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Uma trajetória nos estudos feministas: entrevista com Claire Moses

Claire Moses recebeu-me em sua casa em Reston, Virgínia, nos arredores de Washington D.C., em junho de 2011, após termos conversado principalmente por e-mail. Ela acabava de obter sua aposentadoria do Departamento de Estudos de Mulheres (Women's Studies) da Universidade de Maryland e, ao mesmo tempo, da coordenação editorial da prestigiosa revista Feminist Studies, na qual continua atuando como membro do coletivo editorial.

Nesta entrevista, em ritmo de conversa, destaca-se o relato de sua trajetória como intelectual feminista, uma das primeiras a serem contratadas no Departamento de Estudos de Mulheres, seu envolvimento acadêmico, seu ativismo e seu protagonismo na revista Feminist Studies, além de seus estudos sobre a influência da chamada Escola Feminista Francesa, nos Estados Unidos.

Claire Moses esteve recentemente no Brasil para participar do Seminário Internacional Fazendo Gênero 10, em agosto de 2013, e, ao mesmo tempo, para conversar com nossa equipe, na Universidade Federal de Santa Catarina sobre o Congresso Women's Worlds/Mundos de Mulheres, que ocorrerá em Florianópolis, de 30 de julho a 4 de agosto de 2017.

Sua trajetória confunde-se com a história dos estudos feministas, a partir dos anos 1960, nos Estados Unidos. Uma trajetória muito diferente das vividas na América do Sul, naqueles tempos marcados pelas ditaduras e por um feminismo que ressurgia na resistência a essas ditaduras. No Hemisfério Norte, tratava-se de encontrar espaços de legitimidade para o feminismo, e um desses espaços foi, sem dúvida, a Universidade, como fica muito explícito nas palavras de Claire. A revista Feminist Studies nasce desse esforço de legitimação e da necessidade de marcar um lugar para as mulheres e para o feminismo na academia e na política estadunidenses.

Na sua prosa fácil, Claire vai nos mostrando como sua vida esteve próxima da história do feminismo, exemplificando com dois acontecimentos marcantes em sua jovem carreira acadêmica: ao fazer intercâmbio na França, participa de uma palestra com Simone de Beauvoir, ou ao ler o livro de Betty Friedan, baseado em pesquisa realizada com ex-alunas da Smith College, onde ela estudou.

Depois de trabalhar para institutos de pesquisa, é contratada como a primeira professora para o recém formado Departamento de Estudos de Mulheres da Universidade de Maryland, em regime parcial, pois no resto do tempo iria se dedicar à edição da revista Feminist Studies. Em sua carreira de historiadora da França (é mestre e doutora em História pela Universidade George Washington), seus estudos concentraram-se nos movimentos de mulheres francesas nos séculos XVIII e XIX, e, mais recentemente, sobre a leitura estadunidense das autoras que são pensadas como a Escola Francesa do Feminismo.

Cristina Scheibe Wolff (CSW): Quando você se reconheceu como uma feminista?

Claire Moses (CM): Boa questão. Eu passei a barreira dos 70 anos há uma semana, então sou de uma época na qual um primeiro grupo de pessoas passou a afirmar "eu sou feminista". Era o início da segunda onda, como nós dizemos. Nasci na década de 1940, em uma típica família de classe média. Como era comum na época, meus pais não frequentaram uma universidade. Apesar de terem nascido em famílias da classe trabalhadora e pobre, durante o período de minha infância, eles foram beneficiados pela grande expansão econômica ocorrida nos Estados Unidos. Quando eu estava no ensino médio, já era normal as pessoas dessa classe irem para a universidade, de modo que não foi um problema para eles custearem meu ingresso na faculdade. Por ler História, eu sei que naquela época não era comum as mulheres irem para a universidade. Eu frequentei a faculdade de 1959 a 1963 e as estatísticas indicam que somente após os anos 1970 um número substancial de mulheres passou a ingressar nos estudos universitários. Eu não tinha consciência disso. No grupo sociocultural em que eu cresci, as mulheres iam para a faculdade e isso tinha uma relação com nossa condição de classe, porque a maioria de minhas colegas de segundo grau foram para a universidade. Isso também tinha algo a haver com a vida cultural judaica na qual mulheres normalmente iam para a faculdade assim como seus irmãos. Eu também me lembro que meus pais estavam sempre orgulhosos de minhas conquistas acadêmicas. Eu nunca ouvi que eu não deveria ser tão esperta ou que eu deveria esconder isso. Eu até tenho lembranças de um modo particular de como meu pai sorria para mim quando eu falava sobre questões sérias durante o jantar, ele gostava de me ouvir falar daquela maneira. Supunha-se que eu me casaria um dia, assim como meu irmão, e ninguém realmente falava sobre a carreira que eu poderia ter, crescendo nos anos 50. Mas isso era diferente de me encorajar a desenvolver o meu intelecto tanto quanto possível e de meus pais sentirem orgulho de mim por ser muito bem-sucedida no segundo grau e por ir para uma faculdade de mulheres de elite. Assim, eu estava na posição exata para o tipo de mudanças que o movimento de liberação feminina tornou possível, não só por campanhas políticas para ampliar as oportunidades para as mulheres, mas também por pensarmos de maneira diferente. É interessante, porque eu fui para uma faculdade que não nos encorajava, necessariamente, a seguir carreira. Mas que nos encorajou.

CSW: Qual faculdade?

CM: Smith College. Uma das "sete irmãs", como eram chamadas as faculdades de elite exclusivamente femininas na época. Mas a faculdade levou-nos muito a sério como estudantes e intelectuais. Talvez o pensamento da época fosse que um homem muito inteligente e bem-sucedido precisaria de uma esposa inteligente. Eu não sei bem. Certamente havia um número significativo de mulheres professoras que eram modelos de conduta para nós, mas a maioria delas não era casada. Então elas não eram modelos de conduta de maneira completa, já que sinalizavam duas possibilidades de escolha: ou você seguia uma carreira ou você se casava. Uma das consequências de frequentar a universidade naquela época era adquirir uma experiência bem diferente dessa do ambiente supercentrado na orientação vocacional que as universidades têm hoje. Eu era, nós éramos de fato incentivadas a desenvolver a mente, sobretudo em filosofia, história da arte ou em história. Pensar profundamente, mas não termos que nos preocupar se iríamos conseguir um emprego de imediato depois de formadas. Um pouco disso também era verdadeiro para os homens, porque era a década de 60 e a economia estava em expansão num ritmo tal que ter uma graduação em artes liberais de forma alguma era visto como um inconveniente para seguir e desenvolver uma carreira, isso inclusive era ainda mais verdadeiro para mulheres. Então eu era encorajada a pensar.

