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Judith Gautier e o espanto de Baudelaire: papéis sociais e espaços literários no século XIX

Judith Gautier and the Amazement of Baudelaire: Social Roles and Literary Spaces in the Nineteenth Century

Resumo:

Esse artigo tem por objetivo apresentar aspectos introdutórios sobre a vida e obra da escritora e tradutora francesa Judith Gautier, relativamente desconhecida no Brasil. Essa reflexão foi incitada pelo espanto que um artigo escrito e publicado pela jovem, com 19 anos, na época, no jornal Le Moniteur, em 29 de março de 1864, produziu sobre o poeta francês Charles Baudelaire. Pautamo-nos em uma carta do autor, endereçada a Judith em 9 de abril de 1864. A reação de surpresa de Baudelaire perante a análise da jovem produziu nele um questionamento sobre seus próprios preconceitos, os quais nos remetem aos papéis sociais e espaços literários atribuídos a mulheres e homens no século XIX.

Palavras-Chave:
Judith Gautier; Baudelaire; gênero; tradução

Abstract:

This article aims at presenting introductory aspects of the life and work of the French writer and translator Judith Gautier who is relatively unknown in Brazil. This reflection was prompted by the surprise that an article written and published by the young woman, who was 19 years old at the time, in the newspaper Le Moniteur, on March 29, 1864, produced on the French poet Charles Baudelaire. We guided our research on a letter from the author addressed to Judith on April 9, 1864. Baudelaire's reaction of surprise before the analysis of the young woman produced in him a questioning of his own prejudice, which leads us to social roles and literary spaces assigned to women and men in the Nineteenth Century.

Key words:
Judith Gautier; Baudelaire; Gender; Translation

Em sua análise, tão correta, de Eureka, a senhorita fez o que na sua idade eu talvez não teria sabido fazer, e o que numerosos homens maduros, e que se dizem letrados, são incapazes de fazer. Enfim, provou o que de bom grado eu teria julgado impossível, é que uma moça pode encontrar nos livros divertimentos sérios, bem diferentes daqueles, tão tolos e tão vulgares, que preenchem a vida de todas as mulheres. Se não temesse ainda ofendê-la ao maldizer seu sexo, diria que me forçou a duvidar das feias opiniões que eu mesmo forjei a respeito das mulheres em geral (Charles BAUDELAIRE, 2000BAUDELAIRE, Charles. Correspondance. Choix et présentation de Claude Pichois et Jérôme Thélot. Paris: Gallimard, 2000., p. 299-300).

O trecho acima dá desfecho a uma carta endereçada pelo poeta francês Charles Baudelaire à jovem Judith Gautier. Esta missiva,1 1 Inédita em português. escrita em 1864, emerge como atraente espaço de possibilidades. Além de permitir analisar as impressões de Baudelaire e o peso da educação burguesa oitocentista a respeito das características comumente atribuídas ao feminino e ao masculino, incita-nos, neste artigo, a refletir sobre os papéis sociais e espaços literários atribuídos a mulheres e homens no século XIX, a exemplo das trajetórias de Baudelaire e Judith Gautier. Antes de ater-nos a estas questões, devemos referenciar nossos protagonistas.

Charles Baudelaire praticamente dispensa apresentações. Antes mesmo de ser conhecido como poeta, com a publicação, em 1857, de seu único volume de poemas em verso, o hoje célebre As flores do mal, obteve reputação como crítico de arte, notadamente com a publicação dos Salões, de 1845 (BAUDELAIRE, 1996______. Sobre a Modernidade. O pintor da vida moderna. Teixeira Coelho (Org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra,1996., p. 663-665) e 1846 (BAUDELAIRE, 1996, p. 671-733), consagrando-se, posteriormente, como um importante crítico do século XIX. Seu saber se estabeleceu não na academia, mas a partir da reflexão e observação em museus, ateliês, salões e cafés, em suma, ao contato de pintores, artistas e intelectuais de sua época. Robert Kopp (2004KOPP, Robert. Baudelaire: Le soleil noir de la modernité. Paris: Gallimard, 2004.) destaca sua originalidade com veemência, pois, segundo ele, apesar da possível aproximação com os Salões de Diderot e de Stendhal, Baudelaire soube criar uma crítica permeada pela originalidade de seus comentários. O poeta em devir estava à procura da novidade, atacando, assim, aqueles que considerava acadêmicos imitadores dos mestres e tecendo elogios a artistas então considerados 'inferiores' ou que permaneciam esquecidos, como Corot ou Rousseau (KOPP, 2004KOPP, Robert. Baudelaire: Le soleil noir de la modernité. Paris: Gallimard, 2004., p. 32-33). Walter Benjamin (1989BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.) dedicou-lhe grande atenção e inúmeras páginas ao perceber, em seus poemas, em seu deambular e em suas críticas vorazes ao progresso e à república, o âmago da experiência moderna.

Judith Gautier, por sua vez, é menos conhecida.2 2 Os poucos artigos disponíveis em língua portuguesa tratam, exclusivamente, de seu papel como tradutora, apresentando pouquíssimas informações biográficas ou referências às suas obras literárias. Filha primogênita do escritor Théophile Gautier e de Ernesta Grisi, Louise Charlotte Ernestine Gautier, Judith tornou-se uma reconhecida escritora, tradutora e intelectual em sua época. Nascida em Paris, no dia 25 de agosto de 1845, faleceu em Saint-Énogat (hoje Dinard) no dia 26 de dezembro de 1917, não antes de deixar vasta obra composta por traduções de poemas chineses e japoneses, romances, contos, novelas, artigos, peças e três volumes autobiográficos.3 3 Dentre sua obra, citamos: Le livre de Jade, de 1867; Le dragon impérial, de 1869; L'Usurpateur, de 1875; Isoline et La Fleur-Serpent, de 1882; Les princesses d'amour, de 1900 e Le collier des jours, de 1902. Vale pontuar que o único texto localizado em língua portuguesa é As princezas do amor, publicado em 1905 pela Livraria Universal, fundada em 1887 pelos irmãos Carlos e Guilherme Echenique.

