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Uma trajetória pessoal e acadêmica: entrevista com Raewyn Connell

PONTO DE VISTA

Uma trajetória pessoal e acadêmica: entrevista com Raewyn Connell

Miriam AdelmanI; Carmen RialII

IUniversidade Federal do Paraná

IIUniversidade Federal de Santa Catarina

Durante o 35º Encontro Anual da ANPOCS (outubro de 2011), Raewyn Connell, citada por muitos como o maior nome da sociologia australiana contemporânea, proferiu a palestra "The Coming Revolution in Social Theory", argumentando em prol de descentramento que permita aos países do sul e das "periferias" tomar seu devido lugar no centro da produção intelectual global (de fato, o tema do seu livro Southern Theory: The Global Dynamics of Knowledge in Social Science).1 1 CONNELL, 2007. Muito reconhecida por seu trabalho pioneiro nos campos de estudos de gênero e estudos da masculinidade, ela generosamente aceitou conversar conosco, no hotel Glória, no espaço agora nostálgico da "piscina", lugar de tantos encontros e conversas quando os congressos da ANPOCS se realizavam em Caxambu. Raewyn falou sobre sua trajetória intelectual e pessoal, contextualizando sua obra e destacando questões como sua relação com o feminismo e os estudos de gênero, e mesmo de que maneira o acadêmico, o pessoal e o político se juntam na sua história singular como pessoa transgênero.2 2 A entrevista contou com a participação de Miriam Grossi.

Miriam Adelman (MA): Fale um pouco sobre o seu passado.

Raewyn Connell (RC): Sou australiana - o que faz toda a diferença! Na verdade, é fundamental nesta história. A Austrália é um país rico, localizado no extremo sul. O nome, "Austrália", significa "terra do sul" - e só recentemente me dei conta de quanto isso é importante.

Sou filha do pós-guerra. Pertenço a uma geração que se tornou adulta nos anos 1960, portanto, minha formação política se deu na Nova Esquerda daquela época. Eu participei do Movimento para a Paz no Vietnã - contra a guerra colonial - , onde a Austrália lutou ao lado do regime norte-americano naquele país. Fiz o meu PhD na Austrália, fui a primeira de meu Departamento a graduar-se com PhD. Nessa época, a Austrália começava a desenvolver uma capacidade de pesquisa e, portanto, a possibilidade real de se tornar independente intelectualmente. Até então éramos só um país colonial, culturalmente falando. Dependente, especialmente, da Grã-Bretanha. O meu trabalho como cientista social de fato começou no contexto do ativismo. No ativismo para a paz, no movimento trabalhista e depois, obviamente, no movimento feminista que desabrochou no final dos anos 60. Nessa época eu ainda vivia como homem, de modo que não participava do Movimento de Liberação Feminina. Mas minha companheira participava, e ela também é importante nesta história. Pam Benton e eu nos tornamos um casal em 1968. Vivemos juntas por 29 anos, até ela morrer de câncer de mama. Era uma feminista muito ativa. Não uma feminista acadêmica, mas ativista, envolvida com o trabalho da saúde da mulher. Ela foi uma das fundadoras de um centro de saúde para mulheres. Trabalhava com psicologia feminista, com mulheres imigrantes e idosas. Seu último compromisso político, antes de morrer, foi a montagem de uma rede de mulheres idosas na Austrália.

Então, eu estava intimamente ligada ao movimento das mulheres, embora não participasse pessoalmente. Era uma posição meio estranha, mas teve sua importância, porque me facilitou criar relações profissionais com as feministas, o Women's Studies, e com a sociologia e psicologia feministas que surgiram na Austrália durante a década de 1970. Eu participava de tudo isso porque fui promovida muito cedo, tornando-me chefe de departamento, uma Professora (o que os norte-americanos chamam de full professor ou professor pleno) muito cedo.

Eu criei o Departamento de Sociologia da Macquarie University em Sidney. Por isso eu podia contar com alguns recursos. Procuramos dirigir o Departamento coletivamente e tomamos a decisão de investir um volume significativo de recursos na criação de uma área de ensino e pesquisa sobre gênero e sexualidade. O nosso Departamento foi talvez o primeiro centro acadêmico da Austrália que teve esse tipo de programa voltado para a teoria feminista, a sexualidade, os estudos gays e outros - além de programas interdisciplinares do Women's Studies que foram criados na mesma época (e que já existiam na nossa universidade).

Isso me levou, lecionando ou pesquisando, a trabalhar com a teoria feminista e as teorias de gênero. Esse trabalho produziu um livro que nunca saiu da Austrália, mas que foi o meu primeiro livro sobre teoria social, chamado, infelizmente [risadas], Which Way is Up? [mais risadas]. E mais tarde o meu livro Gender and Power, publicado em 1987, que circulou internacionalmente.

MA: Do que tratam os livros? Se puder resumi-los...

RC: Bem, apesar do título ruim, Which Way is Up? foi uma tentativa de trazer a teoria social da Austrália para o mundo real, parar de falar de Talcott Parsons e companhia, e começar a falar de Freud e Sartre, de feminismo, educação e igualdade, e de globalização em seus estágios iniciais. Esse tipo de coisa. Então o livro era orientado para a teoria social europeia, que hoje critico, mas considero um exercício de teoria crítica em um contexto australiano.

MA: Suponho que tenha sido um livro importante no contexto australiano, pelo que se disse sobre ele.

RC: Eu não diria isso, mas outros poderiam dizer que sim ou que não.

MA: Você não está sendo modesta?

RC: É claro que estou! Fui educada na Igreja Anglicana [risada], onde a arrogância é o maior pecado. A modéstia é uma grande virtude na cultura em que nasci. Vangloriar-se é o que há de pior a se fazer.

Mas, enfim, foi daí que veio Gender and Power, em larga medida uma tentativa de aproximar a experiência australiana da teoria europeia e norte-americana, mas também de sistematizar uma teoria social de gênero. E aconteceu num momento interessante - o livro foi publicado em 1987. Tínhamos então Gayle Rubin e Heidi Hartman, os debates feministas-marxistas, Christine Delphy na França, e as várias teorias do patriarcado. Dentre todas as teorias de gênero que nos chegavam do Norte, a que mais me impressionava era a de Juliet Mitchell. Não sei se ela foi muito traduzida.

Miriam Grossi (MG): Sim, Juliet Mitchell. Foi um dos primeiros livros sobre estudos de gênero. A Brasiliense publicou-o na década de 1980.

