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A Revista Gênero/UFF: fazendo "ciências" na militância

The Revista Gênero of Universidade Federal Fluminense: militancy and doing science

Resumos

A Revista Gênero, da Universidade Federal Fluminense, nasceu como caudatária da onda feminista que na década de 1980/1990 espalhou-se pelo Brasil. Este artigo tem como objetivo contar esta história, destacando as dificuldades e impasses dos significados diversos que implica "o fazer ciência" e o exercício da militância.

Revista Gênero; história; impasses


The Revista Gênero of Universidade Federal Fluminense was born as subservient wave feminist in the late 1980/90 spread throughout Brazil. This article aims to tell story highlighting the difficulties and dilemmas of the various meanings that involves "doing science" and the exercise of militancy.

Revista Gênero; History; Impasses


SEÇÃO ESPECIAL REF 20 ANOS

A Revista Gênero/UFF: fazendo "ciências" na militância

The Revista Gênero of Universidade Federal Fluminense: Militancy and Doing Science

Hildete Pereira de Melo

Universidade Federal Fluminense

RESUMO

A Revista Gênero,1 1 A editoria da Revista Gênero no biênio 2012/2013 é exercida conjuntamente pela professora Hildete Pereira de Melo (Faculdade de Economia) e pelo professor João Bôsco Hora Góis (Escola de Serviço Social) da Universidade Federal Fluminense. da Universidade Federal Fluminense, nasceu como caudatária da onda feminista que na década de 1980/1990 espalhou-se pelo Brasil. Este artigo tem como objetivo contar esta história, destacando as dificuldades e impasses dos significados diversos que implica "o fazer ciência" e o exercício da militância.

Palavras-chave: Revista Gênero; história; impasses.

ABSTRACT

The Revista Gênero of Universidade Federal Fluminense was born as subservient wave feminist in the late 1980/90 spread throughout Brazil. This article aims to tell story highlighting the difficulties and dilemmas of the various meanings that involves "doing science" and the exercise of militancy.

Key Words: Revista Gênero; History; Impasses.

Introdução

A decisão de publicar uma revista científica feminista confunde-se com a efervescência do movimento feminista na sua vertente acadêmica. Nos anos 1980/1990 mulheres feministas atuando nos movimentos sociais e nas universidades disseminavam a temática das relações de gênero através de encontros, das redes de intercâmbio entre núcleos, pesquisadoras, grupos de advogacy e organizações não governamentais. Como extensão da difusão dessas ideias na sociedade brasileira foi que docentes da Universidade Federal Fluminense fundaram a Revista Gênero. Esta revista é caudatária desses movimentos que nos últimos quarenta anos se institucionalizaram nos núcleos de pesquisa nacionais e que publicam o pensamento feminista através de diversos periódicos.

Este texto tem como objetivo narrar a experiência da Revista Gênero/Universidade Federal Fluminense e foi organizado da seguinte maneira: faz uma breve história da criação da Revista Gênero, discute suas dificuldades e impasses para sobreviver e fecha a reflexão com breves observações sobre militância e o fazer científico, dos quais os periódicos feministas são uma expressão.

Como foi o processo de criação da Revista Gênero

No ano de 1993, na Universidade Federal Fluminense (UFF), docentes feministas, articuladas com o movimento feminista do Rio de Janeiro, criaram o Núcleo Transdisciplinar de Estudos da Mulher (NUTEM), originalmente vinculado à Pró-Reitoria de Extensão daquela universidade, então administrada pela professora Ismênia de Lima Martins (História). Essa Pró-Reitoria tinha como assessoras as professoras Hildete Pereira de Melo (Economia) e Cenira Duarte Braga (Serviço Social). A organização do NUTEM inaugura na UFF o reconhecimento do campo de pesquisas sobre mulher e a aglutinação de pesquisadoras/es de diferentes Departamentos que estavam envolvidos/as ou tinham interesse nessa temática. Resulta daí a realização de um Seminário da própria Pró-Reitoria que teve como objetivo fazer um balanço das pesquisas em andamento na Universidade e a construção de um catálogo.

