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A igualdade substantiva e os novos desafios nas relações de gênero no trabalho

Substantive Equality and New Challenges in Gender Relations in Work

Resumo:

Em recente documento a UN Women sublinha a importância de se ultrapassar a demanda pela mera igualdade formal e assume que a meta da igualdade substantiva é o caminho para se conciliar política econômica e direitos humanos. Neste texto, comento os desafios que são apontados para este movimento, a partir da observação do trabalho de cuidado e tomando o Brasil como realidade empírica de referência.

Palavras-chave:
Gênero; equidade; trabalho; cuidado

Abstract:

In a recent document UN Women stressed the importance of overcoming the demand for mere formal equality, and assumed that the goal of substantive equality is the way to reconcile economic policy and human rights. In this text, I comment on the challenges posed to this move, observing its recent tendencies from the point of view of care work and gender inequalities, taking Brazil as an empirical reference.

Keywords:
Gender; equity; work; care.

"Igualdade substantiva". Duas palavras que exprimem, num conceito, o desafio de equacionar a relação entre gênero e desenvolvimento, promovendo a (difícil) conjunção entre política econômica e direitos humanos. Duas palavras que estão na raiz do argumento que se desenvolve ao longo do amplo, cuidadoso e bem documentado estudo do UN Women (2015), intitulado Progress of the World's Women 2015-2016. Transforming Economies, Realizing Rights.

Nele, e como soe quando de desigualdade socioeconômica se trata, o mercado de trabalho emerge como um cenário de primeira grandeza para reconhecerem-se avanços e fixarem-se metas com vistas a desafios prevalecentes. Entretanto, o esforço por traduzir igualdade legal em resultados equitativos requer integrar economia, cultura e política - e este é o ponto forte do documento.

Numa linguagem que soa como música aos ouvidos de quem está no campo dos estudos de gênero, afirma-se (como uma verdadeira preliminar) que as desvantagens socioeconômicas só se superam se a ação coletiva, ou "o poder da ação, voz e participação das mulheres" (UN WOMEN, 2015UN WOMEN. Progress of the World's Women 2015-2016. Transforming Economies, Realizing Rights. New York: United Nations, 2015. Available from: <Available from: http://progress.unwomen.org/en/2015/pdf/UNW_progressreport.pdf >. Access on 02/02/2016.
http://progress.unwomen.org/en/2015/pdf/...
, p. 5, tradução nossa) se fizer sentir removendo barreiras simbólicas, representações internalizadas que legitimam as várias formas de desigualdade entre os diferentes, criando o solo fértil para a proliferação dos estereótipos, dos estigmas e (daí a um passo) da violência. Em outras palavras, os "tetos de vidro" ou os "pisos pegajosos", que estabelecem os limites para os anseios das mulheres por igualdade no mercado de trabalho, requerem, para ser removidos, que a política macroeconômica deixe de ser cega ao gênero. E tal cegueira não se remove sem a permanente vigilância dos direitos, sem a ação política das próprias mulheres em prol dos mesmos.

Essa desenvoltura com que a análise e as indicações contidas no documento transitam entre domínios diversos também se expressa quando se trata de entender as armadilhas que se distribuem pelo terreno minado do mundo do trabalho. Algumas delas - como a brecha salarial ou a segmentação ocupacional - já longamente tratadas pela literatura acadêmica e pela militância feminista, reaparecem numa roupagem interpretativa que integra aspectos e sublinha temas, dando um novo prisma ao olhar e novas perspectivas para a agenda política. Exemplo disso é o vigor e a modulação pelos quais a questão do cuidado corta transversalmente análises e indicações apresentadas no documento.