RC: Fui muito influenciada por ela. Eu tentei assumir uma perspectiva similar e torná-la mais abrangente, mais sistemática e mais histórica. Ao mesmo tempo eu trabalhava em Sociologia como cientista social empírica e fazia trabalho de campo com um grupo de pesquisadores. Grande parte de minha pesquisa foi colaborativa. Mesmo que eu tenha feito sozinha a maior parte do trabalho teórico, o trabalho de campo foi colaborativo.

Desenvolvemos um grande projeto sobre igualdade nas escolas secundárias australianas. Entrevistamos pais, alunos e professores em escolas da classe alta e escolas da classe operária - meninos e meninas, mães e pais. Foi um projeto maravilhoso. Que produziu um livro chamado Making the Difference, que foi bastante influente na Austrália. Estou certa disso! Não circulou muito fora da Austrália, mas foi traduzido e publicado no Brasil (Estabelecendo a Diferença: Escolas, Famílias e Divisão Social).3 3 CONNELL, ASLENDEN, KESSLER e DOWSETT, 1995.

Mantive contato com alguns educadores progressistas de Porto Alegre, que publicaram alguns de meus trabalhos, inclusive alguns trabalhos antigos sobre masculinidade, na revista Educação e Realidade.4 4 CONNELL, 1990; 1992; 1995a; 1995b.

Carmen Rial (CR): Poderíamos falar um pouco mais desse trabalho sobre masculinidade, de grande impacto no Brasil?

RC: Claro. Foi muito importante esse contato com o pessoal do Gay Liberation. Alguns alunos e amigos meus eram participantes ativos do Gay Liberation. Todos eles homens. Eu também convivia com as lésbicas, mas elas tendiam mais para o movimento feminista do que para o movimento gay. Isso também aconteceu na Austrália. Portanto, eu estava por dentro da crítica gay aos homens heterossexuais.

No início da década de 1980 eu consegui ganhar uma verba de pesquisa para trabalhar com teoria social de gênero. Era a primeira verba de pesquisa para teoria que o Conselho de Pesquisa Australiano concedia! Isso foi um grande avanço. Pude contratar como pesquisadores associados dois ativistas e teóricos gays que dividiram o trabalho, porque havia apenas um trabalho a ser feito. Eles se organizaram e trabalharam em conjunto. Eram John Lee e Tim Carrigan.

Começamos a trabalhar na minha agenda maior para a análise social de gênero, e descobrimos que o ponto em que o ativismo deles e a teoria da homossexualidade e da heterossexualidade se conectavam com a minha agenda de trabalho feminista e minha pesquisa empírica nas escolas, o ponto de intersecção era a masculinidade.

Do ponto de vista feminino, achei que estudar a masculinidade era estudar a estrutura de poder. Como eu vinha da Nova Esquerda, cujo objeto de estudo era a estrutura de poder, foi uma transição fácil para mim. Estudei os detentores do poder, os grupos privilegiados, para entender o sistema de gênero e a ordem de gênero.

Isso era diferente do que as estudiosas feministas estavam fazendo, porque a maioria delas estava engajada - na Austrália - no projeto do Women's Studies. Ou seja, criticando o mundo acadêmico por serem estudos de homens, criticando a ausência de mulheres. Propunham estudar história das mulheres, psicologia feminina, antropologia feminina. Não há dúvida de que era o que deveria ser feito! Mas ainda faltava alguma coisa.

Nós começamos a preencher esse vazio, tentando combinar teoria gay, teoria feminista, um pouco de psicanálise, e uma teoria estrutural de gênero. Daí surgiu o trabalho sobre masculinidade. Meu primeiro artigo sobre homens e masculinidade foi publicado em 1982 em um livro teórico do Partido Trabalhista, porque eu era um ativista do partido, e do movimento sindical, e escrevi um artigo chamado "Men and Socialism" (em referência ao livro de August Bebel, Women and Socialism). Mas o trabalho teórico só foi publicado um pouco mais tarde. Tim Carrigan, John Lee e eu escrevemos um artigo muito longo em 1983 que foi apresentado a uma publicação australiana e não aprovado. Então pensamos, vamos botar pra quebrar: vamos enviar o artigo a uma importante publicação norte-americana e conseguir exposição mundial. Para nosso espanto, eles aceitaram. Foi assim que o artigo "Toward a New Sociology of Masculinity" apareceu.

Foi graças a essa decisão que o trabalho tornou-se visível internacionalmente. Para mim, foi uma lição de como explorar a predominância do Norte na vida intelectual, assunto sobre o que falei na conferência da ANPOCS. Mas isso tem uma explicação! Se você publica alguma coisa em uma importante publicação norte-americana, será lido na América Latina, na África, na Europa.

Então, eu tinha a teoria da masculinidade, mas não tinha dados. E, como cientista social empírico, eu fiquei constrangido de dar qualquer declaração sem ter os dados. E pensei, "Tudo bem, vamos colher alguns dados". Eu me candidatei a outro edital de pesquisa para fazer um estudo empírico da construção das masculinidades e consegui os recursos.

A primeira coisa que aconteceu foi que o apoio foi criticado no Parlamento Nacional como desperdício de recursos públicos! Políticos da direita atacaram esse apoio em particular como uso impróprio de dinheiro público [risadas]. Engraçado, não? Mas não me preocupei, mas sim preocupou a agência doadora durante um tempo.

Seja como for, o projeto resultou no estudo da história de vida das masculinidades, que comecei a publicar em artigos individuais em 1990-91. E acabou se transformando no tema central do livro Masculinities. Usei o método de história de vida que já tinha usado no estudo das escolas.

Ah, esqueci de dizer que o estudo das escolas também produziu um segundo livro, intitulado Teacher's Work. É um estudo sobre o processo do trabalho de ensinar, a carreira do professor e sua trajetória de vida. Esse trabalho também gerou muito material de gênero, porque na Austrália ensinar é uma ocupação muito generificada.

MA: Aqui também, e provavelmente em toda parte.

RC: Em muitas partes do mundo. Ao mesmo tempo, eu trabalhava com ativistas gays sobre a AIDS. Na década de 1980 a [epidemia de] AIDS cresceu também na Austrália, principalmente entre a comunidade gay. Como eu fazia parte de um grupo de sociólogos e psicólogos que trabalhava com a comunidade gay, conseguimos verba federal do setor de saúde para fazer uma pesquisa social sobre sexualidade. Eu me integrei profundamente ao ativismo da comunidade gay desenvolvendo projetos de prevenção.

