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Militância e academia em publicações feministas

SEÇÃO ESPECIAL REF 20 ANOS

Militância e academia em publicações feministas

Tânia Regina Oliveira RamosI; Zahidé Lupinacci MuzartII

IUniversidade Federal de Santa Catarina

IIUniversidade Federal de Santa Catarina

Começamos esta apresentação com algumas datas. A mais importante, 1992, justifica a comemoração dos 20 anos da Revista Estudos Feministas e a apresentação destes textos e das pesquisadoras nesta Seção Especial. Reunidas ao vivo nos dias 7, 8 e 9 de novembro de 2012 deram voz ao que se pretendia ouvir: a Militância e a Academia nos Estudos Feministas, especialmente como se consolidaram as publicações nas últimas décadas. Pensamos em realizar um evento que intensificasse ainda mais o diálogo entre as revistas acadêmicas e as publicações geradas por ONGs e movimentos feministas. A REF sempre se desejou um projeto coletivo, tem sido narrada por muitas vozes, em variadas escritas, objetivadas em muitos artigos na própria revista e em outras publicações, relacionada a outros periódicos brasileiros, como Pagu, Gênero, Espaço Feminino, Labrys, com os quais dividiu o Portal de Publicações Feministas e divide agora o Portal do IEG, relacionada a publicações de ONGs feministas e a revistas estrangeiras, com as quais tem dividido momentos reflexivos de troca de experiências sobre publicações feministas e de gênero.

Nesse exercício biográfico, a REF, Revista Estudos Feministas, é fruto do debate de diversas acadêmicas feministas reunidas em torno de um projeto apoiado pela Fundação Carlos Chagas e pela Fundação Ford, no sentido de criar no Brasil as condições para os estudos no campo dos estudos sobre mulheres e relações de gênero. Sua primeira editoria localizou-se no Rio de Janeiro, na Escola de Comunicação da UFRJ. Em 1999 foi transferida para a UFSC, sob a responsabilidade de um coletivo interdisciplinar, que posteriormente se tornou o IEG, Instituto de Estudos de Gênero. O objetivo da revista, como expresso no seu primeiro editorial, foi o de integrar a prática acadêmica com a prática política, já que a reflexão do campo dos estudos feministas e de gênero nasce justamente da prática dos movimentos sociais, que denunciam as desigualdades, as violências e discriminações fundadas no gênero e na sexualidade.

A REF já realizou dois Encontros Nacionais de Publicações Feministas, em 2000 e 2003. Os encontros possibilitaram a criação de redes de contato e distribuição, o aprendizado de caminhos para financiamentos, indexações, softwares e outras necessidades do trabalho editorial. Em 2012, sentimos a importância de reforçar esses laços criados no trabalho incessante de publicação das reflexões acadêmicas e das informações, denúncias e propostas dos movimentos. Muito se tem feito nestes 20 anos. Falamos, no entanto, mais especificamente dos últimos 13 anos, já que deles participamos como testemunhas oculares e participantes efetivas desse processo. Podemos assegurar, pelo fluxo de textos recebidos, pelas assinaturas anuais, pelas consultas on line, que o desenvolvimento das pesquisas na area acadêmica tem se dado por um esforço colegiado, pela dedicação individual de cada editora e do grupo de apoio administrativo.

Comemorar era preciso. Somar era preciso. Reuniram-se, então, o corpo editorial da REF e suas convidadas. Falas, trocas, debates, diálogos. E alguns textos foram enviados, entre tantos outros significativos, para que compartilhássemos efetivamente o que no evento foi dito por Claudia de Lima Costa, Lucila Scavone, Loreley Gomes Garcia, Hildete Pereira de Melo, Ana Alice Alcantara Costa, Carmen Silvia Maria da Silva, Iara Beleli e Mara Coelho de Souza Lago.

Claudia de Lima Costa, em coautoria com Sonia Alvarez em "A circulação das teorias feministas e os desafios da tradução", explora as especificidades das viagens e traduções das teorias feministas a partir das mediações exercidas pelas revistas e periódicos científicos. As pesquisadoras discutem como um cânone feminista é construído por um mercado de citação transnacional e concluem com alguns exemplos de como abrir espaços nas publicações para outros saberes feministas a partir de práticas contratradutórias. Apresentam a antologia organizada por elas que inclui colaboradoras da Argentina, Brasil, Bolívia, Chile e México, assim como as latinas descendentes de cubanos, porto-riquenhos, mexicanos, chilenos, peruanos e dominicanos que vivem no norte global. Ressaltam no seu importante trabalho o que ensina Spivak1 1 Gayatri SPIVAK, 2012, p. 242. – que a própria noção de tradução, isto é, uma palavra ou ideia que representa outra, desloca qualquer possibilidade de tradução literal. A tradução, portanto, pode apenas ser compreendida como uma catacrese, ou seja, como um uso sempre já equivocado de palavras, uma impropriedade e inadequação inerente a todo e qualquer sistema de representação.

