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(Des)construções do masculino e do feminino na relação de mulheres-mães com filhos e filhas

(De)constructions of the masculine and the feminine in the relationship between women-mothers and their sons and daughters

Resumos

Este artigo apresenta reflexões formuladas a partir de uma pesquisa que buscou problematizar a experiência de mulheres-mães na relação construída com filhos e filhas na perspectiva do masculino e do feminino. A partir da estratégia da desconstrução, realizou-se a leitura de textos produzidos por mulheres-mães buscando evidenciar a lógica falologocêntrica que sustenta os atributos designados às mulheres e aos homens, bem como problematizar binarismos que sustentam o par disjuntivo feminino e masculino. O jogo de forças atuante no desvelamento da desconstrução e no esforço de barreira operado pela metafísica da presença abre brechas para a elaboração de práticas que embaralham os limites entre o que é estar na norma ou fora dela, ampliando as possibilidades de experiências subjetivas.

feminino; masculino; subjetividade; desconstrução; Derrida


This article presents reflections formulated from a study that sought to question the experience of women-mothers in the relationship built with their sons and daughters from the perspective of masculine and feminine. The strategy of deconstruction held the reading of texts produced by women-mothers seeking to prove the logic that underlies the phallogocentric attributes assigned to women and men as well as problematize binaries that support the pair feminine and masculine. The balance of forces acting on the unveiling of deconstruction and the effort barrier operated by the metaphysics of presence opens a route for the development of practices that shuffle the boundaries between what is to be in or outside the norm, expanding the possibilities of subjective experiences.

Feminine; Masculine; Subjectivity; Deconstruction; Derrida


ARTIGOS

(Des)construções do masculino e do feminino na relação de mulheres-mães com filhos e filhas

(De)constructions of the masculine and the feminine in the relationship between women-mothers and their sons and daughters

Fabíola LangaroI; Mériti de SouzaII

IAssociação Catarinense de Ensino, Joinville/SC

IIUniversidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

Este artigo apresenta reflexões formuladas a partir de uma pesquisa que buscou problematizar a experiência de mulheres-mães na relação construída com filhos e filhas na perspectiva do masculino e do feminino. A partir da estratégia da desconstrução, realizou-se a leitura de textos produzidos por mulheres-mães buscando evidenciar a lógica falologocêntrica que sustenta os atributos designados às mulheres e aos homens, bem como problematizar binarismos que sustentam o par disjuntivo feminino e masculino. O jogo de forças atuante no desvelamento da desconstrução e no esforço de barreira operado pela metafísica da presença abre brechas para a elaboração de práticas que embaralham os limites entre o que é estar na norma ou fora dela, ampliando as possibilidades de experiências subjetivas.

Palavras-chave: feminino; masculino; subjetividade; desconstrução; Derrida.

ABSTRACT

This article presents reflections formulated from a study that sought to question the experience of women-mothers in the relationship built with their sons and daughters from the perspective of masculine and feminine. The strategy of deconstruction held the reading of texts produced by women-mothers seeking to prove the logic that underlies the phallogocentric attributes assigned to women and men as well as problematize binaries that support the pair feminine and masculine. The balance of forces acting on the unveiling of deconstruction and the effort barrier operated by the metaphysics of presence opens a route for the development of practices that shuffle the boundaries between what is to be in or outside the norm, expanding the possibilities of subjective experiences.

Key Words: Feminine; Masculine; Subjectivity; Deconstruction; Derrida.

A trajetória histórica das sociedades modernas e ocidentais oferece indícios de que as experiências da maternidade e da paternidade sofrem alterações vinculadas a questões econômicas, culturais, sociais. Entretanto, as experiências de homens/pais e mulheres-mães não acontecem sem conflitos, pois a tradição marcada pela hierarquia e por modelos predeterminados sobre o homem e a mulher atravessa os modos de subjetivação. Assim, embora as diversas configurações e institucionalizações históricas, somadas ao movimento feminista, tenham gerado contribuições às experiências dos sujeitos, suas práticas estão cercadas de embates em decorrência da sua inserção na rede social ocidental e moderna, que dificulta as tentativas de romper com os modelos tradicionais e com as "novas/velhas formas" de constituição subjetiva.1 1 Elisabeth BADINTER, 1985; Mary DEL PRIORE, 2008; Georges DUBY e Michéle PERROT, 1993; Genevieve FRAISSE e Michelle PERROT, 1993; e Thomas LAQUEUR, 2001.

A matriz falologocêntrica é exemplar em relação à tradição hegemônica que se sobrepõe às categorias corpo/sexualidade/desejo e orienta as referências sociais e subjetivas que instituem as características do que é a "mulher-mãe" e o "homem-pai". O termo "falologocêntrico" foi elaborado por Derrida, que com ele pretendia dirigir sua crítica à primazia na tradição da filosofia ocidental que constrói teorias e leituras acerca da realidade, do conhecimento e da constituição psíquica baseadas em referências falocêntricas e logocêntricas.2 2 Jacques DERRIDA e Elisabeth ROUDINESCO, 2004. Essas referências definem hierarquias e um modo binário de produzir oposições quando atribuem "qualificações e sentidos" aos opostos que lhes são designados pela rede social, econômica e cultural. O binarismo acompanha a rede de poder que predomina nas sociedades ocidentais e reforça essa rede através da linguagem que atribui específicos sentidos e valores às pessoas e aos objetos que compõem a realidade. Para o autor, quando são elaborados os pares de opostos e é atribuído um específico sentido a eles e, ainda, quando se divulga a ideia de que esse sentido é verdadeiro, é possível encontrar um trabalho de hierarquia e de poder. Como exemplo, o conceito de masculino estabelece o feminino como seu oposto e, ainda, o masculino é vinculado ao racional, ao completo, à cultura, e o feminino, ao afeto, ao incompleto, à natureza.