Enfim, isso resultou na primeira grande pesquisa social quantitativa sobre sexualidade gay, e eu diria até que sobre sexualidade em geral na Austrália. Nós a consideramos uma pesquisa muito boa. Parte dela saiu em revistas internacionais, todas de língua inglesa e, claro, em revistas norte-americanas.

Também fizemos pesquisa de história de vida entre grupos de homens marginalizados. Um dos problemas das respostas da comunidade gay à AIDS é a dependência da afiliação a uma comunidade. E a comunidade gay na Austrália é principalmente da classe média. Portanto, homens da classe operária, aborígenes e migrantes não anglos não estão presentes em sua grande maioria.

Então, nós criamos uma abordagem para trabalhar os homens da classe operária que fazem sexo com homens. Novamente usamos a abordagem de história de vida, e produzimos, a meu ver, uma das melhores pesquisas sobre os problemas dos homens homossexuais que não têm os privilégios de classe para apoiá-los ou um contexto de comunidade gay. Eles têm que sobreviver em circunstâncias difíceis e alguns sofrem muito.

Então, tudo isso fazia parte de um material empírico que eu tinha, e na época o campo de estudos do "Men's Studies" ou estudos da masculinidade crescia na "anglosfera". Parte do meu trabalho foi publicada nos Estados Unidos, como já disse, e eu estava envolvido no processo. Mas relutava muito para escrever um livro sobre homens e masculinidade. Ao mesmo tempo, havia uma grande oferta de psicologia popular "de direita" sobre homens, livros como Iron John, e uma quantidade enorme de matérias não essencialistas sobre homens. Eu não queria encorajar o gênero de "livros sobre homens" porque eles eram essencializadores e antifeministas. A maioria era realmente misógina. Daí a minha relutância em escrever um livro sobre homens!

Por fim decidi: ok, toda essa porcaria sobre homens e masculinidade já está passando da conta e talvez bons livros estejam se fazendo necessários. E comecei a escrever. Em 1991-92 eu lecionava na Harvard University nos Estados Unidos como Professor de Estudos Australianos. Conversei com um conhecido editor, que prefiro não citar o nome, que me encorajou a escrever o livro sobre homens. Foi o que fiz. Como se sabe, o livro foi rejeitado. Por ser australiano? Não sei dizer.

Com o livro escrito, acabei encontrando uma editora na Austrália. Mas decidi que precisava me globalizar em termos de publicação. Além dessa editora da Austrália, consegui outra na Inglaterra para a Europa; e outra, nos Estados Unidos, para a América do Norte, todas em língua inglesa. A editora britânica tinha os direitos de tradução e começou a procurar editoras em outros idiomas.

MA: O livro Masculinities foi traduzido para o espanhol!

RC: Espanhol, chinês, sueco, alemão - uma ótima tradução - e italiano.

MA: E francês?

RC: Não. Hebraico foi a última. Gender and Power foi traduzido para o japonês e o turco, e está sendo traduzido na Rússia. Do ponto de vista do autor, os idiomas de tradução são totalmente aleatórios... Masculinities nunca foi traduzido para o português.

MA: Mas aqui as pessoas o leem na versão espanhola. A editora é da Espanha ou do México?

RC: Do México.

MA: Ah, viva México!

RC: Viva! Foi o PUEG [Programa Universitario de Estudios de Genero] da UNAM [Universidade Nacional Autônoma de México].

MA: A UNAM. Foi lá que eu me bacharelei em Sociologia, por isso tenho uma ligação afetiva com a universidade,

RC: Tenho outro livro em espanhol, o Escuelas y Justicia Social. Não falei dele porque é outra linha de pesquisa, mas fiz trabalhos sobre escolas e pobreza na Austrália. Essa, então, foi a minha trajetória em estudos empíricos, na qual ainda me encontro. Quero dizer com isso que continuo fazendo trabalhos empíricos, entre os quais uma pesquisa entre os intelectuais australianos. Continuo um pouco com pesquisa sobre masculinidades, além de uma tese que escrevi para a consultoria das Nações Unidas. Continuo trabalhando com os professores. E há o trabalho da Teoria do Sul, uma crítica à ciência social dominada pelos países do Norte. Continuo trabalhando a ideia de gênero como estrutura social. Talvez possamos retomar isso, dependendo de quantas horas vocês pretendem gravar [risos]!

Então, em 2002 - deixe-me voltar um pouco.

MA: Tudo bem.

RC: Meus editores ficaram muito satisfeitos com Gender and Power, que estava vendendo bem. Por ter rendido algum dinheiro, eles queriam uma segunda edição. Na época em que preparávamos a segunda edição, a Teoria Queer entrou em cena, Judith Buttler tornou-se mundialmente famosa, e o terreno para a teoria feminista, ao menos na "anglosfera", estava bem diferente.

Minha vida também mudou. Pam e eu tivemos uma filha, Kylie, que nasceu no ano em que escrevi Gender and Power. Eu cuidava dela durante a noite, enquanto Pam dormia. Dava a mamadeira e trocava fraldas enquanto escrevia o livro.

Em 1994 Pam foi diagnosticada com câncer no seio. E nós estávamos morando nos Estados Unidos porque eu trabalhava na Universidade da Califórnia. Kylie e Pam voltaram para a Austrália. Eu comecei a procurar trabalho por lá. Foi um período muito difícil nas nossas vidas. Pam fez duas mastectomias, quimioterapia e radioterapia. E Kylie tinha só 10 anos quando tudo aconteceu. Eu fiquei sozinho cuidando de Kylie e de todo o sofrimento que a situação envolvia.

MA: Por quanto tempo isso durou?

RC: Pam morreu em 1997, quando Kylie tinha 12 para 13 anos.

MA: Fico pensando em câncer de mama... O discurso oficial de que era completamente tratável... Essa é outra questão sobre mulheres e ciência médica.

RC: Realmente! Há uma dimensão absolutamente feminista do câncer de mama e do tratamento do câncer de mama, na qual Pam tinha começado a trabalhar.

Levou muito tempo para eu conseguir retomar o trabalho teórico. Quando o fiz, não consegui fazer uma revisão completa de Gender and Power porque ainda estava muito perturbado. Mas escrevi um pequeno manual chamado simplesmente Gender. Que foi muito bem recebido. Também foi traduzido em vários idiomas, mas não em espanhol e português. Acabei produzindo uma segunda edição, que saiu em 2009, onde procurei ir além da versão sulista da teoria de gênero. O livro se chama Gender: in World Perspective. Não é um livro ambicioso, mas foi razoavelmente bem recebido [e está sendo traduzido para o português].

