tecnicamente. Autores já clássicos, como Norbert ELIAS e Eric DUNNING, 1986; e Peter GAY, 1993, mostram aspectos da constituição sócio-histórica do esporte. Nesse campo, repleto de rituais, sejam eles para homologar a ascendência na hierarquia de grupos ou simplesmente uma etapa a ser superada para passar a lhes pertencer, é o corpo, ao ser treinado, que torna possível tal experiência. Ele experimenta e vai se moldando: torna-se ágil, flexível ou rígido, esguio ou envolto por volumosos músculos, de ombros largos, com orelhas ou pés levemente deformados, como é frequente no caso das lutas. Essas, por sua vez, possuem uma história que é anterior ao esporte, remetendo a outros valores e normas não necessariamente vinculados à extrema racionalização e universalização que são caras ao modelo esportivo. Seu processo de desenvolvimento mostra, no entanto, uma aproximação com o modelo esportivo, na forma da institucionalização por meio de órgãos federativos, unificação e universalização de regras, organização de campeonatos etc. , o caratê.4 4 Caratê-dô significa, literalmente, "caminho das mãos vazias" e, conforme o discurso nativo, "tem sua origem numa região que compreende os mosteiros chineses, indianos, japoneses e ainda outros países da Ásia e Oriente Médio. Porém, foi no Japão, mais precisamente em Okinawa, onde se elaborou a luta com as mãos livres, sem armas" (Ricardo Walter LAUTERT et al., 2005, p. 138).

Isso aconteceu porque o trabalho de campo foi realizado por uma mulher, única praticante da modalidade no dojo pesquisado. De companheira respeitada pela faixa preta, pelo empenho nos treinamentos e resultados nas competições, a ênfase na nova condição, de pesquisadora, talvez tenha feito com que se lhe tenha atribuído, no contexto das observações e entrevistas, novas formas de interação ao ver ressignificados os atributos que lhe conferiam respeito.5 5 A posição da pesquisadora é de alguém que conhece o campo, que se posiciona perante ele, mas sem dele sair. O enfrentamento é outro, então, daquele realizado por alguém que a ele chega vindo de fora, como é o caso exemplar de Fernanda NORONHA, 2007, cuja posição de pesquisadora no universo do hip-hop exigiu um movimento de aproximação a vencer sucessivas barreiras de gênero, geracionais, de camada social, entre tantos outras. Como pesquisadora, alguém que tomava nota das práticas e dos discursos de um grupo de homens em situação de exacerbação da masculinidade (violência, resistência à dor, atribuição de características feminilizantes aos que pareciam fracos etc.), ela reposicionou-se, configurando-se como um novo tipo de adversário a ser desafiado justamente por sua nova posição no dojo, temporariamente não mais dentro dele, mas à margem, e nem por isso menos presente nos embates simbólicos que ali se desenrolavam.

Não tratamos neste texto propriamente dos resultados da investigação. Apresentamos e discutimos aspectos do desenvolvimento do trabalho de campo, com ênfase na feitura da coleta dos dados e da consecução dos resultados, alicerces e andaimes que constituíram o processo de investigação. Interessa-nos, sobretudo, tratar das alterações que a constituição do campo investigado foi sofrendo no transcorrer do processo, uma vez posto como tal e em contato com uma pesquisadora.

A pesquisa contou com a participação de um pesquisador - com biografia esportiva, mas sem qualquer vínculo anterior com o campo investigado - que, junto com a pesquisadora, analisou, interpretou e relatou o material. Essa combinação é uma especificidade que não pode ser desprezada, especialmente porque foi a pesquisadora, como parte do campo de investigação, que se tornou combatente dos dilemas - e no gozo das delícias - desse movimento em relação ao objeto, por vezes muito próximo de nós, sobre os quais Roberto Da Matta, Gilberto Velho e Carmen Rial,6 6 Roberto DA MATTA, 1981; Carmen Silvia de Moraes RIAL, 2003; e Gilberto VELHO, 1989. entre tantos, já problematizaram. O texto é falado, com exceção dos extratos do caderno de campo, na terceira pessoa porque ambos, pesquisadora e pesquisador, compartilharam, ainda que com proximidades e distanciamentos distintos, da experiência singular de refletir sobre o processo de desenvolvimento desta pesquisa. Enquanto a pesquisadora enfrentou o campo que já era seu, ainda que na condição de lutadora, o pesquisador ocupou-se, além de compartilhamento da análise dos dados, de, surpreso com o processo que ali se desenrolava, impulsionar esse meta-relato da pesquisa, esse discurso sobre ela em sua feitura.

Nas próximas páginas, apresentamos algo dessa experiência, voltando nosso olhar principalmente para questões vinculadas às mudanças por parte dos pesquisados, reação ao fato de estarem sendo, sabida e deliberadamente, observados. Para tanto, dividimos o texto em quatro partes entrelaçadas, e que às vezes retomam questões já anteriormente postas, e algumas considerações finais. Em vários momentos apresentamos extratos dos diários e das entrevistas de forma que os/as leitores/as possam acompanhar um pouco do ritmo, da dicção e da textura do contato direto com o campo pesquisado. Na primeira parte relatamos algo sobre as condições de pertencimento da pesquisadora ao campo investigado; na segunda descrevemos brevemente o dojo; na terceira tratamos das reações de incômodo por parte dos investigados, uma escalada de agressividade e chauvinismo - também expressão de defesa e demarcação de território - correspondendo ao novo tipo de desafio colocado à pesquisadora, uma vez quase que "suspensa" sua condição de lutadora. Esse processo ganha nova face que expomos na quarta parte do texto, quando destacamos a posição da mulher segundo as narrativas dos lutadores. Nas considerações finais procuramos rever a experiência de pesquisa e relativizar a narrativa que fizemos, ao conjeturar aspectos que são da legitimidade do próprio campo, de suas maneiras de ser, independentemente de serem ou não pesquisados. Isso inclui a volta da lutadora ao dojo, suspendendo, dessa vez, sua condição de pesquisadora.