Judith Gautier obteve sucesso na publicação da obra Le livre de Jade, em 1867 - tradução de poemas chineses antigos sob a supervisão de seu preceptor chinês, Ding Dunling, refugiado político que Théophile Gautier acolhera em sua casa. A influência desse preceptor é perceptível na obra de Judith, que publicou um grande número de livros ambientados no oriente, tendo sido iniciada por ele à literatura e à civilização oriental. No mais, a casa de seus pais se assemelhava a um círculo literário-intelectual, sendo frequentada por personalidades como Théodore de Banville, Gustave Flaubert, Edmond de Goncourt, Champfleury, Arsène Houssaye, Gustave Doré, Catulle Mendès e Charles Baudelaire, entre outros. A plus belle de mes poésies (mais bela de minhas poesias), como dizia seu pai, teve uma infância de relativa liberdade, se comparada com as práticas educativas adotadas para as jovens de sua época. Em sua autobiografia - Le Collier des jours (1904) -, conta que, após ser enviada ao pensionato Notre Dame de la Miséricorde para seus estudos, por iniciativa da tia e da mãe, retorna ao meio familiar, passando, então, a frequentar esse famoso círculo literário.

Outro evento importante que marcou toda a família Gautier, particularmente Judith, foi seu casamento com o escritor Catulle Mendès, em 1866. Seu pai desaconselhara o matrimônio, desde o primeiro momento, uma vez que considerava inadequadas as atitudes e opções de vida de Mendès. Vale notar que o desconforto familiar em relação tanto ao casamento, quanto à separação de Judith e Catulle, pode ser compreendido a partir da observação das características atribuídas ao casamento como instituição burguesa em meados do século XIX. Segundo Michelle Perrot, "na segunda metade do século XIX aumenta cada vez mais o número de pessoas que desejam uma convergência entre a aliança e o amor" (2009, p. 125). Neste casamento em específico, dado o posicionamento contrário do pai, percebemos que as motivações passionais foram muito mais determinantes do que as possibilidades de aliança social. No que se refere à separação, ainda que não fosse uma prática considerada comum, assistia a um crescimento constante a partir de 1851, sendo reivindicada, na maioria das vezes, pelas mulheres e conhecendo maior disseminação nas áreas urbanas. Judith e Catulle Mendès separaram-se em 1874 e o divórcio ocorreu mais tarde, assim que a lei o permitiu. Após compor sua obra, interessar-se por pintura e modelagem, inspirar Richard Wagner, Victor Hugo dedicar-lhe um soneto, em 1872, e seu romance L'usurpateur ser coroado pela Academia Francesa, em 1875, a escritora foi consagrada, em outubro de 1910, como a primeira mulher eleita para a Academia Goncourt. O acontecimento tornou-se bastante representativo, chegando, inclusive, a ser publicado na nota Honor for Judith GautierHONOR for Judith Gautier. First Woman to be Elected to the Goncourt Academy. The New York Times, 29/10/1910. Disponível em: Disponível em: http://query.nytimes.com/gst/abstract.html?res=9F03E5D81F39E333A2575AC2A9669D946196D6CF . Acesso em: 12 ago. 2011.
http://query.nytimes.com/gst/abstract.ht...
, em 29 de outubro de 1910, pelo The New York Times:

Paris, Oct. 28. - Madame Judith Gautier, daughter of the novelist and poet, Theophile Gautier, and at one time wife of the late Catulle Mendes, has been elected to the Goncourt Academy of Letters. She is the first woman to be thus honored (1910).

Interessante notar que as referências à autora premiada não são suas obras anteriores, mas seu pai e ex-marido célebres. A pequena nota pode sugerir que o sucesso de Judith está atrelado à tutela de ambos. O fato é ainda mais significativo quando sabemos que a Academia Goncourt, assim como a Academia Francesa, era composta, na época, apenas por membros homens que tinham o hábito de premiar homens. Les dix, como eram conhecidos os dez membros da Goncourt, reuniam-se a cada dezembro, desde 1903, para escolher aquela que seria considerada a melhor obra de ficção do ano corrente. É pertinente destacar que a própria criação da Academia Goncourt, em oposição ao conservadorismo da Academia Francesa, assim como sua postura sexista a respeito das premiações, provocou uma brecha que incitara e possibilitara a fundação, em 1904, do Prix Vie Hereuse (financiado pela editora Hachette). Em 1919, o Vie Heureuse se tornou Prix Femina, o qual existe ainda hoje e faz parte dos grandes prêmios literários na França.4 4 Sobre a história do Prix Femina, ver artigo de Sylvie DUCAS (2003, p. 43-95). Este consistia em um prêmio de literatura, aos moldes do Goncourt, definido, porém, por um júri de 20 mulheres (e que também contou com a participação de Judith Gautier). Ainda que não se considerassem uma academia literária, as integrantes do Vie Hereuse abriram espaço para a participação oficial de mulheres na vida literária francesa (Margot IRVINE, 2008IRVINE, Margot. "Une Académie de femmes?". Analyses, v. 3, n. 2, Dossiers: Femmes de letters, p. 12-24, 2008.). Curioso pontuar que a escolha do número de integrantes do júri do Vie Hereuse foi uma irônica resposta a um comentário feito pelos Goncourt a respeito dos motivos para a não premiação de mulheres: diziam que um cérebro feminino era apenas metade de um masculino.5 5 Este comentário foi descrito por Claire Gallois em discurso realizado no Ministério da Cultura e Comunicação da França pela comemoração do centenário do Prix Femina. O discurso pode ser acessado integralmente em: http://www.culture.gouv.fr/culture/actualites/communiq/donnedieu/histoirefemina.htm. Judith Gautier ocupou o segundo acento da Academia Goncourt entre 1910 e 1917. A segunda mulher a ser eleita será Colette, em 1945, que se tornará, inclusive, presidente da instituição de 1949 a 1954. A próxima, Françoise Mallet-Joris, será eleita apenas em 1970.