Eu também fui trabalhar após a faculdade e, na verdade, tive um trabalho muito bom em um mundo ainda altamente discriminatório. A discriminação contra as mulheres no mercado de trabalho em 1964, 1965 e 1966 era extrema. Eu ainda lembro de ir para uma entrevista na revista Time, onde, na realidade, havia elevadores separados para o andar onde as mulheres eram entrevistadas para empregos femininos na revista. Assim, a discriminação era extrema, mas no caso dos institutos de pesquisa, a discriminação contra as mulheres dava-se de forma um tanto diferente. Não era tão excepcional, eles nos ofereciam excelentes empregos fazendo trabalhos intelectuais muito interessantes e significantes, mas com baixos salários. E eles mantinham os salários baixos por contratar mulheres em empregos que, em outros espaços, seriam somente para homens. Os jornais ainda tinham anúncios para mulheres e anúncios para homens. Não era presumido que nós deveríamos parar de trabalhar quando casássemos, mas era presumido que nós deveríamos parar de trabalhar quando tivéssemos filhos. Eu tive minha primeira filha no exato momento em que todos da mídia estavam focados neste emergente movimento de libertação das mulheres. Para mim, as duas coisas se sobrepuseram, o nascimento de minha filha mais velha e a liberação das mulheres. Eu não estava trabalhando quando tive minha primeira filha, mas frequentava a faculdade no campo da história. Na verdade foi uma boa escolha, porque tinha horários flexíveis. Creches eram raras, quase inexistentes. Eu morava em uma comunidade muito progressista e tivemos, eu tive meu próprio CR - Consciousness Raising Group - Grupo de Consciência aqui, e havia outros grupos de consciência na comunidade. Nós frequentemente tínhamos grandes encontros junto, chamados Reston Women´s Liberation (Liberação das Mulheres de Reston). Nós fazíamos palestras na comunidade, mantínhamos um número de telefone para mulheres que precisassem se conectar com o movimento ou que precisassem de ajuda urgente, no caso de estupro ou abuso doméstico, etc. E nós também estávamos ligadas ao movimento de Liberação das Mulheres de Washington, que nós todas chamávamos naquela época de guarda-chuva mágico porque reunia Grupos de Consciência de Mulheres e Grupos de Liberação de Mulheres de toda área metropolitana. Assim, podíamos fazer protestos maiores em conjunto. Protestamos contra restaurantes que não serviam às mulheres, marchamos no grande protesto de agosto de 1970, promovido pela National Organization for Women que acabou colocando o tema liberação das mulheres no mapa.

Tudo isso estava acontecendo. Eu estava na faculdade, mas em algum nível ainda me questionando. E isso foi durante o período em que eu estava na universidade, no qual tive minhas duas filhas e voltei meu interesse intelectual para refletir a forma como eu me realizaria e construiria uma carreira. Devo dizer que, além dos protestos, etc, nosso grupo também criou uma creche cooperada, a primeira em nossa comunidade. E, em seguida, tivemos que enfrentar o preconceito que preponderava nas escolas públicas, segundo o qual as crianças que frequentavam creches e jardins de infância eram abandonadas, agitadas ou mal-amadas.

Na realidade, quando eu estava acabando meu trabalho de graduação em História, o mercado de trabalho em História tinha modificado drasticamente. Embora, durante as décadas de 1940, 1950, 1960, e nos anos iniciais da década de 1970, qualquer pessoa com um PhD pudesse conseguir um emprego em uma universidade, de repente, as coisas mudaram e as universidades pararam de contratar. E o mercado de trabalho acadêmico tornou-se muito difícil.

A partir dos anos 1970, houve um equilíbrio entre a oferta de professores e professoras pós-graduados/as com os empregos disponíveis. Gostaria de frisar que as universidades e os órgãos governamentais foram os espaços mais abertos às mulheres educadas, com níveis de empregos não encontrados em qualquer outro campo de trabalho.

Então, nós tivemos um grande número de mulheres progressistas indo para as universidades, com valores feministas que haviam adquirido nos cursos de pós-graduação. E o grupo do qual eu ainda faço parte era extremamente interessante, formado por acadêmicas feministas. Agora, não me deixe exagerar sobre a quantidade de mulheres que foram para as universidades naquela época, mas posso dizer que a maioria delas, que estão ao redor de minha idade e que cursaram universidades, são feministas, eram feministas. Mas de todas as pessoas que foram para as universidades, homens e mulheres, é claro que os homens ainda dominavam. Mulheres, mais do que os homens, encontravam-se em situação de porta giratória, na qual se elas conseguissem trabalho como professoras assistentes, elas, mais frequentemente do que os homens, não obtinham estabilidade. Ou, e isso ainda é verdade hoje, se elas conquistassem estabilidade e eram promovidas para o nível de associadas, mulheres, mais do que homens, encontravam dificuldades para serem promovidas para professoras titulares. De modo que, ainda hoje, 40 anos depois que um grupo de mulheres começou a entrar em universidades, os homens dominam esmagadoramente as posições seniores.

CSW: E quando você chegou nos estudos de pós-graduação, você estava trabalhando sobre as mulheres?

CM: Comecei meus estudos de pós-graduação interessada na História Francesa, porque era isso que eu tinha feito na graduação e estudado na França por um ano. Eu estava interessada na História Francesa, e no começo não estava certa sobre meu tema de pesquisa. Mas, por causa de meu envolvimento no movimento de libertação feminista (ou liberação das mulheres), decidi estudar o movimento feminista francês.