A pesquisadora e o pertencimento ao caratê

"Ao esporte pertence não apenas o impulso à violência, mas também a suportá-la e tolerá-la"

Theodor W. Adorno

A relação da pesquisadora com o caratê teve início antes de seu ingresso no curso de licenciatura em Educação Física - muito provavelmente isso foi o que a levou, segundo sua própria interpretação memorialística, a optar por essa carreira. Era ainda criança quando iniciou na prática da modalidade por vontade do pai, que nela projetara uma expectativa que não lhe havia sido possível cumprir e que não pudera ter prosseguimento em um filho homem que não teve.

Ser chamada de "menininha" a incomodava e acabou por incorporar muito dos valores hegemônicos da academia de caratê que frequentava numa pequena cidade do oeste de Santa Catarina. Com a conquista das faixas de graduação que conferem posição hierárquica no caratê, os desafios promovidos em aula - na forma de episódios de enfrentamento corporal em exercícios ou lutas simuladas -, fossem os dos colegas ou os do sensei,7 7 Trata-se do professor e treinador, ou, dito de outra forma, do Mestre, o que "nasceu antes". Sua autoridade no dojo é absoluta, compõe a dinâmica do caratê e a submissão a ela por parte dos/as lutadores/as. Não será casual, portanto, que os registros etnográficos possam por ele ser ocasionalmente lidos, como será visto ao longo deste texto. Ele desafia os discípulos a realizarem tarefas ou darem mostras de bravura sobre o dojo, mas não é desafiado. continuavam e eram cada vez mais difíceis. No entanto, aos poucos, a dor "diminuía", ao se tornar resistente a ela e não se furtar em exibir, com orgulho, alguns hematomas. Convivência com a dor, privações alimentares para que não houvesse ganho de peso corporal, mudanças bruscas desse,8 8 O caratê competitivo acontece respeitando as idades dos competidores (infantil, até 11 anos; infantojuvenil, até 14 anos; juvenil, até 18 anos; júnior, até 21 anos; e adulto), as graduações ou faixas deles (categoria B: faixas branca, amarela, laranja, vermelha, azul, verde e roxa; categoria A: faixas marrom e preta) e ainda as divisões dentro dessas categorias (já definidas por idade e graduação), estabelecidas por meio do peso corporal - exceto na infantil e na infantojuvenil, em que a divisão se dá por meio da altura. Desse modo, para que alguém possa lutar na categoria adulto, por exemplo, deve-se observar que seja maior de 21 anos; sendo faixa preta, disputa somente entre outros faixas preta e marrom, e, tendo 83 kg, pertence à subcategoria 80 a 85 kg (subcategoria masculina). Todas essas divisões a que devem estar atentos os atletas e treinadores demonstram a tentativa de promover a igualdade formal de chances entre os competidores. As mudanças bruscas de peso ocorrem na maior parte das lutas esportivas porque os atletas precisam lutar no limite máximo que sua categoria permite, fazendo com que nos dias anteriores ao combate se usem vários artifícios que fazem às vezes com se percam vários quilos para o momento da pesagem - uma parte deles é recuperada até o momento da luta. obediência às regras do caratê e ao sensei, vergonha por não alcançar o que era exigido e busca pela honra de lutar e não cair - ou cair lutando -, bem como certo desprezo pelos que não a "mereciam" eram experiências cotidianamente vividas como desejáveis.

Os pugilistas têm no corpo o instrumento maior e mais valioso,9 9 Loïc WACQUANT, 2002. e isso não parece ser diferente entre os caratecas. Mas é preciso conviver com o impulso de torná-lo objeto nos treinamentos, uma vez que este consiste, em grande medida, na manipulação daquele, em outorgar-lhe uma carga de trabalho que vise a sua adaptação morfofisiológica progressiva às demandas do esforço contínuo. O parâmetro do treinamento esportivo acaba sendo o do mundo masculino, em especial nas lutas, uma vez que, como reza a cultura do dojo, mulher, quando "luta bem", "luta como homem".10 10 Não se encontra aqui uma divisão dos espaços e dos exercícios generificada, diferentemente do que acontece com frequência em academias de ginástica e musculação, conforme mostram os estudos de César SABINO, 2000, 2007; e Giselle TORRI, Jaison José BASSANI e Alexandre Fernandez VAZ, 2007.

Desse universo, ao qual pertencem a rotina das viagens, os trotes e outros rituais de iniciação e pertencimento, o treinamento corporal exacerbado, os odores suarentos dos quimonos - conjunto de calça e casaco de grosso algodão usado nos treinos e nas lutas - e a presença apenas eventual de mulheres, faz parte a pesquisadora.

Sua memória relata que, chegando pela primeira vez ao lugar onde estaria o dojo investigado, três anos antes do início da pesquisa, quando se mudou para a capital de Santa Catarina, Florianópolis, logo soube onde se encontrava: podia ouvir os kiais, os costumeiros gritos que acompanham e procuram motivar os golpes; havia um calor concentrado, lembrando o ambiente vaporizado de uma sauna; o odor de suor também era indicativo - os quimonos, que não são lavados entre cada aula, e sim a cada semana ou depois de determinado número de sessões de treinamento, apresentavam seu característico mau cheiro. Havia também as luvas de couro, impregnadas por um odor muito semelhante ao exalado pelos pés suados, que, quando vestidas ou amontoadas, parecem por vezes tornar-se mais fétidas. Os atletas costumam dizer que as luvas assim, malcheirosas, são eficientes para socar o nariz dos adversários. Ela soube que estava no lugar certo.

A pesquisadora foi vestir seu quimono, e, quando saiu do vestiário (masculino, porque não havia feminino - as meninas costumavam trocar-se antes dos meninos, ou vice-versa), várias pessoas já haviam chegado, a maioria homens. Ela pôde notá-las algo surpresas, visto que, além dela e do sensei, havia somente um homem faixa preta no dojo. Todos a olhavam, inclusive as três meninas que também participavam dos treinos, mas ninguém lhe dirigiu a palavra.