Tais posturas não são, certamente, privilégios das academias literárias francesas. Ao observamos a trajetória do movimento feminista, constatamos que este se desenvolveu enquanto movimento social visível apenas no fim do século XIX, tendo por reivindicações direitos políticos (votar e ser eleita), econômicos e sociais (trabalho remunerado, estudo, propriedade, herança) (Cf. Joana Maria PEDRO, 2005PEDRO, Joana Maria. "Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica". História, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 77-98, 2005., p. 77-98). Na França, por exemplo, ainda que a Liga Francesa pelo Direito das Mulheres date de 1882, o voto feminino foi exercido pela primeira vez apenas em 29 de abril de 1945.

Neste ponto surge-nos uma interrogação a respeito do espanto de Baudelaire, explicitado na epígrafe que dá início a este artigo: como um intelectual cuja sensibilidade fora louvada por André Gide ou Paul Valéry,6 6 Ao falar de Baudelaire, Paul Valéry descreve sua 'intelligence critique' associada à sua 'vertu de poésie'. Ele lembra que o poeta parisiense tinha uma 'sensibilidade aguda'. André Gide reconhece no poeta de As flores do mal "a mais admirável inteligência crítica de sua época", assim como em Stendhal (Cf. VALÉRY, 1924, 1930, p. 231-232; GIDE, 1924, p. 131). 'estrangeiro' aos padrões sociais oitocentistas, que renovou profundamente a poesia e a crítica de seu tempo, reincidiu em preconceitos tão cristalizados a respeito do feminino?

O primeiro texto publicado por Judith Gautier, quando esta, aos 19 anos, interpretou o ensaio Eureka, de Edgar Allan Poe, atordoou o poeta parisiense. Ao tecer comentários na carta endereçada à Judith, Baudelaire revela suas percepções sobre a mulher na sociedade de sua época e, ao mesmo tempo, desvela e (re)conhece sua incoerência e fragilidades pessoais. Ao remeter sua epístola à Judith Gautier, Baudelaire se desnuda e recria. Ao falar de Judith, fala também de si. Para Maria Ionta, em artigo publicado sobre a troca epistolar de Anita Malfatti e Mário de Andrade, a literatura epistolar pode ser compreendida como uma escrita de incompletude, uma tentativa "de desprendimento de si e auto-reconstrução incessante" (2011IONTA, Maria. "A escrita de si como prática de uma literatura menor: cartas de Anita Malfatti a Mário de Andrade". Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 91-101, janeiro-abril 2011.).

O ensaio Eureka, escrito por Edgar Allan Poe e traduzido para o francês por Charles Baudelaire, pode ser considerado um texto bastante hermético. Escrito em forma de poema em prosa, versa sobre questões filosóficas a respeito do universo material e imaterial. Descreve o conceito de natureza, discutindo a relação estabelecida com Deus, tal qual o autor de uma obra. A competência de Judith Gautier, ao compreender, interpretar e escrever sobre este ensaio surpreendeu Baudelaire. Além de ser sua primeira contribuição literária e contar apenas 19 anos de idade, acima de tudo, o fato de ser mulher tornava seu feito ainda mais inusitado. A competência intelectual não parecia condizer com os atributos do feminino na França oitocentista.7 7 Segundo Constância Lima Duarte, afirmação similar pode ser feita a respeito do Brasil. Segundo a autora, "Quando começa o século XIX, as mulheres brasileiras, em sua grande maioria, viviam enclausuradas em antigos preconceitos e imersas numa rígida indigência cultural. Urgia levantar a primeira bandeira, que não podia ser outra senão o direito básico de aprender a ler e a escrever" (Cf. DUARTE, 2003). Segundo Guacira Lopes Louro:

É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico (2001LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2001., p. 21).

Não podemos esquecer que, apesar de criticar acidamente alguns dos valores modernos e progressistas do século XIX, Baudelaire foi educado em uma família burguesa e trazia consigo elementos desta educação.8 8 Tal afirmativa pode ser corroborada quando observamos, na correspondência do poeta, aspectos relativos à sua educação, relações familiares, expectativas de futuro e desavenças familiares em função de suas opções pessoais e profissionais (Cf. Gilles Jean ABES, 2011). É também no século XIX que se cristaliza uma noção de família cujo fundamento ancorava-se em papéis absolutamente definidos para o homem e a mulher, sendo que às mulheres reservavam-se os cuidados do lar, domínio do privado, já que o público era da alçada masculina. Estas distinções, segundo Catherine Hall, eram confirmadas "pelo costume e pelas relações sociais" (HALL apud PERROT, 2009PERROT, Michelle (Org.). História da vida privada 4: Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Traduzido por Denise Bottmann e Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 147., p. 54), pois, ainda que por vezes contestadas e assumindo que essas relações de poder transcendem a segregação de esferas, considerava-se, na época, que "cada sexo, diferente por natureza, possuía suas características próprias, e que qualquer tentativa de sair de sua esfera estaria condenada ao fracasso" (HALL apud PERROT, 2009, p. 54). A esse respeito, até mesmo os revolucionários franceses mais encarniçados recuaram poucos anos após estabelecerem as leis sobre o divórcio, a não supremacia conjugal do marido e o respeito aos direitos dos filhos naturais. Apesar deste movimento verdadeiramente revolucionário, voltaram atrás e impuseram um limite intransponível, mostrando, claramente, que as mulheres pertenciam ao espaço privado. O primeiro impulso da Revolução de 1789 será retomado apenas em 1970 pelas leis francesas sobre a família. A lei sobre o divórcio de 11 de julho de 1975, por exemplo, tornou o procedimento tão fácil quanto havia sido em 1792.