Comecei a trabalhar na teoria sulista quando lecionava na Califórnia. Eu dava um curso de "teoria clássica" em Sociologia, ou seja, Marx, Durkheim e Weber, todos europeus brancos e mortos. Então escrevi para os alunos um artigo sobre por que essa era uma compreensão errada da história da Sociologia. Aí começou o meu trabalho com a teoria do Sul. Começo com uma espécie de crítica ao eurocentrismo no pensamento social. Critico isso - e prossigo com críticas a Bourdieu, a Giddens e a algumas teorias modernas: o que poderia ser oferecido como alternativa, se desrespeitássemos o pensamento social eurocêntrico? Bem, o pensamento social do resto do mundo - que é certamente o mundo majoritário - e onde há um número enorme de intelectuais fazendo trabalhos interessantes que não encontram espaço na teoria sociológica vigente no Norte global.

Essa é a história do Southern Theory. O livro é uma narrativa dos meus encontros com pensadores sociais da África, da América Latina, do Sul da Ásia, do Irã, da Austrália, das ilhas do Pacífico e outros. É uma tentativa de desenvolver um estudo de caso para uma abordagem globalmente democrática da ciência social. É nisso que estou interessada, foi o que falei na conferência [da ANPOCS]. Atualmente estou escrevendo um artigo - já escrevi várias versões, mas ainda não estou satisfeita - cujo título é "Roses from the South". Pretendo desenvolver uma análise da teoria sulista de gênero; é sobre a importância de priorizar o pensamento do Sul global, o mundo majoritário, no pensamento sobre gênero.

MA: Você vê similaridades entre a Austrália e a América do Sul ou a África?

CR: Sim, para nós, a Austrália é "Norte".

RC: Que bom que você me perguntou isso, porque eu tenho uma resposta. A palavra Austrália significa "a terra do sul", como eu disse anteriormente. E é um nome dado pelos colonizadores britânicos, não é um nome aborígene. Os colonizadores britânicos deram esse nome porque achavam que era o mais longe que poderiam chegar. E é mesmo - é o antípoda da Europa. Austrália e Nova Zelândia são o mais distante que se pode chegar a partir da Europa. Então não é a metrópole.

Também não é Terceiro Mundo. É um país rico - um país colonial rico. Nesse aspecto não é como o Brasil, e sim como as classes privilegiadas do Brasil. Temos uma população de 20 milhões de pessoas, e uma das mais altas rendas médias do mundo. Isso se deve a duas causas. Uma delas é a economia colonial, porque a economia australiana é uma economia de exportação primária. Exportamos minerais, lã, trigo e outros produtos agrícolas, carvão, ferro e urânio, metais preciosos, prata e chumbo, para o mundo industrializado. Não somos um país industrializado.

Durante um curto período, a Austrália, bem como partes da América Latina, adotou a estratégia CEPAL de industrialização por substituição de importações, e em meados do século 20 conseguimos ter uma pequena economia industrializada. Então nos tornamos neoliberais. Foi quando perdemos a nossa economia industrial e voltamos a ser fornecedores de exportações primárias. É mais ou menos semelhante à estratégia de exportação do governo Lula para o Brasil. Você se concentra nas exportações agrícolas, nas exportações minerais e nos produtos manufaturados de baixa tecnologia. É o que a Austrália faz hoje. Portanto, é uma economia marginal dependente, porém rica.

A outra razão para ter uma renda média tão alta é que a Austrália teve um forte movimento trabalhista. E assim o capital local não conseguiu funcionar com uma economia de baixa renda. O movimento trabalhista conquistou o poder no Estado e redistribuiu a renda entre a classe operária branca, especialmente os trabalhadores homens. Criou-se, então, uma espécie de democracia masculina assalariada na Austrália, que lutou por salários mais altos, especialmente para os homens. É significativa a diferença salarial entre homens e mulheres no país, mas num nível superior à maioria do mundo pós-colonial.

Mas é também uma cultura profundamente racista porque é uma sociedade colonial. Os povos indígenas foram, em sua maioria, dizimados por epidemias, assassinatos, perda de habitat, fome, envenenamento e guerra. O grosso da população é europeia e, hoje, também de imigrantes asiáticos. Mas não há uma grande população indígena que poderia ser explorada em uma economia colonial, como a África e algumas partes da Ásia. Isso resultou numa população de colonos que é extremamente consciente de sua identidade racial e se sente ameaçada por raças não brancas. Portanto, desse ponto de vista, a Austrália é como a África do Sul, como as populações de colonos da África do Sul, com a diferença de que lá a população indígena é muito grande. Na Austrália, a população de colonos sente a presença de uma grande população indígena há algumas centenas de quilômetros, na Indonésia, na China e na Índia. Por isso há tanta ansiedade em relação às "ameaças" vindas da Ásia.

Em razão disso os partidos políticos australianos se identificaram com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, como uma espécie de proteção contra o mundo real. Na Guerra Fria, a Austrália alinhou-se massivamente com os Estados Unidos, e sempre luta ao lado do Império Britânico. Acredite ou não, a população de colonos australiana lutou no Sudão, na Turquia, na França, na Malásia, sempre apoiando o imperialismo britânico; e depois no Vietnã, no Iraque e no Afeganistão em apoio às intervenções norte-americanas. Não é surpresa que as pessoas de outras partes do mundo pensem que a Austrália faça parte do imperialismo norte-americano, porque num certo sentido faz mesmo! Esse é o objeto de crítica da Esquerda australiana, embora no momento essa Esquerda seja extremamente marginal.

CR: Eu gostaria que você falasse sobre a sua metodologia, o trabalho de campo.

RC: Fiz a maior parte do meu trabalho de campo na Austrália.

CR: Em que parte da Austrália?

RC: Em geral ao redor de Sidney. Um pouco também ao sul da Austrália. Mas 80% da população australiana é urbana, é uma sociedade bastante urbana, e sempre foi. Então minha pesquisa é feita principalmente com a classe trabalhadora, com a classe dominante e com a classe média da Austrália urbana. Porque tenho um projeto de pesquisa sobre intelectuais, também fiz algumas entrevistas com intelectuais de outras partes do mundo - na África do Sul, onde publiquei um artigo a esse respeito; no Chile, onde não publiquei o artigo, e na Europa. Por isso é uma experiência diferente ser entrevistada, porque em geral sou eu quem entrevista!

