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Edith Mendes e o feminismo na Bahia no início do século XX

VIEIRA, Claudia Andrade. História das Mulheres: feminismo e política na Bahia. Simões Filho: Editora Kalango, 2015. 155p

Em seu livro História das mulheres: feminismo e política na Bahia, a historiadora Claudia Andrade Vieira descreve as lutas feministas pelo acesso à cidadania lideradas por Edith Mendes da Gama e Abreu, presidenta da Federação Bahiana pelo Progresso Feminino, no início do século XX. Por meio da análise dos discursos e trajetória da presidenta, Claudia Vieira encontra os significados de ser feminista e os desafios enfrentados por ela para a implantação de sua perspectiva política.

História das mulheres é resultado da pesquisa de mestrado defendida em 2002 no Programa de Pós-Graduação em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob a orientação da Profa. Dra. Marina Maluf. Treze anos passados, a pesquisa foi publicada pela Editora Kalango e integra a Coleção Bahia Plural, que reúne dissertações dedicadas à história da Bahia.

Partindo da compreensão de que o discurso é "instrumento de ordenação do mundo" (Claudia Andrade VIEIRA, 2015VIEIRA, Claudia Andrade. História das Mulheres: feminismo e política na Bahia. Simões Filho: Editora Kalango, 2015., p. 18), a autora se fundamenta em Joan Wallach Scott (1998SCOTT, Joan. La citoyenne paradoxale: les féministes françaises et les droits d'homme. Paris: Albin Michel, 1998.) defendendo que o gênero é o discurso da organização social das diferenças sexuais: "A verdade da natureza foi apresentada como fundamento ontológico da lei e da política social quando, na verdade, ela é o efeito dessas leis e dessas políticas" (VIEIRA, 2015, p. 18). A partir disso, Claudia Vieira pretende examinar, por meio do estudo da biografia de Edith Mendes, as práticas e os contextos nos quais as representações simbólicas da diferença sexual foram produzidas no movimento feminista da Bahia na primeira metade do século XX.

Edith Mendes nasceu em 1898 em Feira de Santana (BA), cidade onde seu pai foi prefeito por dois mandatos e coronel da Guarda Nacional. Enquanto seu irmão cursou o nível superior, Edith Mendes frequentou o curso pedagógico no Educandário Sagrado Coração de Jesus, em Salvador, o que possibilitou que ela ingressasse no magistério.

Diferenciando-se das mulheres de sua época, Edith Mendes construiu uma carreira pública de prestígio. Entre outras atividades, aposentou-se como inspetora do Ensino Secundário do Ministério da Educação e Cultura; foi professora catedrática e fundadora da Faculdade de Filosofia da Bahia; foi a primeira mulher a compor a Academia de Letras da Bahia; candidatou-se à Assembleia Nacional Constituinte em 1933 e ao legislativo estadual em 1934.

Os fundamentos da atuação política de Edith Mendes nessas atividades são vastamente teorizados em suas produções, em especial sobre o papel das mulheres na sociedade. Como analisa Vieira, Edith Mendes argumentava que a desigualdade dos sexos estaria fundamentada na disparidade da educação pela qual passam meninas e meninos. Enquanto as meninas são mimadas pelos pais e educadas em bordados, artes e línguas, tendo como única atividade a doméstica, exigida pelo casamento e pela maternidade, os meninos são ensinados a serem egoístas, educados na filosofia e ciência, sem nenhuma instrução para o casamento. Nesse sentido, Edith Mendes denuncia as injustiças sofridas pelas mulheres no matrimônio, centrando sua crítica nas normas e nos comportamentos femininos e masculinos culturalmente construídos.

A pesquisadora mostra como Edith Mendes defende que os meninos aprendam a importância da dedicação e da fidelidade no casamento, enquanto as meninas devem ter acesso à educação formal e a atividades sociais e políticas. Mendes reformula as implicações da maternidade, defendendo que os atributos conquistados a partir do casamento e as responsabilidades inerentes aos cuidados dos filhos provocavam na mulher sentimentos mais dignos para atuar na esfera pública, sendo capaz de construir uma sociedade mais justa: altruísmo, benevolência, abnegação, generosidade, senso de justiça, conduta moral inquestionável e consciência de sua responsabilidade social. Ou seja, por meio da positivação de uma essência feminina maternal, Edith Mendes fundamenta que as mulheres estão, em muitos aspectos, mais bem preparadas para atuar no universo público que os homens.

A teoria feminista produzida por Edith Mendes é situada por Claudia Vieira no fluxo do discurso social sobre o papel das mulheres na sociedade difundido a partir do século XIX no Brasil. Com a implantação da República, médicos, juristas, religiosos e políticos passam a teorizar sobre a melhor forma de educar os futuros cidadãos no intuito de construir uma sociedade moderna. Com isso, a família foi colocada como núcleo social e à mulher foi atribuída uma série de normas de conduta na - e para a - educação dos filhos, no relacionamento conjugal e nos cuidados da casa. No contexto desses discursos, a literatura de Edith Mendes é uma expressão feminista de que o comportamento dos homens também deveria ser estudado, bom como conclama para a reformulação do papel das mulheres na sociedade.