Sensei chamou todos e todas a se posicionarem para a saudação inicial; ela entrou no tatame e se dirigiu, devagar, para o início da fila, como convém ao mais graduado. A saudação foi feita, o treino desenvolveu-se e a pesquisadora foi observada como que para se ter certeza de que se tratava de uma verdadeira faixa preta. Teve prosseguimento, assim, uma trajetória que exigiu muita disciplina - pontualidade, dedicação aos treinamentos, submissão às orientações, controle de peso, desdém pelas dores resultantes dos exercícios etc. - e que não a privou de contatos pouco simpáticos com as outras atletas (que precisavam ser caratecas "duronas" com ela) nem de temer faltar aos treinamentos, especialmente àqueles considerados fortes, puxados, quando a intensidade e o volume dos exercícios são maiores, ou mesmo à alguma sessão posterior a um deles, algo que poderia ser vergonhoso: ficar com o corpo dolorido por causa desses treinos indicaria fraqueza; a ausência, por não ter se sentido bem com algum acontecimento ou constrangimento, denotaria que não se é forte o suficiente para "aguentar o tranco".

Durante esse período muitas pessoas iniciaram a prática do caratê naquele lugar, algumas delas desistiram, um pequeno grupo permaneceu. Como carateca, a pesquisadora estava envolvida com os homens, realizando os treinamentos normalmente, quer dizer, sentia-se apenas uma colega de treino, tanto que a maioria deles saudavam-na com o "toque" - cumprimento em que as luvas de um/a tocam as do/a outro/a, frente a frente, com os braços estendidos -, igual ao destinado aos demais, apenas alguns a beijavam na face. Respeitavam-na pela graduação, e poucas vezes escutou algum gracejo ou pilhéria por sua condição de mulher.

Contudo, quando assumiu o papel de pesquisadora, deixando de vestir o quimono e se postando temporariamente fora do treino, os fatos encontraram nova dinâmica. Colocou-se um produtivo esquecimento de que era também carateca, afastada apenas por três meses, e vários modificaram seus comportamentos. A pesquisadora chegou a pensar que teriam passado a enxergá-la como uma "admiradora de ocasião", expressão utilizada por Wacquant11 11 WACQUANT, 2002. para classificar as mulheres que vão ao gym, locais de treinamento do pugilismo, com a intenção de se aproximarem da posição de algum lutador de sucesso. Como se verá, tratava-se, no entanto, de novas formas de desafio que encontrava a carateca e pesquisadora nessa nova condição.

Esse afastamento das sessões não encontrou na dimensão espacial o seu aspecto mais importante. Fundamental é que tal distanciamento se deu muito mais da pesquisadora do seu campo, tão conhecido. Essa dimensão de proximidade, de ser parte da composição mesma do objeto investigado, não ficou alheia à pesquisa, e nem seria possível que isso acontecesse; ao contrário, ela foi combinada com o exercício de distanciamento que permitiu que tanto a moldura quanto a perspectiva do campo investigado encontrassem, por parte da pesquisadora e do pesquisador, um ângulo antes não considerado.

Breve descrição do dojo

O dojo de caratê que constituiu o campo estudado começou a funcionar em 6 de junho de 1998, em parceria com um clube social de um bairro de Florianópolis, que cedeu parte de seu espaço para os treinamentos. O professor foi contratado pelo clube e as aulas, oferecidas gratuitamente. Supõe-se que o clube desejava alcançar visibilidade com a formação de atletas e a conquista de bons resultados esportivos.

O salão retangular tem cerca de 30 por 15 metros. Nesse local também acontecem bailes em algumas tardes e noites. Possui na frente, em um dos lados, a entrada, com uma bilheteria, e, do outro lado, a saída. Há uma espécie de varanda interna que circunda toda a pista e forma um mezanino, de onde se pode observar as pessoas em baixo. Em tal espaço estão dispostas algumas mesas, tendo outras ao redor da pista no térreo. No fundo do salão encontram-se, na parte superior, um bar com algumas mesas e, para além dele, uma cozinha e um escritório.

Exatamente sob o bar, cozinha e escritório, estão os banheiros do clube e o dojo de caratê. Esses, porém, não são no mesmo nível da pista e da rua, mas, sim, mais abaixo; é preciso descer 14 degraus para que se tenha acesso aos banheiros e ao dojo, que fica após esses banheiros. O dojo tem banheiro e vestiário próprios, ambos masculinos; um vestiário consideravelmente menor (pelo menos sete vezes) foi improvisado para as meninas; não há banheiro feminino - quando os banheiros do clube estão abertos, também podem ser utilizados. Também foi reservada uma parte da área do local de treinamento para escritório, ficando aproximadamente 11 por 8 metros parcialmente (considerando os recortes) livres. Desse espaço, 8 por 6 metros, aproximadamente, são ocupados por tatames confeccionados pelos primeiros alunos, a partir de retalhos de borracha, alguns pedaços de madeira e lona preta.

É sobre o tatame que os treinamentos ocorrem. Em suas laterais estão dispostos um saco de pancada, um makiwara,12 12 Pedaço de madeira com alguma flexibilidade, de 1 m por 20 cm de largura e entre 2,5 e 3 cm de espessura, posto verticalmente. Possui em seus 20 cm superiores uma fina camada de esponja, coberta por lona preta na qual se deve socar. É fixado a 10 cm do pilar que ocupa, por hastes de ferro, e a 50 cm de distância do chão. um bebedouro e um pequeno armário de metal no qual são guardados os equipamentos de prática, como luvas, caneleiras, protetores de tórax e de cabeça, além de uma pequena caixa de primeiros socorros. Alguns quadros com fotos estão espalhados, e, na estrutura que delimita a área destinada a ser escritório, estão dispostos vários cartazes anunciando competições (mesmo que a data já tenha passado), ilustrados por fotos ou apenas por desenhos. Há ainda um pequeno mural, próximo à entrada, no qual são pendurados avisos gerais, resultados de campeonatos e de exames de faixas e, às vezes, algumas mensagens que não enfatizam apenas o lado competitivo do caratê, mas um pouco de sua tradição como luta.

