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Nova domesticidade: a opção feminina pelo lar

RESENHAS

Nova domesticidade: a opção feminina pelo lar

Daniele M. Lugli

Faculdade de Tecnologia SENAI - Curitiba

Homeward Bound: why women are embracing the new domesticity. MATCHAR, Emily

Em seu primeiro livro, Homeward Bound: why women are embracing the new domesticity, Emily Matchar se propõe a explicar o fenômeno que ela chama de "nova domesticidade", refe-rindo-se à retomada das atividades tradicional-mente consideradas domésticas e femininas - como artesanato, jardinagem, cozinha natural e maternidade intensiva - pelas jovens mulheres urbanas e de alto nível de educação formal. A jovem autora saída de Harvard cita a proliferação de blogs e lojas virtuais de produtos artesanais como indícios claros dessa tendência de com-portamento. Por meio de entrevistas, Matchar analisa o contexto contemporâneo dos Estados Unidos e aponta como principais causas a preocupação com a sustentabilidade e a saúde; a busca da sensação de estabilidade e seguran-ça de um "passado cor-de-rosa"; a realização pessoal; e a necessidade de flexibilidade frente a um mercado de trabalho em recessão, que não oferece oportunidade aos jovens e discrimina as mães. Como consequências, aponta o risco financeiro das mulheres que desistem de seus empregos formais, seduzidas pela ilusão de perfeição vendida pelos poucos casos de sucesso das blogueiras e empreendedoras virtuais; a paralização das demandas feministas por mudanças numa cultura de trabalho estagnada no modelo provedor masculino de tempo integral; e a inversão de valores no momento que uma classe privilegiada se apropria das atividades antes realizadas por necessidade financeira e sujeita às relações de poder entre gêneros como forma de status.

Matchar inicia a obra apresentando ao leitor o conceito de domesticidade e o histórico do trabalho feminino na sociedade. Em seguida, para tratar minuciosamente dos diversos assuntos abrangidos pela nova domesticidade, a autora centraliza cada capítulo em torno de um tema principal: a (re)construção da imagem da domes-ticidade na internet; artesanato; culinária e a alimentação; e maternidade intensiva - sem deixar de estabelecer vínculos entre os assuntos. Finalmente, ela analisa a relação entre a nova geração de mulheres e o mercado de trabalho, estabelecendo conexões diversas com a agenda feminista, e conclui com uma reflexão sobre o valor simbólico do retorno ao lar na sociedade contemporânea e as implicações dessa escolha.

O primeiro assunto tratado é a teoria da au-tora sobre o apelo da domesticidade nos dias de hoje. Ela conta que a vida no lar já foi romanti-zada outras vezes, como, por exemplo, nos anos 1950, mas o que diferencia o momento atual é a adoção do pensamento por parte de america-nas progressistas e com alto nível de educação formal, o que sinaliza uma profunda mudança social. A nova domesticidade é, portanto, o aco-lhimento dos valores domésticos por parte de pessoas que teriam condições financeiras e inte-lectuais de rejeitá-los. Sobre isso, existem olha-res otimistas de ambos os lados: pela direita, as mulheres finalmente perceberam a importância de resgatar as tradições; pela esquerda, atingiu-se o momento do pós-feminismo, no qual as mu-lheres são livres para optar pela domesticidade sem culpa. Entretanto, Matchar sugere maior atenção ao impacto consequente desse movimento.

Ao abordar brevemente a história do traba-lho feminino, ressalta-se a influência da Revolução Industrial ao prover os lares com produtos prontos ou semiprontos. As mulheres deixaram de fazer e passaram a consumir, o que perdurou até a década de 1920, depois disso a recessão eco-nômica e a Segunda Guerra forçaram as então donas de casa a participar do mercado de trabalho. Já na prosperidade do pós-guerra, a figura materna foi novamente exaltada, até que em 1970 as circunstâncias econômicas fizeram a mulher voltar ao trabalho e posteriormente, com o aval do feminismo, tentar alcançar os cargos até então ocupados apenas por homens. Essa rejeição à figura da dona de casa dominou as décadas de 1980 e 1990, mas no início dos anos 2000 já havia pontualmente ações de resgate à cultura do DIY (do-it-yourself ou faça-você-mesmo), que acabaram culminando em popularidade após a crise econômica de 2008.