MA: [riso] Também é bom, não é?

RC: Ser o centro das atenções! Bem, acho que eu sempre fui crítica do positivismo nas Ciências Sociais. É claro que quando comecei isso o positivismo tinha influência como a perspectiva dominante da ciência social na Austrália, por isso o tenho criticado consistentemente. Cada entrevista que faço é uma tentativa de entrar no mundo do entrevistado, o máximo possível nos termos dele, e não nos meus. Mas certamente sou eu quem define temas e o resto. Vocês conhecem a dialética que acontece numa entrevista. Mas, num certo sentido, sempre procuro trabalhar com as epistemologias de outras pessoas, caso a caso.

Essa é a principal característica. Estou começando a escrever artigos metodológicos. Notei que devo estar fazendo isso há muito tempo, mas publiquei um artigo sobre a metodologia da minha pesquisa sobre masculinidades ["Lives of the Businessmen: Reflections on Life-history Method and Contemporary Hegemonic Masculinity"] em um número recente de uma revista austríaca,5 5 CONNELL, 2010a. onde falo do meu modo de entrevistar e o método de análise. Meu objetivo é analisar grupos, porque sou socióloga, não psicóloga. Mas sempre começo com a pessoa, procuro entender a história de cada pessoa tal como é, e escrevo um estudo de caso sobre a experiência e o ponto de vista dessa pessoa, antes de ir para o nível do grupo. Suponho, então, que seja um comprometimento com uma espécie de microepistemologia.

Já o trabalho da teoria sulista, esse é extraído principalmente de textos, não de entrevistas pessoais. Exceto por um número muito pequeno, acho que umas 25 entrevistas, que fiz com intelectuais fora da Austrália. Espero fazer muito outras, mas...

MA: Alguém aqui no Brasil?

RC: Ainda não! Me dê essa oportunidade - com um pouco de sorte, na semana que vem... Mas eu gostaria de voltar para fazer isso. No momento tenho um projeto em andamento sobre neoliberalismo e como o neoliberalismo tem sido entendido no Sul global, ou seja, na maior parte do mundo. Então gostaria muito de entrevistar intelectuais brasileiros, e talvez eu consiga.

Mas a maior parte do trabalho da teoria sulista é baseada em textos. Essa também foi uma espécie de decisão metodológica, baseada no trabalho de Paulin Hountondjii, que mencionei em minha palestra. Ele é um filósofo africano que considero imensamente interessante, tanto que incluí um capítulo sobre ele no meu novo livro, Confronting Equality. Hountondjii ficou famoso na África por criticar o que, na época, foi chamada de "filosofia africana", uma tentativa de construir uma filosofia implícita a partir de contos, narrativas e poesias populares, do conhecimento popular recolhido nas comunidades indígenas africanas. E Hountondjii argumentou: "Isto é etnografia, não é filosofia; a filosofia, uma disciplina do conhecimento, tem que ser baseada em textos". Na época ele não estava pensando em textos eletrônicos, mas nós podemos pensar. A existência de textos torna possível que a crítica aconteça, que ocorra um engajamento crítico e, portanto, um desenvolvimento do conhecimento.

O argumento de Hountondjii me convenceu. E por isso achei importante voltar os holofotes para os textos da ciência social, do pensamento social, produzidos por intelectuais da periferia. Da mesma maneira que prestamos tanta atenção aos textos produzidos nas metrópoles. Entre os livros exibidos aqui, na conferência, há textos de Weber, de Marx, de Armand Mattelart, de Foucault, de Bourdieu, de todos que devam ser lidos. Encontraremos as mesmas coisas em uma conferência na Austrália - são os textos do pensamento social metropolitano.

MA: E todos escritos por homens. Porque as mulheres...

RC: Todos homens. Esmagadoramente homens. Tem razão...

MA: Porque vivemos tempos difíceis. As políticas de tradução, isso me interessa muito. Existem muitas teóricas feministas cujos trabalhos não são traduzidos para o português, e provavelmente nunca serão, porque isso exige um grande investimento, e os nossos editores aqui no Brasil não os publicam. Por isso a Revista Estudos Feministas e a Pagu traduzem um ou dois artigos de Teresa de Lauretis ou de outras feministas importantes, até de Spivak, mas é preciso encontrar alguém para publicar o livro inteiro.

RC: Mas não monografias.

CR: Quando estive na Índia, conversando com algumas sociólogas, comentei: "Agora todo mundo está lendo intelectuais indianos, como Appadurai e Spivak". E me responderam que estes não eram indianos. Como pensar essa diáspora dos intelectuais?

RC: As intelectuais diaspóricas são um grupo muito interessante. Mas você tem razão, elas não são exatamente indianas. Um exemplo disso é aquele excelente livro, Feminism Without Borders - vocês conhecem? De Chandra Talpade Mohanty, que trabalhou nos Estados Unidos - ela foi uma das editoras de outro livro muito conhecido, Third World Women and the Politics of Feminism. É uma nova coleção com a marca dela, que foi publicada em 2003. É muito esclarecedora. Mas, como você diz, ela não é uma feminista indiana. Se eu tivesse permanecido nos Estados Unidos, meu trabalho não seria obra de feminista australiana.

Então, o que se pode fazer? É preciso ir lá. Eu explorei o fato de que sou reconhecida pelos estudos das masculinidades! Sou convidada para conferências em vários lugares, vou lá e pergunto às pessoas: "Quem eu deveria ler?", "O que se publica aqui?", "Quem são as pensadoras feministas mais interessantes por aqui?", "Sobre o que se debate?" E assim começo a entender a produção intelectual local, mesmo que de uma maneira imperfeita - porque, obviamente, não sou especialista nisso. Quando venho para a América Latina, falo um pouco de espanhol, mas nada de português, e por isso não entendo bem, e tenho que confiar totalmente nas pessoas locais para me dar a direção das coisas.

E então me vejo até certo ponto como a tradutora daquele trabalho para a "anglosfera", onde minha audiência fala inglês. Deveria haver muito mais gente fazendo isso. É realmente muito difícil. Eu fiz uma brincadeira em uma das minhas palestras: citei a famosa pergunta de Spivak, "O subalterno pode falar?", dizendo "A metrópole pode ouvir?" A metrópole pode, sim, mas será que ouve? Será que quer ouvir? Não, infelizmente, não quer.