Lucila Scavone, em um trabalho de pesquisa integrada com outras pesquisadoras de seu grupo na UNESP intitulado "Perfil da REF dos anos 1999-2012", analisa a revista e mensura a frequência de todos os temas publicados em seus artigos nas seguintes seções: Artigos; Artigos Temáticos; Dossiê; Seção Debates; Seção Especial; Seção Temática. O universo de pesquisa foi constituído por 471 artigos em 36 números, de 1999 (vol. 7, n. 1-2, duplo) a 2012 (vol. 20, n. 1-3), exceto o volume especial, em inglês, de 1999. Realizou-se o levantamento com base na análise das palavras-chave de cada artigo publicado, as quais foram categorizadas em sete eixos temáticos que propiciaram visualizar o perfil geral dos temas publicados nesse período. As palavras-chave foram cotejadas com os títulos e resumos dos artigos, o que garantiu maior precisão na definição das categorias temáticas. O intuito foi realizar uma análise mais precisa do conteúdo de cada um dos principais eixos temáticos, os quais foram subdivididos em micros eixos, que possibilitaram um resultado mais qualitativo do conteúdo das publicações. As pesquisadoras constatam que a REF acompanha novas tendências como a ampliação dos debates sobre sexualidades e teoria queer, os quais tiveram um crescimento significativo no período – com um pico em 2006 e outro em 2011 – mantendo-se regular deste então. Concluem que a REF continua sua Missão de fortalecer, renovar e divulgar a edição do campo científico de estudos feministas e de gênero no país.

Loreley Garcia, em coautoria com Liane Schneider, em seu artigo "Ártemis: por um feminismo crítico, artístico e libertário", apresentam a Revista Ártemis – Estudos de Gênero, Feminismo e Sexualidades, pontuando a relação dessa revista acadêmica com os movimentos sociais, assim como as propostas editoriais, os objetivos futuros, as dificuldades enfrentadas e as estratégias de superação que permitem estar no oitavo ano da publicação. Apresentam o surgimento da Ártemis, a conexão com as ONGs feministas, os projetos e linhas editoriais, os desafios e estratégias de superação, tanto na UFPB quanto em âmbito nacional. Um dos símbolos adequados para este momento da história humana seria a deusa Ártemis, ou a mais completa recusa ou resistência (negando a reprodução ou imitação) ao mundo dominado pelo sexo masculino. E é com a escolha do nome, que define suas identificações com a força que exala de uma divindade-mulher, que se propuseram a impulsionar a revista, como a própria flecha de Ártemis, sempre apontada para o infinito.

Hildete Pereira de Melo, em "A Revista Gênero/UFF: fazendo 'ciências' na militância", apresenta a Revista Gênero da Universidade Federal Fluminense, relatando seu nascimento como caudatária da onda feminista que na década de 1980/1990 espalhou-se pelo Brasil. Conta esta história, destacando as dificuldades e impasses dos significados diversos que implica "o fazer ciência" e o exercício da militância. Explicita com clareza em seu ensaio que a publicação dos periódicos feministas demonstra as possibilidades de aproximar esses diversos estágios do processo de tomada de consciência sobre a igualdade de mulheres e homens na sociedade. Reconhece, por outro lado, que há distâncias entre militantes feministas dentro e fora do espaço acadêmico e que superar mal-estares é uma tarefa política das mais relevantes. Em seu texto, mostra que há na comunidade acadêmica uma forma de militância feminista bastante vivida, mas é preciso que seja mais bem conhecida, para fazer das tarefas editoriais uma rede efetiva no desempenho dessas ações políticas.

Ana Alice Alcântara Costa e Clarice Costa Pinheiro apresentam "Desafios da linguagem no diálogo dos estudos feministas com os movimentos sociais". Criado em 1983, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), órgão da Universidade Federal da Bahia, vem se constituindo, segundo elas, desde seu primeiro momento em uma ação pró-institucionalização dos estudos feministas nas universidades brasileiras. Perfeitamente integrado à dinâmica das lutas travadas no seio da academia, pelo reconhecimento da importância e legitimidade dessa problemática como objeto de reflexão e análise, o NEIM participou ativamente da conquista de espaços próprios de discussão e ação, como os grupos de trabalho nas associações científicas, as áreas de concentração nos cursos de pós-graduação, a abertura de linhas editoriais, dentre outras frentes de batalha.2 2 Ana Alice COSTA e Cecília SARDENBERG, 2005, p. 110. Nessa perspectiva, tornou-se um centro de pesquisa feminista, buscando formalizar os estudos feministas como um campo do saber em expansão. Inicialmente suas pesquisadoras aproveitavam as brechas possíveis nos conteúdos curriculares dos cursos regulares da Universidade para ministrar conteúdos do campo de estudos sobre a mulher. Posteriormente buscaram romper algumas barreiras e conseguiram oferecer disciplinas específicas (inevitavelmente optativas), tanto nos cursos de graduação como na pós-graduação, em especial nos cursos e programas das áreas de Ciências Sociais, História, Letras, Enfermagem, Educação e Comunicação.

