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Uma nova abordagem na construção de indicadores de gênero

RESENHAS

Uma nova abordagem na construção de indicadores de gênero

Karolyna Marin Herrera

Universidade Federal de Santa Catarina

Estatísticas sob suspeita: proposta de novos indicadores com base na experiência das mulheres

CARRASCO, Cristina.

São Paulo: SOF Sempre viva Organização Feminista, 2012. 160p.

Uma maneira de abordar a situação de determinados grupos sociais é através da interpretação de indicadores socioeconômicos, uma medida que utiliza dados quantitativos para representar, total ou parcialmente, a realidade. Esses indicadores, utilizados para compreender um determinado contexto de estudos, são ferramentas úteis na formulação, monitoramento e avaliação de ações públicas.

Os indicadores socioeconômicos, em geral, são calculados seguindo-se o marco analítico da teoria econômica dominante, que utiliza como categoria de análise o indivíduo (o homo economicus) como sendo um ser homogêneo, sem distinção de sexo, raça, religião e classe social. Sendo assim, o que esses indicadores procuram expressar é a realidade socioeconômica de um determinado grupo social, sem fazer distinção entre as particularidades dos indivíduos analisados.

Contudo, a partir de meados dos anos de 1990, observa-se uma tendência de desagregação de certas informações, a fim de se compreenderem as especificidades distintivas entre homens e mulheres. Essa demanda surgiu por parte do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que pretendia, naquele momento, aprofundar uma discussão da situação socioeconômica das mulheres. Foram desenvolvidos, então, os "indicadores de gênero" (índices desagregados por sexo), que procuravam representar a situação de homens e mulheres em determinadas áreas, tais como a saúde, a educação, a moradia e o acesso ao mercado de trabalho.

Apesar de ser considerada um avanço dentro do âmbito da discussão de desigualdade entre os sexos, a construção dos "indicadores de gênero" continua a reproduzir sem questionamentos o marco analítico subjacente, oriundo da teoria econômica vigente. Nessa concepção, a situação das mulheres é tratada recorrentemente a partir da perspectiva construída pela experiência masculina. Isso significa dizer que, em uma sociedade cujo modelo está baseado nas relações patriarcais, os "indicadores de gênero" expressam a participação das mulheres dentro de um espaço predominantemente masculino.

O livro da economista Cristina Carrasco, resultado de um estudo feito para o Instituto Catalão das Mulheres, pretende, dentro desse contexto, tratar a situação socioeconômica das mulheres por meio de uma abordagem alternativa. Para isso, propõe indicadores baseados em um marco analítico diferente do tradicional, tomando como ponto de partida a experiência das mulheres.

A publicação do livro, no ano de 2012, pela editora SOF Sempreviva Organização Feminista é constituída por três partes. Primeiramente é realizada uma introdução à edição brasileira, que contempla reflexões sobre o enfoque não androcêntrico da economia, o sistema de índices e os "indicadores de gênero" existentes. Na segunda parte, Cristina discute o enfoque teórico adotado, justificando a abordagem da economia feminista1 1 O objetivo da economia feminista é questionar o paradigma da economia dominante (neoliberal) e seus métodos, a centralidade do mercado e a divisão sexual do trabalho. Essa abordagem sugere que o bem-estar das pessoas deve ser o centro de toda atividade econômica, sendo esta uma ferramenta de superação das relações de exploração e opressão. e a escolha pelo uso de indicadores centrados na vida humana. Na parte final, a autora discorre sobre os indicadores aplicados às áreas escolhidas para análise.

Como enfoque teórico, Cristina incorpora teorias da economia feminista, baseadas em análises não androcêntricas. Procura destacar a atividade não remunerada ou sem valor mercantil, que se orienta, fundamentalmente, para o cuidado da vida humana (atividade que, segundo a autora, é realizada majoritariamente por mulheres). Essa abordagem tem como inspiração o "enfoque das capacidades", desenvolvido por Amartya Sen. Esse autor considera que uma melhoria na qualidade de vida se dá através da ampliação das oportunidades individuais, a qual está relacionada com o exercício e desempenho da existência do indivíduo: a oportunidade de ser e fazer. Nesse sentido, o bem-estar está estreitamente vinculado com a eliminação de barreiras e obstáculos que impedem os indivíduos de exercerem suas liberdades. O acesso à saúde, à educação, à moradia, ao transporte e às liberdades civis e políticas são, entre outros aspectos, a expansão das capacidades humanas e oportunidades que conduzem à qualidade de vida.