As implicações postas por esse contexto demandaram a realização de uma pesquisa3 3 Dissertação de mestrado defendida por Fabíola Langaro e orientada por Mériti de Souza no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina no ano de 2010. para investigar a relação que mulheres-mães constroem com filhos/filhas na perspectiva do masculino e do feminino. Interessava problematizar as relações estabelecidas pela mulher-mãe com a operação do feminino conforme posto na tradição ocidental, bem como problematizar como essa operação pode ser trabalhada a partir da desconstrução.4 4 DERRIDA, 2008 e 2009. Como procedimentos de produção de conhecimento, utilizaram-se entrevistas caracterizadas como textos conforme a perspectiva derridiana. Elas foram realizadas com cinco mulheres-mães que têm pelo menos um filho e uma filha, com idades entre 5 e 17 anos, contatadas por meio da rede social da pesquisadora e que se dispuseram a participar da pesquisa. Em decorrência da amplitude da pesquisa original, o trabalho que ora apresentamos refere-se a um recorte do texto de uma das entrevistadas denominada Paula, bem como centra-se nos aportes de Derrida sobre o falologocentrismo, a différance, o feminino, o indecidível.

Na estratégia da desconstrução,5 5 DERRIDA, 2001. é importante fazer um gesto duplo, uma escrita redobrada. Isso demanda que, em um primeiro momento, deve ser realizada a inversão das hierarquias produzidas pela tradição filosófica e histórica ocidental com o intuito de inverter as posições entre os termos. Nesse movimento, é possível visualizar que o termo considerado como derivado ou inferior – o outro – "é essencial à compreensão de Si Mesmo, e, em função disso, não pode ser considerado como algo meramente acidental e secundário".6 6 José A. VASCONCELOS, 2003, p. 75.

Em um segundo momento da estratégia da desconstrução, após a inversão das posições, é necessário então realizar um deslocamento como movimento que possibilita a emergência de um "conceito" que não se deixa mais compreender no regime anterior. Neste momento, há o deslizamento de sentidos, em que os "conceitos" escapam e não podem mais ser fixados. Por essa escrita dupla, estratificada, deslocada e deslocante, há um primeiro movimento de inversão que coloca na posição inferior aquilo que estava na posição superior e, em seguida, por meio de um processo de deslocamento que torna impossível fixar identidades, surge um conceito que "não pode mais se marcar senão em um campo textual [...]: no limite, é impossível localizá-lo, situá-lo".7 7 DERRIDA, 2001, p. 49.

O texto não se limita à escrita, mas se refere a um tecido, uma cadeia de signos na qual as diferenças aparecem entre seus elementos, sendo expresso nas diferentes formas de linguagem.8 8 DERRIDA, 2008. A fala das entrevistadas, portanto, foi compreendida como texto, na medida em que se constituiu numa trama de diferenças, estando sempre inserida em um contexto, ou seja, implicada nas interseções que faz com os aspectos sociais, econômicos, históricos e culturais em que é produzida.

Essa atitude diante do texto abandona a intenção da tradição histórica e filosófica ocidental da busca por uma origem ou uma presença que seria capaz de explicitar o fundamento ou a determinação primordial de todo o sentido e do conceito que supostamente o traduziria. Trata-se do esforço de permanecer em um jogo em que nenhum dos polos opositivos do binarismo é valorizado e subjuga o outro, porém de manter-se em um constante remetimento a ambos, em um jogo de nem/nem. Nas palavras de Derrida,9 9 DERRIDA, 1991, p. 203.

o conceito de texto que eu proponho não se limita nem à grafia, nem ao livro, nem mesmo ao discurso, menos ainda à esfera semântica, representativa, simbólica, ideal ou ideológica. O que eu chamo de 'texto' implica todas as estruturas ditas 'reais', 'econômicas', 'históricas', sócio institucionais, em suma, todos os referenciais possíveis.

Ler o texto implica, então, uma atitude de abertura às lacunas, às descontinuidades e às instabilidades. Essa atitude de entrada no jogo da différance "faz com que nenhuma palavra, nenhum conceito, nenhum enunciado primordial venha sintetizar e comandar, a partir da presença teológica de um centro, o movimento e o espaçamento textual das diferenças".10 10 DERRIDA, 2001, p. 21. Trata-se de buscar situar os textos para além da oposição binária – para além, contudo não fora dela, visto que só é possível resistir a essa lógica habitando o espaço mesmo da metafísica. Ler os textos em um gesto desconstrutor implica

cercar os conceitos críticos por um discurso prudente e minucioso, marcar as condições, o meio e os limites da eficácia de tais conceitos, designar rigorosamente a sua pertença à máquina que eles permitem desconstituir; e, simultaneamente, a brecha por onde se deixa entrever, ainda inomeável, o brilho do além-clausura.11 11 DERRIDA, 2008, p. 17.

A estratégia da desconstrução como possibilidade de leitura dos textos desconfia de qualquer sistematicidade centrada na verdade do conceito. Contudo, essa mesma estratégia não é "um vale-tudo ou uma destruição niilista da metafísica. [...] A desconstrução acontece dentro da linguagem; ela busca flagrar o logos (o sentido, a presença, a razão) em atuação, ou seja, fazendo metafísica, estabelecendo a lei, trazendo à presença".12 12 Rachel NIGRO, 2004, p. 94.

