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Consumindo Carmen Miranda: deslocamentos e dissonâncias nas recepções de um ícone

Resumo:

Dentro da perspectiva dos estudos culturais, em seus diálogos com os estudos feministas e queer, buscar-se-á analisar a identificação dos públicos com Carmen Miranda a partir do consumo de seus produtos fílmicos, musicais e artísticos, acessando sua trajetória profissional em sua imbricação com suas diversas formas de recepção. O foco será nas negociações da artista com seus públicos, tangenciando como sua carreira envolveu reconfigurações no que tange a aspectos de gênero, raça e sexualidade. Parte-se de uma perspectiva que lida com o dinamismo da cultura de massas, considerando as possibilidades de diversas formas de apropriação dos produtos culturais, bem como dos deslocamentos e dissonâncias nas recepções. Para analisar tais aspectos, focar-se-á as recepções femininas, brasileira e norte-americana, e do público homossexual masculino contemporâneos a sua carreira.

Palavras-chave:
Carmen Miranda; cultura de massas; consumo; negociações; deslocamentos

Abstract:

From the perspective of cultural studies, in its dialogs with feminist and queer studies, this article analyzes the identification of various publics with Carmen Miranda based on the consumption of her filmic, musical and artistic products, accessing her professional trajectory in its imbrication with its various forms of reception. The focus will be on the negotiations of the artist with her publics, touching on how her career involved reconfigurations concerning aspects of gender, race and sexuality. It is based on a perspective that considers the dynamism of mass culture, considering possibilities for various forms of appropriation of cultural products, as well as shifts and dissonances in receptions. To analyze these aspects, the paper focuses on feminine receptions in Brazil and the United States, and those of a male homosexual public contemporary to her career.

Keywords:
Carmen Miranda; Mass Culture; Consumption; Negotiations; Dislocations

Introdução18 18 Traduzido por Jeffrey Hoff. Este artigo apresenta os resultados de minha dissertação financiada pelo CNPq e CAPES (PDSE / Processo nº 8112 / 12-6).

Doze de agosto de 1955 foi um dia marcado por um episódio de comoção nacional. O corpo de Carmen Miranda chegou de Los Angeles ao Rio de Janeiro e foi conduzido pelos bombeiros à antiga câmara dos vereadores, onde fora velada. No cortejo, uma multidão de pessoas prestou homenagem quando, em seguida, foi retirado do veículo o caixão envolto em uma bandeira do Brasil e levado ao lugar onde ficou exposto à visitação pública por um dia. A aglomeração em frente à câmara sinalizou o desejo da população de ver de perto e pela última vez o rosto de seu ídolo. No dia seguinte, os bombeiros levaram o corpo para o cemitério de São João Batista, acompanhado por milhares de pessoas. De acordo com o biógrafo Abel Cardoso Junior, no velório “das 13 horas desse dia até às 13 horas do dia 13, mais de 60.000 desfilaram perante seu corpo” (1978, p. 30). Mais impressionante, para seu sepultamento, houve o acompanhamento “entre 500.000 a um milhão de pessoas – foi o mais concorrido de toda a história do Rio, debaixo de profunda comoção popular já transcorridos 8 dias de seu falecimento” (JUNIOR, 1978, p. 30).

Oito dias antes, na madrugada de cinco de agosto de 1955, Carmen Miranda foi acometida de um colapso cardíaco em sua casa em Beverly Hills, horas depois de quase desmaiar no programa televisivo de Jimmy Durante. Nascida em Portugal, transformou-se em ícone do rádio brasileiro, mas durante a maior parte de sua carreira, trabalhou nos Estados Unidos, tornando-se uma estrela do cinema hollywoodiano, uma famosa entertainer em nightclubs e atuante em diversos programas da nascente televisão. Trata-se de uma personagem ímpar que acompanhou o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa e difundiu globalmente representações e performances femininas e musicais que ficariam ligadas à América Latina e o Brasil. Constituíam-se, a partir de sua figura, formas de identificação19 19 Dentro da lógica de mercado de massas o apelo ao consumidor é aspecto fundamental, produzindo vínculos entre sujeitos e mercadorias com fortes implicações emocionais. A ideia de identificação parte da concepção de que a identidade emerge “[...] entre os conceitos e definições que são representados para nós pelos discursos de uma cultura e pelo nosso desejo (consciente ou inconsciente) de responder aos apelos feitos por estes significados, de sermos interpelados por eles” (HALL, 1997, p. 26). sentidas e vividas, configuradas na relação de idolatria entre uma estrela da música e do cinema e seu público.

