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Quando escrever e bordar são práticas políticas: as mulheres das Minas Gerais

MAIA, Cláudia, PUGA, Vera. História das Mulheres e do Gênero em Minas Gerais. Florianópolis: Editora das Mulheres, 2015. 552

O bordado é político! Gostaria de assim iniciar esta resenha sobre o livro, há pouco lançado pela Editora das Mulheres, História das Mulheres e do Gênero em Minas Gerais, organizado pelas historiadoras feministas Cláudia Maia e Vera Puga. A frase faz alusão à máxima bastante propícia às reflexões feministas: "o pessoal é político". Nelas, em que pesem as singularidades de cada enunciação, cabe um rol de conhecimentos e de práticas, de saberes e fazeres, os quais elevam à dimensão política as experiências femininas no passado e no presente. O privado e as inúmeras experiências circunscritas a esse conceito, como o cuidado com a família e com as crianças, as práticas de educação do corpo, os trabalhos com a agulha, os afetos, as paixões, a vida sexual, não são menos práticas tão politizadas quanto as relações que se dão no âmbito do parlamento e do Estado. Cada prática, guardada a sua proporcionalidade, na esfera do político, de um político. Escrever uma história das mulheres e das relações de gênero em Minhas Gerais, atenta às multiplicidades de experiências de mulheres e das relações de gênero, é uma atitude política, e não há como negar, crítica, ao mesmo tempo.

A imagem que nos é apresentada na capa da obra aqui resenhada nos permite fazer referência a essas considerações sobre o político, o pessoal e o bordado. Uma imagem que, segundo a própria apresentação das autoras, "[...] consiste no recorte de um bordado maior que autorretrata essa família de artistas" (p. 17). Na imagem, o pescador, pai de família, também contador de causos, ao lado da mãe, leitora e bordadeira, com uma onça sob os seus pés. Os ratos na fazenda eram ali espantados pela cobra verde, bordada no telhado da casa. Variáveis socioculturais, imbricadas com representações de gênero, criatividade e imaginação, a natureza e o humano, se mesclavam na referida imagem, dando-lhe um tom de prática política. Do contar causos ao bordar, desde as relações de gênero, um emaranhado de práticas e experiências políticas pode fazer emergir inúmeras formas de participação no social, incontáveis e quase inacessíveis escolhas dos sujeitos que ali operavam uma rede de significações.

Política é também uma forma de escrever uma história das mulheres e das relações de gênero no plural, atenta às multiplicidades no tempo e no espaço. Uma abundância de práticas e representações, sentidos e significações, cujos processos de produção se encontravam em andamento, ancorados nas experiências de professoras cujas memórias e histórias não puderam ser capturadas, nos arquivos de pesquisa, em definitivo pela renomada historiadora das mulheres e dos estudos feministas e de gênero, autora de um dos artigos, Diva Muniz, haja vista as lacunas, os silêncios e as invisibilidades que o conhecimento histórico nos desafia. Nessa obra sobre as mulheres e as relações de gênero nas Minas Gerais, essas professoras dividiam espaços com os amores proibidos e as vozes emudecidas de mulheres que atuavam como concubinas de padres, no trabalho de Vanda Praxedes. Por outro lado, as vozes e a visibilidade de mulheres abolicionistas em Minas Gerais marcaram outros rumos possíveis através do olhar de Fabiana Macena, para quem as práticas abolicionistas eram também práticas políticas. Teias, redes, fios e rastros conduzem o olhar do leitor em sua viagem pelos textos do livro de Maia e Puga, lançando luzes sobre as práticas discursivas de Maria Lacerda de Moura e Maura Lopes Cançado, em suas práticas de transgressão e enfrentamento da sociedade burguesa, analisadas por Cláudia Maia e Patrícia Lessa no primeiro, e Márcia Custódio e Alex Fabiano Jardim no segundo. Tão políticos quanto os bordados também eram os contos de Conceição Evaristo e as práticas de escrita de si de Márcia, uma prostituta que viveu em Pouso Alegre, no sul de Minas Gerais.

Na segunda e terceira partes do livro, as autoras e os autores de artigos como Gilberto Noronha, Maria de Fátima Nascimento e Filomena dos Regis se dedicaram a incorporar artigos que nos possibilitassem, respectivamente, conhecer imagens de damas e donas do sertão, tais como Joaquina de Pompéu e Dona Tiburtina de Andrade Alves. Telma Borges investigou, em sua produção, os textos do próprio Guimarães Rosa, ao passo que as imagens sobre os fazeres e os saberes femininos, como as narrativas de parteiras no norte de Minas, ficaram a cargo da análise de Lúcia Helena Costa. Cairo Katrib e Fernanda Naves, por outro lado, interpretaram as experiências das mulheres congadeiras de Ituiutaba, enquanto Mônica Abdala investigou experiências das cozinheiras das Minas Gerais. Já as trabalhadoras rurais no Triângulo Mineiro foram objeto de investigação do artigo de Maria Andréa Carmo. Em outro artigo, os discursos femininos nas fundações das igrejas pentecostais em Montes Claros foram analisados por João Augusto G. dos Santos, enquanto as mulheres que estudavam quando adultas foram objeto privilegiado do texto de Leila Almeida. Ao fechar a terceira parte do livro, as imagens das mulheres negras de Amaros foram investigadas por Maria Clara Machado e Paulo Sérgio da Silva.

Na última parte, Helen Pimentel investiga a questão de gênero imprimida às práticas discursivas de divórcio no setecentos, Dayse Santos analisa o matrimônio no final do século XIX e início do século XX, Florisvaldo Júnior estuda a participação de mulheres nos processos de reordenamento social nas primeiras décadas da República Velha, Carla Giuliani se debruça sobre as representações da maternidade e do casamento por mulheres adolescentes de Uberlândia, e, por fim, Vera Puga problematiza as relações entre as imagens de mulheres através dos conceitos de "rainha do lar" e de "princesa" atribuídos às mulheres em condições específicas.

Os textos perfazem uma rede de sentidos que bordam representações femininas e imagens de mulheres não circunscritas ao ideário patriarcal homogeneizador. São imagens múltiplas, singulares, históricas, políticas. Imagens políticas pois não são menos envolvidas com a transformação da nossa leitura sobre o passado, comprometidas com as gerações do presente e do futuro no que tange à efetivação de um discurso histórico político, feminista e plural. Um convite à leitura é também um convite ao bordado de fios e de teias que nos permitem acessar redes de sentidos talvez próximas de outras realidades brasileiras. Uma rede de sentidos forjada por uma rede de pesquisadoras que há tempos experimentavam os debates e faziam emergir os saberes acumulados no Simpósio Temático sobre os Estudos de Gênero nas reuniões da Associação de Professores Universitários de História de Minas Gerais (ANPUH-MG). Como o bordado que produz uma imagem sobre as representações do feminino e sobre as relações de gênero, o livro História das Mulheres e do Gênero em Minas Gerais nos permite viajar pela construção imagética, bordada, de inúmeras experiências femininas no passado, em Minas Gerais. Nele, as leitoras, e também os leitores, podem não encontrar o passado que esperam, mas podem imaginar e (re)inventar amplas possibilidades de forjar imagens do passado e assumir o desafio político que é o de bordar histórias de mulheres no passado de Minas Gerais

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016
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