A maior parte das intelectuais feministas da metrópole não está interessada em perder tempo esforçando-se para ler o trabalho de uma feminista indiana ou de uma feminista brasileira. E entre elas, não há razão nenhuma para fazerem isso. Elas têm plateia na metrópole, têm hábitos profissionais. Se elas trabalham em universidades ou em um sistema acadêmico que desrespeita o resto do mundo, não estarão interessadas no que se publica no resto do mundo (exceto na forma de estudos de área). Então dá para entender porque isso acontece.

Por outro lado, acho que as feministas da metrópole são uma fonte importantíssima para o desenvolvimento do feminismo global. Porque elas possuem muito mais recursos que os grupos feministas que existem pelo mundo, em termos de riqueza institucional, possibilidade de publicações, de revistas, monografias etc.

MA: Appadurai certamente discordaria, ao menos com certas nuances, do que estás dizendo, porque ele parece apostar bastante na forma como as ideias, pessoas, circulam... elas fluem entre o Norte e o Sul. [Appadurai parece apostar bastante] que a metodologia dos estudos culturais é circular e dinâmica, razão pela qual o chamado Sul está muito presente no Norte, e vice-versa. De fato, aquela teoria baseada na noção de "orientalismo" de Said já criticava essa ideia, dizendo que o Norte tem sido muito mais influenciado pelo resto do mundo do que gostaria de admitir. E que essas trocas se intensificaram muito recentemente. O fato é que, por essa razão, estamos todos muito mais conectados do que podemos perceber e que, na realidade, não existem perspectivas definitivas de Primeiro e Terceiro Mundo. Isso nos aproxima da ideia de Simmel sobre o "estrangeiro", mas agora no sentido da Diáspora e do "Atlântico negro". E assim nossas ideias e nossas vidas estão intimamente, e cada vez mais, interconectadas. Então, essa noção como que desloca a questão de dois polos opostos, a mesma questão que uma mulher levantou na plateia ontem. Eu estava adorando a sua palestra, mas me identifiquei muito com a pergunta dela naquele momento.

RC: Sabe, eu adoraria que fosse verdade [riso]! É tudo que posso dizer, eu gostaria que fosse verdade, e olhe que eu me esforço! Mas, como todos sabem, não sou uma pessoa de Estudos Culturais. Sou uma socióloga muito realista e pragmática. Estou interessada em realidades estatísticas e estruturas sociais. E devo dizer que, do meu ponto de vista, esse fluxo é muito menor se comparado com as massivas realidades das desigualdades econômicas, da centralidade cultural, do fluxo da influência unilateral. Agora, não há dúvida que Spivak é conhecida na Europa e na América do Norte, principalmente pelo seu trabalho com pós-estruturalismo, desconstrucionismo, Derrida. Mas muito poucas intelectuais indianas...

MA: As romancistas são conhecidas, então a literatura...

RC: Tem razão, mas é um pouco diferente com a literatura; literatura em inglês, claro, com exceção das traduções. Em nossas áreas de estudo lê-se Amartya Sem, Gayatri Spivak, e quem mais?

MA: Homi Bhabha.

RC: Homi Bhabha. Todos eles são intelectuais indianos que estão fora da Índia. Um contraste interessante é Ashis Nandy. Ashis Nandy é um intelectual imensamente importante na Índia. Escritor prolífico, brilhante analista cultural, psicólogo e um interessante historiador. Ele tem coisas importantes a dizer sobre gênero etc. E você sabia que os teóricos europeus jamais o citam? Nunca vi uma única referência [ao trabalho dele], nenhuma.

MA: A Sociologia é pior que a Antropologia nesse aspecto?

RC: Pode ser. A Antropologia é diferente em razão de seu objeto de estudo e da história colonial. Mas acredito que essa noção seja válida para o mundo intelectual em geral. Se os intelectuais de outras partes do mundo se tornam conhecidos, em geral é porque eles se mudaram para a metrópole e trabalham nos termos da metrópole. Você pode ganhar o Prêmio Nobel em Ciências Naturais quando vem do Terceiro Mundo, mas só depois que você se transfere para uma universidade metropolitana e trabalha dentro de uma tradição metropolitana de ciência.

É claro que tudo isso pode mudar, que o sistema econômico global muda, a China se tornou o principal ator do capitalismo internacional, vivemos tempos estranhos. A China ainda é a maior consumidora de ideias, mas está começando a produzir em áreas tecnológicas que mudarão as relações de poder nessas áreas, embora não ainda em Ciências Sociais e Humanidades. A Índia é, a meu ver, muito mais produtiva que a China em termos de Ciências Sociais no momento. Tudo pode mudar, as coisas realmente mudam, mas ainda há um longo caminho a se percorrer. Eu insisto em dizer, é um velho tema da Sociologia, mas a autoridade no mundo intelectual ainda reside massivamente na metrópole global.

MA: E ainda é predominantemente masculina?

RC: Principalmente.

MA: E heteronormativa? E heterossexual?

RC: Heteronormativo é um conceito do Norte. O fato de que a noção de heteronormatividade e o constructo "LGBT" tenham se globalizado é quase um exemplo clássico da hegemonia das perspectivas do Norte nas Ciências Sociais. É realmente surpreendente para mim ouvir a sigla "LGBT" no Brasil, e já ouvi também em outros países da América Latina. Então penso: "O quê? De onde veio isso?" Em um continente onde as políticas sexuais são formuladas de maneira diferente, onde a dissidência sexual é concebida de maneira diferente. Por exemplo, não existe nada parecido com "travesti" na América do Norte, portanto não faz parte do conceito "LGBT".

CR: Você já ouviu falar em GLS no Brasil?

RC: Não. O que é isso?

CR: Significa gays, lésbicas e simpatizantes. É algo que considero muito local, a ideia do simpatizante.

RC: Esse conceito me soa melhor, porque tem uma realidade política - embora com muita tensão política - na aliança dos grupos de gays e de lésbicas. Mas não consigo, por mais que me esforce, pensar que mulheres e homens transexuais sejam grupos de identidade sexual. Não são. Eles não são grupo nenhum, basicamente. Então, até nessa área existe aquele problema da hegemonia do Norte e da resposta do Sul.

MA: Existe o conceito de multidões queer, de Beatriz Preciado, que me agrada muito. Um cantor de música popular brasileira, Caetano Veloso, diz algo similar: "de perto ninguém é normal".