Em sua proposta, a autora procura identificar os principais obstáculos que impedem o desenvolvimento das capacidades humanas e, a partir dos indicadores obtidos com essa análise, orientar ações públicas e de caráter social. Para operacionalizar essa abordagem, a autora elencou 10 capacidades principais, que são tratadas em profundidade na terceira parte do livro. O objetivo, nesse caso, é apresentar um quadro de indicadores que expressem as capacidades humanas escolhidas, tais como: (i) acesso à saúde, (ii) acesso à educação e ao conhecimento, (iii) acesso a um espaço doméstico adequado e seguro, (iv) acesso a um trabalho remunerado em condições adequadas, (v) acesso à obtenção de rendimentos monetários, (vi) acesso a uma mobilidade e a um planejamento territorial adequados, (vii) acesso ao tempo livre e às atividades esportivas, (viii) acesso aos cuidados, (ix) acesso a uma vida livre de violência, e (x) participação social e política na comunidade.

Todas as capacidades abordadas estão ligadas e se condicionam mutuamente, pretendendo, com isso, propiciar ao indivíduo uma melhor qualidade de vida de forma plena e integral. O objetivo com a construção de indicadores dentro dessas 10 capacidades é que todas elas sejam asseguradas a todas as pessoas. A autora destaca que a posse e a acumulação de recursos financeiros em nada garantem o acesso às capacidades; ou seja, apesar de algumas capacidades poderem ser "compradas", o objetivo não é esse. Dentro do contexto proposto, o Estado tem papel preponderante na criação de condições para que os indivíduos tenham melhor qualidade de vida. Ao assim proceder, o Estado pode contribuir na construção de condições igualitárias de acesso para todos, substituindo as alternativas oferecidas pelo mercado.

A autora fez também uma opção por construir indicadores baseados em capacidades interligadas, ao invés de agrupá-las em áreas temáticas, com elementos analíticos independentes. Ao proceder dessa forma, Cristina propõe uma abordagem que pretende ampliar os limites representados pela complexidade humana, uma vez que o ser humano não possui uma vida compartimentada e estanque, e sim uma vida integradora e multidimensional.

Como se pode perceber, as capacidades eleitas pela autora representam a realidade de homens e mulheres. No entanto, os indicadores desenvolvidos para análise de cada uma das capacidades são aplicados com foco na realidade feminina. Por exemplo, para analisar o acesso à saúde, o estudo propõe dez indicadores, alguns deles aplicáveis a ambos os sexos; outros, porém, aplicáveis somente às mulheres. Entre estes, estão a expectativa de vida ao nascer e a realização regular de mamografias preventivas entre os 50 e os 64 anos.

Sendo assim, esse trabalho representa um avanço na transformação dos modelos de indicadores existentes. A sua proposta pretende lançar luzes na convergência entre os estudos econômicos e de gênero, por meio da contribuição específica dos valores e habilidades próprias das mulheres, reposicionando, assim, o protagonismo necessário aportado pelas correntes feministas.

Na conclusão de seu livro, Cristina Carrasco afirma que essa obra é uma primeira tentativa na construção de um sistema de indicadores elaborados sob uma perspectiva da economia feminista e, nesse sentido, é uma proposta aberta ao debate e à reflexão. Importante ressaltar que o estudo foi realizado em um contexto bastante específico, representado pela região da Catalunha, sendo necessário sofrer revisões e adequações para outros contextos ou regiões.

Notas

  • CARRASCO, Cristina. "La economía feminista: una apuesta por otra economía". In: VARA, Maria Jesús (Coord.). Estudios sobre género y economia Madrid: Akal. 2006. p. 29-62.
  • NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano Nova Iorque: Journal of human development, 2002.
  • SEN, Amartya. "Capacidad y bienestar". In: NUSSBAUM, Martha; SEN, Amartya (Orgs.). La calidad de vida México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
  • ______. Desenvolvimento como liberdade São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • 1
    O objetivo da economia feminista é questionar o paradigma da economia dominante (neoliberal) e seus métodos, a centralidade do mercado e a divisão sexual do trabalho. Essa abordagem sugere que o bem-estar das pessoas deve ser o centro de toda atividade econômica, sendo esta uma ferramenta de superação das relações de exploração e opressão.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013
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