Feminino: nem fora nem dentro

A ideia nietzschiana de que o elemento peculiar ao feminino é a distância serve de mote para Derrida sugerir que é justamente essa distância atribuída ao feminino por Nietzsche que possibilita pensar a mulher como aquela que não se deixa conquistar, desestabilizando a busca pela verdade como essência ou identidade. Derrida13 13 DERRIDA, 1981. aponta como Nietzsche subverte a lógica tradicional ao aproximar o feminino de operações capazes de romper com as cadeias de oposições binárias e hierárquicas. Conforme cita Continentino,14 14 Ana M. A. CONTINENTINO, 2002, p. 74.

dentre as várias abordagens que Nietzsche oferece do feminino, uma rompe o laço que ata masculino e feminino como pólos que traduzem a diferença sexual. Esta apreensão descortina na economia sexual a possibilidade de uma outra lógica que não a da diferença enquanto oposição e tem como ressonância no âmbito do pensamento a requisição de uma abertura mais ampla e decisiva no tratamento da diferença.

Assim, Derrida "vai trabalhar a idéia da mulher como um indecidível – aquela que carrega a não-verdade, em oposição ao homem da verdade. Ao macho triunfante, ao que compreende, Derrida vai opor a mulher que carrega a não-verdade, o não-entender".15 15 Carla RODRIGUES, 2009, p. 54.

De forma semelhante à exposição de Nietzsche de que não existe "a verdade", "o estilo", mas verdades e estilos, Derrida diz que há mulheres. E, quando se refere a mulheres, refere-se ao que

no hay que traducir apresuradamente por la feminidad, la feminidad de la mujer, la sexualidad femenina y otros fetiches esencialistas que son precisamente lo que se cree conquistar con la necedad del filósofo dogmático, del artista impotente o del seductor inexperto.16 16 DERRIDA, 1981, p. 31.

O feminino é posto como indecidível na medida em que, ao denunciar a existência de algo que se poderia pensar como uma operação masculina que busca a verdade, a essência e a identidade, não interessa à mulher (como operação feminina) ocupar uma posição inversa/opositiva na hierarquia, tomando simplesmente o lugar ocupado pelo que foi definido pela tradição como mais importante ou mais exato.

Como indecidível, a mulher é aquela que não acredita na verdade e que, por isso mesmo, abre espaço para ir além das operações falologocêntricas. Não interessa a ela ocupar o lado valorizado de uma hierarquia, mas, tendo em vista que não acredita na busca por uma verdade – já que "a" verdade não existe –, o que se busca é, então, transformar a estrutura hierárquica. A partir dos indecidíveis, não seria mais possível pensar em termos de verdade ou não-verdade. Descreve Derrida:17 17 DERRIDA, 1981, p. 62-63.

desde el momento en que la cuestión de la mujer suspende la oposición decidible de lo verdadero y lo no-verdadero, instaura el régimen periódico de las comillas para todos los conceptos pertenecientes al sistema de esta decibilidad filosófica, descalifica el proyecto hermenéutico postulando el sentido verdadero de un texto, libera la lectura del horizonte del sentido del ser o de la verdad del ser, de los valores de producción del producto o de presencia del presente, desde ese momento lo que se desencadena es la cuestión del estilo como cuestión de la escritura, la cuestión de una operación espoleante más poderosa que todo contenido, toda tesis y todo sentido.

A partir dessas demarcações, seria possível pensar que algumas falas das entrevistadas apontam para uma ocorrência dessa operação feminina, desse indecidível? Quando é então questionada sobre o que caracterizaria o "ser homem", Paula hesita em falar de forma imediata sobre o "ser homem" e sobre o "ser mulher" talvez não somente por falar da experiência de "um outro" que não ela mesma, mas possivelmente porque seu relato aponta para um deslocamento dos sentidos tradicionalmente atribuídos ao masculino.

É bem complicado falar isso, assim, de... eu venho de uma tradição de família que ser homem é o cara provedor, sabe? Aquele que mantém, aquele que cuida, é o cara que é forte, que é intocável, e tal. Mas a realidade não é essa. No meu relacionamento a gente vivencia muito esses conflitos, tanto de, eu como mulher, amadurecendo ao longo do tempo, como ele também. Com as angústias, com as ansiedades, com as frustrações, as mudanças de troca de carreira, enfim. Eu acho que ser homem.... puxa, eu acho que também é essa busca do equilíbrio, sabe? É, eu acho que tem muito dessa igualdade assim, hoje, eu consigo enxergar isso. Pode ser que na grande maioria não esteja, mas a minha realidade é muito próximo disso, é caminhar muito assim, o lado a lado e sempre procurando o melhor, o melhor pra cada um. Eu não sei, eu consigo, eu vejo bem essa diferença do que foi meus pais e do que eu tenho hoje, assim. Eu acho que o que eu consigo te responder é isso.

Neste ponto, é importante esclarecer que, embora a desconstrução seja uma estratégia para produzir conhecimento, ou seja, implique certa leitura de textos por meio de um duplo gesto desconstrutor que consiste em inverter e deslocar as oposições binárias, não se trata de uma possibilidade ou não de ocorrência dos deslizamentos, da indecidibilidade ou do devir dos sentidos. A desconstrução – que poderia também ser aludida por diferentes palavras, como différance, suplemento, entre outras – "tem lugar", ou seja, ela acontece, opera continuamente, prescindindo de um desejo ou intencionalidade, sendo essa operação aquilo que torna os textos heterogêneos e incapazes de completude ou nitidez.18 18 DERRIDA, 1997.

Apesar, portanto, da articulação de uma operação metafísica que visa "recobrir" as brechas, os escapes e os movimentos da desconstrução, bem como de algo que pode aqui ser considerado semelhante ao movimento de recalque em termos de constituição psíquica, a différance tem lugar no jogo de forças e nas tensões que se criam no texto. Não é presença, nem ausência, mas efeito, remetimento, desvio. A desconstrução ocorre e vaza em meio a esse jogo de forças que tenta impedir seu desvelamento, que a tenta represar.