No fundo da academia há um sofá, uma mesa redonda com um número variável de cadeiras, um pódio simples, de madeira, e uma prateleira com troféus. Esses troféus também podem ser vistos em outra estante, bem à frente do tatame, junto ao quadro com foto do mestre Hironori Otsuka, tido como o fundador do estilo japonês do caratê, saudado em todas as aulas. Nas laterais da estante frontal existem, acoplados à parede, dois circuladores de ar, um em cada lateral. Abaixo dela há pequenos furos para facilitar a ventilação - o que não ajuda muito, pois ela é bastante precária. A cada chuva, os vestiários e a área próxima do escritório ficam bastante molhados, quase alagados.

Com relação aos treinamentos, durante o primeiro ano, o sensei era o único professor. Naquele período, os treinos eram realizados no salão onde hoje ocorrem os bailes, porque, segundo ele, foi uma etapa que funcionava como teste: se apresentasse resultados positivos, um dojo, de fato, seria construído. Sensei ministrava aulas, pela manhã e à tarde, a crianças e adolescentes. Passada essa primeira etapa, foi construído o dojo existente até hoje e, em 1999, as aulas começaram a acontecer também à noite. Um dos alunos começou a auxiliar o sensei para, posteriormente, em 2000, assumir a responsabilidade temporária pelo dojo, visto que o mestre viajara aos Estados Unidos, retornando, pouco mais de um ano depois, para reassumir a liderança. São aceitas no clube crianças a partir de seis anos, não havendo nenhum limite para a idade adulta. Além do sensei, que ministra aulas à noite para as turmas infantil (6 a 14 anos), das 19 às 20 horas, e adulto, das 20 às 21 horas e 30 min., dois alunos ocupam-se cada qual de uma turma infantil, pela manhã e à tarde.

Toda pessoa que ingressa no dojo é estimulada a participar de competições e, por isso, é dito com orgulho que da academia já saíram campeões de Jogos Abertos de Santa Catarina (Jasc),13 13 Competição poliesportiva mais importante do calendário esportivo de Santa Catarina, realizada entre equipes representativas dos municípios, com a participação da maioria deles. Os Joguinhos Abertos são a versão infantojuvenil do evento. assim como de Joguinhos Abertos de Santa Catarina, pan-americanos, campeonatos brasileiros, campeonatos catarinenses, além de inúmeros torneios menores. Em 2004, 12 atletas participaram do campeonato Pan-Americano Interestilos na Argentina; o dojo já cedeu vários atletas para as seleções catarinense e brasileira de caratê e ainda mantém alguns nessas equipes.

O incômodo e as reações a ele

A prática da pesquisa de campo nos fez viver experiências distintas daquelas que são comuns no cotidiano dos treinamentos, como as humilhações verbais - destinadas aos homens, em geral referindo-se à suposta falta de virilidade do outro, atribuindo-se epítetos femininos ou homossexuais significando menoridade - e o "pagamento" de tarefas atribuídas por conta de alguma insuficiência na performance, tais como série de exercícios rigorosos a mais, realizadas isoladamente e sob o olhar de todos/as.

Em um momento, a pesquisadora anotou o seguinte:

Sempre imaginei que a presença de um pesquisador alteraria a dinâmica de ambientes ocupados por pessoas e por isso algumas vezes tentei me fazer de "desligada", de que não prestava atenção (imaginando Carmen Rial como intrusa no Quick, na França),14 14 Referimonos ao trabalho de RIAL, 2003. e tentei captar coisas que talvez não devesse [...]. Provavelmente por isso minha aflição de que vissem as anotações deste dia e de alguns outros - porque sensei pode ver tudo que anoto, é meu sensei! Tenho de permitir. Na verdade, nem preciso permitir, ele simplesmente pode ver! [...] Percebi no decorrer das observações que o comportamento de certos alunos e do professor sofreu grandes alterações comigo. Podia identificar comportamentos machistas antes, mas agora vejo que é diferente, o simples posicionamento corporal dos observados é outro. Os "indícios" de uma virilidade exacerbada estão gritantes. Têm um quê de agressivo, de impositivo... O fato de trocarem de roupa, colocarem o quimono ao lado do tatame e não no vestiário vem de uma maneira algo ofensiva [já que exibem, com pouco pudor, seus corpos masculinos, como se só entre eles estivessem]. Diria que é uma espécie de violência também, mesmo que não reconheçam seus atos dessa forma.15 15 Diário de campo, 17 de agosto de 2005.

O desagrado pouco a pouco foi se manifestando em escalada sexista. Antes disso, porém, os comentários revelavam apenas certo desgosto que foi demarcando as relações que se estabeleciam com a pesquisadora no dojo, em especial por parte do sensei, cuja autoridade irrestrita talvez estivesse sendo sentida como ameaçada.

Alguns entraram para alongar no tatame, e outros, ao meu redor, conversavam. Antônio 16 16 Todos os nomes dos pesquisados foram, evidentemente, modificados para garantir o sigilo e a privacidade dos informantes. Devemos a eles um caloroso agradecimento pela disponibilidade em serem pesquisados. dirigiu-se a mim: "Ô, é mau anotar tudo que falamos...". 17 17 Diário de campo, 6 de julho de 2005.

Sensei entrou no dojo e trazia consigo um pano de chão que usou para secar uma parte, até então molhada, do tatame. Antes disso, e antes de me cumprimentar, veio para perto de mim deixar seu sapato e disse que sou bem "chatinha" com as observações: "Anota: 'professor entra na porta', 'alunos se mexem', 'professor respira'". E complementou: "Professor disse que eu sou chata, pode anotar aí!".18 18 Diário de campo, 10 de agosto de 2005, em aula infantil.

