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IN MEMORIAM

Quase declinei do pedido para escrever este obituário, por dois motivos. O primeiro por estar ainda sob o efeito da perda, ausência-presença desta que marcou minha vida acadêmica; segundo, porque, em 2010, ela me ligou para ir a sua casa, pois precisava da minha ajuda para organizar seu material. A verdade é que ela queria me presentear com a sua coleção da Revista Estudos Feministas. Hoje retribuo este presente de forma "absurda", como ela mesma me escreveria.

É com muito pesar que comunicamos o falecimento da professora Miriam Lifchitz Moreira Leite no dia 16 de fevereiro de 2013, aos 86 anos. Nasceu em 17 de maio de 1926, na cidade de Santos. Foi casada com Dante Moreira Leite (já falecido), deixou dois filhos e quatro netos e uma legião de admiradores.

"Miriam" ou "Dona Miriam", como outros a chamavam, formou-se em Ciências Sociais e História, pela Universidade de São Paulo, realizou seu pós-doutorado pela Eastman Foundation, KODAK, foi uma das fundadoras do NEMGE - Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher, em 1985, e desde 1998 participava do GRAVI - Grupo de Antropologia Visual (LISA - USP).

Dedicou-se a várias áreas do conhecimento, entre elas gênero, família, fotografia e memória. Publicou 15 livros, mais de 30 artigos em revistas especializadas, contos, poemas e outros textos.

Seu trabalho sobre gênero e família pode ser destacado nos seguintes livros:

Retratos de família. São Paulo: EDUSP, 1993;

Livros de viagem. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997;

Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984;

Maria Lacerda de Moura, uma feminista utópica. Florianópolis: Editora Mulheres, 2005;

Roteiros Inconscientes. Florianópolis: Editora Mulheres, 2010.

O trabalho sobre os viajantes de 1978 a 1984 - Livros de viagem - enfoca os diversos momentos em que a mulher aparecia nesses relatos. A partir dos 153 viajantes estudados, foi possível à autora desvendar o que eles chamavam de "mulher brasileira". A invisibilidade feminina era latente, mulheres não existiam, constata Miriam, e depois tais viajantes passam a considerar "mulher brasileira" as que falavam o português. Se a memória pretendia apagar essas mulheres e seus relatos, Miriam contribui significativamente para o não esquecimento desses diários escritos por mulheres viajantes, tão importantes para nossa compreensão sobre o ser mulher com o passar dos tempos.

Sua grande contribuição à história do feminismo pode ser lida em Outra face do feminismo... e Maria Lacerda de Moura, uma feminista utópica. O levantamento de documentação bibliográfica sobre Maria Lacerda de Moura coloca em relevo o trabalho historiográfico e detido de Miriam Moreira Leite. Por meio da história de vida de uma professora primária, engajada em causas nas quais a mulher não era convocada a dar sua opinião, Miriam revela-nos a repressão da família, do Estado e da Igreja ao corpo da Mulher na época.

É possível ver um desdobramento desta pesquisa no vídeo Maria Lacerda de Moura - trajetória de uma rebelde (http://vimeo.com/35898796). Em entrevista, comentando sobre o documentário, ela cita um poema do poeta surrealista português Mário Cesariny de Vasconcelos: Entre nós e as palavras, os emparedados / e entre nós e as palavras, o nosso dever de falar (http://www.scielo.br/pdf/cpa/n22/n22a12.pdf) - este dever de falar tão presente na obra de Miriam quando se trata de mulheres e família.

Em Retratos de família, de 1993, seu livro mais lido e premiado, o foco são as fotografias de famílias de imigrantes que vieram a São Paulo entre 1890 e 1930, e por meio dessas fotografias a autora desvela nuances do modo como eram feitas, guardadas, ou até mesmo retiradas do álbum, além dos temas mais fotografados: casamento, mulheres e crianças. Quando a família é fotografada, os homens aparecem em pé atrás da esposa e dos filhos. O piquenique passou também a ser digno de registro dessas famílias. O álbum legitima a família, constata Miriam. Sobre suas observações a respeito de fotografia e memória conferir entrevista publicada na Revista ANTHROPOLÓGICAS (http://www.ufpe.br/revistaanthropologicas/index.php/revista/article/view/139/125), e para conhecer mais sobre a sua trajetória do teatro à antropologia visual, passando pelas Ciências Sociais e História, conferir o documentário Caminhos da Memória - Miriam Moreira Leite (http://vimeo.com/35325369).

Por fim, sugiro a leitura de Roteiros inconscientes, que revela Miriam como uma escritora atenta aos desvios e vieses da mulher e suas atribuições. Eu, particularmente, chamaria atenção para os contos "Ovo vermelho" e "A lama e o pó".

São Paulo, 21 de fevereiro de 2013.

Francirosy Campos Barbosa Ferreira

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

Universidade de São Paulo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 2013
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