Seria então a experiência dos conflitos, a possibilidade de expor-se a contradições, de movimentar-se entre elas, de habitar os matizes e o espaço que se coloca entre os conceitos uma experiência de différance? Poderíamos pensar que sim, na medida em que, assim como a escritura, as construções e as experiências que Paula aponta sobre o feminino e o masculino em seu cotidiano não são homogêneas, não estão acabadas nem imunes à experiência "do outro", nem se defendem da indecidibilidade, estando abertas e deixando aparecer os efeitos do devir.

Sobre as (des)construções do feminino e do masculino com seu/sua filho e filha, parece haver espaço para um movimento semelhante:

Ah, então, tem aquela fase do Clube do Bolinha e Clube da Luluzinha, que não tem o que fazer, tipo, tem a fase, a minha filha não tá mais nessa fase, mas tem a fase das barbies, todas as princesas, e Disney, acho que toda criança passa por isso. Ela hoje já não tá mais nesse período. E o menino, tem muito de um, também do lado dos desenhos, de cartoon, assim, de álbum de figurinha, de desenho animado, que são os personagens, e tal, que são bem característicos. Mas não que necessariamente a gente fala não, isso é de menino, isso é de menina. Acho que é mais natural, mesmo, até pelo convívio em sala de aula e com os outros amigos, assim. Mas também não proíbo, assim, tipo, a minha filha brinca com figurinhas do meu filho, tem jogos que teoricamente, instituídos que são de meninos, mas ela também participa, ela também joga. E ele vice-versa, assim, tem um joguinho que é 'little petshop' que entre aspas é pra menina, mas são animais, assim, e não vejo nenhum problema em meu filho brincar com ela. E eles brincam juntos, eu acho que quando a gente rotula fica muito mais a dúvida e é muito mais, é... se você tá vendo que é uma atitude que é comum, de curiosidade, se você coloca uma regra, ou rotula de alguma forma, você aguça muito mais pro lado, 'nossa, por quê?', 'é proibido?', sabe aquela coisa assim, 'então quero saber por quê', fica chamando muito mais, aguçando muito mais a curiosidade pra uma coisa que de repente você vai deturpar a realidade que não é bem por aí. [...] É, eu acho que a brincadeira de boneca, assim, pra mim é o mais claro de todos e brincar com o carrinho. 'Ah, mãe, por que eu não posso brincar com carrinho?' ou 'por que eu não posso brincar com boneca?'. Eu acho que é o clássico, de toda mãe, assim, que tem casal. De, meu filho mais do que minha filha, mas a minha filha conviveu mais com os primos, então tinha muito isso, também. Ela pequenininha na idade dele hoje, chegava na casa do primo que era menino, mais ou menos a mesma idade, ela queria brincar com os dinossauros, com os carrinhos, o controle remoto, 'ah, por que eu não posso?'. [...] Aí ela falava assim 'mãe, mas por que de menino? Eu não entendo, por que eu não posso brincar?'. Então assim... e com ele a mesma coisa, assim, até dela, de ouvir isso muito quando era menor, às vezes ele ia pegar alguma boneca dela, ela falava assim 'ai, Felipe, isso é de menina', pro irmão, ela falando pro irmão. E aí ele falava assim 'mas por que é de menina?'. Aí, aquela história, novamente, não é todo mundo, 'olha, porque foi dito que isso é de menina', até chegar num consenso, assim. [...] Eu acho que é bacana, sim, pra mostrar também o posicionamento do pai e da mãe. Até porque já teve, os padrinhos ou os tios falavam 'isso aqui é de menino e pronto, agora vai ficar brincando de mulher, de boneca, se não vai virar mulherzinha'. Sabe aquela coisa assim? Então assim, eu acho que não é legal. [...] Eu falava 'olha, o tio acha que isso, não é legal, mas', pra não, às vezes estava na casa do cunhado, falava 'olha, é melhor você então de repente não brincar aqui com isso porque o tio não vai achar legal, mas não tem nada a ver, não é que é de menina. É porque meninos gostam mais desse tipo de brinquedo, e as meninas gostam mais de outro tipo de brinquedo', 'mas não que você vai ser mulher quando você crescer em função do brinquedo que você tá tendo curiosidade agora'. Então assim, sempre foi muito natural, ele não ficou insistindo em querer andar com uma boneca pra cima e pra baixo ou tipo o tempo inteiro queria ficar só brincando com boneca, coisa que acontecia quando o pai proibia, que a gente vivenciava muito, tanto em escolinha como em casa, assim. Muita gente, família grande, então você vivencia muito isso. [...] E aí era aquela luta, tipo, da criança, ou o menino chorar horrores, porque queria brincar com a boneca da irmã, ou a menina fazer birra na sala com todos os adultos, toda família, o famoso almoço de domingo, famoso, ficar querendo o carrinho do primo, e tal, e aquela saia justa, 'não, não quero, já disse que não é pra deixar', entendeu? Então, a gente lidou até muito bem com isso.

[...] Capoeira, até muito tempo atrás, era uma coisa só de homem. Futebol era uma coisa só de homem, então hoje em dia até na própria escola, a criança tem liberdade de escolher. E a minha filha fez capoeira, meu filho fez também, mas ela fez também. Ou seja, futebol ela faz hoje, ele faz teatro, que é uma coisa que antes não tinha, e hoje também, eu acho que a própria escola também hoje já tá tirando muito desses paradigmas, assim, desses padrões, 'isso é de menina, isso é de menino'. Então isso é legal. Então o meu filho faz teatro, uma coisa que não, apesar de ter muitos atores, ainda tem preconceito. A dança, tipo, a festa junina, uma coisa que, num primeiro momento o menino fala 'ai, não, não sei o que, não vou, não quero'. Ginástica olímpica, enfim, um monte de coisas que a própria escola já te permite hoje explicar pro seu filho 'olha, isso não significa que é só de mulher ou só de menino'.