O tema do cuidado aparece tecendo elos entre aspectos relevantes, sendo abordado sob várias e instigantes roupagens. Unificando-as, uma outra ideia central e ousada, que perpassa o documento: há que desvelar a fronteira fluida que sustenta, nas sociedades contemporâneas, a economia do cuidado (ou, se quisermos, a economia do care). Uma fronteira que, apesar dessa sua fluidez, é capaz de servir de muro rígido de contenção para delimitar um domínio de trabalho concreto no qual está retida a maior parcela das mulheres, ainda hoje, quando de trabalho se trata. Uma fronteira que abarca desde o emprego doméstico e as profissões do care até o trabalho familiar não remunerado de cuidado. Nela, há domínios mercantis, fortemente "comiditizados", que impulsionam as que ali se ocupam à luta pelo reconhecimento dos seus direitos, pela regulamentação do seu trabalho enquanto profissão, por regras e instâncias que certifiquem a sua qualificação. Mas esses domínios convivem consubstancialmente (até porque, com frequência, vivificados pelas mesmas personagens) com formas não-mercantis, assentadas na obrigação dos papéis e das regras, de afeto e reciprocidade; regras que pesam sobre os ombros das mesmas mulheres. Mulheres que podem contratar provedoras profissionais de cuidado e ingressar no mundo mercantil em ocupações melhor remuneradas, mas que, ainda assim, no cotidiano familiar, seguem tendo sobre seus ombros uma carga desigual de trabalho suplementar de cuidado. Regras que também pesam sobre os ombros de outras mulheres, as que precisam vender no mercado dos serviços de cuidado a sua "natural" habilidade para assegurar o bem-estar do outro dependente (crianças, idosos), mas que também carecem de responder, no recôndito dos seus próprios lares, pelo cuidado dos filhos ou filhas, dos pais, dos irmãos ou irmãs, dos maridos ou companheiros.

Uma verdadeira care penalty, para usar a expressão forte do documento. Penalização que se atenuaria, por certo, com investimentos em políticas públicas que, na contramão da tendência atual, des-mercantilizassem o cuidado, socializando-o; ou seja, investimentos propiciados por políticas macroeconômicas que tivessem alvos sociais sólidos e metas explícitas de gênero. Entretanto, não podemos perder de vista que, embora atenuável pelas políticas virtuosas, uma tal care penalty só se ultrapassará com a reversão do modo como afiguramos simbolicamente certos encargos, deixando de associá-los ao "feminino" ou ao "masculino".

A prisão entre os muros sólidos da fronteira paradoxalmente fluida do cuidado está documentada, no texto, sob outras roupagens e imbricações. Por exemplo: o não reconhecimento do trabalho prestado por mulheres no contexto dos negócios familiares - e por consequência a invisibilidade das mesmas, a consequente falência em contabilizar a sua participação econômica e, a fortiori, a recusa a remunerá-las por não exercerem uma ocupação. Um processo que tem a sua raiz na fluidez com que o trabalho de cuidado extrapola e "contamina" outras atividades econômicas, concretas, desempenhadas por essas mulheres no âmbito da economia familiar.

Mas, é certo que, aqui e acolá, o texto parece dotar de uma positividade intrínseca as políticas macroeconômicas socialmente orientadas e comprometidas com o desafio da equidade. Virtuosas em sua capacidade de reproduzir efeitos, afiguram-se quase irresistíveis em sua eficácia transformadora. Um dos casos-exemplo trazidos à frente da cena pelo UN Women é justamente o do Brasil, onde iniciativas de inclusão teriam se revelado capazes de fixar os graus de liberdade para a política macroeconômica dos anos 2003-20131 1 Ver em UN Women (2015), a título de exemplos, as remissões contidas nas p. 73 (Box 2.2 e o item em que se inclui) e p. 142 (Box 3.3). .

Ora, a rapidez com que o quadro econômico se reverteu, no país, nos dois últimos anos, alerta para os riscos de entendermos o futuro como o eco inelutável de um presente virtuoso. Ela nos põe em guarda num duplo sentido. Por um lado, políticas macroeconômicas, mesmo se alinhadas com os desafios da equidade e da inclusão social, podem não ser suficientes para impedir a reprodução da estrutura das desigualdades de gênero, ou a recriação destas sob novas formas e roupagens. Vejamos a nossa experiência recente.