Carmen Silva, em "Desafios das publicações feministas", busca articular o debate sobre teoria e movimento social para apresentar alguns desafios que estão postos para as publicações feministas. Ela trata dos desafios ligados ao reconhecimento, à sustentabilidade, às linhas editoriais e à relação universidade e movimento. A autora destaca que organizações da sociedade civil têm se somado às pesquisas acadêmicas. A revista Cadernos de Crítica Feminista, publicada há seis anos pelo SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, é uma dessas experiências, a partir da qual se desenvolvem reflexões que lhe possibilitam afirmar que o campo de publicações feministas no Brasil é um objeto de estudo bastante amplo, incluindo editoras, núcleos feministas de universidades, organizações da sociedade civil e movimentos sociais. A autora conclui que o principal desafio das publicações feministas é articular a produção teórica e as pesquisas feministas às lutas e às formas organizativas que o movimento feminista constrói em cada contexto histórico. Reforça, assim, que os desafios das publicações feministas de cunho acadêmico e/ou político, em quaisquer formatos que se apresentem, são instrumentos de difusão e reflexão sobre as causas feministas.

Iara Beleli, em "Publicações feministas: velhos e novos desafios", pensa nas dificuldades enfrentadas pelas revistas, que se refletem também na constituição do campo de estudos de gênero, cuja consolidação é marcada pela atuação "quase militante" dos grupos que colocaram no cenário acadêmico, mas não só, uma perspectiva que interpelava os cânones da teoria social. Talvez por isso, nos caminhos percorridos para fazer com que as teorias feministas e de gênero ganhassem certo lugar de interlocução na teoria social, muitas vezes, elas tenham sido percebidas como uma afronta ou mesmo como uma provocação, na medida em que as discussões iniciais estavam centradas na importância da virada epistemológica que a categoria gênero imprimia. Para a pesquisadora, a Revista Estudos Feministas e a Cadernos Pagu venceram o primeiro desafio e, de forma pioneira, abriram espaço para visibilizar os resultados de pesquisa que colocavam em diálogo teorias sociais consolidadas e teorias feministas produzidas no Brasil e alhures. As teorias feministas e as teorias de gênero estão na base dos projetos editoriais dessas revistas, projetos estes pensados por mulheres que constituíram os, e foram constituídas pelos, vários feminismos, uma experiência que ultrapassava fronteiras editoriais, ganhando as salas de aula, as reuniões acadêmicas.

Por último, Mara Coelho de Souza Lago, em "Narrar a REF e fazer a REF: uma história coletiva", procura acrescentar a outras narrativas produzidas sobre a Revista Estudos Feministas, e nelas apoiado, um novo relato sobre as benesses e agruras da edição coletiva desse periódico acadêmico na UFSC. Com base em pesquisas documentais realizadas na e sobre a REF, apresenta brevemente aspectos de algumas de suas seções, como as entrevistas, os debates, detendo-se na participação de homens como autores nessa revista que se intitula feminista. Ressaltando o trabalho coletivo de edição da revista, a autora considera que seria mais adequado dizer fazendo a REF, sem seccionar reflexão e experiência, buscando agrupar todas as atividades que a edição de uma revista acadêmica exige, num embaralhamento de ações práticas e reflexivas que corroboram Joan Scott quando recusa a separação entre experiência e linguagem, insistindo na qualidade produtiva do discurso, já que a experiência é um evento linguístico que não acontece fora dos significados.

Os ensaios reunidos, cujas inquietações foram compartilhadas informalmente em nosso encontro, revelam que as publicações feministas se caracterizam por afinidades eletivas, políticas, por temas comuns e pela linguagem. O que estamos deixando aqui reunido constitui um arquivo, uma biblioteca, mas, acima de tudo, um mapeamento parcial das publicações feministas. Em outras palavras, o que anunciamos no título, uma síntese da geopolítica de uma intensa produção.

  • COSTA, Ana Alice; SARDENBERG, Cecília. "Teoría y praxis feminista en la academia: los núcleos de estudios sobre la mujer en las universidades brasileñas". In: BARTRA, Eli; CAREAGA, Gloria; GOLDSMITH, Mary (Comp.). Estudios feministas en América Latina y el Caribe. México: PUEG-UNAM y Maestría en Estudios de la Mujer/UAM. 2005. p. 108-126. CD.
  • SPIVAK, Gayatri C. An Aesthetic Education in the Era of Globalization. Cambridge: Harvard University Press, 2012.
  • 1
    Gayatri SPIVAK, 2012, p. 242.
  • 2
    Ana Alice COSTA e Cecília SARDENBERG, 2005, p. 110.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Set 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2013
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