CSW: Em que universidade você estava nessa época?

CM: Na pós-graduação? Eu fui para a Universidade George Washington, escolhendo-a entre as universidades locais. Eu estava casada e meu marido estava trabalhando nessa região, e eu tinha filhas. Eu não pensava em mim como livre para me candidatar a qualquer universidade dos Estados Unidos e escolher a melhor que poderia me receber. De qualquer modo funcionou bem. Mais tarde eu descobri que a Universidade de Maryland provavelmente teria sido o melhor lugar para eu estudar história francesa. Mas, se eu tivesse concorrido para a Universidade de Maryland, eu não teria conseguido o emprego: há uma prática usual, mas não ilegal, das universidades de não contratarem seus próprios pós-graduados.

CSW: Você obteve seu PhD nos anos 70?

CM: Sim. Quando eu lhe disse o quanto se tornou difícil obter um emprego nos anos 1970, eu já estava trabalhando em minha dissertação e estava extremamente ansiosa sobre o que eu poderia fazer no futuro. Eu tive muita sorte por estar em Maryland, que acabou sendo o lugar certo para mim. Elas tinham, recém começado um Women´s Studies Program (Programa de Estudos de Mulheres) em Maryland, em 1975 e 1976.

E trouxeram uma professora de outra universidade para ser a primeira diretora do Programa, sendo que ela veio com planos ambiciosos de expansão.

CSW: Quem era ela?

CM: Seu nome era Carol Pearson. Dra. Carol Pearson, e ela veio da Universidade de Colorado. Naquela época a revista Feminist Studies, que já tinha em torno de três anos, estava equilibrando-se, pois era difícil mantê-la sem qualquer apoio institucional. Ela era sediada em Nova Iorque, ou seja, as editoras eram todas nova-iorquinas, pois assim podiam trabalhar juntas. Diante do risco de fechamento da revista, essas editoras decidiram tentar articular uma rede de apoio, com o objetivo de obter suporte institucional.

Assim, a necessidade de um espaço para os estudos feministas e o desejo de Carol Pearson - a nova diretora do Centro de Estudos Feministas de Maryland - vieram juntos. Ela foi capaz de convencer o reitor da nossa universidade a dar espaço para a revista e também de contratar uma docente que teria como responsabilidade atuar metade de seu tempo nos cursos de base para um certificado em estudos de mulheres e administrar os assuntos da revista na metade restante. Uma docente em tempo integral, não contratada para a revista, mas em tempo integral, no qual poderia supervisionar a Feminist Studies. Isso era julho de 1977, quando eu comecei a trabalhar e a ministrar os primeiros cursos em estudos de mulheres. Meu cargo era em estudos de mulheres, em algo com um pequeno orçamento chamado Women´s Studies, o que era muito novo, inclusive para nosso diretor que era titular em Estudos Americanos. Isto significava um grande risco porque ninguém tinha imaginado onde eu seria titular ou o que significava eu ser a única docente. Eu não era a primeira escolha e sei que a primeira escolhida recusou porque lhe pareceu muito arriscado. Eu ainda não tinha terminado minha dissertação e eles me deram um ano para terminar. Contrataram e disseram: "Ou você termina ou será despedida". E nesse prazo eu terminei minha dissertação de doutorado, ministrei os primeiros cursos em estudos de mulheres e coloquei a Feminist Studies funcionando de novo. Fui responsável pela primeira edição de 1977, que circulou em fevereiro de 1978.

CSW: E você acha que o Ano Internacional da Mulher (1975) teve alguma relação com isso?

CM: Não, na realidade, eu acho que não. O governo dos Estados Unidos raramente é influenciado por eventos internacionais que não estão sob o seu controle. A esse respeito, eu não acho que foi um impulso geral. O impulso foi o Movimento de Liberação das Mulheres, um grupo de mulheres intelectuais que já estavam na universidade e que tinham compreendido o importante papel que a pesquisa acadêmica deve desempenhar na política feminista. A política feminista criou uma energia e conseguiu criar um conhecimento sobre o que fazer com essa energia. Nós poderíamos caminhar em círculos o resto de nossas vidas dizendo "ai de nós, nós não somos tratadas de forma justa", mas sem pesquisa e conhecimento não há nenhuma maneira de saber o que é justo. O que não é justo? Quais são as estatísticas que vão demonstrar isso e fazer um case? Quais são as estratégias úteis para se lidar com isso? Com o que devemos nos preocupar e o que é irrelevante? Então, a pesquisa e o conhecimento, que foram além de um sentido emocional de justiça, foram absolutamente cruciais para o avanço das mulheres. Nesse sentido, os Estudos de Mulheres têm sido frequentemente chamados de braço acadêmico do movimento de mulheres, e eu concordo com isso. Mas seus desafios e suas atividades são bastante diferentes; muitas vezes boas pesquisas e o crescente conhecimento levaram-nos a um entendimento de que o movimento de mulheres poderia estar indo em uma direção inútil, ou ignorando os problemas que estão abaixo da superfície. Então, há responsabilidades muito diferentes unindo-se em só um impulso compartilhado, no sentido de melhorar a situação das mulheres.

CSW: Mudando um pouco de assunto. Quando você estava na graduação, chegou a ler livros como O segundo sexo de Simone de Beauvoir? Ou outras feministas?

CM: É uma pergunta maravilhosa. A Smith College, onde me formei em 1963, era uma universidade para mulheres. Estudos feitos nos anos 1970 sobre o perfil das graduadas nas décadas anteriores indicam que, de modo geral, nós não tivemos uma educação conscientemente feminista, mesmo porque nunca lemos livros feministas.

