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Luzes femininas: a felicidade segundo Madame du Châtelet

Enlightenment women: happiness according to Madame du Châtelet

Resumos

As luzes do Iluminismo francês consagradas por certa história da filosofia foram indubitavelmente as masculinas. As presenças de Voltaire, Rousseau e Diderot nas pesquisas e nas obras sobre o período são quase absolutas. A finalidade deste artigo é explorar as Luzes francesas, particularmente, a questão ética da felicidade, pelo olhar de uma razão tão ilustrada quanto a de Voltaire, Rousseau ou Diderot, porém de saiotes e espartilho: o pensamento de Émilie du Châtelet (1706-1749). Pouco conhecida pelo público brasileiro e menos estudada ainda pelos dix-huitièmistes locais, Madame du Châtelet, marquesa de berço, escreveu, por volta de 1746, um Discurso sobre a felicidade. O exame de algumas das teses e propostas éticas contidas nesse opúsculo é uma oportunidade instigante para se entenderem um pouco melhor não só as Luzes francesas, mas, sobretudo, a sensibilidade e as angústias das mulheres de vanguarda da França pré-revolucionária.

Madame du Châtelet; Iluminismo; felicidade; mulher


The French Enlightenment distinguished by a certain history has been undoubtedly male, as reveals the almost exclusive presence of Voltaire, Rousseau and Diderot in the researches and works about that time. The aim of this study is to investigate the period, mainly approaching the ethical issue of happiness, but not through the looks of those celebrated male philosophers, but of a person in skirts and corselets: Émilie du Châtelet (1706-1749). Little known by the Brazilian readers, and little studied by the local experts on the 1800s, Madame du Châtelet, born a Marquise, wrote, around 1746, a Discourse on happiness. The examination of some of the thesis and ethical proposals contained in that opuscule is an instigating opportunity to understand better not only the French Enlightenment, but also the sensibility and anxieties of the vanguard women in the pre-revolutionary France.

Madame du Châtelet; Enlightenment; Happiness; Women


ARTIGOS TEMÁTICOS

Luzes femininas: a felicidade segundo Madame du Châtelet

Enlightenment women: happiness according to Madame du Châtelet

Paulo Jonas de Lima PivaI; Fabiana TamizariII

IUniversidade São Judas Tadeu

IIUniversidade de São Paulo

RESUMO

As luzes do Iluminismo francês consagradas por certa história da filosofia foram indubitavelmente as masculinas. As presenças de Voltaire, Rousseau e Diderot nas pesquisas e nas obras sobre o período são quase absolutas. A finalidade deste artigo é explorar as Luzes francesas, particularmente, a questão ética da felicidade, pelo olhar de uma razão tão ilustrada quanto a de Voltaire, Rousseau ou Diderot, porém de saiotes e espartilho: o pensamento de Émilie du Châtelet (1706-1749). Pouco conhecida pelo público brasileiro e menos estudada ainda pelos dix-huitièmistes locais, Madame du Châtelet, marquesa de berço, escreveu, por volta de 1746, um Discurso sobre a felicidade. O exame de algumas das teses e propostas éticas contidas nesse opúsculo é uma oportunidade instigante para se entenderem um pouco melhor não só as Luzes francesas, mas, sobretudo, a sensibilidade e as angústias das mulheres de vanguarda da França pré-revolucionária.

Palavras-chave: Madame du Châtelet; Iluminismo; felicidade; mulher.

ABSTRACT

The French Enlightenment distinguished by a certain history has been undoubtedly male, as reveals the almost exclusive presence of Voltaire, Rousseau and Diderot in the researches and works about that time. The aim of this study is to investigate the period, mainly approaching the ethical issue of happiness, but not through the looks of those celebrated male philosophers, but of a person in skirts and corselets: Émilie du Châtelet (1706-1749). Little known by the Brazilian readers, and little studied by the local experts on the 1800s, Madame du Châtelet, born a Marquise, wrote, around 1746, a Discourse on happiness. The examination of some of the thesis and ethical proposals contained in that opuscule is an instigating opportunity to understand better not only the French Enlightenment, but also the sensibility and anxieties of the vanguard women in the pre-revolutionary France.

Key Words: Madame du Châtelet; Enlightenment; Happiness; Women.

Um discurso de mulher

Gabrielle-Émilie Le Tonnelier de Breteuil, a Marquesa du Châtelet (1706-1749), foi muito mais do que um affaire de Voltaire, como a reduzem as wikipédias e alguns manuais de Iluminismo; ela teve personalidade e inteligência suficientes para ser não só uma mulher extemporânea, mas para, ainda hoje, ser evocada como referência histórica na reflexão sobre a luta pela emancipação feminina. Sobre sua relevância no movimento das Luzes francesas, Elisabeth Badinter, uma de suas principais estudiosas, destaca no prefácio da edição brasileira do Discurso sobre a felicidade, livro de Châtelet redigido por volta de 1746, o seguinte:

Apesar das obrigações que nenhuma mulher de sua categoria podia evitar, Émilie du Châtelet foi a pessoa que menos se submeteu aos preconceitos de sua época e que mais soube afirmar sua originalidade, sua independência e sua ambição contra um mundo hostil a tais pretensões.1 1 Elisabeth BADINTER, 2002, p. VII.