Logo depois feministas acadêmicas organizaram a Rede Brasileira de Estudos e Pesquisas Feministas (REDEFEM), formada a partir de um encontro sobre essa temática realizado na UFF/Niterói, sob a coordenação da professora Neuma Aguiar, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e depois professora titular da UFMG. O segundo Encontro da REDEFEM, em Belo Horizonte, sob o patrocínio da UFMG, em 1998, organizado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Mulher (NEPEM) da UFMG, indicou, em Assembleia, a UFF como sede do III Encontro e a professora Rachel Soihet (História) como a sua coordenadora. Essa decisão será importante para a estruturação do núcleo e para confirmar a conveniência de elaborar um periódico.

No caso brasileiro, esses intercâmbios intelectuais proporcionados por tais iniciativas vão demarcar uma nova conceituação do campo temático, com a preocupação de não se afastar dos compromissos com a produção do conhecimento e dos enfoques feministas. O Núcleo da UFF redefine-se conceitualmente, em 1999, como Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero (NUTEG), sob coordenação da professora Andréa Puppin (Educação). Coube a esse núcleo organizar o III Encontro da REDEFEM, em 2001, no campus Gragoatá da UFF/Niterói, sob coordenação da professora Rachel Soihet, coadjuvada pelas professoras Cenira Duarte Braga, Maria Felisberta Trindade (Educação), Suely Gomes Costa (Serviço Social e História) e pelo professor João Bôsco Hora Góis (Serviço Social). Foram estes docentes a espinha dorsal para o desenvolvimento posterior do núcleo. Este grupo, com perseverança e dedicação, aglutinou pesquisadoras/es em torno do projeto de publicação de um periódico feminista. Aderiu ao grupo, ainda na sua fase embrionária, a professora Márcia Cavendish (Sociologia), que, junto com a equipe coordenadora do III Encontro da REDEFEM, conduziu o projeto da Revista Gênero e foi sua primeira editora.2 2 Aparentemente, o último encontro (VI) realizado pela REDEFEM foi na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a coordenação da professora Marlise Matos.

Criada a revista, o primeiro número foi feito artesanalmente e publicado no final de 1999. A maneira precária como a revista foi editada provocou discussões no círculo de docentes sobre os rumos que o projeto deveria tomar, e no calor do debate assumiu a liderança do projeto da revista o professor João Bôsco Hora Góis. Sua forte participação na Pós-Graduação da Escola de Serviço Social, seja como docente destacado, seja como coordenador da Pós-Graduação, foi vital para a consolidação da Revista Gênero e sob sua batuta foram publicados sete números.

O periódico passou a ser publicado semestralmente e seu projeto gráfico melhorado pela Editora da Universidade Federal Fluminense (EDUFF). Em 2004, o NUTEG retoma, então, algumas atividades acadêmicas, sob a coordenação da professora Hildete Pereira de Melo, também escolhida editora de revista, tendo por coeditores o professor João Bôsco Hora Góis e a professora Suely Gomes Costa. Desde então, o periódico vincula-se ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social, integrando, especificamente, o Mestrado e Doutorado em Política Social, do Departamento de Serviço Social, e mantém o mesmo corpo editorial. Conta com docentes e discentes de diferentes Departamentos da Universidade Federal Fluminense e associa pesquisadores/as de Economia, História, Sociologia, Serviço Social, Educação e Letras, voltados para as seguintes linhas de pesquisa: História das Mulheres, Poder e Mulheres, Trabalho e Mulheres, Saúde Reprodutiva e Relações de Gênero, Homossexualidades, Envelhecimento, Literatura e Relações de Gênero.

Durante 2004, numa decisão de reorganização editorial, efetivaram-se um novo projeto gráfico e a atualização dos números em atraso. A revista manteve-se semestral e já está no seu décimo terceiro número, correspondente ao segundo semestre de 2012. Até o final de 2012 foram publicados 13 tomos, impressos e on line. Em meados dos anos 2000 a versão on line foi abrigada no site do Portal Feminista, gerido pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e iniciativa da Revista Estudos Feminista, que disponibilizava os periódicos feministas nas páginas da Web. Desde 2011, além da versão impressa, a versão on line, numa iniciativa própria do professor João Bôsco, está sendo publicada no site da Pós-Graduação de Políticas Sociais da Escola de Serviço Social da UFF.

