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Questões de gênero: mais do que um novo olhar sobre as ciências sociais normâles

RESENHAS

Questões de gênero: mais do que um novo olhar sobre as ciências sociais normâles1 1 Referência aotrocadilho com as palavras francesas normales (normais) e mâles (masculinos/as) utilizadas pelas organizadoras da obra.

Naira Pinheiro dos Santos

Escola Paulista de Direito

Sous les sciences sociales, le genre: relectures critiques de Max Weber à Bruno Latour.

CHABAUD-RYCHTER, Danielle et al. (Org.).

Paris: La Découverte, 2010. 512 p.

Os estudos de gênero têm se caracterizado pela perspectiva crítica da naturalização dos sexos e das hierarquias sexuais, tanto no contexto contemporâneo quanto histórico. A percepção de que as relações de gênero são transversais a todas as categorias, isto é, impregnam todas as relações sociais ao mesmo tempo que são tecidas no e pelo conjunto dessas, tem colocado a necessidade de ampliar sempre mais o campo de ação crítica. A produção científica e acadêmica com seus modelos analíticos e explicativos não tem escapado ao crivo dos estudos feministas, que têm denunciado o seu caráter androcêntrico. Colocam-se nessa perspectiva estudos como o de Viktoria Lee Erickson acerca da teorias sociais clássicas da religião em Freud, Durkheim, Weber, Otto e Eliade, o organizado por Seyla Benhabib e Drucilla Cornell, no qual as articulistas visam reconstruir proposições marxistas e buscam nas teorias de Habermas, Lacan, Sartre, Beauvoir e Foucault elementos para iluminar releituras de experiências das mulheres, ou ainda aquele organizado por Françoise Collin, Évelyne Pisier e Eleni Varikas sobre pensamentos e escritos dos filósofos ocidentais, de Platão a Derrida.2 2 Respectivamente, Viktoria Lee ERICKSON, 1996; Seyla BENHABIB e Drucilla CORNELL, 1987; e Françoise COLLIN, Évelyne PISIER e Eleni VARIKAS, 2000.

Os/as articulistas da presente coletânea - na maioria mulheres atuando em universidades francesas, mas também canadenses, estadunidenses, suíças, britânicas - não se limitaram a evidenciar o ponto de vista sexuado dos autores em foco, mas foram além ao lançar mão do gênero como "revelador das lacunas ou dos recursos" (p. 10) presentes nas suas grandes teorias. A escolha dos 34 autores canônicos das ciências sociais contemplados na obra coletiva - todos do sexo masculino, com exceção de Hannah Arendt - deu-se com base na lista de obras adotadas pelos departamentos de sociologia dos programas universitários em vigor na França. Agrupados sob seis grandes divisões temáticas, tratou-se de averiguar a partir de qual momento, elementos ou aspectos, as questões de gênero e/ou relativas a definições/oposições entre masculino/feminino transparecem no percurso intelectual dos teóricos em foco e influenciam a sua obra ou são evitadas, omitidas ou contempladas, ainda que secundária ou temporariamente, procurando também evidenciar de que maneira seus principais textos foram revisitados, apropriados pelo feminismo e/ou contribuem "para a reflexão sobre gênero, mesmo quando ela não foi abordada enquanto tal pelos próprios autores" (p. 10).

No primeiro bloco temático - estruturas, estruturação, práticas - a análise repousa sobre o lugar que, de acordo com os autores em questão (Comte, Durkheim, Mauss, Lévi-Strauss, Bourdieu, Godelier, Giddens), as mulheres ou as práticas das mulheres e dos homens ocupam no processo de estruturação das sociedades. Transparecem aí algumas contradições, como a apreendida por Pascale Molinier em relação à obra de Auguste Comte ou por Roland Pfefferkorn sobre Émile Durkheim: quando recorrem, em determinados momentos, a fatores de ordem "natural" na defesa ou explicação de papéis hierarquicamente diferenciados entre os sexos, esses parecem negar os seus próprios preceitos que, em tese, privilegiam o social em detrimento do biológico como elemento estruturante das sociedades e das relações sociais.