[...] Olha, eu não sei se a pintura, eu acho que pintura pode ser considerada bem feminina, assim, aula de pintura, esse lado mais artístico, assim, que tem que ter mais tempo pra pintar, e aquele cuidado, é uma coisa mais, é mais demorado, é mais feminino, entre aspas. Ele já teve e eu não reprimi, ele fez, teve curiosidade, mas não se enquadrou muito, porque ele é meio agitado, assim, de, não finalizar muito, assim, e tem que ter muita atenção, ele gosta de fazer uma coisa e de passar pra outra, fazer uma coisa e passar pra outra. Então eu deixo, eu deixo experimentar sim, não tenho restrição, não.

Observa-se que, no trecho anterior, Paula utiliza por duas vezes a expressão "entre aspas". Em ambas, diz que "entre aspas é pra menina [...] é mais feminino, entre aspas", indicando o seu próprio movimento de pôr esses conceitos sob rasura, ou seja, de explicitar que não há um único sentido possível para o feminino. Mesmo considerando a pintura como algo "bem feminino", ao dizer que o "de menina" e o "feminino" estão entre aspas, Paula abre espaço para o devir e a disseminação dos sentidos – lança o feminino ao vir-a-ser do signo.

Colocar os conceitos entre aspas e, portanto, sob rasura é uma operação de indecidíveis e também de escritura. De forma semelhante ao "a" da différance, as aspas e outros elementos gráficos como a pontuação, os parênteses e os espaçamentos entre caracteres, entre outros, descritos por Derrida como "signos mudos", só se oferecem à leitura, não sendo realizados na fala.19 19 DERRIDA, 2008. Essa indicação aponta, mais uma vez, para a impossibilidade de delegar à escrita a simples função de representação material da fala. Não há uma fala original e uma escrita secundária: a escrita opera na própria fala, como um rastro.

Utilizando-se das aspas que, em Nietzsche, indicavam a suspensão da verdade, Derrida propõe o uso da aspas para suspender os conceitos filosóficos. A ampliação dessa operação nietzschiana será o que Derrida denomina operação feminina, que permite colocar entre aspas, além do feminino, também o masculino e o homem. É esse movimento que Paula indica em sua fala destacada anteriormente, realizando a operação feminina de pôr em suspensão os sentidos atribuídos pela metafísica da presença ao feminino e ao masculino. Conforme cita Derrida,20 20 DERRIDA, 2008, p. 31.

este distanciamiento de la verdad que se sustrae a sí misma, que aparece entre comillas (maquinación, grito, vuelo y garras de una grulla), todo aquello que va a forzar en la escritura de Nietzsche la puesta entre comillas de la "verdad" – y por consiguiente, en rigor, de todo el resto –, todo aquello que va por lo tanto a inscribir la verdad – y por consiguiente, en rigor, inscribir en general, constituye, no digamos siquiera lo femenino, sino la "operación" femenina.

Também na relação com seu marido, e na relação de ambos com o filho e com a filha, o pretenso sentido único dos signos masculino e feminino é questionado, tornado instável, embaralhando os supostos limites colocados para esses opostos, inaugurando situações localizadas no entre, no nem/nem dos indecidíveis.

Essas divergências sobre aquilo que se atribui ao feminino e ao masculino denunciam que não é possível encontrar um centro, uma essência, uma substância fundadora em si para cada um desses conceitos. Duvidar da possibilidade de que um signo possua apenas um significado presumível remete ao trabalho de crítica ao pensamento da metafísica da presença que se intensificou, conforme descreve Derrida, principalmente em direção às teorias estruturalistas. Desse modo,

desde então, deve-se sem dúvida ter começado a pensar que não havia centro, que o centro não podia ser pensado na forma de um sendo-presente, que o centro não tinha lugar natural, que não era um lugar fixo, mas uma função, uma espécie de não-lugar no qual se faziam indefinidamente substituições de signos. Foi então o momento em que a linguagem invadiu o campo problemático universal; foi então o momento em que, na ausência de centro ou de origem, tudo se torna discurso – com a condição de nos entendermos sobre esta palavra – isto é, sistema no qual o significado central, originário ou transcendental nunca está absolutamente presente fora de um sistema de diferenças. A ausência de significado transcendental amplia indefinidamente o campo e o jogo de significações.21 21 DERRIDA, 2009, p. 409-410.

Essa substituição infindável de signos tem relação direta com os indecidíveis, na medida em que ocorre no/pelo jogo da différance, ou seja, sempre inserida em um sistema de remetimentos entre diferenças, apontando para o caráter suplementar do signo. Tendo em vista que não há origem e, portanto, um centro de onde emanariam os sentidos, é então pela falta desse centro que o jogo de substituições é tornado possível. Portanto,

não se pode determinar o centro e esgotar a totalização porque o signo que substitui o centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-se, vem a mais, como suplemento. O movimento da significação acrescente alguma coisa, o que faz que sempre haja mais, mas esta adição é flutuante porque vem substituir, suprir uma falta do lado do significado.22 22 DERRIDA, 2009, p. 422.

É justamente por essa "superabundância do significante" que podemos encontrar, no texto da entrevistada, diferentes significações a um mesmo signo. É com essa inscrição no jogo das diferenças que os conceitos passam a ser entendidos como quase-conceitos, na medida em que cada um deles é arrastado "em uma cadeia interminável de diferenças, cercando-se ou sobrecarregando-se com uma grande quantidade de precauções, de referências, de notas, de citações, de colagens, de suplementos [...]".23 23 DERRIDA, 2001, p. 21.