A pesquisadora passa de colega, combatente e amiga, à intrusa. No início, davam a entender que a preferiam como colega de treino por meio de piadas, rindo; depois sensei foi mais direto, como fica claro na citação acima. As anotações constantes e certamente sentidas como invasivas (o que de fato eram), conjugadas com a condição da pesquisadora - mulher fora do dojo -, estruturam a explosiva combinação de chauvinismo e violência verbal.

Fátima Cecchetto19 19 Fátima Regina CECCHETTO, 2004. destaca que as masculinidades (no plural) se referem a configurações de práticas, valores e representações que surgem, desaparecem, voltam, enfim há uma dinâmica muito própria em cada contexto. No campo estudado essas expressões estavam envolvidas em um sentimento coletivo partilhado entre iguais (homens e lutadores) especialmente destinado à impertinência de uma mulher que pretendia conhecer (e, portanto, de certa forma, dominar) as dinâmicas que ali se davam.

[...] [Sensei] Dirigiu-se a mim "Fabiana, depois vou ler tudo isso aí. Se tiver falando mal de mim, você vai ver!".20 20 Diário de campo, 6 de julho de 2005, em aula infantil.

Sensei veio até mim e pediu minhas anotações. Sentou-se ao meu lado e leu tudo. Depois de algum tempo disse [em tom de anedota]: "Eu vou ser processado!"; respondi com um sorriso, apenas. Devolveu-me as anotações e de onde estava, no sofá, fora do tatame, deu comandos aos alunos.21 21 Diário de campo, 6 de julho de 2005.

Foi interessante notar neste dia, já que inicialmente o dojo estava com poucos praticantes, o posicionamento corporal dos alunos. Mesmo fora de combate adotam uma postura que procura denotar superioridade, seus corpos parecem estar sempre querendo impor algo, a própria presença talvez; a maneira como se posicionam indica alguma coisa nessa linha. [...] Sensei saiu do tatame e se sentou ao meu lado. Ele disse que devo estar fazendo uma bíblia e que queria ver as anotações daquela aula, naquele momento. [...] ele pegou meu material. Continuei falando bastante e expliquei que não iria pôr tudo de todas as observações no trabalho, que o material servirá para análise e coisas assim. Ele, enquanto me ouvia, lia. [...] [Ele] leu apenas a página na qual eu escrevia [...] e me devolveu, sem fazer qualquer comentário.22 22 Diário de campo, 8 de agosto de 2005.

Não há dúvidas sobre a posição hierárquica do sensei, reconhecida por todos a lhe devotar obediência. A situação que se colocava, a pesquisadora literalmente na borda do dojo, fez com que algo não estivesse totalmente sob o controle dele e sob os ditames da organização habitual. Além disso, parecia haver certo exibicionismo, dado pela presença constante de alguém - mulher - que, na "plateia", ou seja, em situação geralmente associada apenas às competições em que a exibição de performance é acompanhada por outras pessoas, assistia aos treinamentos, e isso parece ter dado lugar a uma crescente desconfiança e mal-estar. De observadora, agora a pesquisadora tornava-se observada e testada pelas reações que poderia ter aos comentários grosseiros. Não é demais comparar aquela situação ao ritual do "corredor de faixa", empregado como batismo ou castigo, prática na qual se reúne o grande grupo para, perfilado em duas colunas, açoitar um escolhido com as faixas que enlaçam a cintura e prendem os quimonos.23 23 Está fora de dúvidas a importância dos rituais para o pertencimento a grupos, vários deles vinculados à dor e ao sofrimento corporal. Sobre o tema, ver Martine SEGALEN, 2002.

Isso tudo ganha contornos ainda mais definidos quando lembramos que a condição de carateca da pesquisadora estava nesse momento como que suspensa. Mas esse relevo é um tanto maior porque a condição de mulher é, naquele ambiente masculino, proeminente. Isso nos levou a pensar novas formas de desafio enfrentadas pela pesquisadora.

Outra forma de desafio

No dojo, local de formação de guerreiros, homens já não precisam de força, habilidade e coragem para viver, mas as cultivam como recursos simbólicos a confirmar um modelo de masculinidade continuamente celebrado pela dor e sua superação, como frequentemente acontece com os lutadores.24 24 Édison Luis GASTALDO, 1995; e WACQUANT, 2002. O dojo também é espaço de formação de guerreiras, mas a posição do sensei relativiza esse lugar, entendendo-o como uma concessão do mundo masculino:

[...] eu acho que o caratê proporciona mais segurança às mulheres, não é violento, depende de como ele é usado, não é?! Para as mulheres eu acho que ele é fundamental. Também para aliviar o stress do dia-a-dia da mulher. [...] Relacionado ao porte físico, claro, eu acho difícil ela segurar firme, agüentar uma pancada bem forte, que nem o homem, mas eu acho que pegando o caratê como ele é hoje, que procura evitar muito contato, com certeza, as mulheres podem ir pra Jogos Abertos com ele.25 25 Entrevista 2, 29 de agosto de 2005, p. 5.

A fala acima demarca um novo tipo de desafio ao qual a pesquisadora foi submetida, já que, de faixa preta respeitada pela capacidade de combate - mesmo sendo mulher -, passa a ser, naquele momento, pesquisadora. O que se pôde observar, não sem certa surpresa, foi um novo conjunto de desafios e provocações dirigido a ela, não mais como lutadora.

Em toda a experiência da pesquisadora na condição de carateca, foi constante que os homens, independentemente de estarem ou não eroticamente interessados em uma mulher, precisassem dar provas ao grupo de sua potência testosterônica. Foi possível observar, por exemplo, uma política de cooperação entre eles no sentido, sempre, da busca e da conquista de mulheres nos momentos de lazer entre os treinos e as competições. Observamos que a recorrência dos relatos de conquistas e dos planos e desafios para as próximas investidas nas mulheres se tornava aparentemente muito maior na medida em que o deslocamento do lugar social para a condição de pesquisadora tornava-se central. É como se as barreiras que antes se interpunham por conta do respeito à condição de carateca faixa preta tivessem sido postas entre parênteses.