Châtelet desejava ser reconhecida como a primeira mulher do seu tempo a se dedicar às ciências.2 2 cf. BADINTER, 2003, p. 126. Para isso, não poupou esforços; realizou pesquisas no campo da geometria, da matemática e, em especial, da física, área na qual desenvolveu os seus mais significativos trabalhos, traduzindo, inclusive, para o francês a Principia mathematica, de Isaac Newton, de 1759, empreendimento ao qual dedicou cinco anos de sua vida. Vale dizer que Châtelet, que estava grávida enquanto traduzia Newton, faleceu logo que concluiu a tradução. Assim que deu à luz, em francês, à obra-prima de Newton, ela morreu alguns dias após o parto, junto com sua filha recém-nascida. Mortes decorrentes do parto, diga-se de passagem, eram um dos grandes males que afligiam as mulheres no Antigo Regime.

Encarnando o espírito entusiasta, ousado e militante da sua época, Châtelet empenhou-se em utilizar a razão para combater os preconceitos e a intolerância reinantes, esses fomentados pelos dogmas religiosos e pelo obscurantismo. Publicou com esse objetivo, por exemplo, em 1738, O exame da Bíblia, texto no qual reduz a mitos e ficções as narrações e os personagens bíblicos.

Châtelet compartilhava ainda com os seus contemporâneos ilustrados o ideal de que os filósofos deveriam ser mais presentes e úteis à sociedade. Para isso, esses deveriam sair do isolamento da vida contemplativa para promover a sociabilidade. Tal proposta, aliás, constituía a essência do novo conceito de filósofo criado pela Ilustração francesa. Esse conceito, por sua vez, encontramos expresso de modo cabal no verbete "Filósofo", da Enciclopédia, não se sabe ao certo se de Diderot, provavelmente de 1743, bem como no manuscrito clandestino O verdadeiro filósofo, de César Chesneau Du Marsais, de 1796,3 3 Há uma controvérsia sobre a autoria do texto que aparece no verbete "Filósofo" e em O verdadeiro filósofo. Trata-se praticamente do mesmo texto. Para alguns estudiosos, Diderot seria o seu verdadeiro autor; para outros, o autor verdadeiro teria sido Du Marsais (cf. Paulo Jonas de Lima PIVA, 2003, p. 22). uma versão modificada do verbete, em que lemos, a propósito,

Nosso filósofo não crê estar exilado neste mundo; não acredita estar em país inimigo. Ele quer desfrutar, como sábio ecônomo, dos bens que a natureza lhe oferece, quer encontrar prazer com os outros e, para encontrá-lo, é preciso causá-lo. Assim, ele procura convir aqueles com quem o acaso ou sua escolha o fazem viver, e ao mesmo tempo encontra aquilo que lhe convém. É um homem honesto, que quer agradar e tornar-se útil.4 4 César Chesneau DU MARSAIS, 2008, p. 33.

No Discurso sobre a felicidade, de Châtelet, escrito entre os anos de 1746 e 1747, encontramos muito dessa concepção de filósofo. Ao contrário das demais obras da filósofa, essa não foi redigida com a intenção de ser publicada. Trata-se, no fundo, de um conjunto de reflexões desenvolvidas durante um período difícil da vida da marquesa, quando Voltaire e ela desfizeram o relacionamento conjugal que tinham.5 5 cf. BADINTER, 2002, p. XII. Não obstante, mesmo concebido em circunstâncias doloridas e em meio a outros "cinquenta" tratados e ensaios sobre a felicidade que pululavam no século XVIII,6 6 cf. BADINTER, 2002, p. VII. o Discurso de Châtelet impõe-se com vigor, particularmente em virtude da singularidade do ponto de vista mediante o qual o tema é abordado, ou seja, o da razão e da sensibilidade femininas. É o que assevera Badinter em outros termos: "ao contrário dos homens que escreveram sobre o tema, ela [Châtelet] soube distinguir as condições da felicidade em geral e a felicidade com que as mulheres deveriam se contentar, sem com isso permanecer nos limites que lhes eram designados".7 7 BADINTER, 2002, p. VII.

Formação e obra de uma filósofa iluminista

Madame du Châtelet teve uma educação diferenciada da formação que tiveram as outras mulheres da nobreza francesa do seu século. Com a instrução a cargo do seu pai, nenhum conhecimento lhe foi negado no seu processo educacional, como observa Badinter, agora em sua obra Émilie, Émilie: a ambição feminina no século XVIII:

Nenhum conhecimento lhe foi proibido, nenhum constrangimento pesou sobre ela por causa de seu sexo. Naquela época, quando a educação das moças era tão negligenciada e se limitava na maioria das vezes a um pouco de escrita, de leitura, alguns trechos de história e às artes recreativas, Émilie fez estudos aprofundados dos quais muitos homens não poderiam se vangloriar.8 8 BADINTER, 2003, p. 65.

Châtelet deu prosseguimento aos estudos na vida adulta, mesmo sem poder frequentar a universidade, essa, na sua época, um espaço restrito aos homens, obviamente. Não obstante, ela teve contato com pensadores e estudiosos importantes do período, dentre eles, Voltaire e Maupertuis, interlocutores fundamentais para o desenvolvimento de sua reflexão autônoma.9 9 cf. Colette LAY, 2004, p. 305. Tal independência, por sua vez, fez história. Maria Susana Seguin, no texto "Les femmes et les sciences de la nature", afirma, por exemplo, que Châtelet foi a única filósofa no Iluminismo francês que construiu um pensamento próprio, participando de forma ativa e autônoma nos debates filosóficos e científicos da França setecentista. A pesquisadora também assinala que, apesar de outras mulheres também terem atuado nesse universo, nenhuma delas alcançou a independência intelectual e o destaque da marquesa. Enquanto Châtelet protagonizava as discussões num ambiente tomado por homens incomodados com a sua ousadia, as demais se limitavam a fornecer assistência aos estudiosos, na condição de simples aprendizes e de meras coadjuvantes dos cientistas homens.10 10 cf. Maria-Susana SEGUIN, 2004, p. 334. Ou seja, sua intensa atividade filosófica e científica permitiu-lhe um exercício de liberdade não desfrutado pelas suas contemporâneas. Em contrapartida, as hostilidades e as perseguições por aventurar-se nesse mundo claramente de domínio masculino já eram previsíveis e foram contra ela inevitáveis.11 11 cf. LAY, 2004, p. 305. Um exemplo célebre dessa intolerância e preconceito encontramos, quem diria, em Immanuel Kant. Em alusão à nossa madame indagadora, o filósofo do imperativo categórico escreve no seu Da diferença entre o sublime e o belo na relação dos sexos, de 1764, o seguinte:

A uma mulher que tenha a cabeça entulhada no grego, como a senhora Dacier, ou que trave disputas profundas sobre mecânica, como a Marquesa de Châtelet, só pode mesmo faltar uma barba, pois com esta talvez consigam exprimir melhor o ar de profundidade a que aspiram.12 12 Immanuel KANT, 1993, p. 49.

A ousadia de Châtelet não tinha limites. Em 1738, ela participou de um concurso da Academia de Ciências, a qual havia proposto uma dissertação com o tema "Sobre a natureza do fogo e de sua propagação". A filósofa concorreu anonimamente, inclusive sem o conhecimento do seu amante, Voltaire, que também participou da disputa. Nenhum dos dois venceu o concurso, porém o feito da marquesa entrou para a história, pois ela foi a única mulher a participar de um concurso científico no século XVIII.13 13 cf. John R. IVERSON e Marie-Pascale PIERETTI, 2004, p. 317.

Outra ousadia de Châtelet digna de menção foi a publicação, em 1740, da sua mais importante obra, As instituições da física, fruto de uma pesquisa minuciosa, cuja argumentação parte e se fundamenta em conceitos de Leibniz, Descartes e Newton.14 14 cf. BADINTER, 2003, p. 294. Contudo, a obra foi acusada de desonestidade intelectual e de plágio pelas autoridades filosóficas da época, vale insistir, todos homens. Instigados pelo preconceito, muitos desses doutos duvidavam de que uma mulher fosse capaz de engendrar um estudo sério e independente sobre a física. Châtelet, por sua vez, conseguiu provar a autenticidade de suas ideias. Com isso, acabou tendo seu livro reconhecido, sendo, inclusive, traduzido para o alemão e para o italiano posteriormente.15 15 cf. BADINTER, 2003, p. 319.

Em 1744, Châtelet inicia a tradução da célebre Principia mathematica, de Newton, tarefa na qual, como já adiantamos, vai se concentrar durante cinco anos, tornando-se uma especialista no pensamento do físico inglês. No Elogio histórico à Madame Marquesa du Châtelet, escrito por Voltaire logo após o falecimento da filósofa, em 1749, o polemista francês, em clima de luto e homenagem, destaca a importância do trabalho da companheira para a divulgação da doutrina newtoniana na França:

Esta tradução que os maiores sábios da França deveriam fazer e que os outros deveriam estudar, uma senhora a empreendeu e a realizou, para espanto e glória do seu país. Gabrielle-Émilie de Breteuil, esposa do marquês de Châtelet-Laumont, tenente-general do exército do rei, é a autora desta tradução, necessária para todos aqueles que desejam adquirir conhecimentos profundos cujo mundo é tributário do grande Newton.16 16 François VOLTAIRE, 2010, p. 1.

A obra deixada por Châtelet ficou esquecida durante todo o século XIX e por boa parte do século XX. Recentemente, em 1978, foi publicada uma biografia completa da "amante de Voltaire". Para Badinter, duas seriam as razões desse esquecimento: a primeira delas, o fato de os seus estudos científicos e filosóficos só terem despertado interesse entre especialistas em história da filosofia,17 17 cf. BADINTER, 2003, p. 443. esse, um público muito restrito; a segunda, o fato de o comportamento representado por Châtelet se chocar com o padrão exigido das mulheres até algumas décadas atrás. O surgimento de filósofas como Simone de Beauvoir – em alguma medida, herdeira ideológica de Châtelet – e as influências por elas causadas na transformação dos costumes femininos do século XX certamente mudaram o julgamento dos estudiosos acerca da marquesa. A esse respeito – inclusive aludindo a Beauvoir – escreve Badinter:

Madame du Châtelet não poderia ser oferecida como modelo a outras mulheres. Era muito livre, muito inteligente, muito ambiciosa para ter alguma semelhança com o ideal feminino que até algumas décadas atrás foi o vitorioso. Enquanto a mulher fosse representada com os traços da mãe de família, dona de casa, cujas pretensões intelectuais eram ironicamente desprezadas, seria impossível compatibilizar Émilie com esse estereótipo. Impossível passar a amante escandalosa de Voltaire por uma esposa fiel, a mulher de ciências por uma mãe atenta e devotada. Foi preciso esperar a formação de um outro casal de filósofos, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, para que o público e, em particular, as mulheres admitissem que uma outra mulher pudesse consagrar sua vida ao amor, ao estudo e à liberdade.18 18 BADINTER, 2003, p. 443.