Pensar os conceitos, assim como as experiências dos sujeitos, a partir da différance e dos indecidíveis é, portanto,

entrar no jogo e, sobretudo, no jogo da différance que faz com que nenhuma palavra, nenhum conceito, nenhum enunciado primordial venha sintetizar e comandar, a partir da presença teológica de um centro, o movimento e o espaçamento textual das diferenças.24 24 DERRIDA, 2001, p. 21.

Nessa lógica de pensamento, suspendem-se as barreiras entre as oposições, visto que se escancaram os diversos reenvios que existem entre elas. Os indecidíveis apontam para a impossibilidade de um signo "ser em si", tendo em vista que é produzido no e pelo sistema de diferenças. Além disso, os indecidíveis não são, nunca, um terceiro termo, como uma promessa de síntese ou restituição de certa ordem.

Os indecidíveis são a marca desse jogo textual, em que o remetimento entre os termos não se prende mais às oposições, mas desliza nelas, "uma requisitando a outra, uma como rastro da outra".25 25 CONTINENTINO, 2006, p. 39. Não estando mais subordinado aos binarismos e às hierarquias, o rastro subverte as oposições, fazendo da escritura um lugar de produção de diferenças. "Só a différance, 'rastro de rastro', diz o desconstrutor, se destaca da presença metafísica, colocando em cena o indecidível, o 'entre'".26 26 CONTINENTINO, 2006, p. 39.

Nesse jogo, produz-se a disseminação como produção de sentidos que não se deixam reconduzir a uma origem simples, fraturando o texto e marcando uma multiplicidade de significações que não tem o compromisso de um retorno ou resposta, de uma conclusão, de um ponto de chegada ou estabelecimento de verdades. É esse movimento de lançar-se a uma infinidade de sentidos e significados possíveis que podemos observar nos relatos de Paula, quando fala sobre como (des)constrói o feminino e o masculino na relação com seu filho e com sua filha? Ao ser questionada por eles se só meninos/meninas podem...? ou por que meninos/meninas não podem...?, suas respostas abrem espaço ao devir dos sentidos, a um espaçamento e à disseminação?

O trecho apresentado a seguir teve início com a pergunta "Você acha que existe diferença entre criar um menino e criar uma menina?".

[...] É, apesar de a gente saber que o filho, na verdade, segue muito do que você faz, que a gente acaba sendo mesmo um espelho, ou pra eles não quererem seguir quando adultos, ou até pra espelhar e acabam carregando muita coisa do pai e da mãe. É, a mulher, é... a gente tem um lado muito mãezona mesmo, sabe, acho que, de querer cuidar, de querer fazer tudo pra que tudo fique legal, pra que tenha harmonia em casa, a gente coloca meio que uns panos quentes, mais jogo de cintura, mais flexível. É... isso acaba refletindo na educação dela também. E, apesar de a gente dizer que não, em alguns momentos, por exemplo, de insegurança, do pequeno, que é menino, às vezes, a própria filha, a mais velha, diz 'ai, Felipe, mas você tem que ser forte', tipo, conflitos, coisa de criança, entre eles, entre os amigos, 'Felipe, mas você tem que ser forte, porque quando você crescer você tem que ficar seguro', sabe assim? Essas coisas assim de padrões, que a sociedade te cobra, e tudo, assim. Não acho que isso é ruim, acho que faz parte, da sociedade, mas eu não reforço, não é uma coisa que eu faço questão de manter, assim, sabe, de criar, 'ah, porque eu tenho insegurança, eu tô inseguro, só porque eu sou homem eu tenho que aguentar firme e forte', sabe? Tanto porque, acho que até a gente como mulher hoje vivencia essa situação, também de, de vez em quando, precisar de colo, e pelo fato de ter se colocado na sociedade tão cheia de várias funções, você acaba deixando o lado sensível de lado, assim. Ter que ser forte porque tem que cumprir tudo ao mesmo tempo. Então é, não sei, às vezes é mais fácil falar até do que no dia a dia, mas a gente procura refletir sobre tudo isso.

Embora no início da fala de Paula seja possível visualizar o trabalho da metafísica da presença em atuação, ou seja, estabelecendo ao feminino e à mulher os atributos de uma vocação natural da maternidade, do ser mulher e mãe como aquela que, por uma aptidão inata, teria o dom de cuidar dos filhos e das filhas e a habilidade de harmonizar o lar, logo em seguida é possível entrever brechas, falhas nessa atividade do pensamento filosófico tradicional, que denunciam a heterogeneidade do texto e abrem os espaços por onde é possível realizar uma leitura desconstrutora. Dessa forma, a desconstrução implica criticar os argumentos filosóficos a partir deles mesmos e com seus próprios elementos, já que não existe um "fora" da linguagem nem linguagem que esteja situada para fora da matriz metafísica.

Nessa perspectiva, em sua fala, Paula sugere que, por ser mulher e pelas experiências proporcionadas por esse fato, ela (se) questiona normas e padrões, considerados capazes de aprisionar os sujeitos em regras estabelecidas pela sociedade. Aparecem, em seu texto, indícios de uma dupla escrita, em seu movimento de inversão das hierarquias e, em seguida, de um deslizamento dos sentidos atribuídos ao feminino e ao masculino, que poderiam então lançá-los a um deslocamento, a um devir ou vir-a-ser do signo. Não há respostas predeterminadas, não há fim almejado, significado aspirado pelo signo. Há disseminação, na medida em que feminino e masculino são arremessados ao jogo do entre, do nem/nem.