Dificuldades e impasses vividos pela Revista Gênero

A continuidade do projeto da Revista Gênero anda ameaçada e só o compromisso com o feminismo tem sustentado o corpo editorial do periódico. A revista sofre devido à própria política da UFF na atual gestão sobre o que seja uma política de publicação de periódicos científicos. A gestão da sua Editora (EDUFF), nos últimos anos, tem levado ao desespero os docentes da Universidade que editam as revistas científicas. A Revista Gênero, apesar de pontuada e de leitura agradável, pela diversificação dos temas sociais tratados, recebe, como todas as demais revistas, o mesmo tratamento.

Como a gestão da Editora é vertical, as decisões são tomadas pela direção. Mesmo com o trabalho competente da seção de Editoração e Publicação, o manuscrito da revista permanece cerca de 10 meses na Editora. O processo lento de revisão e edição arrasta-se na própria EDUFF, e quando finalmente a revista é publicada já se passaram muitos meses, entre a revisão e o envio para a gráfica. Claro que nesse longo período a Editora tem outras prioridades, que não são as revistas científicas da própria UFF.

Do ponto de vista administrativo, a publicação da Revista Gênero foi aprovada pela Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação (PROPPI) da UFF, e ainda possui "qualis" da CAPES/MEC, embora tendo sido rebaixada, devido aos atrasos na sua publicação. Este sistemático atraso, acentuado nos últimos quatro anos, foi mortal para a revista. Antes a demora ficava em torno de um semestre, mas ao longo do ano de 2012 a revista editou três números ao mesmo tempo, porque o número relativo ao segundo semestre de 2010 ainda estava no prelo. Neste início de 2013 os números atrasados foram editados praticamente juntos, num esforço conjunto da Editoria e da Coordenação da Pós-Graduação em Políticas Sociais da Escola de Serviço Social.

O exercício de correr contra o tempo – porque preparamos a revista, recebemos artigos da comunidade científica, providenciamos pareceres e preparamos o manuscrito que descansará nas mesas da EDUFF – acabou por prejudicar severamente a Revista Gênero. O consequente rebaixamento no "qualis" por causa dos atrasos na fila da EDUFF compromete a possibilidade de obter financiamento do CNPq, o que tem sido o inferno astral do corpo editorial do periódico nos últimos dois anos.

O fechamento deste relato das dificuldades e impasses na produção da revista implica pensar soluções para estes problemas e não deixar que o periódico morra. Permito-me concluir esta seção com algumas reflexões extraídas do III Encontro de Editores em Ciências Sociais, realizado durante o XV Congresso Brasileiro de Sociologia, em Curitiba (2011). De acordo com os relatos neste encontro, as dificuldades vividas pela Revista Gênero não eram muito diferentes do que acontecia com os periódicos ali representados em relação a financiamento, indexação, qualis, distribuição, revista impressa e on line.

Quanto ao financiamento, a Revista Gênero padece do mesmo problema que aflige os demais periódicos das áreas de Ciências Sociais e Humanas. Em uma das discussões do referido congresso concordou-se com a necessidade de o Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e/ou as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) estaduais criarem um programa específico de apoio a estes periódicos, compreendendo não só os feministas, como também os demais do campo temático das Ciências Sociais.

A indexação é outra questão subjacente que persegue o corpo editorial. Deve-se pensar quais estratégias criar para realizar as indexações necessárias à sustentabilidade da revista, porque sem indexação é impossível sobreviver no concorrido ambiente acadêmico. Deve-se pensar como auxiliar as revistas neste processo, como sair das crises vividas pela política editorial de cada uma das universidades.

Deve-se manter a revista na forma impressa e na on line? É obvio que na forma eletrônica evitam-se os custos gráficos e de distribuição, mas permanecem os da revisão e edição da revista. Os problemas de distribuição são um impasse para os periódicos editados pelas editoras universitárias, significando um custo expressivo do seu processo de publicação. O sistema de assinaturas foi reduzido pela disponibilização on line das revistas, e mesmo assim este nunca foi forte no caso da Revista Gênero. Por outro lado, a manutenção das edições impressas é importante para o sistema de permutas, que pode melhorar o índice de citações das revistas. Quanto à publicação eletrônica, ela é importante porque possibilita um alcance muito maior aos periódicos, sendo fundamental o controle do número de downloads para tal aferição.