Chegaram cinco alunos do horário dos adultos, e o professor falou que iria trocar de roupa. Ficou de cueca ao lado do tatame e exclamou: "Já perderam o respeito com a Fabiana!". Foi entrando no tatame, conversando com os alunos e, de repente, como quem quer mostrar que é corajoso, virou para mim e disse "Anota aí: 'sensei sem cueca [...]', vou mostrar a bunda pra ti!", e fez isso realmente. Simplesmente se posicionou de costas e baixou as calças. Fiquei bastante constrangida, mas sorri como se nada fosse. Sensei agiu normalmente, como se não tivesse feito coisa alguma, afinal esse tipo de ato é comum nas narrativas de júbilo. Percebi Vítor um pouco constrangido também, mas esboçando um sorriso, e os demais agindo normalmente - na verdade, acho que a maioria não viu. [...] Permaneci por algum tempo sem coragem de olhar para o tatame - apenas ouvia e anotava algumas coisas [...]. Sei que já não gostam muito, principalmente sensei, de minha presença como pesquisadora e sei ainda que seu ato nem significou tanto para ele. Porém, me senti totalmente deslocada, desestabilizada, acuada... Tive de me concentrar no sentido de me obrigar a cumprir a tarefa, para voltar a observar a aula, como nos outros dias.26 26 Diário de campo, 17 de agosto de 2005.

Assim como as memórias das lutas bem-sucedidas ou de experiências de bravura trazem status e reconhecimento mútuo, também a pilhagem de mulheres, frequentemente em território inimigo - nas competições fora da cidade, em outros dojos -, surge como veículo de satisfação coletiva e mérito:

[...] Logo pararam novamente e passaram a conversar sobre possibilidades de festas para a sexta-feira e quais meninas podiam chamar, os "esquemas" que daria para fazer. [...] Vítor disse que estava a fim de rir no dia e que tinha que rolar uma festinha, "Qual vai ser???", apontando para Pedro. "Tu já estás armando uma, não é?! [...] Não quer é meter a galera no meio [...]". Pedro respondeu que não e que a gasolina está cara para ir buscar mulher nos Ingleses [praia do norte da Ilha de Santa Catarina, distante cerca de quarenta quilômetros do clube]. [...] Paulo ficou junto a Vítor, os dois sentados. Falavam que o negócio era começar ligar pra "mulherada".27 27 Diário de campo, 5 de agosto de 2005.

[...] Em tom de brincadeira, [sensei] estendeu o braço e parabenizou Paulo por ter se formado e depois repetiu o gesto com Pedro, dizendo "Parabéns para ti também, que faltou a aula passada pra comer a professora!".28 28 Diário de campo, 22 de agosto de 2005.

Não há como deixar de admitir que a pesquisadora naturalizou essas investidas, colocando-se na posição de agredida, sem encontrar meios de reagir, ao contrário do que fizera em sua condição de lutadora. Isso se mostrou com muita clareza na continuação do episódio protagonizado pela troca de roupas do sensei, quando, temerosa, anotou:

[...] Talvez por medo de revelar minha... fraqueza, digamos, caso sensei resolvesse ver minhas anotações e também por ele poder verificar o que anotava, e ainda por poder descobrir que não me sentia à vontade com o que tinha visto [o episódio em que baixou as calças]. [...] Sensei terminou de falar, olhou para mim e disse "Não é, Fabiana?!". Fiz sinal de positivo com o polegar. Ele respondeu "Nem adianta sorrir pra mim! Tens é que arrumar uma amiga pra mim! Desde o início da tua faculdade que eu falo e nada", continuei apenas sorrindo. [Vários fazem comentários e gestos obscenos de conotação fálica].29 29 Diário de campo, 17 de agosto de 2005.

Considerações finais

Sabemos que a pesquisa vai se configurando ao longo do processo de seu desenvolvimento, em especial em casos como esse de uma intervenção etnográfica que exigia a operação de um distanciamento possível, ainda que difícil, em relação àquilo que estava tão próximo. De alguma maneira, isso foi logrado pela suspensão temporária das atividades no dojo, pelo abandono, por algum tempo, das práticas esportivas de luta que conferiam um lugar estável à pesquisadora. Afirmamos isso muito mais no sentido simbólico do afastamento do que propriamente corporal, uma vez que a pesquisadora seguia no espaço das práticas, mas com o seu lugar, antes razoavelmente delimitado, apresentando mais instabilidade, desafiada que foi e seguiu sendo nessa nova posição. Mas exatamente onde residia a força do trabalho, na necessidade de certo distanciamento em relação a um objeto que era excessivamente conhecido, localizou-se também certa fragilidade da investigação. Ao afastar-se da prática do caratê, é possível que a pesquisadora tenha feito com que perdêssemos algo. Por outro lado, sem esse afastamento, é provável que a relação com os sujeitos do campo não se tivesse alterado e que, portanto, o objeto não tivesse se deixado ver da forma como foi, em uma de suas faces algo até então encoberto pelo véu da proximidade. Lembremos que o véu encobre, mas também suaviza o olhar mostrando formas que a falta de barreiras e o excesso de luz talvez não sejam capazes de salientar.

Pela suspensão do interdito que era a presença da lutadora, as falas se tornaram muito menos contidas, recalcadas e encobridoras, deixando que o espaço catártico se manifestasse com mais vigor. Por outro lado, a pesquisadora, embora nesse estado de suspensão de sua condição de lutadora, não deixou, em última análise, de fazer parte do grupo e de seus rituais, uma vez que permaneceu nesse espaço conhecido e sob a autoridade do sensei. Os desafios passaram a ser de outra ordem, não mais exatamente aqueles que eram feitos nos treinamentos e que legitimavam seu pertencimento, mas na forma de provocações diversas que substituíam os primeiros.