Como historiadora da França eu não somente lia Rousseau, eu tinha um conhecimento sobre Rousseau que era muito geral. Dez anos mais tarde, quando meus estudos tomaram um rumo mais feminista, pela primeira vez eu me dei conta de que Rousseau era antimulheres e se referia exclusivamente aos homens quando utilizava a expressão "todo mundo". É difícil explicar para mulheres mais jovens, que foram educadas em um tempo mais sensível às questões de gênero, como é que nós pudemos ser tão incentivadas a ler e a pensar criticamente mesmo que tenhamos ido em uma direção que nunca nos encorajou a pensar sobre nós mesmas. Eu conheci Simone de Beauvoir, quando passei um ano fazendo intercâmbio na graduação em Paris, em um programa da Smith College. Simone de Beauvoir foi convidada para falar conosco. E isso foi incrivelmente excitante para mim. Ela, no entanto, não se proclamava feminista naquela época, ela não falou sobre a importância do movimento de mudança. Eu tinha acabado de ler, porque tinha recém aparecido, não O segundo sexo mas, sim, Memórias de uma moça bem comportada, que era a história de sua vida até certo ponto. Foi por essa leitura que eu me identifiquei como alguém que estava se esforçando para ser esperta e ganhar prêmios. Ela era um modelo de uma alta intelectual a alcançar, mas nada do que ela disse foi no sentido de que nós deveríamos nos organizar e fazer mudanças. Esse não

era o ponto onde ela estava na época.

A próxima coisa que me aconteceu, ainda antes do movimento de liberação das mulheres, e me influenciou foi A mística feminina (The Feminine Mystique) de Betty Friedman. Foi publicado no outono de 1963 e o li assim que ele saiu, na verdade foi um bestseller. Eu tinha me formado na Smith College em junho daquele ano. Betty Friedman foi aluna da Smith e A mística feminina foi baseado em uma pesquisa que ela fez com diplomadas quinze anos após a graduação. Então, eu estava lendo aquele livro sobre mulheres quinze anos depois de formadas na Smith, e pensando "como será meu futuro?". E, claro, fui influenciada pelo fato de que eu não queria investir em uma espécie de mística feminina de vida. Todas essas coisas foram se acumulando e somente em 1967, 1968, 1969 é que explodiram na forma de um Movimento de Liberação das Mulheres. Então, sim, as leituras tiveram um impacto.

CSW: E alguém a convidou para ir ao primeiro encontro?

CM: Nós tínhamos um jornal comunitário e alguém pôs um pequeno anúncio no jornal: "Se você estiver interessada em grupo de consciência, venha a esta cafeteria na quarta-feira à noite". Eu agarrei uma das vizinhas, que era minha amiga e tinha a mesma idade que eu, e disse "vamos nisso". Isso foi o começo. Estava grata por viver em um lugar como Reston, que era progressista, mas também uma comunidade. Havia um jornal comunitário, havia pequenos anúncios que poderiam aparecer no supermercado em um quadro de anúncios. Eu não estou muito certa de como pessoas se comunicam em Washington D.C. que é uma cidade muito progressista, mas é uma metrópole. Você sabe como é que a palavra se move? As pessoas têm estudado isto, por sinal, para analisar como este movimento chegou a tal ponto, pois metade do país parecia estar afetado por ele através de encontros em diferentes tipos de grupos, por volta de 1970, 71, 72. Como é que isso se espalhou tão rapidamente e tão longe?

CSW: E quando você estava fazendo sua pesquisa para a dissertação sobre a França, você foi para lá?

CM: Não, eu não fui. Consegui todas as fontes de que eu precisava para a dissertação investigando o que havia nas bibliotecas e solicitando-as em microfilmes, pagando para que me fossem enviadas. Mas, quando eu revisei minha dissertação para o livro, passei vários verões na França. Uma de minhas amigas mais próximas era historiadora da Rússia e ela decidiu estudar o movimento de mulheres russo. Como estudante de pós-graduação, eu parei de ensinar como professora assistente. Obtive uma mesa na Biblioteca do Congresso, ali eu fiz uma amiga muito próxima que estava terminando sua dissertação em outra instituição, escrevendo sobre o movimento feminista italiano. Ninguém do nosso grupo tinha um orientador que soubesse algo sobre as mulheres e o feminismo; a geração mais velha não estudou isso. Assim, nós ouvíamos umas às outras, nós escrevíamos umas às outras, e nós criamos esse grande grupo através do país, com cartas e dividindo informações. Eu provavelmente conheci toda mulher ou todo homem que pesquisavam sobre mulheres francesas no século XIX e no início do século XX, no país inteiro, que eram mais ou menos da minha faixa etária.

CSW: Essa rede de pesquisadoras transformou-se em uma espécie de organização?

CM: Bem, havia várias organizações dentro da História que estavam se desenvolvendo em torno daquela época. Posso citar o Conselho de Coordenação das Mulheres Historiadoras (CCWH) que, até ser institucionalizado, funcionou como um grupo de pressão na American Historical Association (AHA). Há, também, o Comitê de Historiadoras dentro da AHA.

E uma terceira instituição, a Berkshire Conference of Women Historians (Conferência Berkshire de Historiadoras), que tem uma prática muito peculiar e interessante. Costumava ser um encontro de mulheres que eram historiadoras no Nordeste dos Estados Unidos, onde a maioria das faculdades e universidades de elite estavam. Elas se reuniam por um fim de semana, em algum hotel ou local nas montanhas de Berkshire, em Massachusetts ocidental. É mais como um grupo social e de amizade, que remonta à década de 1920. Por volta de 1970, esse pequeno grupo decidiu patrocinar uma conferência de trabalho no campo da História da Mulher. Essa conferência realiza-se até os dias atuais, a cada três anos, e tornou-se muito, muito maior do que o grupo Berkshire original. É um grupo com uma base geográfica que atualmente tem como função principal o patrocínio desta conferência bastante grande e maravilhosa. Havia outros grupos regionais que não existem mais, mas que eram realmente importantes nos anos 1970 e 1980, como, por exemplo, na região de Chicago, na Califórnia e em Washington.