Militância e ciência a partir da experiência da Revista Gênero

Como último item destas reflexões sobre "fazer" a Revista Gênero, permito-me discorrer sobre alguns pontos entre este "fazer" enquanto militância e o compromisso com a ciência, porque ninguém duvida que, para editar uma revista feminista, é necessário algo mais que a busca do reconhecimento entre os pares ou simplesmente a difusão do conhecimento. Provavelmente tudo isso é verdadeiro, mas também é verdadeiro o desejo de espalhar aos quatro cantos as ideias da construção de uma sociedade igualitária, ideias semeadas pelo pensamento feminista e que necessitam de veículos de divulgação. Daí a junção entre militância e o fazer ciência.3 3 Este item utilizou como fio condutor texto de Hildete MELO, João Bôsco GÓIS e Suely COSTA, 2011, elaborado para uma discussão interna na UFF.

Nos últimos anos se multiplicou no meio acadêmico nacional um campo de estudos sobre a temática das relações de gênero, feminismos, racismo, sexualidades, identidade de gênero e discriminações. Esse crescimento ocorreu através da publicação de artigos científicos, teses e dissertações, monografias, pesquisas, programas de estudos e cursos tanto na graduação como na pós-graduação das universidades brasileiras. A generalização desses estudos foi coadjuvada em seu esforço acadêmico pela política científica nacional, que alocou nos últimos sete anos recursos substanciais no financiamento desses projetos de pesquisa, seminários e encontros organizados pelo país afora.4 4 As chamadas públicas do CNPq/MCTI, SPM/PR e MDA alocaram, de 2006 a 2012, R$ 20,6 milhões no financiamento de projetos de pesquisa nessa linha temática.

Este seminário comemorativo dos vinte anos da Revista Estudos Feministas (REF) permite pensar sobre os desafios da constituição dos estudos de gênero como campo interdisciplinar e como isso tem marcado sua experiência e de outros periódicos, como mostra a história da Revista Gênero e das demais revistas: Pagu/Unicamp, Caderno Espaço Feminino/Universidade Federal de Uberlândia e a própria Revista Estudos Feministas (REF), com sua trajetória da Universidade Federal do Rio de Janeiro para a Universidade Federal de Santa Catarina.

Para entender como estes projetos de publicações feministas se consolidaram no Brasil, é importante tecer algumas considerações sobre as relações íntimas que permeiam militância e ciência no interior deste campo teórico. Na realidade, o envolvimento com os estudos neste campo temático e o abraçar do "fazer" dos periódicos feministas estão presentes na história dos periódicos científicos feministas nacionais. E a própria história da Revista Gênero é um exemplo. Embora as trajetórias feministas sejam plurais,5 5 Suely COSTA, 2010. há e houve uma simbiose entre o avanço do pensamento científico feminista e a militância no movimento feminista das responsáveis pelos corpos editoriais destas revistas, como também nas suas relações com a criação de núcleos, grupos de estudos e o movimento social, enquanto atores políticos na sociedade.

Uma rápida olhada nas edições da Revista Gênero, publicação que nasceu como um projeto acadêmico feminista, mostra, desde seu número experimental de 1999, publicado em 2000, o largo espectro de matérias escritas por pesquisadoras/es de diferentes disciplinas, sem uma clara predominância de área de concentração de estudos.6 6 REVISTA GÊNERO, 2000. Considerando, ainda, sua irregular distribuição e circulação no meio social, verifica-se que há muito por entender sobre esse conhecimento veiculado e apropriado, desigualmente, pelas diversas áreas científicas.