Precisamos destacar que muito do que foi dito e que aparece como um conjunto de falas e outros fazeres que transitam na fronteira da violência simbólica deve ser entendido também como parte de um campo que apresenta um elevado grau de tolerância a esse tipo de práticas. Naquele espaço aceita-se muito do que não seria tolerado fora dali. Se isso diz algo sobre o dojo, sua cultura e, interna a ela, sua função catártica, também permite ver algo sobre a sociedade mais ampla, que conserva espaços de liberação de anseios que, de forma perversa (pelo verso), não encontram gratificação em outros momentos, como sugerem, entre outros, Elias e Dunning.30 30 ELIAS e DUNNING, 1986. Nesse sentido, as manifestações contra a pesquisadora e suas anotações foram também de defesa (algo legítima!) de um espaço que estava sendo violado, mesmo com o consentimento prévio. Elas ganharam um matiz próprio pelo combate das afirmações e das expectativas de gênero.

Toda pesquisa é também um ato de certa violência em relação ao objeto pesquisado, na medida em que o circunscreve em limites que são destacados em detrimento de outros. Além disso, é sempre uma tentativa, um conjunto de opções em detrimento de outras. Entre elas, a nossa. A pesquisadora, por sua vez e com o fim da investigação, voltou a treinar normalmente no mesmo dojo, quando cessaram os xingamentos e outras formas de desafio que haviam substituído aqueles costumeiramente propostos sobre ele.

Recebido em 25 de abril de 2007 e aceito para publicação em 14 de setembro de 2011