Essas eram, então, nossas organizações de historiadoras. Os Centros de Estudos de Mulheres fundaram uma associação no final da década de 1970 (mesmo ano em que eu vim para Maryland) para os programas interdisciplinares de estudos das mulheres. Essa associação teve um nascimento, uma infância e uma adolescência muito difíceis, mais vinculados à política do movimento de liberação das mulheres do que a grupos de historiadoras. Teve, ainda, fases muito difíceis procurando identificar que formato deveria ter. Eram Estudos de Mulheres, mas onde estariam todos os lugares de estudos sobre as mulheres? Quantas iniciativas e quantos campos de atuação e estudo deveriam fazer parte da referida associação? Houve muita discussão sobre o que era ou não acadêmico ou se era acadêmico o suficiente. Esses entendimentos diferentes estavam em guerra uns com os outros de várias maneiras. Haveria grupos de identidade deixados de fora? Se tivéssemos uma conferência barata, sediada em um campus de uma universidade fora de um grande centro, seria muito mais confortável para as lésbicas, mas muito menos confortável para os grupos minoritários raciais que poderiam se encontrar em algum local do interior, em que os/as negros/as não são apreciados da forma como são nas cidades. Todas essas coisas colocavam as pesquisadoras em guerra umas contra as outras. Eu diria que só nos últimos cinco ou oito anos, a National Women's Studies Association (Associação Nacional de Estudos de Mulheres) tornou-se mais declaradamente acadêmica, orientada pelas universidades, mais confortável com ela mesma e funcionando muito melhor. Isso é realmente importante agora porque os Centros de Estudos de Mulheres vêm crescendo e as mulheres jovens estão conquistando doutorados em Estudos de Mulheres; elas não têm espaço em associações de profissionais em História, Literatura, Sociologia e Antropologia, têm que ser contratadas em Centros de Estudos de Mulheres. No futuro, haverá uma National Women's Studies Association (Associação Nacional de Estudos de Mulheres) muito forte, creio eu, por causa delas. Por enquanto, você está falando com uma historiadora e eu sempre tive uma profunda ligação com a American Historical Association. Se você estivesse conversando com uma das minhas colegas, de outras áreas, você poderia ouvi-la falar de todas as organizações que se desenvolvem dentro da American Sociological Association ou da Modern Languages Association. Mas, no futuro, os Estudos de Mulheres terão sua própria associação forte.

CSW: Você vê conflito entre os movimentos feministas e as acadêmicas e estudiosas feministas? Como você vê isso?

CM: Essa é uma pergunta muito interessante, especialmente quando você a coloca no contexto cultural dos EUA. Em primeiro lugar, os Estados Unidos têm estado nas garras de uma reação de direita desde 1980. Até mesmo no curto período de tempo, quando nós tivemos um presidente democrático e uma gestão democrática, preponderou um elemento mais conservador do partido democrático e foi um momento muito difícil para ativistas feministas fazerem avançar uma agenda feminista. O espaço mais forte para as feministas têm sido nas universidades e na academia. No final da década de 1960 e ao longo dos anos 1970, nós costumávamos falar sobre uma comunidade acadêmica dividida, agora estamos mais propensas a fazer perguntas como: Comunidade? Qual é a comunidade? Não são realmente várias comunidades? De qual comunidade você está falando? Então, nós não pensamos em termos de "comunidade", há muitas comunidades. Estamos falando sobre centros de apoio a mulheres estupradas e abrigos para mulheres? Estamos falando das irmandades das mulheres negras? O que exatamente você está falando quando usa a palavra comunidade? E isso está sendo ultrapassado. Temos de considerar o que as feministas não universitárias pensam porque isso se relaciona com o que os americanos em geral pensam sobre as pessoas nas universidades. E aqui temos que lidar com uma postura anti-intelectual muito difundida na opinião pública americana em geral, e isso é particularmente feroz nos últimos 20 anos. Há pessoas que seguem essa postura desde o início da República dos EUA e dizem que ela persiste ao longo de nossa história. Mas está realmente muito forte agora. Há uma reação incrível contra os acadêmicos, há uma reação incrível contra os professores de todos os graus. Você sabe, nós não costumávamos culpar os professores pela fraqueza das escolas americanas, mas hoje há algo acontecendo e as pessoas fazem conexões. Na verdade há uma reação contra os sindicatos. Assim, os golpes desferidos contra os professores estão realmente atacando os sindicatos de professores, culpando os professores. Tudo isso está acontecendo na direita americana. Muitas feministas fora da universidade compartilham essa atitude anti-intelectual. Então você vê um monte de gracejos cutucando pessoas como Judith Butler, fazendo dela a personificação de como o feminismo acadêmico é bobo, estúpido e irrelevante. Agora, antes de tudo, Judith Butler é uma filósofa, especializada em filosofia europeia, e ela escreve como uma filósofa, assim como eu escrevo história como uma historiadora. Eu não sei quantos americanos estão interessados em mulheres da França em 1830. Judith Butler é mais famosa do que eu, então eles não me atacam, eles atacam ela. E ela escreve em uma espécie de prosa densa como Heidegger, Hegel, e outros filósofos escrevem. Ela também é um ser humano que é uma ativista para além de seu trabalho acadêmico. Ela está tomando a liderança, por exemplo, em Berkeley, da luta contra o não investimento em corporações que investem pesadamente em empresas na Cisjordânia dos territórios ocupados. Ninguém fala sobre Judith Butler nessa perspectiva, somente citam seus escritos filosóficos, a fim de alegar o que está errado com o feminismo. Isso é o típico anti-intelectualismo americano. Então, feministas na academia muitas vezes levantam a ira daqueles/as que são anti-intelectuais. O outro grupo que sofre de anti-intelectualismo é o dos/as estudiosos/as de humanidades em geral, e um monte de acadêmicas feministas estão nas humanidades. E dado o que aconteceu com o custo da educação universitária no país, dada a reação contra as universidades por causa disso, em alguns casos pela incerteza de conseguir um emprego logo após a faculdade, apenas áreas como contabilidade, marketing e as escolas de negócios são prestigiadas. E qualquer um/a que estuda literatura inglesa é desprestigiado/a e especialistas em literaturas feministas estão entre esse grupo. Então você tem que - a fim de responder o que deve ser uma pergunta simples sobre uma cisão entre as feministas acadêmicas e as ativistas feministas - entender todas estas camadas múltiplas que não são apenas sobre o feminismo.