A Revista Gênero segue tendências consolidadas em revistas feministas de circulação no meio acadêmico, como é o caso da Pagu e da Revista Estudos Feministas, que propagam matérias de interesse da atualização de conhecimento sobre esse campo, tanto submetidas a tradições singulares e interdisciplinares de pesquisa, quanto a um grande número de questões á matérias dos feminismos e dos estudos de gênero.7 7 Adriana PISCITELLI, Iara BELELI e Maria Margareth LOPES, 2003.

Apesar da dimensão interdisciplinar do campo, confirma-se a extensão de itens teóricos e metodológicos de diferentes disciplinas, tais como Sociologia, Antropologia, Economia, Política, História e todos os demais do campo das Ciências Sociais e Humanas. A indicação de que os estudos de gênero possam ser no CNPq um subtema de diferentes disciplinas, alojado ou localizado em áreas "hospedeiras" consolidadas, leva a pensar nas significativas desigualdades impostas por estas pesquisas, diante das diversas disciplinas existentes nas instituições de ensino superior do país.

Os vários núcleos de estudos de gênero instituídos pelas universidades vêm cumprindo papéis – ainda não avaliados em conjunto – na estimulação de pesquisas de cursos de graduação e pós-graduação. Há visibilidade social destes estudos e dos seus resultados, entretanto a "novidade" deste campo temático, perto de quarenta anos, ainda sofre "algumas" resistências no seio da academia. Pode-se mesmo afirmar que esta penetração da temática de relações de gênero ainda permanece uma discussão eivada às vezes de preconceitos pelos não postulantes destas ideias no meio acadêmico.

Não se pode esquecer a tensão existente entre a militância e o fazer ciência. Heilborn e Sorj,8 8 Maria Luiza HEILBORN e Bila SORJ, 1999. fazendo um paralelo entre o surgimento destes estudos no Brasil e nos Estados Unidos, concluem que as feministas brasileiras não fizeram nenhum enfrentamento com as organizações científicas e acadêmicas nacionais. Não foi um embate similar, mas permaneceu ao longo do tempo certo sabor de que estes estudos eram militância e não pensamento científico. No entanto, no campo das políticas públicas, estes temas penetraram fortemente na última década, e o desenvolvimento de tais políticas, num sentido de mão dupla, consolidou o reconhecimento acadêmico dos estudos e pesquisas nas relações de gênero em conjunto com a atuação do Estado.

Em paralelo a estas relações ambíguas com o meio acadêmico, as experiências de encontros acadêmico-feministas, dos quais o "Fazendo Gênero" é o mais importante, permitiram o reconhecimento de objetos comuns de pesquisa do campo, sobretudo quando organizados por Grupos de Trabalho ou Simpósios Temáticos e desenvolvidos por diferentes caminhos disciplinares, e que sirvam a revisões de paradigmas. Desde a experiência da histórica criação do Grupo de Trabalho (GT) "Mulher e Força de Trabalho" na Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) em 1979, e no ano seguinte do GT "Mulher e Política", que este campo temático ganhou força no interior de tais campos disciplinares. Na História, o mesmo se deu através da Associação Nacional de Professores Universitários em História (ANPUH), a partir de 2001 com a formação de GTs de Estudos de Gênero regionais. Os exemplos se multiplicam pelas diversas associações científicas nacionais das áreas das Ciências Humanas e Sociais: Associação Nacional em Pesquisa em Educação (ANPED), Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP), Associação Nacional em Pesquisa em Letras e Literatura (ANPOLI).

Estes exemplos não devem, porém, esconder a tensão entre a atuação política no movimento de mulheres e as pesquisas propriamente ditas acadêmicas.9 9 Ana Alice COSTA e Cecilia SARDENBERG, 1994. Os encontros permitem estabelecer elos acadêmicos, difundir pesquisas e discutir seus resultados, fazendo avançar o pensamento feminista. Embora a professora Suely Gomes Costa (ex-editora da Revista Gênero) em entrevista tenha afirmado que a identificação e a classificação de saberes relativos aos estudos de gênero movem-se com e sem participação feminista, esse é outro tópico de reflexão, que não será explorado nestas reflexões, pois implica pensar formas de convivência entre militantes e não militantes.10 10 Entrevista concedida a Hildete Pereira de Melo em 9 de abril de 2012.

