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É possível dizer algo novo sobre essencialismo de gênero?

RESENHAS

É possível dizer algo novo sobre essencialismo de gênero?

Tânia A. Kuhnen

Universidade Federal de Santa Catarina

WITT, Charlotte. The Metaphysics of Gender. Oxford; New York: Oxford University Press, 2011. 153 p.

O problema do essencialismo de gênero aparece de forma recorrente no debate feminista. Mas décadas de filosofia feminista parecem não se aproximar de algum consenso sobre se de fato há alguma essência associada à noção de gênero. Por isso, há uma tendência atual de considerar o problema secundário para a filosofia e a política feminista. Natalie Stoljar afirma que empregar a expressão 'essencialismo de gênero' hoje em sala de aula é considerado abuso e chega a ocasionar uma espécie de terrorismo intelectual.1 1 Natalie STOLJAR, 1995, p. 261.

Seguindo essa linha interpretativa, Mari Mikkola questiona a relevância de discussões sobre essencialismo de gênero. Ela afirma que talvez o feminismo tenha pouco a ganhar com tal debate, e, embora em um sentido descritivo seja correto dizer que o essencialismo de gênero é central na teoria feminista, isso não significa dizer que ele deveria ser (ought to) central em um sentido normativo, uma vez que a descrição coerente sobre essencialismo tem pouco a oferecer em termos éticos e políticos.2 2 Mari MIKKOLA, 2012, p. 1-2. Por outro lado, algumas feministas, a exemplo de Alison Stone, defendem a importância da discussão acerca de essencialismo de gênero dentro do feminismo, oferecendo uma descrição psicoanalítica sobre a identificação individual por meio do gênero.3 3 Alison STONE, 2012, p. 13-14. Outras autoras, por sua vez, como Judith Butler, consideram que gênero não é um atributo essencial das pessoas, mas uma construção social, instituída, que somente existe à medida que é constantemente realizada, repetida de forma estilizada sob a determinação das normas sociais ao longo do tempo, criando a ilusão do gênero como algo permanente.4 4 Judith BUTLER, 1988, p. 519.

Considerando esse contexto controverso, The Metaphysics of Gender, de Charlotte Witt, redireciona o debate sobre essencialismo ao apresentar a proposta original de 'uniessencialismo de gênero', que, segundo a autora, contribui para a discussão político-feminista a partir do momento em que mostra como mulheres estão submetidas a normas sociais opressivas, que restringem suas posições sociais. A política feminista precisa enfocar o modo como a sociedade está normativamente estruturada e criticar essas normas opressivas. Assumindo uma posição marxista, Witt sugere que a política feminista deve estar voltada para a mudança social (p. 47).

No Prefácio do livro, Witt antecipa a pergunta que reaparece no primeiro capítulo e que, segundo ela, justifica pelo menos em parte a obra: você seria a mesma pessoa ou indivíduo se pertencesse a um gênero diferente? A resposta recorrente a essa questão é 'não'. Como essa resposta parece óbvia aos interlocutores, Witt deseja investigar em que sentido o gênero é essencial aos indivíduos de tal modo que, se pertencessem a outro gênero, não seriam mais a mesma pessoa. A autora afirma estar interessada na centralidade do gênero para as experiênciais individuais, ou seja, na importância do gênero para determinar o indivíduo social - e por que a pessoa é esse indivíduo social e não qualquer outro. Nesse sentido, Witt desenvolve o argumento de que gênero é uniessential para os indivíduos sociais (p. xiii). Mas o que isso significa exatamente? Ao longo dos capítulos da obra a autora constrói sua resposta a essa questão.

No primeiro capítulo, Witt distingue dois tipos de essencialismo: essencialismo de tipo e essencialismo individual. No essencialismo de tipo, rejeitado por Witt, defende-se existir uma propriedade, ou mais de uma, compartilhada pelos membros de um grupo. No essencialismo individual sustenta-se que há uma propriedade, ou mais de uma, que torna aquele indivíduo o indivíduo que ele é. Para entender como essa propriedade funciona, Witt recorre a um modelo aristotélico de unificação, segundo o qual a essência é a causa substancial do indivíduo (p. 14). Essencial para o indivíduo social ser quem é, é seu gênero. A propriedade essencial também explica a existência de um indivíduo acima da soma de suas partes constituintes pelo modo como unifica e organiza o indivíduo. O gênero é a propriedade que exerce essa função, ou seja, constitui ontologicamente o indivíduo social unificado. Em outros termos, as posições sociais ocupadas simultaneamente pelo indivíduo são unificadas por sua função de gênero (p. 18).