Nesse sentido, dadas as estruturas familiares e de gênero estabelecidas, que permitiam pouco acesso das mulheres à educação e a uma cultura letrada,9 9 A este respeito, vale referenciar o texto Um teto todo seu, de Virginia Woolf (1985). é compreensível a reação de incredulidade do poeta francês em relação à competência e capacidade intelectual da jovem Judith Gautier. Por outro lado, quando consideramos as características sociais e a estrutura familiar dentro das quais Baudelaire foi criado, recebendo valores e educação relativas ao contexto, percebemos que este não cumpria com as regras de conduta exaltadas pela burguesia em sua vida de dândi, em total desrespeito às noções de trabalho, família e honorabilidade. A dignidade e, até mesmo, a masculinidade, passavam pela boa gestão desses valores. O tema da masculinidade vem, aliás, ganhando representatividade dentro dos estudos de gênero. Miriam Pillar Grossi, em Masculinidades: uma revisão teórica (2004GROSSI, Miriam Pillar. "Masculinidades: uma revisão teórica". Antropologia em Primeira Mão, Florianópolis - UFSC - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2004.), apresenta processos e rituais de constituição do masculino a partir de leituras teóricas e de elementos da cultura ocidental. Nesta análise, ao pontuar atribuições do masculino, ressalta a importância do ser ativo sexualmente, da agressividade, da manutenção da honra pela gestão e controle do lar/mulher e da estabilidade financeira através do desempenho de um trabalho como elementos de constituição da masculinidade. Se compreendermos o gênero constituindo-se através da linguagem e dos discursos, tal qual a corrente pós-estruturalista propõe, podemos afirmar que Baudelaire certamente não se enquadrava neste modelo de masculinidade vigente. Não somente dedicava sua carreira às letras, como se inspirava, conforme afirmou seu padrasto, "nos esgotos de Paris" (Claude PICHOIS e Jean ZIEGLER, 1987PICHOIS, Claude; ZIEGLER, Jean. Baudelaire. Paris: Julliard, 1987., p. 137-138). Endividava-se, vivia com uma 'mulata' que não desposou e com a qual não teve filhos. Representava, portanto, a anomalia no círculo sagrado da família burguesa, uma fonte de vergonha que devia ser apartada. Ao romper com a autoridade absoluta, tornou-se um 'mau filho', cujo peso carregou em sua vida marginal. Quando as ambições da família desmoronam,

o filho se sente culpado. O adulto nunca acaba de pagar a dívida e de remoer sua traição. Lembre-se de Baudelaire, que nunca deixou de sentir remorso em relação à mãe, madame Aupick. Ou Van Gogh, que, em sua correspondência com o irmão Theo, manifesta a revolta desesperada do "mau filho". Fonte de angústia existencial, o totalitarismo familiar oitocentista é, sob muitos aspectos, profundamente neurótico (PERROT, 2009PERROT, Michelle (Org.). História da vida privada 4: Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Traduzido por Denise Bottmann e Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 147., p. 147).

Pois os dândis, boêmios, solteiros e solitários são considerados marginais, são suspeitos perante a missão moralista da família e de toda a sociedade. De formas diversas, o dandismo e a boemia constroem um modelo simetricamente oposto aos ideais burgueses. Sua relação com tempo e espaço constitui um total desrespeito à conduta exigida: vida noturna, valorizando o ócio, tendo a cidade, os cafés, as mais novas avenidas e passagens como palco. Frequentemente são indivíduos perseguidos pelos credores e oficiais de justiça, nômades por necessidade e, assim, não possuem por muito tempo o sonho sagrado do lar apaziguador. O dandismo é uma ética, uma concepção de vida que eleva o celibato e o flâneur a uma trincheira de resistência contra os ideais eleitos pela sociedade do século XIX, principalmente, contra sua hipocrisia. Esse tipo de atitude singular, qualificada de excêntrica, distancia o sujeito do centro das expectativas - do cerne da família, da sociedade e do Estado - que o torna 'ex-cêntrico', não centrado, e, sob o impulso de toda sua força, leva-o às margens da conduta desejada: à marginalidade. Uma vez poeta, pronunciar o nome de Baudelaire, na presença do General Aupick, gerava forte tensão e descontentamento, chegando, posteriormente, a ser proibido de forma explícita pela família. Assim sendo, Baudelaire marginalizou-se/foi marginalizado pelas suas escolhas, principalmente, assim que abandonou a tutela do padrasto e uma promissora carreira para se tornar poeta. No entanto, herdou alguns valores dessa família na qual viveu até seus 21 anos de idade e com a qual teve um relativo bom relacionamento, malgrado as narrativas sobre sua vida e uma relação supostamente conflituosa com seu padrasto (Cf. ABES, 2011ABES, Gilles Jean. Reflexos de um vitral partido sobre um mito: tradução da correspondência de Charles Baudelaire de 1832 a 1842. 2011. Tese (Doutorado em Estudos da Tradução) - Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Florianópolis, Florianópolis.). As cartas de sua infância e juventude apresentam relação por vezes tumultuada, mas, antes, caracterizada pelo respeito e apreço para com os seus.

Devemos observar qual é o papel destas relações na formação dos sujeitos. Compreender quais os discursos que o formam para melhor entender os limites do mundo no qual deambulam. Fica claro, por exemplo, o valor da educação religiosa na obra de Baudelaire e, certamente, pode-se constatar traços burgueses na sua visão de mundo, apesar de ele mesmo ter sido apartado por (e refutar) esses ideais. Eis todo o interesse de sua situação, dilacerado entre o capitalismo nascente, o sucesso associado à ideia de produtividade concreta, a hipocrisia do moralismo defensor da tríplice família/Estado/trabalho e sua visão de poeta lírico, de dândi e intelectual sem concessões para os defeitos humanos, inclusive os seus.

É a partir desses referenciais que Baudelaire (2000BAUDELAIRE, Charles. Correspondance. Choix et présentation de Claude Pichois et Jérôme Thélot. Paris: Gallimard, 2000.) escreve à Judith Gautier. Eis a carta:

À Judith Gautier

[Paris] 9 avril 1864.