RC: É uma grande verdade, quando se estuda sexualidade e história de vida em detalhes. De fato, ninguém é um pacote padronizado.

MA: E para mim essa noção de multidões queer quer dizer exatamente isso.

RC: Sem dúvida. Eu deveria falar alguma coisa sobre ser uma mulher transexual?

MA: Sim, por favor, faça isso.

RC: Eu deixei isso de lado quando contava a minha história, mas, pelo que li na literatura, se aplica a todas as mulheres transexuais (e para os homens transexuais também). É mais ou menos um fato da vida, e o conceito de "mudança de sexo" é, realmente, um mal-entendido, acho eu, de gênero.

CR: Por que um mal-entendido?

RC: Porque parte do princípio de que você está no estágio homem e depois vai se tornar mulher. E isso não é absolutamente verdade na vida do homem ou da mulher transexual, da maneira como entendo. Desde que me lembre, lá na infância eu já me identificava como mulher, mas tinha plena consciência de que tinha um corpo masculino. Essa é a grande contradição da experiência transexual das pessoas. Da mesma maneira que todos têm suas contradições. Talvez seja essa a minha versão de multidão queer. Considero sexualidade e gênero inerentemente contraditórios, embora as contradições tenham intensidades diferentes e formas diferentes. E na minha vida eu assumi esta forma.

Então, eu enfrentei, na adolescência e na pós-adolescência, situações de vida muito difíceis, muito problemáticas, como de que maneira eu iria sobreviver. Tenho sorte de estar viva, porque muitos transexuais não sobrevivem: ou se matam ou morrem vítimas de violência, ou - não na Austrália, mas em outras partes do mundo - de marginalização social, pobreza, AIDS. E considero que devo minha vida a Pam, minha companheira, que me aceitou como mulher transexual. Nós encontramos uma maneira de viver em que eu era socialmente homem. Isso me possibilitou viver e agir no mundo por muito tempo, embora com muitas dificuldades e tensões, é claro, mas foi possível. É bom lembrar que nessa época a maioria das feministas hostilizava as mulheres transexuais de maneira muitas vezes violenta. A visão do público feminista da transexualidade era extremamente negativa [nas décadas de 1970-80] nos países de língua inglesa. Não sei como era no Brasil ou na América Latina.

Então o apoio da Pam foi notável. Possibilitou todas as outras coisas que tenho feito. Mas isso terminou quando Pam morreu, e meu estilo de vida não foi mais possível sem ela. A única maneira de continuar vivo era passar por uma transição. Então, depois que Kylie terminou a escola, eu comecei o processo.

MA: Preocupava a maneira como ela encararia o fato?

RC: É claro que sim. Mas ela sabia, e quero enfatizar que Kylie me apoiou durante todo o processo, e continua apoiando. Sou profundamente grata a ela. Ainda assim, realizar essa transição significa ir a público, expor as suas aflições diante de todos, suas soluções imperfeitas. É, portanto, um processo muito desafiador, não só para a mulher transexual, mas para todas as pessoas que a cercam. Foi difícil para a minha família, difícil para os amigos, difícil para os colegas, difícil para os meus aliados políticos, e ainda não é fácil para ninguém. Mas aconteceu, e tenho sido bastante recompensada pelas respostas positivas que recebo de muitas feministas australianas. Acredito que a visão de muitas delas sobre transexualidade mudou. Isso se deve em parte às Teorias Queer, porque a Teoria Queer foi uma das forças que mudaram a situação.

MA: Judith Butler?

RC: Certamente. E outras. O interesse delas pela transexualidade, pelo transgênero - que não considero exatamente a mesma coisa - certamente abriu caminho para outras feministas. Então, foi extremamente positivo. Mas também acho que algumas feministas admitem que não é uma ameaça ao feminismo, mas uma questão de justiça social, uma questão de gênero, algo que pode trazer mais solidariedade que hostilidade. Então tudo isso tem sido extremamente positivo.

CR: Você pretende escrever sobre essa experiência?

RC: Há uma excelente escritora canadense que eu recomendo a todos os seus leitores, Vivian Namaste, que publicou três livros sobre transexualidade, dois em inglês, um em francês. Eu diria que Vivian faz uma das críticas mais positivas à Teoria Queer. Ela lembra que as mulheres transexuais são constantemente solicitadas a contarem suas histórias, explicarem para si mesmas, para a polícia, para o psiquiatra, para os médicos, os jornalistas...

MA: Para os acadêmicos...

RC: Para os acadêmicos, para os profissionais sociais. Ela tem razão! E muitas transexuais realmente contam suas histórias. O principal gênero da escrita transexual é a narrativa pessoal, as histórias do tipo "minha vida". Confesso que ainda reluto muito.

Em parte porque envolve outras pessoas e algumas das histórias são dolorosas. Não é fácil para uma mulher quando o marido anuncia inesperadamente: "Sou uma mulher". O que isso faz com a vida dela? É traumático para algumas mulheres passar por esse tipo de experiência com o homem com quem elas dividem a própria vida. Algumas dessas histórias são muito difíceis para as demais pessoas envolvidas; devo dizer que algumas das narrativas que li são bastante egocêntricas e de péssima qualidade. Outras são respeitosas e interessantes. Varia muito. Mas eu não sinto vontade de escrever sobre isso.

Eu publiquei um artigo baseado em uma entrevista que fiz com uma mulher transexual que queria contar a sua história. Está na revista Sexualities.6 6 CONNELL, 2010b.

Finalmente criei coragem para escrever um artigo sobre mulheres transexuais e feminismo que será publicado na Signs, provavelmente no ano que vem.7 7 CONNELL, 2012. Estou começando a escrever alguma coisa sobre questões de transexualidade. É um campo minado e eu quero fazer isso com muito cuidado e respeito.

CR: Estive na Austrália. O contexto é muito diferente da Califórnia. Que consequências essa experiência teve em sua teoria e também na sua vida pessoal?

RC: Pessoalmente, foi muito difícil. Sinto muito por isso, porque tenho muitos amigos nos Estados Unidos. De certa forma é o meu segundo lar, porque frequentei a escola naquele país durante muitos anos, fiz pós-doutorado, lecionei em três universidades norte-americanas. Não era um ambiente estranho para mim, tudo era muito familiar e eu me adaptei facilmente. Mas foi um período muito, muito difícil. História familiar - foi um momento traumático.

A Austrália é pequena, muito pequena em comparação à América do Norte e aos Estados Unidos; temos menos de 1/10 da população e muito menos de 1/10, talvez 1/20, da sua riqueza. Todo o nosso sistema universitário nacional caberia dentro da Califórnia, um único estado.