Em seguida, em outros trechos, visualizamos a tentativa de Paula de adiar conceitualizações, tendo em vista a urgência do chamado do filho e da filha por respostas, e ao mesmo tempo indícios sobre como é suportar esse não-lugar, essa não-resposta.

Pergunta-se: "Então, como você disse, você procura não reforçar quando de repente alguma situação acontece que puxa um pouco pra esse lado dos padrões, assim...?".

Eu não reforço. Mas que eles existem, eles existem. Então eu procuro deixar com que eles entendam ou procurem entender a situação da diferença, que eles podem até escolher diferente, mas que existem pessoas que pensam de outra forma. A gente sempre fala sobre isso.

Pergunta-se: Você lembra de alguma situação, assim, específica que tenha acontecido?

Ah, sim, por exemplo, do pequeno chegar e falar 'mãe, hoje eu brinquei na sala com o meu amigo, e ele tava batendo em um monte de crianças'. Aí eu falei 'mas por quê? Você não perguntou pra professora, a professora falou?'. 'Ah, porque ele tava chateado com alguma coisa que aconteceu na casa dele e ele falou que ele não podia chorar, então que ele ia fazer as pessoas chorarem.' Então, quer dizer, isso foi um desdobramento de sala de aula, de uma criança, que veio de fora, 'mãe, mas por que homem não pode chorar?'. Aí vem a pergunta, o fato de ele querer saber. Entendeu? Então, assim, é uma situação alheia à vida dele, ao cotidiano dele, mas que refletiu e ficou na cabeça dele. Ele ficou pensando, 'mãe, mas por que homem não pode chorar?'. Isso um exemplo, assim.

No trecho anterior, é interessante observar que na situação descrita por Felipe, na experiência narrada por ele, aparecem evidências da heterogeneidade do texto e lacunas que possibilitam problematizar o pensamento da metafísica da substância: nesse mesmo contexto, destacam-se tanto o falologocentrismo em atuação como a possibilidade de deslizamento e de devir dos sentidos. O primeiro movimento aparece produzindo sentidos únicos aos signos, expostos no discurso proferido pelo colega de Felipe, quando esse diz que, por ser menino, não pode chorar. O segundo é flagrado nos possíveis resultados da ação violenta desse menino: se ele vai bater em seus colegas, entre eles meninos e meninas, e esses meninos vão chorar, é porque então meninos podem chorar.

Esse é, contudo, um flagrante que ganha visibilidade pelo trabalho da desconstrução. Na experiência de Felipe, haveria espaço para a ruptura com o imperativo do ser da presença, da essência e da substância, na pressão exercida pela heteronormatividade e pelo chamado às identidades de gênero estáveis, inteligíveis e uniformes? De alguma maneira, poderíamos pensar que seu colega, embora não esteja condenado a permanecer nessa condição e com esse olhar para o masculino, dá indícios de que está capturado por uma universalidade desse conceito.

A heteronormatividade seria a matriz de inteligibilidade hegemônica que pressupõe a produção de sujeitos cujas identidades de gênero correspondem ao seu sexo anatômico e que possuem como objeto de desejo pessoas de sexo e de gênero diferentes, partindo-se da ideia de complementaridade pela diferença.27 27 Judith BUTLER, 2008. É possível dizer que existem vinculações políticas e sociais relacionadas à heteronormatividade e ao binarismo que produzem, dentre outros, o masculino e o feminino, o homem e a mulher, e que elas possibilitam aos sujeitos tanto elaborarem suas subjetividades quanto compreenderem a si mesmos a partir de referenciais e representações identitárias.

Sendo Felipe o filho de Paula mais questionador, como o havia descrito em trechos anteriores, ele a inquire sobre outros "atributos" relacionados ao "ser homem" e "ser mulher". Que possibilidades Paula encontra diante desses chamados?

Com a mais velha ainda não, acho que ela é, não sei se a palavra certa é madura, pra idade dela, ou se ela vai internalizando bem, e ela tem essa, mais de solta, de independente, ela não questiona tanto. Mas ele questiona, ele questiona, 'mas por que homem tem que ir trabalhar? Mas por que homem tem que, tem que'... sei lá, 'pagar conta?'. Que às vezes, vê o pai indo fazer alguma coisa de banco, ou 'o papai tem que fazer banco, não dá tempo agora, depois a gente faz isso'. Aí não exatamente naquela hora, às vezes, no momento, assim, em que a gente tá assistindo TV ou que a gente tá em casa sem fazer nada, no final de semana, aí ele vem com essas perguntas, do nada, 'mãe, mas por que o homem tem que trabalhar?', 'Mas por que mulher tem que ter filho e o homem não tem?', então, sabe? Essa curiosidade, e coisa que, engraçado, a minha filha não teve. Agora, eu não sei se isso é necessariamente de menino, ou se é de personalidade, daí, de traço de personalidade. É, coisa que ele também pergunta é 'por que eu não posso ter filhos, só mulher pode ter filho?'. Um monte de coisas assim que, ele faz muito mais perguntas, assim, que te deixa mais 'e agora, o que eu respondo?', do que ela. [...] Ah, eu sempre respiro fundo, (risos), mas nunca deixo sem resposta. Eu acho que isso é importante. Não sei se necessariamente eu dou uma resposta satisfatória, mas eu tento, dentro daquele mundo dele, ali, do meu, do entendimento nosso, ali, do diálogo, dar uma resposta pra ele, assim, que ele consiga dizer 'não, realmente eu tô satisfeito'. Quando ele não fica, ele também continua perguntando. Aí às vezes eu até chamo, peço a ajuda do pai, 'ai, vem aqui que o Felipe quer saber, eu já expliquei, mas ele não tá entendendo, quem sabe você não consegue explicar melhor', aí, eu chamo ajuda.