De como ser feliz

No Discurso sobre a felicidade, Châtelet enfrenta alguns dos dilemas da ética do seu tempo e faz da felicidade o seu tema nuclear. Ela argumenta que é possível, homens e mulheres, sermos felizes não numa vida post mortem, como apregoava e ainda apregoa a religião, mas nesta vida terrena e fugaz; e propõe um caminho seguro para isso, porém quase sem nenhuma originalidade: sujeitarmos nossas vontades e nossos desejos ao domínio da razão, uma vez que a felicidade, efetivamente falando, exigiria reflexão e a elaboração de um plano ponderado de conduta por parte de cada indivíduo. Em suas palavras, "seria mais fácil ser feliz se entre os homens as reflexões e o plano de conduta precedessem suas ações".19 19 Gabrielle-Émilie Le Tonnelier de Breteuil CHÂTELET, 2002, p. 3. E isso deveria ser feito logo na juventude, evitando que só percebêssemos na maturidade, isto é, muito tempo depois dos nossos melhores anos, as condições necessárias para ser feliz. Nesse sentido, Châtelet compara a vida a uma emocionante aventura pelos mares. Preparar-se bem para a vida como se prepara para uma viagem inesquecível seria a garantia de usufruir o máximo dos prazeres e das alegrias que ela pode nos proporcionar.20 20 cf. CHÂTELET, 2002, p. 3.

Partindo da premissa, ou melhor, do quase truísmo, de que a felicidade se obtém agindo de maneira ponderada, Châtelet expõe uma série de atitudes que, em sua opinião, poderiam efetivar tal objetivo:

[...] Empenhemo-nos portanto em ter boa saúde, em não ter preconceitos, em ter paixões, em fazê-las servir à nossa felicidade, em substituir nossas paixões por gostos, em conservar preciosamente nossas ilusões, em ser virtuosos, em jamais nos arrepender, em afastar de nós as idéias tristes, em jamais permitir que nosso coração conserve uma faísca de amor por alguém cujo gosto esteja diminuindo e que deixe de nos amar. É preciso abandonar o amor um dia, por menos que se envelheça, e esse dia deve ser aquele em que ele deixe de nos fazer feliz. Por fim, trataremos de cultivar o gosto pelo estudo, esse gosto que faz nossa felicidade só depende de nós mesmos. Evitemos a ambição, e, sobretudo, saibamos bem o que queremos ser, enveredar para passar nossa vida, e tratemos de semeá-lo com flores.21 21 CHÂTELET, 2002, p. 39.

Examinemos então tais recomendações.

Para Châtelet, a condição essencial para sermos plenamente felizes é termos uma boa saúde, além de não nos deixarmos levar por preconceitos. Essa condição, segundo a filósofa, irá depender do comportamento e do bom senso de cada um em relação ao seu próprio corpo.22 22 cf. CHÂTELET, 2002, p. 8. Ela insiste, inclusive, que o indivíduo consciente da ligação entre felicidade e saúde não terá dificuldades para submeter-se a sacrifícios para manter-se saudável, conforme lemos na seguinte passagem do Discurso: "Quando existe a convicção de que, sem saúde, não se pode fruir de nenhum prazer e de nenhum bem, não é difícil resolver-se a fazer alguns sacrifícios para conservá-la".23 23 CHÂTELET, 2002, p. 10.

Obviamente, o indivíduo constituído de uma boa saúde poderá gozar plenamente das paixões e dos gostos, os quais, segundo Châtelet, seriam as fontes dos prazeres mais intensos da vida:

Mas suponhamos por um momento que as paixões façam mais infelizes do que felizes; e digo que ainda seriam algo desejável, porque são uma condição sem a qual não se pode obter grandes prazeres; ora, só vale a pena viver quando mais vívidos forem os sentimentos agradáveis; e, quando mais vívidos forem os sentimentos agradáveis, mais felizes somos. É, portanto, o caso de desejar ser suscetível a paixões, e repito novamente; só não as tem quem não quer.24 24 CHÂTELET, 2002, p. 6.

Cabe ressaltar que não se trata aqui do gozo irrestrito e desenfreado das paixões. Invocando a administração racional dos prazeres, Châtelet argumenta que apenas será feliz aquele que tiver controle sobre elas. E controlar não significa tentar extingui-las, como fariam certos estoicos e fazem certos ascetas. Algumas paixões causadoras de prazer, como a ambição desmedida, o ódio e a vingança, por exemplo, devem ser evitadas. No julgamento moral de Châtelet, tais paixões seriam vícios. E, por serem vícios, na medida em que, embora prazerosas ao indivíduo, podem prejudicar outras pessoas e o convívio, essas paixões inviabilizariam a felicidade. Aos seus olhos, para ser feliz é necessário também ser virtuoso. E virtuoso, no caso, seria respeitar a integridade alheia, não ser um egoísta. Virtude e felicidade então não devem ser pensadas separadamente, mas como partes dependentes uma da outra. Portanto, um homem mau dificilmente seria feliz.

Nesse sentido, para a filósofa francesa, as paixões são vitais para o homem; logo, os homens não devem se privar do prazer da boa comida, dos jogos, dos amores, do estudo e dos demais prazeres, porém esses só serão fonte de felicidade caso forem administrados racionalmente, ou seja, desfrutados de forma moderada e calculada.25 25 cf. CHÂTELET, 2002, p. 6.