Mademoiselle,

J'ai trouvé récemment chez un de mes amis votre article, dans Le moniteur du 29 mars, dont votre père m'avait, quelque temps auparavant, communiqué les épreuves. Il vous a sans doute raconté l'étonnement que j'éprouvai en les lisant. Si je ne vous ai pas écrit tout de suite pour vous remercier, c'est uniquement par timidité. Un homme, peu timide par nature, peut être mal à l'aise devant une belle jeune fille, même quand il l'a connue toute petite, - surtout quand il reçoit d'elle un service, - et il peut craindre, soit d'être trop respectueux et trop froid, soit de la remercier avec trop de chaleur.

Ma première impression, comme je l'ai dit, a été l'étonnement, - une impression toujours agréable d'ailleurs. Ensuite, quand il ne m'a plus été permis de douter, j'ai éprouvé un sentiment difficile à exprimer, composé moitié de plaisir d'avoir été bien compris, moitié de joie de voir qu'un de mes plus vieux et de mes plus chers amis avait une fille vraiment digne de lui.

Dans votre analyse, si correcte, d'Eureka, vous avez fait ce qu'à votre âge je n'aurais peut-être pas su faire, et ce qu'une foule d'hommes très mûrs, et se disant lettrés, sont incapables de faire. Enfin, vous m'avez prouvé ce que j'aurais volontiers jugé impossible, c'est qu'une jeune fille peut trouver dans les livres des amusements sérieux, tout à fait différents de ceux, si bêtes et si vulgaires, qui remplissent la vie de toutes les femmes.

Si je ne craignais pas encore de vous offenser en médisant de votre sexe, je vous dirais que vous m'avez contraint à douter moi-même des vilaines opinions que je me suis forgées à l'égard des femmes en général.

Ne vous scandalizez pas de ces compliments si bizarrement mêlés de malhonêtetés; je suis arrivé à un âge où l'on ne sait plus se corriger, même pour la meilleure et plus charmante personne.

Croyez, Mademoiselle, que je garderai toujours le souvenir du plaisir que vous m'avez donné.

CHARLES BAUDELAIRE.

À Judith Gautier

[Paris] 9 de abril de 1864.

Senhorita,

Achei recentemente, na casa de um dos meus amigos, seu artigo, no Le Moniteur do dia 29 de março, do qual seu pai me comunicara, algum tempo dantes, as provas. Ele sem dúvida lhe contou o espanto que senti lendo-as. Se não escrevi imediatamente para agradecê-la, é unicamente por timidez. Um homem, pouco tímido por natureza, pode ficar desconfortável perante uma bela moça, mesmo quando a conheceu muito pequena, - sobretudo quando dela recebe um favor, - e pode temer, seja de ser por demais respeitoso e frio, seja de agradecê-la com demasiado fervor.

Minha primeira impressão, como disse, foi o espanto, - aliás uma impressão sempre agradável. Em seguida, quando não me foi mais permitido duvidar, provei um sentimento difícil de expressar, composto metade de prazer de ter sido tão bem compreendido, metade de alegria por ver que um dos meus mais velhos e mais caros amigos tinha uma filha verdadeiramente digna dele.

Em sua análise, tão correta, de Eureka, a senhorita fez o que na sua idade eu talvez não teria sabido fazer, e o que numerosos homens maduros, e que se dizem letrados, são incapazes de fazer. Enfim, provou o que de bom grado eu teria julgado impossível, é que uma moça pode encontrar nos livros divertimentos sérios, bem diferentes daqueles, tão tolos e tão vulgares, que preenchem a vida de todas as mulheres.

Se não temesse ainda ofendê-la ao maldizer seu sexo, diria que me forçou a duvidar das feias opiniões que eu mesmo forjei a respeito das mulheres em geral.

Não fique escandalizada com esses elogios tão bizarros mesclados a desonestidades; alcancei uma idade em que não se sabe mais corrigir-se, até mesmo para a melhor e mais encantadora pessoa.

Creia, Senhorita, que sempre conservarei a lembrança do prazer que me proporcionou.

CHARLES BAUDELAIRE.

Baudelaire, ao mesmo tempo em que critica hábitos burgueses (os divertimentos tolos e vulgares que preenchem a vida de todas as mulheres), reproduz as expectativas em relação a estas mesmas mulheres, afinal, assume que o sentimento de alegria e prazer por ter sido tão bem compreendido surgiu apenas quando não lhe foi mais permitido duvidar, o que significa que, a princípio, foi tomado pela dúvida. Ao iniciar a carta revelando que sua primeira impressão foi o espanto (l'étonnement, em francês) e que seu amigo Théophile tinha uma filha realmente digna dele, podemos entender, por um lado, que o mérito pela qualidade do trabalho é momentaneamente transferido da filha para o pai. A perspicácia da filha/mulher é explicada e justificada pela figura do pai, e, portanto, sua competência era aceitável pela necessidade/obrigação de dignificar a figura paterna. No século XIX, aliás, a figura do pai era envolta em importância e autoridade. Cabia ao pai o gozo de direitos políticos e públicos e, mesmo na esfera doméstica, apressadamente considerada exclusividade feminina, eram estabelecidas diferenciadas formas de relação de poder, nas quais, muitas vezes, cabia ao pai definições a respeito da gestão das finanças e decisões pedagógicas concernentes aos filhos.10 10 Devemos observar que o movimento contrário também não pode ser descartado. Da mesma forma que o homem interfere na esfera 'reservada' à mulher, esta influenciava, em diferentes graus, as decisões reservadas ao homem. No caso de Baudelaire, isto fica muito claro nas correspondências entre sua mãe e o marido, o general Aupick. Não podemos reduzir homens e mulheres a categorias uniformes, como personagens planas de um romance. Dadas as limitações de cada papel, estas possuíam certa plasticidade - diretamente relacionada aos caracteres e relações afetivas dos sujeitos. Nesse sentido, conferir: Sofia ABOIM (2012, p. 97-117). A dignidade e honra do homem de família era, muitas vezes, encargo das mulheres e medida pelo comportamento das mulheres. Podemos referenciar Daniel Welzer-Lang (2001) quando este, ao pensar a questão da construção do masculino, afirma que o homem deve exercer domínio coletivo e individual das mulheres, o qual deve ser observado material, cultural ou simbolicamente. Nesse sentido, o círculo literário que se estabelecia na casa de Théophile Gautier, no qual a filha transitava, pode ser comparado à 'casa dos homens', de Welzer-Lang, como espaço de sociabilidades. Ao apresentar os talentos da jovem perante o grupo de literatos e tê-los reconhecidos pelos mesmos, Théophile Gautier reafirma o domínio cultural e simbólico que exerce sobre sua filha. Mostra-se como um grande homem, uma vez que:

Empiricamente (...), sabe-se que, para um homem, o fato de ser visto com "belas" mulheres classifica-o como "Grande-homem", o que também acontece com aquele que tem dinheiro e/ou poder manifesto sobre homens e mulheres. Todos os homens que aceitam os códigos de virilidade têm ou podem ter poder sobre as mulheres (o que ainda deve ser quantificado); alguns entre estes (chefes, Grandes-homens de todos os tipos) têm também poder sobre os homens. É verdadeiramente neste duplo poder que se estruturam as hierarquias masculinas (WELZER-LANG, 2001WELZER-LANG, Daniel. "A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia". Revista Estudos Feministas, Florianópolis, UFSC, v. 9, n. 2, p. 460-482, 2001., p. 466).

O sucesso de Judith poderia ratificar o do pai perante os comparsas de letras. A mesma relação legitimava e tornava compreensível a revelia de preconceitos fortemente enraizados, sua competência literária. De acordo com Denise Brahimi, "tudo permite supor que o mundo das letras não teria tido o mesmo interesse pela poesia chinesa clássica traduzida em francês se o trabalho fosse realizado por uma desconhecida" (BRAHIMI, 1992BRAHIMI, Denise. "Judith Gautier, ses pères, sa mère, son oeuvre". Romantisme, v. 22, n. 77, Les femmes et le bonheur d'écrire, 1992., p. 55-60).

Por outro lado, podemos entender, conforme dito anteriormente, que foi na casa paterna, espaço de circulação e convivência de vários homens de letras, que ela pôde experienciar um efervescente círculo intelectual. Sem a influência determinante deste meio favorável e a abertura deste espaço, por parte dos pais, para uma moça do século XIX, certamente as competências de Judith Gautier não se desenvolveriam da mesma forma.

Assim, Baudelaire frequentava a casa de Théophile Gautier e, ao longo da carta, afirma que seu espanto tinha por fonte o fato de uma mulher, ainda mais com apenas 19 anos de idade, ter compreendido tão bem Eureka, coisa que até ele mesmo, talvez, não teria conseguido e muitos homens maduros jamais realizariam. Esse artigo assinado por Judith Walter (pseudônimo de Judith Gautier) acabou por impelir o autor de As Flores do mal à dúvida. O espanto prazeroso que provou se assemelha a um choque sobre seu conhecimento/pensamento a respeito das mulheres. Em Meu coração desnudado, certas passagens 'terríveis' em relação à imagem da mulher parecem corroborar o caráter misógino por vezes atribuído ao poeta:

Sempre me admirei de que deixassem as mulheres entrar nas igrejas. Que tipo de conversa podem elas ter com Deus? (...) A mulher não sabe separar a alma do corpo. É simplista, como os animais - Um satírico diria que é porque ela tem apenas o corpo (BAUDELAIRE, 2009BAUDELAIRE, Charles. Meu coração desnudado. Belo Horizonte: Autêntica, 2009., p. 61-62).

A mulher é o contrário do Dândi. Ela deve, pois, causar horror. A mulher tem fome: ela quer comer; sede: quer beber. Está no cio: quer ser fodida. Grande mérito! A mulher é natural, isto é, abominável. Ela é, pois, sempre vulgar, isto é, o contrário do Dândi (BAUDELAIRE, 2009BAUDELAIRE, Charles. Meu coração desnudado. Belo Horizonte: Autêntica, 2009., p. 42-43).

Não obstante, é preciso ir além dessas reflexões íntimas (e frustrações?) e publicadas após sua morte para tentar compreender a relação do poeta com as mulheres. Baudelaire abominava o natural. Acreditava que a natureza estava corrompida por ela mesma. Era esta natureza que obrigava o homem a beber, comer, assim como a matar seu semelhante, torturá-lo, devorá-lo. Culpava a natureza pela existência de inúmeras abominações, entre as quais o parricídio e a antropofagia. Sendo a natureza abominável, o bem era, na verdade, produto da arte e, a artificialidade, louvável (Maria Cristina Brandão de FARIA, 2001FARIA, Maria Cristina Brandão de. "A mulher e seus adornos em Baudelaire". Lumina, Juiz de Fora - Faculdade de Comunicação da UFJF, v. 4, n. 1, p. 137-152, 2001.). No que se refere às mulheres, estabelecia, portanto, uma relação bastante complexa. Condenava-as enquanto expressão da natureza, mas, ao mesmo tempo, exaltava e louvava sua beleza, capacidade de subverter sua condição através da maquiagem e da moda. Em suas palavras:

(...) é sem dúvida, uma luz, um olhar, um convite à felicidade, às vezes uma palavra; mas ela é sobretudo uma harmonia geral, não somente no seu porte e no movimento de seus membros, mas também nas musselinas, nas gazes, nas amplas reverberantes nuvens de tecidos com que se envolve, que são como que os atributos e o pedestal de sua divindade; no metal e no mineral que lhe serpenteiam os braços e o pescoço, que acrescentam suas centelhas ao fogo de seus olhares ou tilintam delicadamente em suas orelhas. Que poeta ousaria, na pintura do prazer causado pela aparição de uma beldade, separar a mulher de sua indumentária? (BAUDELAIRE, 1996______. Sobre a Modernidade. O pintor da vida moderna. Teixeira Coelho (Org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra,1996., p. 54).