Com base na tese de que gênero é uniessencial para o indivíduo social, Witt define, então, no segundo capítulo, gênero a partir da função de reprodução de mulheres e de homens socialmente mediada. O argumento do essencialismo de gênero não está, portanto, assentado em eventuais propriedades distintas de homens e mulheres, mas na função social de reprodução (engendering function). A partir dessa função são associados papéis distintos que normatizam a posição que cada indivíduo vai ocupar na sociedade. 'Ser homem' e 'ser mulher' implica um conjunto distinto de normas definindo atividades apropriadas, que ancoram uma ampla gama de normas influenciadas pelo gênero. Os papéis atribuídos à posição de 'ser homem' e 'ser mulher' são reconhecidos pelos demais indivíduos que avaliam e cobram uma resposta adequada a tais papéis (p. 19). Witt defende, assim, uma teoria atributiva da normatividade social, de acordo com a qual os indivíduos não escolhem voluntariamente seus papéis, nem precisam se identificar com a posição social que ocupam. Os papéis sociais são atribuídos aos indivíduos e normatizados de acordo com a posição social de 'ser homem' e 'ser mulher' (p. 43).

No terceiro capítulo, Witt esclarece sua concepção ontológica tripartite de 'indivíduo social', 'organismo humano' e 'pessoa'. O uniessencialismo se aplica à noção de indivíduo social, cuja existência relacional depende da realidade social. É o indivíduo social que está submetido à normatividade de gênero, não o organismo humano, nem a pessoa. É ele que ocupa uma posição social, regulada por normas e à qual certos papéis sociais são atribuídos. O indivíduo social é, assim, um agente social: ele ocupa posições sociais e age por meio delas, sendo capaz de estabelecer e alcançar objetivos de forma intencional (p. 60-61). O gênero se aplica a esse indivíduo social, porque a função reprodutiva socialmente mediada é relacional, ou seja, é especificada em relação a um outro, dentro de um determinado contexto social e histórico, que envolve um complexo conjunto de normas sociais. Por isso, gênero é essencial para indivíduos sociais.

A função de gênero é a posição social mais importante por determinar que tipo de normas serão aplicadas ao indivíduo na sociedade. Gênero é, portanto, o 'megapapel social' (mega social role), prioritário a todos os demais papéis sociais que o indivíduo ocupa. Gênero, diferente de outros papéis sociais, existe ao longo de toda a vida do indivíduo, atravessa todas a culturas e tempos, mesmo que seu conteúdo normativo varie de uma cultura para outra. Em virtude disso, Witt argumenta no capítulo quatro que o gênero é o 'princípio de unidade normativa' do indivíduo, isto é, as várias posições sociais ocupadas pelo indivíduo e os diversos papéis sociais são unificados e determinados normativamente por meio do 'megapapel social'. Nesse sentido, gênero é a posição social cujas normas têm priroridade, articulam e unificam todas as demais posições sociais: ser mãe, ser imigrante, ser médica, por exemplo, são diferentes posições sociais, às quais papéis sociais específicos são atribuídos, que se unificam em um indivíduo social, por intermédio da posição de gênero de 'ser mulher'. A unidade do agente social é, portanto, uma unidade funcional e normativa entre posições sociais e seus respectivos papéis sociais. Indivíduos sociais são unificados pelas normas de gênero, pois gênero é essencial para eles (p. 79).

A articulação dessa concepção de essencialismo de gênero com a situação normativa e a ontologia do self é o objeto do quinto capítulo de The Metaphysics of Gender. A situação normativa do self diz respeito ao modo como o self se insere na concepção atributiva de papéis sociais, ou seja, a relação entre a determinação social e a capacidade autorrefletiva do self. A ontologia do self, por sua vez, refere o problema da relação do self com a concepção tripartite do ser. No que tange à questão normativa, Witt argumenta que a autorreflexão do self na construção de sua identidade prática é mediada pelos seus papéis sociais de gênero nas respectivas posições sociais ocupadas, que podem ser explícitos e conscientes ou implícitos e não conscientes (p. 110-117). Sobre a ontologia, Witt argumenta que o self é produto da trindade unificada no sentido de que ele só é possível se as três instâncias ontológicas estiveram presentes, pois elas compartilham entre si propriedades constitutivas e se integram na formação da identidade prática (p. 120). Portanto, o self é: a) corporificado (organismo humano), por precisar de uma base material para agir; b) autorreflexivo (pessoa), podendo aceitar ou rejeitar papéis sociais; e c) relacional, pois precisa ser um agente (indivíduo social) que ocupa posições sociais normatizadas pelo gênero. Essa concepção de self, no entender de Witt, ajusta-se aos escritos feministas contemporâneos, que criticam o self como agente autônomo, livre de quaisquer restrições corporais, de relações com os outros e isolado de uma situação social (p. 118).