Essa data coincide com a ascensão dos blogs de estilo de vida que, segundo a autora, são em grande parte responsáveis pela dissemi-nação da cultura da domesticidade. A internet permite o contato com outras pessoas que com-partilham os mesmos gostos e valorizam o traba-lho alheio, mesmo na segurança do lar; isso faz com que a dona de casa não seja mais a figura solitária e menosprezada da década de 1950, e sim uma mulher fortalecida e reconhecida por sua opção de estar em casa. Também na internet surgiu o fenômeno Etsy, um site que permite aos artesãos criar sua própria loja virtual e comercia-lizar seus produtos ao redor do mundo. A autora considera esse sucesso interessante, pois ele expõe como o fazer manual cresceu e deu ori-gem a uma economia artesanal representada principalmente pela insatisfação das mulheres com o mercado de trabalho, e o atribui à neces-sidade da geração Y de empreender e expressar sua criatividade e individualidade, sobretudo diante de perspectivas profissionais desanima-doras. Porém, Matchar reforça que, em ambos os casos, a imagem de sucesso é construída e revela apenas o lado romântico da dedicação ao lar. Por trás dessa opção, existe uma série de dificuldades e fracassos que acabam sendo omitidos para vender ao leitor a ilusão de perfeição.

Voltando aos blogs, Matchar trata, então, da culinária, que é abordada não apenas como um prazer resultante do fazer manual, mas tam-bém como uma solução para problemas sociais, como a obesidade infantil, o aquecimento global e o enfrentamento às grandes corporações. A geração Y, criada por suas mães trabalhadoras à base de enlatados e congelados, agora deseja o oposto para suas famílias e, mais do que nunca, os consumidores estão atentos aos rótulos, optan-do por produtos orgânicos ou oriundos de hortas domésticas e adotando o vegetarianismo ou o veganismo. Esse capítulo está diretamente ligado ao seguinte, que trata da maternidade intensiva, uma corrente que prega a adoção do parto na-tural, a amamentação prolongada, a educação em casa, a abolição das fraldas e até o extremo de negar a vacina aos bebês. Matchar relaciona o comportamento à falta de confiança nas políticas governamentais que deveriam garantir a fiscalização dos alimentos, do serviço de saúde e da educação de qualidade, mas explicita que apenas uma parcela da população possui essa opção e, ao abandonar as demandas direciona-das aos governos por melhorias sociais, são os menos favorecidos que sofrerão as consequências.

A autora reforça que a característica princi-pal da nova domesticidade é a opção por tal estilo de vida. São mulheres com alto nível de educação formal que abandonam seus bons empregos para transformar radicalmente a ma-neira de viver, frustradas por não conseguirem equilibrar a vida profissional e a maternidade, como prometiam as feministas. Motivadas pelos fatores citados nos capítulos anteriores, essas mulheres empunham a bandeira da desacelera-ção, rejeitando a cultura de consumo extrema e romantizando o tempo de suas avós, que aos seus olhos parecem mais simples e sinceros. Matchar sugere consequências graves advindas desse comportamento, sendo a principal a paralização da demanda por maior flexibilidade e condições de trabalho às mulheres.

Finalmente, Matchar fala como a nova do-mesticidade é de interesse e, consequentemen-te, integra grupos de repertórios distintos. Nesse contexto, as atitudes ultraprogressistas se apro-ximam do ultraconservadorismo, pois, embora as motivações sejam bastante diferentes, o resul-tado é o mesmo: mães cristãs e casais homosse-xuais trocam informações sobre a educação em casa; famílias de baixa renda vivem uma vida frugal por necessidade, enquanto outras abasta-das o fazem pela forte crença na sustentabili-dade; jovens urbanos trocam receitas e apren-dem tricô com idosos que sempre levaram uma vida rural.

A autora toma o cuidado de expor opiniões divergentes sobre o assunto, trazendo olhares internos e externos - tanto o otimismo de quem vivencia e acredita nos benefícios do retorno ao lar quanto o pessimismo de quem considera o movimento um retrocesso para as conquistas feministas. Porém Matchar, que em diversos momentos fala de sua própria experiência em relação aos anseios domésticos, mostra-se firme em seu posicionamento, apropriando-se de argumentos dos ambos os lados para refutar pensamentos contrários.

O trabalho de Matchar é uma leitura válida para profissionais e pesquisadores interessados na sociedade contemporânea, pois proporciona desde uma análise de novos padrões de consu-mo até uma reflexão sobre macrotendências de comportamento voltadas à desaceleração. É também um ponto de partida para quem se pro-ponha a desdobrar a pesquisa numa abordagem local, investigando as causas e consequências do resgate da domesticidade no território brasi-leiro, além de instigar o aprofundamento sobre-cada um dos tópicos tratados em seus capítulos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2014
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