CSW: Então talvez agora você possa falar sobre a revista Feminist Studies. Você foi a principal editora dela, não é?

CM: Sim, por 34 anos. Nós nos organizamos de forma diferente da maioria das revistas científicas e eu acho que isso pode ter algo a ver com o fato de que nós começamos nossa existência não como uma revista acadêmica mas, sim, como um periódico que pretendia ser intelectual sem ser acadêmico. As primeiras edições, na realidade, continham artigos reflexivos, pelo que vou chamá-los de intelectuais, mas não eram necessariamente acadêmicos, embora houvesse um ou dois que o eram. O problema de se continuar dessa forma é que as pessoas que não estavam na academia não tinham tempo para continuar a escrever para nós, porque os seus empregos não contemplavam a tarefa de escrever artigos. Outras escritoras, não acadêmicas, que não tinham outros empregos, ganhavam seu dinheiro escrevendo e nós não podíamos pagá-las. Por essas razões, nossas potenciais autoras tornaram-se cada vez mais limitadas às autoras acadêmicas, mesmo porque elas, naquela época, tiveram de começar a publicar com todos os requisitos de publicação acadêmica, a fim de obterem reconhecimento em suas universidades e avançarem em suas carreiras. Essas acadêmicas realmente são as únicas pessoas cujo trabalho lhes permite publicar sem serem pagas pela revista, já que isso faz parte do seu trabalho e estão sendo pagas através de seus empregos. E nós, por nossa vez, temos que publicar mediante uma revisão por pares (peer review), séria, por tratar-se de uma revista acadêmica, altamente considerada na academia por pessoas que não são, necessariamente, especialistas em estudos sobre as mulheres ou em estudos feministas.

Outra característica que permanece em nossa revista é o desejo de ir além da academia na medida do possível, e também o ideal de ser administrada como um coletivo democrático. O que não é típico de revistas acadêmicas. Havia um coletivo quando fui contratada para dirigir e administrar os assuntos da revista - note a diferença das palavras. Não fui contratada para ser a editora-chefe. Ao longo do tempo, como eu me tornei a pessoa mais duradoura, não tenho dúvidas de que eu poderia ter levado a revista numa perspectiva de "eu sou a editora-chefe e vocês minhas editoras associadas", mas eu sou totalmente, totalmente, comprometida com o trabalho coletivo. Eu acredito nele politicamente, eu acredito que ele funciona melhor, acredito que isso faz minha vida melhor. Tem sido uma experiência maravilhosa não ser a editora-chefe mas, sim, parte de um coletivo para todos os fins editoriais. Eu tenho tido uma maior responsabilidade na função de negócios da revista, e eu realmente gosto disso, sou uma boa administradora, mas mesmo assim eu me reporto ao coletivo e levo em conta suas recomendações. Artigos chegam e eu decido para qual editora eu vou enviá-lo, mesmo sem lê-lo. Essa editora lida completamente com o processo de revisão, assumindo, por exemplo, que um artigo vai ser rejeitado. Artigo este que eu nunca li e nem sequer lerei. As cartas de rejeição são escritas pela editora que tratou da revisão, embora eu assine a carta formal, em nome do conselho editorial. Se é uma revisão ou re-submissão, é tratado da mesma forma. Quando há um pedido para o artigo ser revisado e ele retorna revisado, ele é lido pela maioria das editoras, e, na suposição de sua publicação, haverá uma revisão final. Assim, você pode perceber que não sou eu quem está definindo quem tem poder ou mesmo influência sobre o que entra na revista. Isso ocorre em um processo de renovação constante de editores, porque as pessoas vêm para o conselho e o deixam quando elas desejam. Elas podem ficar tanto quanto queiram, mas é muito raro que alguém tenha a energia para permanecer por mais de doze anos e é muito comum que saiam depois de cerca de sete anos. Leva algum tempo para aculturar-se na forma como fazemos as coisas. Seguidamente, por causa dessa renovação, novas pessoas estão chegando com ideias e redes novas e diferentes para edições especiais; as editoras estão fazendo todos os tipos de coisas que são inovadoras e diferentes.

Uma das formas pelas quais a Feminist Studies é diferente de todas as outras revistas acadêmicas, incluindo todas as outras revistas acadêmicas feministas, é porque recebe obras de arte e escrita criativa, e isso tem sido feito desde o começo e eu realmente não entendo por que outras revistas não copiam. Não é tão difícil de fazer, executar obras de arte em cor não aumenta significativamente o custo. Acreditamos fortemente que o trabalho intelectual de uma revista, de um campo de estudos, inclui a escrita criativa e a arte. Assim, temos uma linda revista porque nós temos arte e escritas criativas maravilhosas, integrando e expandindo o trabalho intelectual feminista tanto quanto a pesquisa histórica, ou a crítica literária.

CSW: E como vocês lidam com a interdisciplinaridade? Vocês têm quotas para disciplinas?

CM: Não, nós não temos. Aqui está uma diferença entre o trabalho que fazemos nos Centros de Estudos de Mulheres, os quais realmente fomentam o trabalho interdisciplinar, e o trabalho da Feminist Studies que é realmente multidisciplinar, em vez de interdisciplinar. Publicamos artigos com foco disciplinar na Feminist Studies. Nós temos o suficiente de uma gama bastante ampla de diferentes disciplinas para perceber que cada questão é mista, sem nunca pensar em termos de quotas. Muitas vezes rejeitamos trabalhos disciplinares demasiadamente restritos para nós. A distinção que fazemos é que tudo o que nós publicamos na Feminist Studies deve expressar o entendimento do seu lugar dentro do campo dos estudos feministas multidisciplinares e deve estar conectado às questões que as estudiosas feministas, através das disciplinas, estão questionando. Ao invés de ser de interesse apenas para as historiadoras e falar sobre como isso é ou não é, encaixando-se no campo histórico erudito e como ele pode influenciá-lo, nós queremos saber como isso influenciará as estudiosas feministas, mesmo em outras disciplinas, para que possa ser de interesse para nós.