Num contexto de ganhos, para homens e mulheres, decorrentes de quase dez anos de valorização do salário mínimo, aliada ao crescimento do emprego formal (vale dizer, do emprego protegido por direitos instituídos na forma da lei), foram inegáveis os resultados em termos de redução da pobreza e da miséria. Redistribuímos oportunidades pela via do mercado, alavancando o efeito deste por meio de um sistema crescentemente sólido de proteção social. Com isso, vimos reduzir-se, ao menos no mercado formal, o hiato salarial que apartava as trabalhadoras dos trabalhadores. Mas há que admitir que, entre os empregados com carteira assinada, esse hiato já vinha recuando entre os anos de 1980 e 2000. O notável é que, desde o início do novo milênio, a brecha salarial se manteve praticamente estagnada quando observamos o conjunto dos ocupados (Lena LAVINAS et al, 2016LAVINAS, Lena; CORDILHA, Ana Carolina; CRUZ, Gabriela Freitas. "Assimetrias de gênero no mercado de trabalho no Brasil. Rumos da formalização". In: ABREU, Alice; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa (Orgs.). Gênero, raça, classe: Trabalhar no Brasil e na França. São Paulo: Boitempo e EdUnicamp, Parte II, capítulo 8 (no prelo), 2016., no prelo). Ou seja, as virtuosas políticas macroeconômicas, mesmo se temperadas pelos objetivos de inclusão social, mantiveram-se assentadas numa significativa desigualdade salarial entre homens e mulheres, produzida maiormente no âmbito do trabalho informal, cujo crescimento vemos agora recrudescer! Para tal, tem sido decisiva a contribuição do trabalho não protegido que se exerce nos domicílios (o trabalho das domésticas e, mais recentemente, o das cuidadoras), cuja ampliação segue ancorando a expansão da atividade feminina (Jurema BRITES; Felicia PICANÇO, 2014BRITES, Jurema; PICANÇO, Felícia. "O emprego doméstico no Brasil em números, tensões e contradições: alguns achados de pesquisas". Revista Latino-americana de Estudos do Trabalho, Ano 19, n. 31, p. 131-158, 2014.; Nadya GUIMARÃES, 2016______. "Casa e mercado, amor e trabalho, natureza e profissão: controvérsias sobre o processo de mercantilização do trabalho de cuidado". Cadernos Pagu, n. 46, Dossiê "Gênero e Cuidado", p. 59-77, janeiro-abril, 2016. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332016000100059&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 17/02/2016.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Em suma, em que pese o crescimento dos empregos, da inclusão e dos direitos, e mesmo ao arrepio da recente regulamentação do trabalho em domicílio, persiste, entre nós, um padrão de estruturação das desigualdades de renda do trabalho que tem se mantido, apesar de todos os avanços sociais, inegavelmente assentado no despartido de mulheres e negros, e especialmente no despartido das mulheres negras (Nadya GUIMARÃES; Murillo BRITO, 2014GUIMARÃES, Nadya Araujo; BRITO, Murillo Marschner Alves de. "Commodification and gender/race differences. Labor market outcomes in Brazil". Comunicação apresentada no XVIII International Sociological Association World Congress (Session "Gendering BRICs: To What Extent and How Have Economic Growth and Economic Development Been Translated into Increased Gender Equality in Emerging World Economies?"). Yokohama, July 2014.). Ademais, as mulheres seguem insuladas em ocupações, formais ou informais, regidas pelo tempo parcial, o que nos leva de volta ao tema da care penalty, agora expressa na necessidade de conciliar trabalho remunerado e obrigações domésticas. Dizendo-o de outro modo, se o caso brasileiro serve para ilustrar como a formalização atenua diferenciais salariais entre grupos de sexo, resultados recentes (LAVINAS et al, 2016LAVINAS, Lena; CORDILHA, Ana Carolina; CRUZ, Gabriela Freitas. "Assimetrias de gênero no mercado de trabalho no Brasil. Rumos da formalização". In: ABREU, Alice; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa (Orgs.). Gênero, raça, classe: Trabalhar no Brasil e na França. São Paulo: Boitempo e EdUnicamp, Parte II, capítulo 8 (no prelo), 2016., no prelo) mostram que, mesmo no mercado dos empregos formalmente protegidos, os hiatos salariais agravaram-se em alguns segmentos, em especial entre os grupos mais escolarizados. E não sem razão, se lembrarmos o peso, nessa matriz virtuosa de crescimento, dos empregos caracterizados por muito baixas remunerações, por sua natureza temporária e/ou por resultarem do agenciamento de intermediários, vale dizer sujeitos a elevadíssimas taxas de rotatividade (Nadya GUIMARÃES, 2011GUIMARÃES, Nadya Araujo. "O que muda quando se expande o assalariamento (e em que o debate da Sociologia pode nos ajudar a compreendê-lo)?". Dados, v. 54, n. 4, p. 533-567, outubro-dezembro, 2011.). Essa conjunção revela que uma estratégia de crescimento econômico, mesmo se pautada por metas de inclusão social, pode não ser suficiente para reverter o modo como se estruturam (e reproduzem) as desigualdades de gênero no mercado de trabalho.

