Acessibilidade / Reportar erro

(Des)Fazendo-se homem

RESENHAS

(Des)Fazendo-se homem

Elias Ferreira Veras

Universidade Federal de Santa Catarina

Vidas de hombre(s). Barcelona: Edicions Bellaterra, 2012. p. 231. GUASCH, Oscar (Org.)

Ainda que, muitas vezes no campo das ciên-cias sociais, os estudos das relações de gênero sejam tomados como sinônimo de história das mulheres, nas últimas décadas, percebe-se a ampliação da utilização da perspectiva de gê-nero (pensada em sua transversalidade)1 1 Para saber mais sobre as relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea, ver Joana Maria PEDRO, 2011. celo d2 para a análise das experiências de outros sujeitos sociais. A incorporação do gênero pelos estudos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e das masculinidades é um exemplo de que gê-nero é uma categoria útil de análise das experi-ências das mulheres, mas também dos homens, entre estes/as, aqueles/as que vivenciam feminili-dades/masculinidades dissidentes: homossexuais, lésbicas, travestis e transexuais.

Nessa reinvenção teórica, escutam-se os ecos dos ensinamentos da historiadora Joan Scott,2 2 Joan SCOTT, 1990. que lembra que o gênero se faz nas relações sociais, e, ainda, os protestos de teóricas/os queer que enfatizam a necessidade de se pensar o gênero para além das categorias essencialistas e binárias, efeitos da revolução político-cultural iniciada pelo movimento feminista e seus desdobramentos nos movimentos LGBT e de homens pela igualdade.

A coletânea Vidas de hombre(s), organiza-da pelo sociólogo espanhol Oscar Guasch, insere-se nesse contexto de transformações politico-epistemológicas. O livro compõe o mosaíco das obras anteriores do autor dedicadas a analisar as mudanças sociais na história recente da Espanha, a partir de uma perspectiva de gênero e da Sociologia da Sexualidade.3 3 A trilogia da sexualidade composta pelos livros La sociedade rosa, La crisis de la heterosexualidad e Héroes, científicos, heterosexuales y gays oferece um panorama significativo das preocupações teóricas de Guasch.

Em diálogo com a proposta do livro Y no fueron marujas (2011), que reúne histórias de vida de mulheres que foram além das normas de gênero, Vidas de hombre(s) revisa criticamente as formas vigentes de ser homem a partir dos relatos autobiográficos dos autores - antropó-logos, sociólogos, médicos, enfermeiros etc.

Os textos Historias edulcoradas de um superviviente com mal corazón (José Ángel Lozoya), Penitencia por "delito de género": relato sobre un adolescente afeminado (Laurentino Vélez-Pelligrini), Um tipo (no tan) normal: masculinidades en/de tránsito (Jordi Roca Girona), En la cuerda floja (Fernando Sáez), Sobre Eros, homofobia y Baco (Oscar Guasch), Una pareja gay y su hijo, nuestra historia (Vicent Borràs), Las mujeres, mi lado femenino, y yo (Sergio Piñar), El jugador (de fútbol) (Alberto del Campo Tejedor), De aquí, de allí, de todos sitios (Eduardo Lizardo González), Una pareja no tan extraña (Toni y Àlvar) e Bajarse los pantalones (Miguel Ángel López Ramales) problematizam as seguintes questões: como cada autor se (des)fez homem? Que estratégias foram elaboradas como respostas às transformações de gênero?

Em meio à pluralidade de histórias, tecidas a partir de narrativas de homens heterossexuais e homossexuais, encontram-se pontos em comum na constituição das memórias (masculinidades) subalternas, limítrofes e dissidentes.

Trata-se de vidas (e textos) marcadas, na infância, pelo nacional catolicismo do regime franquista, cujo dispositivo da culpa/repressão atingia, principalmente, mas, não apenas, os meninos afeminados. Os textos dos antropólogos Vélez-Pelligrini, Girona e Guasch são ilustrativos dos efeitos da violência homofóbica da qual foram vítimas os meninos (os autores) acusados de "delito de gênero".

O encontro com o pensamento/movimen-to feminista aparece nas reminiscências dos autores como outro acontecimento partilhado. Lozoya e Ramales lembram as descobertas do encontro com as mulheres feministas, que, ao final, contribuiu para a participação destes no movimento de homens pela igualdade. Tal en-contro possibilitou aos autores a elaboração de ferramentas teórico-politicas de crítica ao regime machista, que, além de violentar mulheres e homossexuais, violenta também aqueles homens heterossexuais que não seguem as normas estabelecidas pela masculinidade hegemônica.

O envolvimento com os movimentos sociais (feministas, homossexuais, homens pela igualda-de) e a escolha de temas relacionados às sexualidades como objeto de estudo aparecem como estratégias de superação dos traumas e das feridas da infância/adolescência narrados de modo honesto e emocionante pelos autores.