CSW: O que você acha que mudou mais ao longo desses anos nos quais você esteve na Feminist Studies, no campo dos estudos feministas e mesmo na revista?

CM: Bem, claro, o foco mudou regularmente. Poderíamos falar nos anos 80 sobre a cultura das mulheres, agência versus opressão, argumentos em torno da diferença e do essencialismo etc, que parecem ter desaparecido com o tempo. Agora há muito mais foco na sexualidade e em sexualidades alternativas, nós temos a questão transgênero. Certamente nós temos expandido o interesse editorial para além dos EUA para cobrir questões globais, nacionais ou transnacionais. Estas são as questões que aparecem de forma mais significativa em nossa revista. Nada pode ser publicado se não for sensível às diferenças raciais e sexuais entre as mulheres. Assim, a expectativa de interseccionalidade é alcançada. O foco na sexualidade e em sexualidades eu poderia muito bem imaginar mudando no futuro. Eu acho que é o foco deste momento. E como o império dos EUA teve o seu papel na criação de desigualdades em outras partes do mundo, estamos cientes de que precisamos estar atentas para o que acontece em outros países. Neste momento nós simplesmente precisamos saber sobre o que está acontecendo no resto do mundo e da agência de pessoas que vivem em outras partes do mundo.

CSW: E você quer falar um pouco sobre sua própria pesquisa?

CM: Bem, na realidade eu estudo movimentos ativistas feministas e eu não uso a teoria do movimento social para fazê-lo. Meu maior interesse é estudar o movimento ativista, é olhar para a interface entre ideias, intelectuais e organização, como o que está acontecendo em um determinado lugar e momento vai influenciar a organização feminista no estabelecimento do que é importante, seus argumentos e como eles serão manejados e os tipos de estratégias que serão desenvolvidos. E o inverso, como as práticas do feminismo vão mudar e modificar o pensamento intelectual e a compreensão sobre as mulheres. Ou seja, a interface entre a teorização intelectual e as reais práticas que Marx chamou de "práxis". Essa teorização intelectual, como eu digo, pode ser muito mais do que o pensamento feminista. Eu também trabalho duro para "historicizar" o que está acontecendo neste momento e lugar, as questões que estão influenciando as preocupações das pessoas. A maior parte do meu trabalho tem se voltado para o movimento feminista do século XIX, que cresceu dentro do socialismo, olhando, portanto, para além das teorias feministas desse período de tempo e das formas como as feministas estavam se organizando. Eu também olho para os outros escritores socialistas daquela época. Os escritores socialistas que eram em sua maioria antimulheres, abertamente misóginos, procuro compreender as formas pelas quais as feministas estavam não só desafiando-os em sua misoginia, mas também absorvendo deles certas maneiras de ver o mundo, em seguida, transformando-as em argumentos feministas. Não é somente questionar quais são as organizações e o que elas estão fazendo. É o que elas estão considerando. Por que isso é importante? Por que elas não estão priorizando outras coisas? Ainda que o que elas não estejam considerando possa ser importante, há uma razão para que elas não estejam olhando para isso e por que é assim? Quais são os parâmetros políticos que vão fazer algo possível ou impossível? Todos esses tipos de perguntas. Eu gosto de olhar para estas questões no contexto francês, no século XIX, não só porque eu entendo francês e, portanto, posso fazer minha história nos arquivos da França, mas também porque está fora da temática da Revolução Francesa. Gosto de estudar a França por estas razões, isso importa nos Estados Unidos, importa no Canadá, México, na América do Sul. Há muito mais coisas, além da Revolução Francesa, que definiram uma espécie de agenda para um século. Eu também tive a sorte de crescer em um lar socialista, em um ambiente socialista. Como tantas feministas do final dos anos 60 eu também fui influenciada pelo pensamento socialista e pela reação contra o domínio político soviético - que, afinal tinha falhado com as mulheres, por não libertá-las e também por voltar-se contra Marx que, na verdade, não tinha nada a dizer sobre as mulheres. Assim, por um lado, eu estava crescendo nesse ambiente e, por outro lado, estava reagindo contra ele, e também contra seu anti ou não feminismo, voltando-me para um momento anterior na política socialista, tornando-me muito envolvida nas políticas socialistas utópicas. Havia um mundo pré-anos 1800 no qual as ideias socialistas foram ferramentas ricas e incomuns para imaginar futuros diferentes, onde haveria um lugar para as mulheres, para se tornarem muito mais autônomas e ativamente independentes. Muitos socialistas diziam coisas misóginas ou antifeministas, mas eles não tinham o controle da fala dos outros. Na efervescência de ideias das décadas de 1830 e 1840, especialmente na França, existiam mulheres ativistas, socialistas da classe trabalhadora, cujas ideias foram muito mais longe do que jamais imaginou Engels. Engels pegou muitas das ideias delas e as utilizou, mas sem a mesma relevância que elas tiveram em seu momento no tempo.

Elas foram esquecidas ao longo do tempo e foi sobre elas que eu escrevi. Desconsideradas por duas razões distintas. Uma delas é que não eram grandes escritoras. Elas eram da classe trabalhadora, semianalfabetas e quis honrá-las e manter vivas suas ideias, mas não necessariamente seus livros. Essa é uma razão pela qual elas foram facilmente ignoradas. A segunda razão é que o trabalho de Engels foi codificado e canonizado em um movimento internacional organizado que essas mulheres precederam. Então, temos o grande santo homenageado para sempre, cujas ideias não são tão radicais como as das mulheres em suas proposições anteriores. Foi fácil ignorá-las porque elas não eram mesmo relevantes em seu contexto.

CSW: Talvez essas ideias fossem demasiado radicais para este movimento da classe trabalhadora?

CM: Eu não estou certa. Não é certo que elas fossem tão radicais na época. Mas as políticas radicais foram reduzidas em meados do século XIX e o que ressurgiu foi um mundo mais conservador com a repressão das revoluções de 1848 em toda a Europa. O que veio de fora, por sua vez, foram todos os tipos de movimentos utópicos experimentais com uma influência tremenda de seu próprio tempo. Não estou certa de que elas eram muito radicais, considerando todos os coletivos populares que brotaram em toda a América do Norte, América do Sul, na Europa, na Rússia e, eventualmente, na Palestina e Israel (no movimento kibutz).