Mas há um outro bom motivo para que fiquemos em guarda ao observar o desenrolar do caso brasileiro. Tal como bem sublinha o documento do UN Women (2015), políticas macroeconômicas, mesmo se socialmente orientadas, encontram limites na intrincada dinâmica que entrelaça economias fortemente globalizadas. Vale dizer, as suas condições de possibilidade, e mesmo a durabilidade dos seus efeitos, estão circunscritos por conjunturas internacionais.

Mais ainda, quando metas e alvos cruciais à política social - ou às políticas de gênero - são umbilicalmente dependentes da disponibilidade orçamentária, estabelece-se um cenário de elevada incerteza: conquanto incluam-se novos beneficiários (e/ou agreguem-se-lhes novas modalidades de benefícios), os indivíduos que são contemplados podem permanecer retidos no frágil mundo dos "quase-direitos", das conquistas reversíveis, porque sensíveis ao sabor dos ventos da conjuntura e da negociação das alocações orçamentárias.

Por isso mesmo, a recente experiência brasileira de reversão de processos de louvável positividade nos obriga a buscar no terreno movediço da política - e da capacidade dos grupos sociais de fazerem valer os seus interesses coletivos -, as respostas para decursos indesejados, isto é, os caminhos para transformar "quase-direitos" em verdadeiros direitos, condição para uma igualdade substantiva.

Referências

  • BRITES, Jurema; PICANÇO, Felícia. "O emprego doméstico no Brasil em números, tensões e contradições: alguns achados de pesquisas". Revista Latino-americana de Estudos do Trabalho, Ano 19, n. 31, p. 131-158, 2014.
  • GUIMARÃES, Nadya Araujo. "O que muda quando se expande o assalariamento (e em que o debate da Sociologia pode nos ajudar a compreendê-lo)?". Dados, v. 54, n. 4, p. 533-567, outubro-dezembro, 2011.
  • ______. "Casa e mercado, amor e trabalho, natureza e profissão: controvérsias sobre o processo de mercantilização do trabalho de cuidado". Cadernos Pagu, n. 46, Dossiê "Gênero e Cuidado", p. 59-77, janeiro-abril, 2016. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332016000100059&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 17/02/2016.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332016000100059&lng=pt&nrm=iso
  • GUIMARÃES, Nadya Araujo; BRITO, Murillo Marschner Alves de. "Commodification and gender/race differences. Labor market outcomes in Brazil". Comunicação apresentada no XVIII International Sociological Association World Congress (Session "Gendering BRICs: To What Extent and How Have Economic Growth and Economic Development Been Translated into Increased Gender Equality in Emerging World Economies?"). Yokohama, July 2014.
  • LAVINAS, Lena; CORDILHA, Ana Carolina; CRUZ, Gabriela Freitas. "Assimetrias de gênero no mercado de trabalho no Brasil. Rumos da formalização". In: ABREU, Alice; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa (Orgs.). Gênero, raça, classe: Trabalhar no Brasil e na França. São Paulo: Boitempo e EdUnicamp, Parte II, capítulo 8 (no prelo), 2016.
  • UN WOMEN. Progress of the World's Women 2015-2016. Transforming Economies, Realizing Rights. New York: United Nations, 2015. Available from: <Available from: http://progress.unwomen.org/en/2015/pdf/UNW_progressreport.pdf >. Access on 02/02/2016.
    » http://progress.unwomen.org/en/2015/pdf/UNW_progressreport.pdf
  • 1
    Ver em UN Women (2015), a título de exemplos, as remissões contidas nas p. 73 (Box 2.2 e o item em que se inclui) e p. 142 (Box 3.3).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2015
  • Revisado
    12 Jan 2015
  • Aceito
    29 Fev 2016
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