A mesma atitude de moderação em relação às paixões Châtelet recomenda para as ilusões. Moderação, nesse caso específico, consistiria em desconfiança, suspeita e precaução que todos deveriam ter diante dos ideais, das promessas, dos sentimentos, das esperanças e dos projetos de vida. As ilusões, no entender da filósofa, não se resumiriam a subterfúgios da realidade. A despeito do paradoxo, Châtelet propõe uma espécie de convivência lúcida com as ilusões, pois verifica nelas algo de fundamental para encantar e tornar mais aprazíveis as nossas vidas. A felicidade exige, argumenta a autora, primeiramente que aceitemos a nossa condição concreta, por pior que ela seja, porém exige de nós, na mesma medida, que nos esforcemos para melhorá-la conscientes dos limites da nossa capacidade de promover essa melhora. Para Châtelet, a ilusão assim entendida e administrada nutre e mantém vivazes as paixões: "Ela mescla-se a todos os prazeres de nossa vida, sendo seu verniz".26 26 CHÂTELET, 2002, p. 16. Entretanto, recomenda, é preciso manter sob vigilância as ilusões, evitando que elas pereçam ou que levem o indivíduo à perda de contato consciente com a realidade.27 27 cf. CHÂTELET, 2002, p. 16. Nesse sentido, uma das ilusões que Châtelet considera muito úteis à vida é o amor pela glória. Essa, segunda a filósofa, opera como força motivadora para que os seres humanos busquem o aperfeiçoamento e a melhoria da sociedade. Buscando escrever o seu nome na história, motivado pelo amor-próprio, o indivíduo promoveria com ações, em certo sentido egoístas, os avanços que, paradoxalmente, contribuiriam para o aperfeiçoamento da humanidade:

O amor pela glória, que é fonte de tanto prazer e de tantos esforços de todos os gêneros que contribuem para a felicidade, para a instrução e para a perfeição da sociedade, é inteiramente baseada na ilusão, nada é tão fácil quanto fazer desaparecer o fantasma atrás da qual correm todas as almas elevadas, mas quanto haveria de perder para elas e para as outras! Sei que há alguma realidade no amor pela glória de que podemos usufruir enquanto estamos vivos; mas praticamente não existe nenhum herói, de nenhum gênero, que queira se despojar inteiramente dos aplausos da posteridade, da qual se espera até mais justiça do que de seus contemporâneos. [...] Por mais que neguemos, o amor-próprio é sempre o móvel mais ou menos oculto de nossas ações; é o vento que infla as velas, sem a embarcação não navegaria.28 28 CHÂTELET, 2002, p. 22.

Quando Châtelet propõe que a dissipação dos preconceitos seja uma condição essencial para se alcançar a felicidade, ela posiciona-se pela valorização e pela primazia do conhecimento racional. Para a filósofa francesa, o pior tipo de preconceito seria o de natureza religiosa. Olhando para a experiência histórica, é possível constatarmos, pensa Châtelet, que os valores e os preceitos pautados pela religião acabam influindo negativamente na felicidade dos seres humanos, sobretudo pelas suas proibições ao prazer.29 29 cf. CHÂTELET, 2002, p. 11. A solução sugerida por Châtelet para tal questão estaria no próprio indivíduo. Trata-se da razão, mais precisamente, do seu exercício autônomo e da aquisição de instrução e de conhecimento.30 30 cf. CHÂTELET, 2002, p. 11.

Concebendo a religião como a fonte principal dos preconceitos e, sobretudo, da infelicidade, Châtelet refere-se a outro fundamento para a virtude e, por conseguinte, para a felicidade: "Compreendo por virtude tudo o que concorre para a felicidade da sociedade e, por conseguinte, para a nossa, pois somos membros da sociedade".31 31 CHÂTELET, 2002, p. 12. Assim sendo, um dos vínculos mais elementares entre o indivíduo e a sociedade seria o decoro, que regula e ordena as relações sociais, sendo imprescindível no relacionamento entre todos.32 32 cf. CHÂTELET, 2002, p. 12. Em contrapartida, o "comportamento devasso" seria a ação viciosa por excelência. Mas o que seria devassidão para Châtelet?

Châtelet entende devassidão à maneira do senso comum, isto é, julga assim atitudes como falsidade, calúnia, ingratidão e delação.33 33 cf. CHÂTELET, 2002, p. 13. Devassidão, portanto, seria todo e qualquer ato imoral. Sua definição de devassidão é então bastante ampla. Falsidade, calúnia, ingratidão e outros vícios assim considerados pela tradição seriam comportamentos incompatíveis com a felicidade e, no mínimo, por dois motivos: o primeiro deles, indivíduos que vivem tais vícios acabam socialmente desprezados, desprezo esse que equivaleria efetivamente à execução de uma sentença;34 34 cf. CHÂTELET, 2002, p. 13. o segundo, que ao agir de forma devassa, isto é, imoral em sentido lato, o indivíduo opor-se-ia à sua própria natureza: "Disse que não se pode ser feliz e devasso, e a demonstração desse axioma está no fundo do coração de todos os homens".35 35 CHÂTELET, 2002, p. 13. Sendo assim, o indivíduo, ao agir de forma devassa, além de sofrer as consequências da reprovação pública, também sofreria as consequências da reprovação da sua própria consciência moral,36 36 cf. CHÂTELET, 2002, p. 14. o que nos leva a inferir que haveria no homem, em última instância, um senso inato de moralidade.

Além da boa saúde, da valorização das paixões e dos gostos, da manutenção de certas ilusões, do combate ao preconceito e do cultivo das virtudes, Châtelet argumenta ainda que há três habilidades que contribuem para a felicidade:37 37 cf. CHÂTELET, 2002, p. 17 a primeira delas é ter a certeza sobre as escolhas que se fazem na vida; a segunda, é não se deixar consumir pelo sentimento de culpa;38 38 cf. CHÂTELET, 2002, p. 18. a terceira, afastar-se das ideias negativas, particularmente as de teor metafísico. Para ilustrar o seu argumento, Châtelet se contrapõe ao filósofo Michel de Montaigne, o qual declara em seus escritos que havia se acostumado com a ideia da morte e esperava placidamente por ela, reduzindo a vida, portanto, a uma calma e resignada espera pelo fim. Para a filósofa francesa, essa postura de Montaigne seria um desperdício de reflexões, conduzindo o indivíduo a uma debilitação do espírito. Em vez disso, deveríamos alimentar pensamentos positivos, isto é, voltados para uma vida mais prática e, por conseguinte, cada vez mais feliz.39 39 cf. CHÂTELET, 2002, p. 19.