É inegável que a luta das mulheres pela ampliação de sua cidadania orientou diversos ramos do conhecimento. Enfrentou a visão biológica das Ciências Sociais sobre a condição feminina e experimentou sabores e dissabores da teoria econômica e mais recentemente, dissensões em torno do conceito de gênero. Impactos dos estudos de gênero sobre as disciplinas têm se dado de modo muito desigual, quando se consideram tradições disciplinares sobre temas eleitos como de prestígio e as hierarquias temáticas que nelas se estabelecem.

Os estudos de gênero ocupam lugares diferentes nas disciplinas e hierarquias acadêmicas. Suas questões, com frequência, são presumidas como "de pouco valor". Nas hierarquias da História, os estudos de gênero nem sempre são considerados relevantes e, mesmo quando reconhecidos como de significativos resultados, têm pequeno alcance no interior da própria disciplina e ainda levantam suspeitas quanto ao papel que desempenham na instrumentação de lutas sociais. Na Teoria Econômica, tanto feministas marxistas como neoclássicas contemporâneas silenciam sobre o significado do trabalho no interior dos domicílios e sobre o fato de ser este de responsabilidade feminina. Talvez a tentativa comum de reduzirem a questão do trabalho doméstico e da reprodução social à lógica da produção de mercadorias pouco tenha contribuído com avanços na reflexão sobre a invisibilidade do papel feminino na ordem econômica capitalista.11 11 Sobre o assunto, ver Hildete Pereira de MELO e Franklin SERRANO, 1997. Estes conceitos pensados originalmente para exprimir a realidade do mundo do mercado não podem ser usados para explicar o papel das mulheres na família, na realização dos afazeres domésticos e na reprodução da sociedade, em relações que não estão, necessariamente, no mercado capitalista ou que não lhe pertencem.12 12 Hildete Pereira de MELO, Claudio CONSIDERA e Alberto SABBATO, 2007.

Os estudos de gênero no Brasil, contudo, adquiriram crescente visibilidade e qualidade nas mais diversas áreas do saber a partir de contribuições trazidas por movimentos acadêmicos e feministas ao longo das últimas décadas. Incorporaram desigualmente contribuições teóricas e metodológicas advindas das interseções de sexos, raças/etnias e gerações, e no campo das sexualidades mantêm fortes marcas da heterossexualidade.13 13 João Bôsco GÓIS, 2003. Rígidas fronteiras disciplinares estão postas, como no caso da Teoria Econômica, que, além de pouco ou nada desvendar sobre a divisão sexual do trabalho doméstico, predominantemente a cargo de mulheres, reflete em suas análises ideias e preconceitos de autores pouco suscetíveis às contribuições abertas pelos estudos de gênero. No entanto, é possível perceber o reconhecimento de sua importância para o desvendamento de processos sociais que engendram desigualdades sociais na história contemporânea.14 14 Suely Gomes COSTA, 2004.

Considerações finais

A Revista Gênero e as demais revistas feministas, embora com trajetórias várias, assumiram diferentes papéis na propagação de questões de interesse do campo temático e conceitos germinados em estudos acadêmicos. Mantêm-se, de alguma forma, em consonância com aspirações femininas, expressam a consciência das relações de gênero, estas sem dúvida matizadas pela complexidade da realidade social. No entanto, urge efetivar um inventário das tendências intelectuais que orientam e impulsionam os movimentos feministas e os estudos de gênero no país.

Reconhecemos que são muito importantes as contribuições feministas no tocante ao tema das desigualdades sociais nas muitas relações sociais que compõem a vida social: classes, raças/etnias, gerações, orientação sexual, identidade de gênero e tantas outras que permeiam a sociedade através de esquemas de poder e subordinação.

A publicação dos periódicos feministas demonstra as possibilidades de aproximar estes diversos estágios do processo de tomada de consciência sobre a igualdade de mulheres e homens na sociedade.

Reconhecer que há distâncias entre militantes feministas dentro e fora do espaço acadêmico e superar mal-estares é uma tarefa política das mais relevantes. Há na comunidade acadêmica uma forma de militância feminista bastante vivida, mas é preciso que seja mais bem conhecida, para fazer das tarefas editoriais uma rede efetiva no desempenho dessas ações políticas.