CSW: E as ideias delas eram também sobre a sexualidade?

CM: Sim, todos os tipos de ideias radicais sexuais, contra o casamento monogâmico, contra o casamento. Todas essas várias comunas floresceram e as várias comunidades e coletivos eram muito radicais sexualmente. Isso chega ao fim ou tem continuidade na forma de ideias.

CSW: Às vezes, as ideias re-emergem.

CM: Sim, certo, às vezes elas re-emergem em novas situações, às vezes com uma espécie de recuo. Morei durante meio ano em um kibutz israelense muito radical, no final da década de 1950, e as crianças eram criadas separadamente. Cada indivíduo, mesmo que fosse parte de um casal, tinha seu próprio espaço individual de vida. Todo o trabalho era feito por todos no kibutz, ninguém era contratado.

Foi em Israel, na Galileia, terra que fazia parte de Israel depois de 1948 e não através da Linha Verde. Hoje, em quase todos os kibutz de esquerda, crianças vivem com seus pais. Não é só a agricultura, há fábricas, não membros são empregados, principalmente árabes, israelenses-árabes, há algum elemento coletivo, mas há uma espécie de afastamento do que era mais radical sobre o assunto. Será que coisas como essas vão re-emergir no futuro? Aposto que elas vão. Mas, em outras palavras, agora mesmo sexualidades alternativas tornaram-se mais conservadoras com o movimento gay, colocando sua força em um movimento pró-casamento, que é definitivamente um movimento conservador. Eu também fiz alguns trabalhos sobre o movimento feminista francês nos anos 1970 e 1980. Neles, meu interesse foi mais os "mal-entendidos" entre franceses e americanos, sobre os conceitos usados por uns e por outros. Em um artigo que se tornou famoso abordei a concepção que se tem em países ingleses do chamado Feminismo Francês. Eu gosto desse tipo de olhar para trás e para a frente entre os países, analisando esses tipos de mal-entendidos que têm não só uma explicação, mas propósitos por trás deles.1 1 Sobre isso ver Claire MOSES, 1998.

CSW: Qual é o seu argumento sobre esse debate?

CM: Bem, antes de tudo, sempre há três autoras que são agrupadas: Kristeva, Cixous e Irigaray.2 2 Trata-se de Julia Kristeva, Hèléne Cisoux e Luce Irigaray. Para a maioria, elas são as únicas teóricas francesas conhecidas nesse país. Elas são vistas como um grupo, como se fossem uma escola, quando na realidade as três são muito diferentes umas das outras e não há nenhuma razão para estudá-las como um grupo, como se estivessem juntas em uma escola de "feministas francesas". Há algumas coisas que elas têm em comum: uma é o uso da teoria psicanalítica e a outra é um certo tipo de essencialismo. Em termos do movimento feminista na França, Kristeva tem sido uma voz muito barulhenta, antifeminista, na política francesa. Ela tem um status elevado como uma teórica literária e tem usado esse status para protestar contra muitos dos objetivos que feministas têm enfatizado. Quando ela vem para os Estados Unidos, por vezes, chama a si mesma como uma feminista - porque neste país feminista não é uma palavra ruim. Já na França ela é conhecida entre as feministas como alguém que tem usado a sua estatura e seu status contra elas.

Cixous está em uma posição diferente. É uma crítica literária muito importante para o MLF3 3 Mouvement de Libération des Femmes, a mais importante organização feminista francesa, muito atuante nos anos 1970 e 1980. (Movimento de Liberação das Mulheres) e, portanto, é difícil chamá-la de uma antifeminista porque ela foi fundamental para aquele movimento. No entanto, ela levantou a voz contra o feminismo e foi incompreendida, e eu acho que intencionalmente mal-interpretada no passado. Então, ela criou a imagem de uma mulher forte, rotulou-se como feminista e, em seguida, falou contra o feminismo. Isso ainda é diferente do que fez Kristeva. Temos que considerar que na década de 1970 Cixous estava envolvida em lutas internas do movimento feminista francês, integrando uma corrente que estava usando a psicanálise de uma forma particularmente destrutiva.

Então há Irigaray, que não integrava o MLF, que nunca foi uma ativista totalmente feminista, mas nunca foi uma ativista antifeminista. Ela é uma intelectual, uma terapeuta psicanalítica. Há pessoas que a conhecem pessoalmente e têm problemas com ela, mas ela nunca usou o seu status contra o feminismo. Na realidade, tem sido apoiadora em algumas ocasiões do feminismo, apesar de suas opiniões e ditos muitas vezes controversos, como quando propôs ao Partido Comunista Italiano que defendesse que os homens ganhassem um salário suficiente para que as mulheres pudessem ficar em casa.

Você pode ver, portanto, diferenças entre os ativismos feministas. Escrevi sobre a resistência americana aos escritos daquelas três teóricas, muitas vezes rotuladas de feministas francesas essencialistas.

Mas eu também me interessei em saber como essas três autoras vieram a ser agrupadas em escritos americanos e passaram a ser vistas como as teóricas feministas francesas. Muito disso é passé agora. Teóricas feministas americanas não estão mais tão interessadas em suas colegas francesas. O artigo, que foi extremamente importante, republicado em todo o mundo, em algum momento no tempo eu acho que perdeu a sua importância, pois outras questões são importantes nos EUA agora.

  • MOSES, Claire. "Made in America: 'French Feminism' in Academia". Feminist Studies, v. 24, n. 2, p. 241-274, Summer, 1998.
  • 1
    Sobre isso ver Claire MOSES, 1998.
  • 2
    Trata-se de Julia Kristeva, Hèléne Cisoux e Luce Irigaray.
  • 3
    Mouvement de Libération des Femmes, a mais importante organização feminista francesa, muito atuante nos anos 1970 e 1980.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2014
  • Aceito
    09 Out 2014
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