A filosofia portadora de uma sabedoria, de uma arte do bem viver, articulada por Châtelet, embora simples e previsível à primeira vista, situa-se numa atmosfera de mudança significativa da concepção de felicidade na Idade Moderna. Nesse período não se busca mais na religião o único caminho para a felicidade. As respostas passam a ser buscadas no próprio sujeito, que se torna a medida de suas ações. Essa é a interpretação de Franklin Leopoldo e Silva, para o qual tal mudança ocorreu de forma paulatina, num contexto em que a religião deixa de ser o único princípio e a referência explicativa absoluta do mundo e passa a ser substituída por uma cosmovisão laica, de caráter racionalista, provocada e motivada pelas transformações científicas, técnicas, políticas e econômicas que remodelaram a sociedade moderna:

Especial atenção deve ser dada à conjunção de ciência, técnica e ética, cuja articulação será decisiva para os rumos da civilização moderna, doravante pautada pela hegemonia da razão como marca distintiva da autonomia cuja afirmação aparece como a mais insigne tarefa a ser empreendida pelo homem na busca da realização de sua singularidade, entendida como a felicidade racionalmente constituída. Essa autonomia manifesta-se na noção de subjetividade como centro irradiador da evidência no conhecimento e da norma no plano de ação. A figura do sujeito adquire então a primazia que fundamentará a representação como critério de realidade, de verdade e de bem.40 40 Franklin Leopoldo e SILVA, 2007, p. 54.

Na trilha de Franklin Leopoldo e Silva, Badinter escreve acerca de Châtelet:

Sua filosofia será compartilhada por um grande número de homens e mulheres do século XVIII, para os quais os prazeres e as paixões possuem uma consistência que a beatitude não tem mais. O importante é viver bem esta vida e não a consumir esperando uma eternidade na qual nunca saberemos nada.41 41 BADINTER, 2003, p. 23.

A tese da moderação como via para a felicidade aproxima do epicurismo o pensamento de Châtelet expresso no Discurso, como podemos constatar nesta passagem da Carta sobre a felicidade, de Epicuro:

Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, se um prazer maior advir depois de suportamos essas dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza, não obstante isso, nem todos são escolhidos, do mesmo modo, toda a dor é um mal, mas nem todas devem ser evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério de benefícios e danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.42 42 EPICURO, 2002, p. 39.

A aproximação entre Châtelet e o epicurismo não era algo extraordinário no século XVIII francês. Outros dos seus contemporâneos iluministas, como Voltaire e Diderot, por exemplo, também beberam na fonte do filósofo atomista. O verbete "Epicurismo", da Enciclopédia, escrito, aliás, por Diderot, é o caso mais expressivo dessa presença. Diderot propõe nesse verbete uma releitura do epicurismo que desfizesse as deturpações de interpretação sofridas no decorrer da história da filosofia.43 43 cf. Denis DIDEROT, 2007, p. 204.

A felicidade feminina

Châtelet, além de expor as condições e os princípios para se ser feliz nesta vida, pensa a felicidade tendo em vista, sobretudo, a condição feminina, algo bastante singular, vale enfatizar, para o período. Nesse sentido, a filósofa discorre sobre dois temas caros às mulheres do seu século: o amor e o estudo. Sem nenhuma originalidade, o que não diminui em nada o seu empreendimento, Châtelet defende que o amor verdadeiro é a fonte suprema da felicidade, um sentimento capaz de unir duas pessoas que comungam de um mesmo ideal.44 44 cf. CHÂTELET, 2002, p. 28. Contudo, a possibilidade desse tipo de amor acontecer seria rara, "nasce um deles a cada século".45 45 CHÂTELET, 2002, p. 30. De fato, o que ocorreria mais comumente seria um desequilíbrio, ou seja, um dos amantes acaba amando mais do que o outro. O extremo disso seria a situação em que um dos cônjuges acaba amando sozinho pelo casal, enquanto o outro apenas se beneficia egoisticamente do amor demonstrado. Ora, no entender de Châtelet, a felicidade no campo amoroso exige dos envolvidos que um satisfaça determinadas necessidades do outro, e vice-versa. Para a autora do Discurso sobre a felicidade, esse comportamento, essa doação incondicional, seria exercido com maior frequência pelas mulheres, que acabam sofrendo as piores consequências dessa doação excessiva: "mas o maior inconveniente vinculado a essa sensibilidade arrebatada é que é impossível a alguém que ama tão excessivamente ser amado, e praticamente não há homens cujo gosto não se reduza com o conhecimento de tal paixão".46 46 CHÂTELET, 2002, p. 31.

Contra esse amor desmedido, Châtelet recomenda mais uma vez a ponderação. Uma mulher, para ser bem-sucedida no seu relacionamento, deve sempre alternar a esperança com o temor, evitando que o homem tenha a certeza quanto ao sentimento que a amada nutre por ele.47 47 cf. CHÂTELET, 2002, p. 31. Essa seria uma forma sensata e segura de viver o amor.

A filósofa também preconiza que não devemos, seja mulher ou homem, investir numa relação que já revela sinais de desgaste, pois, normalmente, as atitudes tomadas pelos amantes para tentar reverter o irremediável não são guiadas pela razão, mas por impulsos cegos, o que acabaria em sofrimento e, posteriormente, em arrependimento quando a razão é recuperada.48 48 cf. CHÂTELET, 2002, p. 37.