[...] Eu disse pra ele que na verdade não é que só o homem tem que trabalhar, homens e mulheres trabalham. E cada um tem determinadas funções, e dependendo de cada profissão eles têm obrigações e deveres a fazer. E necessariamente não significa que seja uma coisa ruim ou boa. Porque, na verdade, o questionamento dele maior foi porque o meu marido tava super atribulado, fazendo várias coisas, e apesar de eu também trabalhar, mas naquele dia eu tá mais tranquila, então ele entendeu assim, 'poxa, o pai tá sobrecarregado, a mãe tá mais tranquila', assim, sabe. 'Então por que homem tem mais trabalho do que mulher?' Na cabeça dele ficou aquilo naquele momento, entendeu? E aí eu fui tentando explicar pra ele, que tem diversas situações, enfim. Mas é um diálogo, que nem eu tô te falando, ele depende muito daquele momento, assim, não necessariamente você consegue responder tudo pra criança, porque eles são muito pequenos, assim. E ah, depois de vez em quando ele volta, com outras perguntas, com outros questionamentos.

Esse movimento de não fixar sentidos nos faz pensar que, mais importante do que dar uma resposta definitiva ou conclusiva sobre as perguntas que questionam os lugares postos pela metafísica da presença, o trabalho da desconstrução é o de questionar os limites desse pensamento da substância, da essência, das identidades, dos binarismos e das hierarquias.

Problematizar o primado do falologocentrismo implica, assim, uma tentativa de dessubstancializar a subjetividade, de pensá-la não mais como marcada por uma soberania da vontade, da consciência e da autonomia. Significa, ainda, pensar não em um fim, como diz Derrrida, mas para um "além clausura" de uma matriz de pensamento que lança os sujeitos – não os sujeitos teóricos, mas o sujeitos concretos – em um imperativo de uma plenitude, de uma presença estável e constante, de uma identidade que seja inteligível aos demais e que possa ser claramente enunciada pelas pessoas. Sugere, além disso, uma crítica às teorias que creem na possibilidade de representação de identidades, do acesso imediato, eficaz e seguro a um "eu" unificado, sem contradições e inconstâncias.

Considerações finais

Abrir espaço para as experiências que se constroem nos espaços "entre" os binarismos e as hierarquias metafísicas relaciona-se, portanto, a práticas que habitam a instabilidade, que não se possam mais demarcar como pertencentes a um ou outro polo opositivo, mas que engendram cenários, práticas e discursos mergulhados em uma multiplicidade. Assim, não se trata de negar o valor da tradição filosófica ocidental, mas de realizar um questionamento dos limites de uma filosofia da representação, binária e hierárquica. Conforme afirma Derrida, não há sentido em abandonar os conceitos da metafísica para abalar a metafísica, tendo em vista que não dispomos de linguagem que seja estranha a essa história. Assim, "não podemos enunciar nenhuma proposição destruidora que não se tenha já visto obrigada a escorregar para a forma, para a lógica e para as postulações implícitas daquilo mesmo que gostaria de contestar".28 28 DERRIDA, 2008, p. 410.

Seria preciso, assim, desconstruir a ilusão de que é possível acessar o outro em sua totalidade e traduzi-lo em uma identidade representativa de um eu, visto que a noção de representação remete a um sujeito que conhece de um lado e um objeto a ser conhecido de outro. Importa desconstruir a concepção de que é possível enunciar verdades sobre o sujeito entendidas como dados, ideias ou informações que o constituem e se encontram à espera de serem descobertas ou descortinadas. Esse gesto desconstrutor é possível desde que nos lançamos no campo dos indecidíveis, em um jogo entre o que não é nem falso nem verdadeiro, nem presente nem ausente, nem aparência nem essência.

Derrida descreve a operação feminina como aquela que, como indecidível, busca situar os conceitos em um "para além" dos lugares binários e substantivados organizados pela metafísica da presença, escapando às demarcações dos atributos falologocêntricos.29 29 DERRIDA, 1981. Contudo, conforme ele mesmo nos mostra, esse "para além" não indica um "fora" do pensamento ocidental, mas sugere, principalmente, um gesto transgressivo, tendo em vista que "a transgressão implica que o limite esteja sempre em movimento".30 30 DERRIDA, 2001, p. 19.

O gesto desconstrutor escancara, finalmente, que, por maior força que os binarismos e as hierarquias coloquem na tentativa de barrar práticas de liberdade, não há possibilidade de recobrimento dos sujeitos e de suas experiências. Os vazamentos, os escapes acontecem e, assim como a desconstrução, têm lugar. Mas se esse é um jogo de forças, há ainda muito a desconstruir nesses fundamentos que balizam o pensamento ocidental. E, se somos todos e todas herdeiros e herdeiras, vistos não mais como sujeitos unos, mas constituídos pela alteridade que nos vincula ao outro, assumir essa herança é, então, uma forma de abrir lugar para o imprevisível do por-vir.

[Recebido em 22 de julho de 2011 reapresentado em 27 de dezembro de 2011 e aceito para publicação em 8 de março de 2012]

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  • 2
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  • 3
    Dissertação de mestrado defendida por Fabíola Langaro e orientada por Mériti de Souza no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina no ano de 2010.
  • 4
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  • 5
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  • 25
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  • 26
    CONTINENTINO, 2006, p. 39.
  • 27
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  • 28
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  • 29
    DERRIDA, 1981.
  • 30
    DERRIDA, 2001, p. 19.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      22 Jul 2011
    • Aceito
      08 Mar 2012
    • Revisado
      27 Dez 2011
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