Ao mesmo tempo em que condena a mulher, fonte de tentações e do pecado original, exalta-a da mais bela maneira. Poemas como A cabeleira, A serpente que dança, A uma passante, entre outros, marcam claramente essa profunda dualidade da imagem da mulher na obra do poeta. Os ciclos de poemas dedicados à Jeanne Duval, Madame Sabatier e Daubrun, mulheres que marcaram a vida afetiva do poeta, contêm belíssimos versos em sua homenagem.

Baudelaire abomina, também, a imposição de determinados valores e, com isto, desagrada veementemente a burguesia francesa, principalmente no que concerne à moral burguesa e sua relação com a arte.

Todos os imbecis da Burguesia que pronunciam incessantemente as palavras "imoral", "imoralidade", "moralidade na arte" e outras bobagens me fazem pensar em Louise Villedieu, puta barata que, certa vez, acompanhando-me ao Louvre, onde nunca tinha ido, começou a enrubescer, a cobrir o rosto e, puxando-me todo o tempo pela manga, me perguntava, diante de estátuas e de quadros imortais, como se podiam expor publicamente tais indecências (BAUDELAIRE, 1996______. Sobre a Modernidade. O pintor da vida moderna. Teixeira Coelho (Org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra,1996., p. 77).

Há outro fator que deve ser levado em consideração. A mãe do poeta era o exemplo mesmo do modelo da mulher burguesa, assim como boa parte das com quem teve contato em uma sociedade que, frequentemente, condenava. Eis o poderio dos discursos sobre os sujeitos que moldam (são moldados), em grande parte, a (pela) normalidade e as convenções de seus atos. Os exemplos com os quais Baudelaire convivia retificavam seus princípios, e não incitavam a dúvida a respeito de seus preconceitos sobre o que caracterizava o feminino. O poeta devia ver as mulheres um pouco como o fez o personagem Natanael, no conto Der Sandmann (O homem de areia), de Ernst Theodor Amadeus W. Hoffmann (2004HOFFMANN, Ernst Theodor Amadeus W. "O homem de areia". In: CALVINO, Ítalo. Contos Fantásticos do Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.), ao descobrir que a mulher que tanto o cativava, uma moça chamada Olímpia, e que admirava de longe, não passava de uma boneca sem vida, feita de um mecanismo. Trata-se de uma imposição de conduta, de certa forma mecânica, pois repetida de pais para filhos visando ao bem dessa comunidade chamada 'família'. Olímpia seria, ao mesmo tempo, uma visão simplória e simbólica da mulher baudelairiana. Essas trajetórias, impostas pelo conjunto, esmagavam com ímpeto a individualidade, ainda mais no caso das mulheres que não podiam se tornar posteriormente mestres entre os seus. Não por acaso, Judith Gautier encantava a todos nesse círculo de artistas e intelectuais, pois era considerada de grande beleza, tal Olímpia, mas tinha algo incomum a oferecer além de tocar piano e fazer crochê. Judith cativava justamente por ter reivindicado o direito à fala. Tomamos por empréstimo a ideia de subalternidade trabalhada por Gayatri Spivak (tendo consciência de que a mesma fora elaborada a partir de um contexto bastante específico, dentro dos estudos da subalternidade) para refletir sobre o espanto de Baudelaire. Na sociedade burguesa do século XIX, especialmente no campo literário e intelectual, podemos dizer que as mulheres se encontravam em uma posição de subalternidade. Ainda que as condições sociais de Judith Gautier não se enquadrem no conceito, afinal, fora criada em uma família burguesa e frequentara bons colégios, a falta de espaço e a misoginia presentes em academias literárias, como o Prix Goncourt, conforme citado anteriormente, ressalta esta posição. Não estamos tomando a ideia de subalternidade como um conceito monolítico ou como característica totalizante de um sujeito, mas tentando pensá-lo em um posicionamento específico, que compõe o sujeito, mas não o encerra. Podemos dizer que a ousadia de leitura e escrita de Judith Gautier pode ser lida por um viés político, já que sua atitude contrapôs estruturas de domínio estabelecidas (no caso, o domínio masculino do espaço público-intelectual). Gayatri Spivak define o 'subalterno' como aquele que não pode falar, uma vez que a condição da subalternidade é o silêncio (2003SPIVAK, Gayatri Chakravorty. "¿Puede hablar el subalterno?". Revista Colombiana de Antropología, Bogotá, v. 39, p. 297-364, 2003., p. 297-364). Judith Gautier falou. Ela foi admirada pela sua originalidade, sua inteligência, seus dotes artísticos: por sua obra literária. Daí a surpresa de Baudelaire, que, ao buscar escapar do peso entediante do cotidiano, cuja monotonia era para ele esmagadora, depara-se com a perspicácia intelectual em alguém em quem, a priori, esperaria encontrar não mais do que futilidade muito bem maquiada.