Outro ponto da ética de Châtelet, por assim dizer, é orientar as mulheres para que realizem seus desejos sem culpa. As iniciativas sentimentais, ou mesmo apenas sexuais das mulheres, devem ser sempre meditadas, admoesta. Preferir "pequenas aventuras" a aventuras incertas, movidas por sentimentos descontrolados, é o mais recomendável para se ser feliz.49 49 cf. CHÂTELET, 2002, p. 37.

Notemos que essas ideias de Châtelet são, para a sua época, bastante extemporâneas. Trata-se, na verdade, de um incentivo à independência da mulher do Antigo Regime. Ao fazer isso, a filósofa vai de encontro à tradição do seu tempo, fortemente influenciada pela religião cristã, a qual pregava e exigia que a mulher fosse feliz submetida aos estreitos papéis de esposa e mãe. No elogio de Rousseau à calvinista Genebra no texto que abre o célebre Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1754, podemos verificar com clareza a concepção que se tinha do feminino mesmo entre os iluministas, em tese, os representantes ideológicos do progresso:

Poderia esquecer essa preciosa metade da república que faz a felicidade da outra, e cuja doçura e sabedoria mantém nesta paz e as boas maneiras? Amáveis e virtuosas cidadãs, o destino de vosso sexo será sempre o de governar o nosso. Excelente vosso casto poder, quando, exercido unicamente na união conjugal, não se faz sentir senão um favor da glória do Estado [...]. Cabe a vós manter sempre, por vosso império gentil e inocente e por vosso espírito insinuante, o amor das leis do Estado e a concórdia entre os cidadãos, e também reunir, por meio de casamentos felizes, as famílias divididas e sobretudo corrigir, por meio da doçura persuasiva de vossas lições e pelas graças modestas de vossa convivência, os defeitos que os nossos jovens vão adquirir em outros países [...]. Sede sempre, pois, o que sois: as castas guardiãs dos costumes e os doces liames da paz, e continuem a fazer valer, em todas as ocasiões, os direitos do coração e da natureza em proveito do dever e da virtude.50 50 Jean-Jacques ROUSSEAU, 1973, p. 230.

Entretanto, para que uma mulher pudesse assumir um comportamento assim tão autônomo e ousado, vale lembrar, Châtelet é enfática: seria necessário que essa não só amasse o conhecimento racional, mas, sobretudo, que se dedicasse a se instruir, pois a instrução levaria à independência, à coragem, à força moral e, por conseguinte, proporcionaria a essa mulher a felicidade. Em outras palavras, o estudo deveria ser encarado pelas mulheres como a principal arma para emancipar-se da opressão masculina:

É certo que o amor pelo estudo é menos necessário à felicidade dos homens que à das mulheres. Os homens têm uma infinidade de recursos, que faltam inteiramente às mulheres, para serem felizes. Eles têm muitos outros meios de chegar à glória, e certamente a ambição de tornar seus talentos úteis a seu país e servir seus concidadãos, por sua habilidade na arte da guerra, ou por seus talentos para o governo, ou ainda pelas negociações, está bem acima que é possível se propor pelo estudo; as mulheres, porém são excluídas por sua condição de qualquer espécie de glória, e quando, por acaso, se encontra alguma que nasceu como uma alma elevada, só lhe resta o estudo para consolá-la de todas as exclusões e de todas as dependências às quais ela se encontra condenada por condição.51 51 CHÂTELET, 2002, p. 21.

Um pouco mais generoso em sua concepção do feminino do que Rousseau – menos machista, poderíamos dizer –, encontramos também nas Luzes francesas Diderot. No seu breve texto Sobre as mulheres, de 1772, o philosophe refere-se às mulheres, de forma exclamativa e em tom de subestimação, como "crianças bem extraordinárias!".52 52 DIDEROT, 2000, p. 224. Ele interpreta o gênero feminino baseando-se no seu materialismo determinista de base psicofisiológica. Sua principal tese é a de que a natureza não foi generosa com as mulheres, fazendo-as frágeis e inferiores aos homens do ponto de vista físico, mental e até sexual, razão pela qual elas deveriam ser tratadas com mais compreensão e solidariedade pelos homens. A falta de pênis, por exemplo, seria uma das causas dessa condição natural infortunada, argumenta Diderot, na medida em que as privaria da experiência de um prazer intenso, prejudicando assim a sua felicidade: "Nosso órgão é mais indulgente. Muitas mulheres morrem sem haver experimentado o extremo da voluptuosidade. Esta sensação, que eu consideraria de bom grado como uma epilepsia passageira, é rara para elas, e não deixa nunca de vir quando nós a chamamos".53 53 DIDEROT, 2000, p. 220.

Châtelet, indubitavelmente, contraria Diderot não só com as reflexões e as posições apresentadas no seu Discurso, mas também com a sua própria biografia, demonstrando assim que as diferenças entre homens e mulheres seriam determinadas por fatores educacionais, e não biológicos, como sustenta o filósofo materialista. Em suma, para Châtelet, no geral, homens e mulheres teriam a mesma capacidade biológica para se ilustrar, ser autônomo, livre e, por conseguinte, feliz. A propósito, em contraposição a esse determinismo materialista justificador de preconceitos machistas de alguns filósofos iluministas contra a mulher, em particular, de Diderot, escreve outra mulher de vanguarda do século XVIII francês, Madame D'Epinay, numa correspondência sobre a obra Da influência das sociedades sobre o caráter das mulheres, de Thomas:

É bem evidente que os homens e as mulheres têm a mesma natureza e a mesma constituição. A prova disso é que as mulheres selvagens são tão robustas e ágeis quanto os homens selvagens: assim, a fraqueza de nossa constituição e de nossos órgãos pertence certamente à nossa educação, e é uma conseqüência da condição que nos destinaram na sociedade. Os homens e as mulheres, tendo a mesma natureza e a mesma constituição, são susceptíveis dos mesmos defeitos, das mesmas virtudes e dos mesmos vícios. As virtudes que se quis dar a elas, em geral, são quase todas contra a natureza, que só produzindo pequenas qualidades artificiais, e danos muito reais. Certamente seriam necessárias várias gerações para nos recolocar tais como a natureza nos criou. Poderíamos talvez sair vencedoras; mas os homens perderiam demais. Ficam bem felizes por não sermos piores do que somos, depois de tudo o que fizeram para nos desnaturar por suas belas instituições etc.54 54 Louise D'EPINAY, 1991, p. 137.