No segundo bloco temático - atores, saberes, regimes de ação -, ainda que as mulheres e a divisão sexual estejam presentes na obra dos autores contemplados (Parsons, Crozier, Touraine, Boudon, Ginzburg, Boltanski, Latour) -, destaca-se a patente invisibilidade das relações de poder entre os sexos. Ora ocultada sob a ideia da complementaridade dos sexos, como em Talcott Parsons, ora na sobredeterminação e multiplicidade de atores, como em Bruno Latour, ou ainda no pressuposto do universalismo abstrato ou do sujeito neutro, como em Raymond Boudon e Michel Crozier; tal lacuna impõe prejuízos e limites às análises e às perspectivas teóricas dos autores, como tratam de pontuar os/as articulistas.

Já no terceiro bloco temático - interações e produção da ordem social - os autores (Hughes, Schütz, Strauss, Garfinkel, Goffman, Becker) dão destaque à diversidade de pontos de vista e de experiências dos atores, no que transparece certa afinidade com a perspectiva feminista. No entanto, apenas dois dos autores aí contemplados - Erving Goffman e Harold Garfinkel - abordaram diretamente a questão de gênero em sua obra, enquanto outros descartaram deliberadamente tais questões. Evidencia-se também aí a concepção da academia quanto à introdução de uma perspectiva feminista que, ainda nos anos de 1960 e 1970, era interpretada como uma deturpação da neutralidade científica, como aponta Adele Clarke.

No quarto bloco temático - classes sociais - trata-se de analisar os limites e os aportes dos teóricos da divisão da sociedade em classes (Marx, Engels, Naville, Hoggart, Thompson) ao debate em torno da dominação masculina. Se, por um lado, suas teorias possibilitam tomar em conta as diferenças entre as mulheres a partir da própria concepção de classe; por outro lado, as diferenças de estatuto entre os sexos no interior da classe operária são nuançadas, ou até mesmo apagadas, conforme as críticas feministas a Edward P. Thompson, destacadas por Laura Frader. Para alguns/mas, a divisão sexual do trabalho seria um resíduo pré-capitalista, argumento criticado por outros/as que a vêm como constitutiva do capitalismo.

Tais fatores, tidos como exógenos, seriam efetivamente fruto de resistência à modernização ou seriam "expressões de relações de poder constitutivas das sociedades modernas" (p. 21)? Não seria a divisão sexual do trabalho uma entre "todas as formas de sujeição, de exclusão e de inferiorização próprias à modernidade ocidental" (p. 21)? O processo civilizatório, a racionalidade, a objetividade não são, afinal, produto de um ponto de vista e de um conhecimento situado que resultam e são resultado de clivagens de gênero, como também de classe, raça/etnia? Tal debate é iluminado por questões postas pelos/as articulistas dos dois últimos blocos temáticos, convidando-nos à reflexão quanto aos pressupostos da modernidade e seus efeitos sobre a igualdade de gênero.

No quinto bloco - progresso, racionalidade, dinâmicas do Ocidente - os/as articulistas analisam perspectivas teóricas de Elias, Ariès, Habermas e Weber, contemplando também neste último caso a influência e a contribuição de Marianne Weber, "sem dúvida, uma das principais fontes do interesse que Max tinha na 'questão das mulheres'" (p. 377), conforme apreciação de Eleni Varikas.

É no último bloco - crítica da modernidade - que, ao lado da reflexão em torno do pensamento de Simmel, Mannheim, Adorno e Foucault, se encontra o artigo de Diane Lamoureux sobre a obra de Hannah Arendt, "uma das raras mulheres a figurar no panteão dos 'grandes autores' nos tratados e manuais de filosofia política" (p. 471).