O novo papel social feminino, como formadora de cidadãs e cidadãos, promoveu a ascensão da autoridade das mulheres, que passam a possuir uma função essencial para o desenvolvimento da nação, conferindo a elas poder diante dos homens. Posteriormente, este discurso sobre a "natureza feminina", que circunscreveu a mulher ao espaço doméstico, foi ressignificado por parte das mulheres e utilizado para fundamentar sua atuação em atividades públicas que estariam em acordo com esta "natureza", como a filantropia, a enfermagem e o magistério.

Claudia Vieira demonstra que o discurso feminista que perpassa a trajetória militante de Edith Mendes também pode ser encontrado nas reivindicações de outras mulheres baianas, como Amélia Rodrigues, Eulina Thomé de Souza, Francisca Praguer Fróes, Lili Tosta e Maria Luiza Bittencourt, que também militaram a favor da igualdade de direitos. Em sua maioria, essas mulheres eram católicas, brancas, letradas e de famílias da elite, influentes na política. Algumas representavam o modelo de mãe e esposa recomendado para o período, motivo pelo qual suas vozes possuíam legitimidade. Uma parte considerável dos artigos de Edith Mendes era destinada à defesa de que o movimento feminista produzido pela Federação envolvia mulheres de "uma posição social de indiscutível respeitabilidade" (VIEIRA, 2015VIEIRA, Claudia Andrade. História das Mulheres: feminismo e política na Bahia. Simões Filho: Editora Kalango, 2015., p. 89): vinham de famílias nobres, da elite, eram cristãs e intelectuais.

A origem dessas mulheres foi fator determinante para suas conquistas legais e sociais. Elas se utilizaram de seu prestígio e de relações pessoais e parentais para conseguirem publicar em jornais e terem reuniões com políticos influentes. Marieta do Passo Cunha, por exemplo, era esposa do prefeito de Salvador e primeira vice-presidenta da Federação Bahiana pelo Progresso Feminino. Também é importante notar que a permissão para que Anisia Teixeira Campos fosse a primeira mulher a votar tenha sido concedida pelo seu próprio marido, o juiz Cícero Campos.

No entanto, como demonstra Vieira, essa origem, por um lado, contribuiu para as conquistas feministas no campo dos direitos; por outro, gerou um afastamento das problemáticas vividas pelas mulheres negras e das camadas populares. Edith Mendes defendia, por exemplo, que o critério para o sufrágio fosse a escolaridade. Ela se aproximava das mulheres negras e de camadas populares apenas em atividades filantrópicas.

Contudo, nem todas as lideranças da Federação possuíam pensamentos semelhantes ao de sua presidenta. Claudia Vieira analisa as publicações e biografias de três outras lideranças da Federação, buscando compreender as multiplicidades de perspectivas dessas feministas: Francisca Praguer Fróes, Lili Tosta e Maria Luiza Dórea Bittencourt.

Comparando seus discursos feministas ao de Edith Mendes, Claudia Vieira descreve semelhanças e divergências. As três lideranças escreveram mais sobre o sufrágio feminino que Edith Mendes. Enquanto elas se dirigiam normalmente às mulheres, Edith Mendes tinha como principais interlocutores de seus artigos os homens, produzindo um discurso persuasivo que objetivava conquistar adeptos para a causa feminista. Francisca Fróes, Edith Mendes e Lili Tosta defenderam que o direito ao voto deveria obedecer ao critério de instrução.

A partir da exposição das concepções feministas das militantes baianas, Claudia Vieira estrutura algumas conclusões já elaboradas no decorrer do livro e define o que significava o feminismo para as líderes da Federação Bahiana pelo Progresso Feminino. Apesar de ser um conceito sempre associado aos movimentos que insurgiram nas décadas de 1970 e 1980, Vieira argumenta que, para compreender os sentidos dessa palavra para as líderes e militantes da Federação, é preciso descontruir o conceito como categoria fixa e contextualizá-lo na década de 1930, a partir da análise do discurso e da prática dessas mulheres.

Vieira defende que essas militantes se apropriaram do discurso médico e elaboraram sua proposta de comportamento feminino, reivindicando que as mulheres ocupassem os espaços públicos para atuarem nas instituições sociais. As atividades de benemerência eram consideradas por essas feministas como uma atividade política, assim como a reivindicação pela igualdade de direitos constitucionais entre mulheres e homens. Por isso, Claudia Vieira defende que a prática e o discurso dessas mulheres devem ser considerados como representantes de uma perspectiva feminista.

Com essas reflexões, História das mulheres: feminismo e política na Bahia contribui significativamente para o debate atual sobre a existência de múltiplos feminismos, demonstrando a pluralidade desse termo, assim como das práticas que se intitulam feministas. A publicação acrescenta, assim, mais um capítulo na historiografia feminista brasileira, demonstrando a relevância da participação dessas importantes personagens do cenário político baiano na construção das pautas feministas do início do século XX. Por fim, é pertinente destacar que a autora Claudia Vieira não deixa de problematizar o modo como os marcadores de classe e cor estavam imbrincados na perspectiva política dessas mulheres, já elaborando uma análise interseccional.

Referências

  • SCOTT, Joan. La citoyenne paradoxale: les féministes françaises et les droits d'homme. Paris: Albin Michel, 1998.
  • VIEIRA, Claudia Andrade. História das Mulheres: feminismo e política na Bahia. Simões Filho: Editora Kalango, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2016
  • Aceito
    25 Abr 2016
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