CR: O que me surpreendeu na Califórnia é que em toda parte veem-se transgêneros, homem para mulher, mulher para homem. No Brasil, você foi a primeira a dar uma conferência em um congresso importante.

RC: Eu estive lá provavelmente antes da primeira grande onda de estudos sobre transgêneros, que aconteceu na segunda metade da década de 1990. Fui recebido como homem, não como mulher transexual. O campus onde eu dava aula, Santa Cruz, era um centro de estudos gay, considerados principalmente como estudos gays e lésbicos, não como estudos queer. Então, o queer começou na época em que eu estava lá. Comecei a dar aulas acho que em 1992-93. Era considerado muito avançado por ter um programa de estudos gays e lésbicos. Existiam várias faculdades residenciais no campus de Santa Cruz, uma delas de gays e lésbicas. Acho que nessa época a Teoria Queer começava a se tornar hegemônica no contexto gay da Califórnia, mas não existia uma presença de transgêneros no contexto em que eu estava. Eu teria sabido se houvesse, porque me interessava! Lá pela segunda metade da década de 1990 surgiu uma onda de livros sobre transgêneros, sobre desconstrução de identidade, houve uma espécie de triunfalismo do cenário transgênero, como se tivéssemos solucionado o problema de gênero, e todos deveriam abandonar as identidades de gênero para mergulhar nessa sopa de identidades múltiplas. Mas então eu não estava lá. Estava na Austrália e não vi nada disso. E estava também, de certa forma, em outra via.

MA: Estamos falando já há algum tempo e você deve estar cansada. Como já falamos sobre gerações de feminismo, esse poderia ser um jeito de resumir num encerramento temporário. Como dar espaço às Teorias Queer e às novas perspectivas sem apagar nossa história de, no mínimo, uma segunda onda de pensamento feminista, que considero tão importante? Alguns jovens tiveram muito pouco contato com essa onda, até porque pouca coisa foi traduzida, exceto por alguns artigos. Então, estamos como que numa situação de tensão e certas pessoas pensam que estamos nesse mundo pós-gênero, e eu tenho que dizer "calma aí!"

RC: Sim, "alto lá!"

MA: Digo "Olhe para a sua vida", porque muitos ainda estão muito longe do pós-gênero e da desconstrução. Estamos meio que presas nos velhos paradoxos de gênero, não é mesmo?

RC: É, já pensei muito nisso. E escrevi bastante, não exatamente nesses termos, mas eu diria que o meu livrinho Gender: In World Perspective está afirmando isso. Reconheço que todo esse pós-estruturalismo e os estudos queer contribuíram para a área de gênero. Ainda sou bastante crítica em relação ao que penso sobre a problemática da identidade de gênero, o que significa tanto uma preocupação com identidades de gênero quanto a desconstrução de identidades na Teoria Queer. Em alguns cenários, isso é o que o estudo de gênero significa, um debate sobre identidade, e mudança de identidade, e desconstrução de identidade. Para mim, é apenas uma dimensão das relações de gênero.

E como eu já disse, sou socióloga. Estou profissionalmente interessada nas estruturas sociais, nas grandes populações, no poder, nas estatísticas, na realidade do dia a dia, de um grande número de pessoas. Estou interessada em trabalhar com as realidades da classe operária, com as relações de gênero em conexão com as relações de classe e os processos trabalhistas, e assim por diante.

Dessa perspectiva, o contexto no qual posso dizer "vivemos em um mundo pós-gênero" é o dos muito, muito privilegiados. É uma política de privilégios de alto nível, quando se olha para o mundo como um todo. Para mim, é a essência de - aqui estou eu dando uma espécie de sermão! Mas para mim a essência do feminismo tem relação com a justiça social. E isso envolve o mundo material, envolve as desigualdades econômicas, que são imensas em escala mundial. Envolve processos educacionais, envolve poder de Estado, envolve militares, e a violência massiva em todo o mundo. Esse é o cenário das realidades de gênero, do qual as identidades fazem parte, mas são apenas um fragmento deste todo maior que envolve o feminismo e a análise de gênero.

Então, não penso realmente que seja uma questão de voltar à segunda onda do feminismo. Essas questões sempre existiram. E estão mais presentes que nunca. E eu diria que mais no feminismo do mundo em desenvolvimento do que no feminismo do Norte global. As feministas da América do Norte podem se preocupar com identidade, talvez porque não estão vendo a pobreza de massa batendo na porta de suas casas. Mas as feministas do Brasil estão. As colegas da América do Norte não estão enfrentando a violência de massa na porta de suas casas, mas as feministas da Índia estão. Nesse sentido, o que estamos precisando é de um feminismo global, e então talvez tenhamos que conversar sobre uma quarta onda feminista, se formos falar em ondas.

CR: Cosmopolitanismo?

RC: É esse o meu debate com algumas pessoas, por que eu insisto no conceito de teoria sulista. Se você diz só ciência social global ou ciência social cosmopolita, as pessoas podem entender como um projeto homogêneo, tudo a mesma coisa. E se tudo é a mesma coisa, então é o Norte. É uma emanação do Norte global. É preciso insistir na especificidade da experiência das mulheres brasileiras, das chilenas, das indianas, das indonésias. Estas são as nossas vizinhas na Austrália; é o maior país muçulmano do mundo, tem um importante movimento de mulheres, e nunca é ouvido pelo Norte global. Ninguém. E mesmo assim há um intenso debate local que se arrasta há dezenas de anos. Talvez eu esteja girando em círculos, mas é assim que encaro essas questões, e a razão pela qual não acredito que uma política de identidade seja um centro adequado para o pensamento feminista.

CR.: Obrigada.

MA: Sinto-me honrada e grata.

Caxambu, outubro de 2011.

Tradução: Vera Caputo

  • CONNELL, Raewyn. "Como teorizar o patriarcado?". Educação & Realidade, v. 15, n. 2, p. 85-93, 1990.
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  • 1
    CONNELL, 2007.
  • 2
    A entrevista contou com a participação de Miriam Grossi.
  • 3
    CONNELL, ASLENDEN, KESSLER e DOWSETT, 1995.
  • 4
    CONNELL, 1990; 1992; 1995a; 1995b.
  • 5
    CONNELL, 2010a.
  • 6
    CONNELL, 2010b.
  • 7
    CONNELL, 2012.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013
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