Em suma, Charles Baudelaire é filho de uma família burguesa, sendo seu padrasto, mãe e meio-irmão (Alphonse Baudelaire) os grandes defensores da tríade família, trabalho e pátria. Percebe-se claramente em seus escritos, especialmente em sua carta à Judith Gautier, uma situação paradoxal em relação a esses valores: a marca é tão profunda - tal o selo sobre a cera quente - que o poeta não consegue se libertar totalmente, por mais que tenha rompido o lacre. Mantém uma relação conturbada com a mãe, para quem expressa não somente seus sofrimentos, mas, surpreendentemente, discute suas publicações, suas conquistas, e conversa sobre assuntos literários e artísticos em sua correspondência. Esta mesma mãe, defensora dos dogmas burgueses, que condena a escolha literária do filho, preservará certo interesse pela trajetória do poeta: prova da plasticidade e complexidade de seus papéis. Judith Gautier e Charles Baudelaire não os respeitaram e tiveram trajetórias paradoxais. O poeta representava a desonra da família Baudelaire-Aupick, fez escândalo ao se candidatar para a Academia Francesa de Letras (sendo obrigado a abandonar sua candidatura), foi condenado por imoralidade pela justiça francesa11 11 A obra As flores do Mal foi condenada em 1857, mesmo ano em que Gustave Flaubert foi processado (e absolvido) pela justiça com seu romance Madame Bovary. e foi, até mesmo, visto como o "Príncipe das Carniças" (BAUDELAIRE, 2000BAUDELAIRE, Charles. Correspondance. Choix et présentation de Claude Pichois et Jérôme Thélot. Paris: Gallimard, 2000., p. 161). Enquanto aquela moça de 19 anos, orgulho do pai, admirada por muitos letrados e artistas, que surpreendera Baudelaire e que tinha pouco espaço para se expressar na sociedade da época, seria eleita à Academia Goncourt em 1910. Itinerários marginais, oriundos de pontos distantes, Baudelaire, do espaço favorável do masculino, Judith Gautier, da ausência de espaço do feminino, convergindo, se tocando, em margem à sociedade, para se afastarem novamente na condenação do poeta e no sucesso de Judith Gautier. E, novamente, as trajetórias de vida em seus ricochetes mudaram seus destinos, reabilitando o autor de As flores do Mal, deixando a famosa escritora em segundo plano. Hoje, é preciso resgatá-la: que seja pelo espanto de Baudelaire.

Referências

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  • WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Traduzido por Vera Ribeiro. São Paulo: Nova Fronteira, 1985.
  • 1
    Inédita em português.
  • 2
    Os poucos artigos disponíveis em língua portuguesa tratam, exclusivamente, de seu papel como tradutora, apresentando pouquíssimas informações biográficas ou referências às suas obras literárias.
  • 3
    Dentre sua obra, citamos: Le livre de Jade, de 1867; Le dragon impérial, de 1869; L'Usurpateur, de 1875; Isoline et La Fleur-Serpent, de 1882; Les princesses d'amour, de 1900 e Le collier des jours, de 1902. Vale pontuar que o único texto localizado em língua portuguesa é As princezas do amor, publicado em 1905 pela Livraria Universal, fundada em 1887 pelos irmãos Carlos e Guilherme Echenique.
  • 4
    Sobre a história do Prix Femina, ver artigo de Sylvie DUCAS (2003DUCAS, Sylvie. "Le prix Femina: la concécration littéraire au féminin". Recherches féministes, v. 16, n. 1, p. 43-95, 2003. Disponível em: http://id.erudit.org/iderudit/007343ar.
    http://id.erudit.org/iderudit/007343ar...
    , p. 43-95).
  • 5
    Este comentário foi descrito por Claire GalloisGALLOIS, Claire. "Réception en l'honneur des 100 ans du Prix Femina au ministère de la culture et de la communication". Discours et communiqués, 07/12/2004. Disponível em: http://www.culture.gouv.fr/culture/actualites/communiq/donnedieu/histoirefemina.htm.
    http://www.culture.gouv.fr/culture/actua...
    em discurso realizado no Ministério da Cultura e Comunicação da França pela comemoração do centenário do Prix Femina. O discurso pode ser acessado integralmente em: http://www.culture.gouv.fr/culture/actualites/communiq/donnedieu/histoirefemina.htm.
  • 6
    Ao falar de Baudelaire, Paul Valéry descreve sua 'intelligence critique' associada à sua 'vertu de poésie'. Ele lembra que o poeta parisiense tinha uma 'sensibilidade aguda'. André Gide reconhece no poeta de As flores do mal "a mais admirável inteligência crítica de sua época", assim como em Stendhal (Cf. VALÉRY, 1924VALÉRY, Paul. Variétés I et II. Paris: Gallimard, 1924, 1930., 1930VALÉRY, Paul. Variétés I et II. Paris: Gallimard, 1924, 1930., p. 231-232; GIDE, 1924GIDE, André. Morceaux Choisis. Paris: Baudelaire et M. Faguet, NRF, 1924., p. 131).
  • 7
    Segundo Constância Lima Duarte, afirmação similar pode ser feita a respeito do Brasil. Segundo a autora, "Quando começa o século XIX, as mulheres brasileiras, em sua grande maioria, viviam enclausuradas em antigos preconceitos e imersas numa rígida indigência cultural. Urgia levantar a primeira bandeira, que não podia ser outra senão o direito básico de aprender a ler e a escrever" (Cf. DUARTE, 2003DUARTE, Constância Lima. "Feminismo e Literatura no Brasil". Estudos Avançados, São Paulo, v. 19, n. 49, p. 151-172, set.-dez. 2003.).
  • 8
    Tal afirmativa pode ser corroborada quando observamos, na correspondência do poeta, aspectos relativos à sua educação, relações familiares, expectativas de futuro e desavenças familiares em função de suas opções pessoais e profissionais (Cf. Gilles Jean ABES, 2011).
  • 9
    A este respeito, vale referenciar o texto Um teto todo seu, de Virginia Woolf (1985WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Traduzido por Vera Ribeiro. São Paulo: Nova Fronteira, 1985.).
  • 10
    Devemos observar que o movimento contrário também não pode ser descartado. Da mesma forma que o homem interfere na esfera 'reservada' à mulher, esta influenciava, em diferentes graus, as decisões reservadas ao homem. No caso de Baudelaire, isto fica muito claro nas correspondências entre sua mãe e o marido, o general Aupick. Não podemos reduzir homens e mulheres a categorias uniformes, como personagens planas de um romance. Dadas as limitações de cada papel, estas possuíam certa plasticidade - diretamente relacionada aos caracteres e relações afetivas dos sujeitos. Nesse sentido, conferir: Sofia ABOIM (2012ABOIM, Sofia. "Do público e do privado: uma perspectiva de gênero sobre uma dicotomia moderna". Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 95-117, 2012., p. 97-117).
  • 11
    A obra As flores do Mal foi condenada em 1857, mesmo ano em que Gustave Flaubert foi processado (e absolvido) pela justiça com seu romance Madame Bovary.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2015
  • Revisado
    08 Dez 2015
  • Aceito
    13 Abr 2016
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