É por essa e outras razões aqui apresentadas e explanadas que Madame du Châtelet merece ser descoberta pelos nossos estudiosos do Iluminismo francês, mesmo não sendo ela uma pensadora do calibre de uma Hannah Arendt ou de uma Simone de Beauvoir. Filósofa epicurista, militante da ciência e do direito à mulher ao pensamento, à liberdade e, sobretudo, à felicidade, e num século absolutamente hostil à figura feminina, ela não pode mais ser reduzida entre nós, convenhamos, depois do exposto acima, à mera condição de "companheira de Voltaire".

[Recebido em 27 de outubro de 2011 reapresentado em 14 de fevereiro de 2011 e aceito para publicação em 5 de abril de 2011]

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  • D'EPINAY, Louise. "Carta de Madame D'Epinay ao Abade Galiane sobre o livro de Thomas". In: DIDEROT, Denis; THOMAS, Antoine L.; D'EPINAY, Louise. O que é uma mulher?: um debate. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
  • DIDEROT, Denis. "Sobre as mulheres". In: ______. Obras I São Paulo: Perspectiva, 2000.
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  • IVERSON, John R.; PIERETTI, Marie-Pascale. "Les femmes aux concours académiques". Dix-Huitième Siècle, Paris: Puf Diffusion, n. 36, 2004.
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  • SILVA, Franklin Leopoldo e. Felicidade. São Paulo: Claridade, 2007.
  • VOLTAIRE, François. Éloge historique de madame la marquise Du Châtelet Disponível em: <www.voltaire-integral.com/Html/23/48Eloge_historique.html>. Acesso em: 28 maio 2010.
  • 1
    Elisabeth BADINTER, 2002, p. VII.
  • 2
    cf. BADINTER, 2003, p. 126.
  • 3
    Há uma controvérsia sobre a autoria do texto que aparece no verbete "Filósofo" e em
    O verdadeiro filósofo. Trata-se praticamente do mesmo texto. Para alguns estudiosos, Diderot seria o seu verdadeiro autor; para outros, o autor verdadeiro teria sido Du Marsais (cf. Paulo Jonas de Lima PIVA, 2003, p. 22).
  • 4
    César Chesneau DU MARSAIS, 2008, p. 33.
  • 5
    cf. BADINTER, 2002, p. XII.
  • 6
    cf. BADINTER, 2002, p. VII.
  • 7
    BADINTER, 2002, p. VII.
  • 8
    BADINTER, 2003, p. 65.
  • 9
    cf. Colette LAY, 2004, p. 305.
  • 10
    cf. Maria-Susana SEGUIN, 2004, p. 334.
  • 11
    cf. LAY, 2004, p. 305.
  • 12
    Immanuel KANT, 1993, p. 49.
  • 13
    cf. John R. IVERSON e Marie-Pascale PIERETTI, 2004, p. 317.
  • 14
    cf. BADINTER, 2003, p. 294.
  • 15
    cf. BADINTER, 2003, p. 319.
  • 16
    François VOLTAIRE, 2010, p. 1.
  • 17
    cf. BADINTER, 2003, p. 443.
  • 18
    BADINTER, 2003, p. 443.
  • 19
    Gabrielle-Émilie Le Tonnelier de Breteuil CHÂTELET, 2002, p. 3.
  • 20
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 3.
  • 21
    CHÂTELET, 2002, p. 39.
  • 22
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 8.
  • 23
    CHÂTELET, 2002, p. 10.
  • 24
    CHÂTELET, 2002, p. 6.
  • 25
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 6.
  • 26
    CHÂTELET, 2002, p. 16.
  • 27
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 16.
  • 28
    CHÂTELET, 2002, p. 22.
  • 29
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 11.
  • 30
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 11.
  • 31
    CHÂTELET, 2002, p. 12.
  • 32
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 12.
  • 33
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 13.
  • 34
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 13.
  • 35
    CHÂTELET, 2002, p. 13.
  • 36
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 14.
  • 37
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 17
  • 38
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 18.
  • 39
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 19.
  • 40
    Franklin Leopoldo e SILVA, 2007, p. 54.
  • 41
    BADINTER, 2003, p. 23.
  • 42
    EPICURO, 2002, p. 39.
  • 43
    cf. Denis DIDEROT, 2007, p. 204.
  • 44
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 28.
  • 45
    CHÂTELET, 2002, p. 30.
  • 46
    CHÂTELET, 2002, p. 31.
  • 47
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 31.
  • 48
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 37.
  • 49
    cf. CHÂTELET, 2002, p. 37.
  • 50
    Jean-Jacques ROUSSEAU, 1973, p. 230.
  • 51
    CHÂTELET, 2002, p. 21.
  • 52
    DIDEROT, 2000, p. 224.
  • 53
    DIDEROT, 2000, p. 220.
  • 54
    Louise D'EPINAY, 1991, p. 137.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      27 Out 2011
    • Aceito
      05 Abr 2011
    • Revisado
      14 Fev 2011
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