No Epílogo da obra, Witt refere as eventuais consequências de uma concepção uniessencialista de gênero para a política feminista. Witt esclarece que não aborda a noção de gênero como algo constitutivo para mulheres enquanto parte de um grupo, ou algo essencial para uma suposta essência feminina inalterável. A autora trabalha com a importância do gênero para a constituição individual - do indivíduo que uma mulher é. Essa concepção uniessencialista de gênero permite entender como certos papéis sociais, vinculados a posições sociais ocupadas, podem oprimir mulheres e situá-las numa posição de desvantagem em relação aos homens. Embora homens e mulheres ocupem muitas posições sociais semelhantes, às mulheres acabam sendo atribuídos papéis sociais distintos, muitas vezes opressivos, que as colocam numa posição social inferior. Uma vez identificados tais papéis sociais, é preciso promover mudanças na organização das práticas sociais - função da política feminista - para que as estruturas sociais não oprimam mulheres, garantindo igualdade de poder nas relações (p. 132).

A obra de Witt tem sido objeto de revisões críticas na comunidade filosófico-feminista. Em trabalhos recentes, Ásta Kristjana Sveinsdóttir, Ann E. Cudd e Mari Mikkola5 5 Ásta Kristjana SVEINSDÓTTIR, 2012, p. 1-5; Ann E. CUDD, 2012, p. 1-7; Mari MIKKOLA, 2012, p. 1-10. levantam diferentes pontos controversos em The Metaphysics of Gender. Em linhas gerais, as críticas questionam: a necessidade de uma concepção ontológica tripartite dos indivíduos; a justificação da categoria de 'indivíduo social' enquanto necessário para dar sentido ao argumento do essencialismo; a concepção de 'pessoa' como um ser autorreflexivo, mas que não necessita de um mundo social; a fundamentação de 'gênero' na ideia de função reprodutiva socialmente mediada e a relevância dessa função para os indivíduos; a possibilidade de gênero não ser o 'megapapel social' que funciona como princípio unificador; a possibilidade da mudança social a partir do modelo atributivo da normatividade social e da concepção de 'agente' oferecida; e a própria relevância do debate sobre essencialismo de gênero para o feminismo.6 6 As respostas a essas críticas foram tecidas por Charlotte Witt, mas não há espaço aqui para reconstruí-las e analisá-las. Confira: Charlotte WITT, 2012, p. 1-9.

No entanto, um ponto que merece breve atenção refere-se à existência de formas de realização de gênero distintas das tradicionais 'ser mulher' e 'ser homem'. Na compreensão de Witt, o reconhecimento social é uma condição necessária para ocupar posições sociais de gênero (p. 29). Por 'reconhecimento social' a autora entende um conjunto complexo de normas, que variam culturalmente, composto tanto pela confirmação das instituições públicas, por meio de documentos, como certidão de nascimento, passaporte, carteira de habilitação, quanto pelo reconhecimento interpessoal, através da participação em associações, clubes, igrejas, entre outras instituições (p. 45). Witt exemplifica o processo de mudança das condições materiais e sociais de realização de gênero citando as famílias de gays e lésbicas, nas quais a função de gênero é realizada de forma não patriarcal, embora elas ainda não contem com reconhecimento social completo. Witt reconhece a necessidade de ações políticas para que esse reconhecimento torne-se completo, o que pressupõe a atuação individual na mudança da normatividade social por meio da rejeição de certos papéis sociais.