[Recebido e aprovado em abril de 2013]

  • COSTA, Ana Alice; SARDENBERG, Cecilia. "Teoria e práxis feministas na Academia: os núcleos de estudos sobre a mulher nas universidades brasileiras". Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro: CIEC/UFRJ, número especial, p. 387-400, 1994.
  • COSTA, Suely Gomes. "Movimentos feministas, feminismos". Revista Estudos Feministas, Florianópolis: UFSC, v. 12, número especial, p. 23-36, 2004.
  • ______. "A formação em estudos de gênero, mulheres e feminismos: impasses, dificuldades e avanços". In: ENCONTRO NACIONAL DE NÚCLEOS E GRUPOS DE PESQUISA PENSANDO GÊNERO E CIÊNCIAS, 2., 2010, Brasília. Anais... Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, 2010.
  • GÓIS, João Bôsco Hora. "Desencontros: as relações entre os estudos sobre homossexualidade e os estudos de gênero no Brasil". Revista Estudos Feministas, Florianópolis: UFSC, v. 11, n. 1, p. 289-297, 2003.
  • HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. "Estudos de gênero no Brasil". In: MICELI, Sérgio (Org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995), ANPOCS/CAPES São Paulo: Editora Sumaré, 1999. p. 183-221.
  • MELO, Hildete Pereira de; CONSIDERA, Claudio M.; SABBATO, Alberto. "Os afazeres contam". Economia e Sociedade Revista do IE/UNICAMP, Campinas, v. 16, n. 3, 2007.
  • MELO, Hildete Pereira de; GÓIS, João Bôsco Hora; COSTA, Suely Gomes. Estudos de gênero e os periódicos feministas 2011. Texto interno.
  • MELO, Hildete Pereira de; SERRANO, Franklin. "A mulher como objeto da Teoria Econômica". In: AGUIAR, Neuma (Org.). Gênero e Ciências Humanas desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997. p.137-160.
  • PISCITELLI, Adriana; BELELI, Iara; LOPES, Maria Margareth. "Cadernos Pagu: contribuindo para a consolidação de um campo de estudos". Revista Estudos Feministas, v. 11, n. 1, p. 242-247, 2003.
  • REVISTA GÊNERO: Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero NUTEG. Niterói: EdUFF, 1. sem. 2000- . Semestral. ISSN 1517-9699.
  • 1
    A editoria da Revista Gênero no biênio 2012/2013 é exercida conjuntamente pela professora Hildete Pereira de Melo (Faculdade de Economia) e pelo professor João Bôsco Hora Góis (Escola de Serviço Social) da Universidade Federal Fluminense.
  • 2
    Aparentemente, o último encontro (VI) realizado pela REDEFEM foi na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a coordenação da professora Marlise Matos.
  • 3
    Este item utilizou como fio condutor texto de Hildete MELO, João Bôsco GÓIS e Suely COSTA, 2011, elaborado para uma discussão interna na UFF.
  • 4
    As chamadas públicas do CNPq/MCTI, SPM/PR e MDA alocaram, de 2006 a 2012, R$ 20,6 milhões no financiamento de projetos de pesquisa nessa linha temática.
  • 5
    Suely COSTA, 2010.
  • 6
    REVISTA GÊNERO, 2000.
  • 7
    Adriana PISCITELLI, Iara BELELI e Maria Margareth LOPES, 2003.
  • 8
    Maria Luiza HEILBORN e Bila SORJ, 1999.
  • 9
    Ana Alice COSTA e Cecilia SARDENBERG, 1994.
  • 10
    Entrevista concedida a Hildete Pereira de Melo em 9 de abril de 2012.
  • 11
    Sobre o assunto, ver Hildete Pereira de MELO e Franklin SERRANO, 1997.
  • 12
    Hildete Pereira de MELO, Claudio CONSIDERA e Alberto SABBATO, 2007.
  • 13
    João Bôsco GÓIS, 2003.
  • 14
    Suely Gomes COSTA, 2004.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Set 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2013

    Histórico

    • Recebido
      Abr 2013
    • Aceito
      Abr 2013
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