São inúmeras as narrativas sobre a vida de Carmen Miranda, de produtos fílmicos20 20 Salienta-se a produção internacionalmente conhecida Carmen Miranda: Banana is my business, de Helena Solberg (1995). a trabalhos acadêmicos21 21 No Brasil citam-se, dentre outros, os trabalhos de Simone Pereira de Sá (1997), Ana Rita Mendonça (1999), Tania Garcia Costa (2004) e Mônica Schpun (2008). Na literatura internacional, destaco os trabalhos de Shari Roberts (1993), José Ligiero Coelho (1998), Priscilla Peña Ovalle (2011) e Lisa Shaw (2013). , todas justificadas por se tratar de uma figura paradigmática da cultura de massas produzidas nas décadas de 1930 e 1940. O que um ícone nacional e internacional já tão conhecido pode trazer de novo para uma análise sociológica dos produtos culturais massivos e seus públicos?

Este artigo pretende analisar um aspecto dinâmico e multifacetado que envolve as representações de Carmen Miranda e seu consumo por públicos distintos, fazendo com que a negociação de valores perpassasse as escolhas estéticas da artista e produzindo significados variados e dissonantes em suas leituras. Muito além das representações amplamente reconhecidas de brasilidade e América Latina, Carmen ofereceu ao público possibilidades de novas performances de gênero e sexualidade, deslocando significados por meio da negociação de valores morais e do humor.

Para analisar essas questões, parto da operacionalização do conceito de performatividade de Judith Butler (2003BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.). Em uma conceituação da identida de de gênero como construção performativa, Butler (2003) parte não de uma estrutura que determina o sujeito de “cima para baixo” e de uma vez por todas, mas de uma construção que se dá na ação do sujeito, dentro dos limites dos contextos simbólicos e das representações disponíveis (cf. SALIH, 2012SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.). Considera-se que uma performance parte de enquadramento dado, mas pode se deslocar de seus significados anteriores, na medida em que os significados estão abertos a ressignificações. Abordo, neste sentido, como Carmen manipulou certos significados próprios a sua persona e personagens, negociando sentidos na forma em que se relacio nou com diversos públicos. Para além de suas atuações, focalizo as apropriações deslocadoras de Carmen Miranda que possibilitaram significados dissidentes a suas leituras convencionais.

O foco deste artigo será no consumo de suas imagens e performances por dois públicos: o público feminino22 22 O artigo de Shari Roberts (1993) explora este elemento, caracterizando-o como um aspecto crucial da agência da entertainer a partir do qual estabeleceu uma comunicação especial com seu público. Segundo a autora, Carmen tinha fãs predominantemente do público feminino porque sua atuação não era meramente a confirmação de um estereótipo negativo, mas um tipo de paródia deste, a partir de seu excesso feminino e étnico. (brasileiro e norte-americano) e o homossexual masculino de seu tempo. Para tanto, a perspectiva teórica utilizada será a dos estudos culturais23 23 Para uma introdução aos Estudos Culturais, consulte CEVASCO, 2003 e MATTELART E NEVEU, 2004. , em especial em seus desdobramentos nas teorias feministas e queer. O pressuposto central contido nas reflexões aqui propostas é como o consumo - com o foco específico no consumo de um ícone da cultura de massas -, uma atividade aparentemente privada e econômica, é movido por aspectos simbólicos e saturado de questões políticas e relações de poder.

A temática do consumo de produtos de cultura de massa foi, por muito tempo, abordada predominantemente pela literatura marxista, centrando-se na alienação contida em sua forma industrial de produção. Crítico a esta visão, Jesus Martín-Barbero (2009) oferece uma perspectiva frutífera para se pensar a centralidade do consumo na dinâmica de produção da cultura de massas. Em vez de pressupor a cultura de massas como uma forma de degradação da cultura erudita, em uma crítica à interpretação frankfurtiana clássica, Martín-Barbero (2009) propõe uma abordagem atenta à recepção na qual compreende que a cultura de massas é gerada lentamente pela lógica do consumo. Em vez de conceber o consumo como determinado unilateralmente por sua produção industrial, volta-se às experiências sociais prévias e às demandas de determinados sujeitos para a compreensão de como o consumo influencia decisivamente a lógica de produção cultural massiva.