  • CECCHETTO, Fátima Regina. Violência e estilos de masculinidade Rio de Janeiro: FGV, 2004. 248 p.
  • DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social Petrópolis: Vozes, 1981.
  • ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. Quest for Exciting: Sport and Leisure in the Civilizing Process. Oxford & New York: Basil Blackwell, 1986.
  • GASTALDO, Édison Luis. "A forja do homem de ferro: a corporalidade nos esportes de combate". In: LEAL, Ondina Fachel (Org.). Corpo e significado: ensaios de antropologia social Porto Alegre: Nupacs, 1995. p. 207-226.
  • GAY, Peter. The Cultivation of Hatred New York: Norton & Company, 1993.
  • LAUTERT, Ricardo Walter et al. "As artes marciais no caminho do guerreiro: novas possibilidades para o karatê-do". In: SILVA, Ana Márcia; DAMIANI, Iara Regina (Org.). Práticas corporais: experiências em educação física para a outra formação humana Florianópolis: Nauemblu Ciência & Arte, 2005. p. 134-163. v. 3.
  • MAUSS, Marcel. "Noção de técnica corporal". In: ______. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU, 1974. p. 211-233. v. 2.
  • NORONHA, Fernanda. "Onde estão as b.girls? A pesquisa antropológica numa roda de break". In BONETTI, Alinne; FLEISCHER, Soraya (Org.). Entre saias justas e jogos de cintura Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007. p. 185-206.
  • RIAL, Carmen Silvia de Moraes. "Pesquisando em uma grande metrópole: fast-foods e studios em Paris". In: VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina. Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 69-98.
  • SABINO, César. "Musculação: expansão e manutenção da masculinidade". In: GOLDENBERG, Mirian (Org.). Os novos desejos: das academias de musculação às agências de encontros Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 61-103.
  • ______. "Anabolizantes: drogas de Apolo". In: GOLDEMBERG, Miriam (Org.). Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 139-187.
  • SEGALEN, Martine. Ritos e rituais contemporâneos Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
  • TORRI, Giselle; BASSANI, Jaison José; VAZ, Alexandre Fernandez. "Dor e tecnificação no contemporâneo culto do corpo". Pensar a Prática, Goiânia, v. 10, p. 261-273, 2007.
  • TURELLI, Fabiana Cristina. Corpo, domínio de si, educação: sobre a pedagogia das lutas corporais 2008. 117 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.
  • VELHO, Gilberto. Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. 112 p.
  • WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Tradução de Angela Ramalho. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. 296 p.
  • 1
    Uma versão preliminar do trabalho apareceu nos anais da Reunião Anual da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), de 2007, sob o título
    Rituais, masculinidade e representações da dor em caratecas. A autora e o autor deste trabalho agradecem aos/às pareceristas anônimos/as e ao Conselho Editorial da
    Revista Estudos Feministas pelas sugestões apresentadas à primeira versão do artigo
  • 2
    A pesquisa foi realizada em um dojo em bairro de Florianópolis, Santa Catarina. Os dados foram coletados durante três meses, por meio de observações de 13 aulas (nove de adultos e quatro de crianças, as primeiras com duração aproximada de duas horas, as últimas em torno da metade desse tempo) e de uma competição, além de três entrevistas narrativas. Todas as aulas foram anotadas em caderno de campo, e as entrevistas foram gravadas. Os resultados originalmente compuseram parte de uma dissertação de mestrado (Fabiana Cristina TURELLI, 2008).
  • 3
    O esporte pode ser entendido como um conjunto de técnicas corporais (Marcel MAUSS, 1974) que organiza o corpo e suas expressões no sentido de simultaneamente restringi-lo em sua espontaneidade e potencializá-lo tecnicamente. Autores já clássicos, como Norbert ELIAS e Eric DUNNING, 1986; e Peter GAY, 1993, mostram aspectos da constituição sócio-histórica do esporte. Nesse campo, repleto de rituais, sejam eles para homologar a ascendência na hierarquia de grupos ou simplesmente uma etapa a ser superada para passar a lhes pertencer, é o corpo, ao ser treinado, que torna possível tal experiência. Ele experimenta e vai se moldando: torna-se ágil, flexível ou rígido, esguio ou envolto por volumosos músculos, de ombros largos, com orelhas ou pés
    levemente deformados, como é frequente no caso das lutas. Essas, por sua vez, possuem uma história que é anterior ao esporte, remetendo a outros valores e normas não necessariamente vinculados à extrema racionalização e universalização que são caras ao modelo esportivo. Seu processo de desenvolvimento mostra, no entanto, uma aproximação com o modelo esportivo, na forma da institucionalização por meio de órgãos federativos, unificação e universalização de regras, organização de campeonatos etc.
  • 4
    Caratê-dô significa, literalmente, "caminho das mãos vazias" e, conforme o discurso nativo, "tem sua origem numa região que compreende os mosteiros chineses, indianos, japoneses e ainda outros países da Ásia e Oriente Médio. Porém, foi no Japão, mais precisamente em Okinawa, onde se elaborou a luta com as mãos livres, sem armas" (Ricardo Walter LAUTERT et al., 2005, p. 138).
  • 5
    A posição da pesquisadora é de alguém que conhece o campo, que se posiciona perante ele, mas sem dele sair. O enfrentamento é outro, então, daquele realizado por alguém que a ele chega vindo de fora, como é o caso exemplar de Fernanda NORONHA, 2007, cuja posição de pesquisadora no universo do
    hip-hop exigiu um movimento de aproximação a vencer sucessivas barreiras de gênero, geracionais, de camada social, entre tantos outras.
  • 6
    Roberto DA MATTA, 1981; Carmen Silvia de Moraes RIAL, 2003; e Gilberto VELHO, 1989.
  • 7
    Trata-se do professor e treinador, ou, dito de outra forma, do Mestre, o que "nasceu antes". Sua autoridade no dojo é absoluta, compõe a dinâmica do caratê e a submissão a ela por parte dos/as lutadores/as. Não será casual, portanto, que os registros etnográficos possam por ele ser ocasionalmente lidos, como será visto ao longo deste texto. Ele desafia os discípulos a realizarem tarefas ou darem mostras de bravura sobre o dojo, mas não é desafiado.
  • 8
    O caratê competitivo acontece respeitando as idades dos competidores (infantil, até 11 anos; infantojuvenil, até 14 anos; juvenil, até 18 anos; júnior, até 21 anos; e adulto), as graduações ou faixas deles (categoria B: faixas branca, amarela, laranja, vermelha, azul, verde e roxa; categoria A: faixas marrom e preta) e ainda as divisões dentro dessas categorias (já definidas por idade e graduação), estabelecidas por meio do peso corporal - exceto na infantil e na infantojuvenil, em que a divisão se dá por meio da altura. Desse modo, para que alguém possa lutar na categoria adulto, por exemplo, deve-se observar que seja maior de 21 anos; sendo faixa preta, disputa somente entre outros faixas preta e marrom, e, tendo 83 kg, pertence à subcategoria 80 a 85 kg (subcategoria masculina). Todas essas divisões a que devem estar atentos os atletas e treinadores demonstram a tentativa de promover a igualdade formal de chances entre os competidores. As mudanças bruscas de peso ocorrem na maior parte das lutas esportivas porque os atletas precisam lutar no limite máximo que sua categoria permite, fazendo com que nos dias anteriores ao combate se usem vários artifícios que fazem às vezes com se percam vários quilos para o momento da pesagem - uma parte deles é recuperada até o momento da luta.
  • 9
    Loïc WACQUANT, 2002.
  • 10
    Não se encontra aqui uma divisão dos espaços e dos exercícios generificada, diferentemente do que acontece com frequência em academias de ginástica e musculação, conforme mostram os estudos de César SABINO, 2000, 2007; e Giselle TORRI, Jaison José BASSANI e Alexandre Fernandez VAZ, 2007.
  • 11
    WACQUANT, 2002.
  • 12
    Pedaço de madeira com alguma flexibilidade, de 1 m por 20 cm de largura e entre 2,5 e 3 cm de espessura, posto verticalmente. Possui em seus 20 cm superiores uma fina camada de esponja, coberta por lona preta na qual se deve socar. É fixado a 10 cm do pilar que ocupa, por hastes de ferro, e a 50 cm de distância do chão.
  • 13
    Competição poliesportiva mais importante do calendário esportivo de Santa Catarina, realizada entre equipes representativas dos municípios, com a participação da maioria deles. Os Joguinhos Abertos são a versão infantojuvenil do evento.
  • 14
    Referimonos ao trabalho de RIAL, 2003.
  • 15
    Diário de campo, 17 de agosto de 2005.
  • 16
    Todos os nomes dos pesquisados foram, evidentemente, modificados para garantir o sigilo e a privacidade dos informantes. Devemos a eles um caloroso agradecimento pela disponibilidade em serem pesquisados.
  • 17
    Diário de campo, 6 de julho de 2005.
  • 18
    Diário de campo, 10 de agosto de 2005, em aula infantil.
  • 19
    Fátima Regina CECCHETTO, 2004.
  • 20
    Diário de campo, 6 de julho de 2005, em aula infantil.
  • 21
    Diário de campo, 6 de julho de 2005.
  • 22
    Diário de campo, 8 de agosto de 2005.
  • 23
    Está fora de dúvidas a importância dos rituais para o pertencimento a grupos, vários deles vinculados à dor e ao sofrimento corporal. Sobre o tema, ver Martine SEGALEN, 2002.
  • 24
    Édison Luis GASTALDO, 1995; e WACQUANT, 2002.
  • 25
    Entrevista 2, 29 de agosto de 2005, p. 5.
  • 26
    Diário de campo, 17 de agosto de 2005.
  • 27
    Diário de campo, 5 de agosto de 2005.
  • 28
    Diário de campo, 22 de agosto de 2005.
  • 29
    Diário de campo, 17 de agosto de 2005.
  • 30
    ELIAS e DUNNING, 1986.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Aceito
      14 Set 2011
    • Recebido
      25 Abr 2007
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