Vale a pena destacar aqui o interesse de algumas das diferentes dimensões conferidas pelos/as diversos/as articulistas às suas análises no intuito de fazer frente às lacunas e evidenciar os recursos presentes nas obras em foco. Dentre elas, a estratégia de trazer à luz a perspectiva, a influência e as ações de mulheres marcantes na vida e/ou no percurso intelectual de alguns dos autores, de modo a desconstruir os caminhos da invisibilidade e contrapor-se à atestada dificuldade de boa parte dos autores contemplados de "pensar as mulheres como atrizes sociais" (p. 19), como capazes de desenvolver modos de ação e resistência próprios. Além de conferir visibilidade às referidas mulheres, aos seus saberes, teorias e práticas, tal abordagem colocou em evidência a distância entre os lugares aos quais pretensamente as mulheres estariam "naturalmente" e/ou socialmente "destinadas" e aqueles que elas efetivamente buscaram, pelos quais lutaram e/ou lograram ocupar. Mas ela tem o mérito também de evidenciar e integrar às análises outro aspecto da masculinidade, o das vivências dos próprios autores com algumas das mulheres que os cercavam e os desafiaram e/ou influenciaram. Essa dimensão, contemplada por diversos/as articulistas da coletânea e pouco usual na interpretação teórica, propiciou uma análise mais elaborada e íntegra das obras em foco, na medida em que essas "são também os produtos de conflitos, de angústias e de antagonismos de sexo" (p. 23, grifo da autora). Antagonismos e afinidades nem sempre confessados, mas que se desdobram tanto no plano político e intelectual quanto no amoroso e íntimo.

Outra importante dimensão conferida pelos/as articulistas à coletânea diz respeito ao seu cuidadoso trabalho de revisão das releituras críticas feministas das obras analisadas, a partir do qual pretendem propor, "mais ainda do que um novo olhar sobre as ciências sociais normâles" (p. 23, grifo da autora), o caminho da bandita. Isto é, o de encontrar os meios não apenas de extrair, mas também de reformular, desestabilizar e reconstruir em perspectiva feminista os conceitos tomados de empréstimo aos autores, apesar deles mesmos e não obstante a "cegueira às operações de gênero e a invisibilidade das experiências femininas sejam, salvo exceção, a regra" (p. 23) entre esses. É preciso dizer também que parte dessas exceções deve-se ao efeito de mão dupla das releituras feministas. Isto é, é o próprio trabalho crítico feminista que leva e/ou obriga alguns dos autores em foco a uma integração ou mesmo a uma releitura de sua produção teórica a partir da perspectiva de gênero, ainda que de forma tardia e/ou parcial. Pode-se vislumbrar aí outra dimensão da influência das mulheres sobre esses autores: uma influência que essas exercem como sujeitos sociais, sujeitos dos movimentos e estudos feministas, para além do âmbito da vida pessoal.

Enfim, essa perspectiva diversificada e múltipla de abordagem crítica na qual se insere a coletânea, assim como a amplitude e a diversidade de autores contemplados, a constitui como rica fonte de recursos analíticos, quer para os estudos de gênero, quer para estudantes, professores/as e pesquisadores/as, cientistas sociais e dos mais diversos campos do conhecimento cujo pensar e fazer requeira ou pretenda a observação e a análise da realidade social.

Notas

  • BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Org.). Feminismo como crítica da modernidade: releitura dos pensadores contemporâneos do ponto de vista da mulher Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987.
  • COLLIN, Françoise; PISIER, Évelyne; VARIKAS, Eleni (Org.). Les femmes de Platon à Derrida: anthologie critique. Paris: Plon, 2000.
  • ERICKSON, Viktoria Lee. Onde o silêncio fala: feminismo, teoria social e religião São Paulo: Paulinas, 1996.
  • 1
    Referência aotrocadilho com as palavras francesas
    normales (normais) e
    mâles (masculinos/as) utilizadas pelas organizadoras da obra.
  • 2
    Respectivamente, Viktoria Lee ERICKSON, 1996; Seyla BENHABIB e Drucilla CORNELL, 1987; e Françoise COLLIN, Évelyne PISIER e Eleni VARIKAS, 2000.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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