A proposta de Witt abre a possibilidade de indivíduos transgêneros constituírem um terceiro gênero, desde que sejam socialmente reconhecidos como ocupantes de uma posição social distinta de 'ser mulher' e 'ser homem'; por exemplo, 'ser um indivíduo transgênero' (p. 41). Dessa forma, embora a proposta de Witt apoie-se numa concepção dualista de gênero, ela não exclui a possibilidade de outras formas de gênero emergirem na sociedade, desde que instrumentos sociais de reconhecimento sejam efetivados. O modelo de gênero de Witt, portanto, não se compromete com uma estrutura social patriarcal e auxilia a compreender o funcionamento das estruturas de gênero na sociedade contemporânea, além de esclarecer o modo como gênero está imbricado na existência social.

Em suma, recorrendo à noção de uniessencialismo e explicando como uma variedade de papéis sociais ocupados é unificada por meio da função de gênero para formar um indivíduo, Witt consegue fornecer uma explicação metafísica inovadora acerca da centralidade do gênero para as experiências sociais.7 7 A realização desta resenha foi motivada pelas discussões no seminário Gender and Essentialism, realizado no primeiro semestre de 2012, sob coordenação da professora doutora Mari Mikkola, na Humboldt Universität zu Berlin. Agradeço gentilmente a todos os colegas a disciplina e também à CAPES e ao DAAD, pelo financiamento do doutorado sanduíche na referida universidade.

Notas

  • BUTLER, Judith. "Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology and Feminist Theory". Theatre Journal, v. 40, n. 4, p. 519-531, dez. 1988.
  • CUDD, Ann E. "Comments on Charlotte Witt's The Metaphysics of Gender". Symposia on Gender, Race and Philosophy, v. 8, n. 2, p. 1-7, 2012. Disponível em: <http://sgrp.typepad.com/sgrp/spring-2012-symposium-witt-on-the-metaphysics-of-gender.html>. Acesso em: 15 jun. 2012
  • MIKKOLA, Mari. "How Essential is Gender Essentialism? Comments on Charlotte Witt's The Metaphysics of Gender". Symposia on Gender, Race and Philosophy, v. 8, n. 2, p. 1-10, 2012. Disponível em: <http://sgrp.typepad.com/sgrp/spring-2012-symposium-witt-on-the-metaphysics-of-gender.html>. Acesso em: 15 jun. 2012.
  • STOLJAR, Natalie. "Essence, Identity, and the Concept of Woman". Philosophical Topics, v. 23, n. 2, p. 261-293, 1995.
  • STONE, Alison. "Gender, Essentialism and Individuals: A Response to Witt, The Metaphysics of Gender". In: Conference "Feminist Philosophy and Essentialism". Berlin, 19-20 jul. 2012. [Não publicado]
  • SVEINSDÓTTIR, Ásta Kristjana. "Comments on Charlotte Witt's The Metaphysics of Gender". Symposia on Gender, Race and Philosophy, v. 8, n. 2, p. 1-5, 2012. Disponível em: <http://sgrp.typepad.com/sgrp/spring-2012-symposium-witt-on-the-metaphysics-of-gender.html>. Acesso em: 15 jun. 2012.
  • WITT, Charlotte. "The Metaphysics of Gender: Reply to Critics". Symposia on Gender, Race and Philosophy, v. 8, n. 2, p. 1-9, 2012. Disponível em: <http://sgrp.typepad.com/sgrp/spring-2012-symposium-witt-on-the-metaphysics-of-gender.html>. Acesso em: 15 jun. 2012
  • 1
    Natalie STOLJAR, 1995, p. 261.
  • 2
    Mari MIKKOLA, 2012, p. 1-2.
  • 3
    Alison STONE, 2012, p. 13-14.
  • 4
    Judith BUTLER, 1988, p. 519.
  • 5
    Ásta Kristjana SVEINSDÓTTIR, 2012, p. 1-5; Ann E. CUDD, 2012, p. 1-7; Mari MIKKOLA, 2012, p. 1-10.
  • 6
    As respostas a essas críticas foram tecidas por Charlotte Witt, mas não há espaço aqui para reconstruí-las e analisá-las. Confira: Charlotte WITT, 2012, p. 1-9.
  • 7
    A realização desta resenha foi motivada pelas discussões no seminário
    Gender and Essentialism, realizado no primeiro semestre de 2012, sob coordenação da professora doutora Mari Mikkola, na
    Humboldt Universität zu Berlin. Agradeço gentilmente a todos os colegas a disciplina e também à CAPES e ao DAAD, pelo financiamento do doutorado sanduíche na referida universidade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013
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