A essas experiências partilhadas, cruzam-se memórias singulares marcadas pela fome, pelo medo, pela culpa, pelos jogos eróticos, pela relação conflituosa com o pai; memórias afetivas que reservam aos/as companheiros/as dos autores um lugar privilegiado. Os relatos de Vicent Borràs sobre os desafios enfrentados ao lado do seu companheiro Jordi para adotar um filho; de Fernando Sáez, que, ao se casar com uma mulher mais velha, desviou-se da mascu-linidade hegemônica; e de Tony e Àlvar, homos-sexuais que estão juntos há mais de três décadas, misturam histórias de amor e de esperança às outras de medo, culpa e violências.

Estranhamente, Vida de hombre(s) não incorpora, em seus relatos, histórias de transho-mens,4 4 De acordo com as pesquisadoras Simone ÁVILA e Miriam GROSSI, 2013, transhomens são pessoas trans que se identificam com o gênero masculino e que não necessariamente participam de programas de readequação sexual (ou readequação de gênero) ou se submetem a intervenções cirúrgicas. cujas experiências e reinvindicações têm colaborado para desfazer o binarismo/essen-cialismo dos gêneros e a naturalidade da categoria homem. Certamente, essa estranha ausência não está relacionada à filiação dos autores ao entendimento da masculinidade como algo natural pertencente aos "homens de verdade". Essa hipótese é recusada nas primeiras páginas do livro em detrimento do pensamento que compreende a masculinidade a partir de estratégias de "reforma" - ser homem é uma construção cultural que necessita ser transfor-mada - e de "renúncia", que, mais do que reformada, necessita ser negada. Tal ausência também não se explica pela invisibilidade de transhomens na Espanha, país de origem dos autores que compõem a coletânea. Lembre-mos, por exemplo, de Miquel Missé, sociólogo e ativista trans de Barcelona, membro da luta pela despatologização trans e da campanha STP-2012. Contudo, nos concentremos nas presenças.

A leitura da coletânea organizada por Guasch é um convite a pensarmos a multiplicida-de dos gêneros (e o perigo das identidades essencialistas); o conhecimento como ferramen-ta de crítica e de transformação social; outras memórias, menos marcadas por violências e exclusões; e outras histórias, nas quais os homens - inscritos de modo universal e hegemônico na História - sejam liberados da obrigação e da prisão de ser Homem.

Vida de hombre(s) nos revela que, diante das transformações contemporâneas (conquistas feministas e da comunidade LGBT, por exemplo), o potencial social e de crítica do gênero segue relevante, uma vez que a sociedade, inclusive uma parte significativa dos/as pesquisadores/as, ainda pensa o gênero em seus limites binários, essencialistas e heteronormativos.

Notas

  • AVILA, Simone; GROSSI, Miriam. "O 'y' em questão: as transmasculinidades brasileiras". In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO, 10., 2013, Florianópolis. Anais eletrônicos.. Florianópolis: UFSC, 2013. Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1386768141_ARQUIVO_SimoneAvila.pdf>. Acesso em: 28 de maio de 2014.
  • GUASCH, Oscar. Héroes, científicos, heterosexu-ales y gays: los varones en perspectiva de género Barcelona: Bellaterra, 2006.
  • ______.  La crisis de la heterosexualidad Barcelona: Laertes, 2000.
  • ______.  La sociedad rosa Barcelona, Anagrama, 1991.
  • MISSÉ, M.; COLL-PLANAS, G. (Ed.). El género de-sordenado. Críticas en torno a la patologiza-ción de la transexualidad Barcelona; Madrid: Egales, 2010.
  • MISSÉ, M. Transexualidades. Otras miradas posibles Barcelona; Madrid: Egales, 2013.
  • PEDRO, Joana Maria. "Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea". Topoi, Rio de Janeiro, v. 12, n. 22, p. 270-283, jan./jun. 2011.
  • SCOTT, Joan. "Gênero, uma categoria útil de análise histórica". Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990.
  • 1
    Para saber mais sobre as relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea, ver Joana Maria PEDRO, 2011.
    celo d2
  • 2
    Joan SCOTT, 1990.
  • 3
    A trilogia da sexualidade composta pelos livros La sociedade rosa, La crisis de la heterosexualidad e Héroes, científicos, heterosexuales y gays oferece um panorama significativo das preocupações teóricas de Guasch.
  • 4
    De acordo com as pesquisadoras Simone ÁVILA e Miriam GROSSI, 2013, transhomens são pessoas trans que se identificam com o gênero masculino e que não necessariamente participam de programas de readequação sexual (ou readequação de gênero) ou se submetem a intervenções cirúrgicas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Nov 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014
    Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
    E-mail: ref@cfh.ufsc.br