No que tange aos objetivos deste artigo, Martín-Barbero (2009), concebe o star system24 24 Richard Dyer (1979) focado na temática das estrelas como uma problemática social oferece também uma leitura crítica às análises estruturais e economicistas. Dyer (1979) salienta que se os estúdios de fato constroem a imagem da estrela e seus contornos e estimulam seu apelo em relação ao público, essa criação não se dá de forma unilateral, mas sim de forma mais complexa e matizada. Nestes termos, as estrelas não são criadas apenas a partir de uma lógica vertical imposta pelos estúdios, mas se realizam no consumo, dependem da audiência. O que atesta tal afirmação é a própria oscilação na carreira das estrelas, superando qualquer modelo baseado em uma manipulação soberana que considera a recepção como passiva, como somente uma resposta. como um “dispositivo comercial sobre mecanismos de percepção e reconhecimento popular” (2009, p. 203), ou seja, pressupõe a ideia de que a construção da imagem da estrela dependia de sua simetria com a identificação do público: “era a identificação sentida e o desejo mobilizado pela ‘estrela’ o que permitia a rentabilidade dos filmes” (2009, p. 204). Conferindo maior dinamismo no processo de codificação e decodificação dos produtos culturais massivos, Martín-Barbero (2009, p. 176) propõe “deslocar a leitura do campo ideológico para ler não só a lógica dominante, mas também as diferentes lógicas em conflito tanto na produção quanto no consumo”, pensando o consumo entre o “entrelaçamento de submissões e resistências, impugnações e cumplicidades” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 268). Apropriando-me de suas reflexões e buscando ir além da visão do autor centrada nas dinâmicas de consumo e as classes sociais, busco explorar também as dimensões de raça, gênero e sexualidade presentes nas performances de Carmen Miranda, imbricadas com a apropriação de sua imagem e performances por diversos públicos.

Suprindo esta falta, Miriam Adelman (2009ADELMAN, Miriam. A Voz e a Escuta: encontros e desencontros entre a teoria feminista e a sociologia contemporânea. Curitiba: Blucher, 2009.) sintetiza como, dentro de uma perspectiva feminista, enfatizou-se a importância do consumo de cultura de massas na redefinição das divisões de gênero que fizeram parte de grandes mudanças ocorridas no decorrer do século XX. Em síntese, trata-se de um período no qual:

O espaço público começa a perder sua característica de recinto masculino na medida em que as mulheres - tanto na qualidade de trabalhadoras do consumo quanto na de consumidoras de lazer e cultura - começam a frequentar os novos espaços das grandes lojas e dos cinemas. Se, como algumas teóricas corretamente apontam, isso certamente gera novos modos de controle sobre as mulheres, o novo cenário não se esgota no disciplinamento, pois a história generificada de diversas formas de consumo (dos filmes aos cosméticos; cf. Peiss, 1996; Carter, 1996; Ewen e Ewen, op. cit., entre outros) mostra que o acesso das mulheres aos "produtos da modernidade" tem um papel nada desprezível no desmantelamento de sistemas de autoridade social e familiar que exerciam controles muito diretos sobre a autonomia pessoal e sexual delas (ADELMAN, 2009ADELMAN, Miriam. A Voz e a Escuta: encontros e desencontros entre a teoria feminista e a sociologia contemporânea. Curitiba: Blucher, 2009., p. 188-9).

Em relação aos produtos fílmicos, dentro de uma perspectiva feminista contemporânea (ROBERTSON, 1996ROBERTSON, Pamela. Guilty Pleasures: Feminist Camp from Mae West to Madonna. Durham, N. C.: Duke University Press, 1996.), focaliza-se o consumo não tomando como dado um olhar masculino voyeurístico, mas considerando as distintas formas de leitura dos filmes e representações do feminino, com ênfase nas recepções femininas. Ainda relacionado a esse aspecto, há uma farta produção sobre a relação entre cinema e homens gays (DYER, 2004DYER, Richard. Heavenly Bodies: Film Stars and Society. Routledge. London & New York. Second Edition. 2004., p. 164), ou da própria estética dos musicais e sua recepção específica por estes sujeitos (HALPERIN, 2012HALPERIN, David M. How to be gay. Cambridge, Massachusetts: Belknap Press, 2012., p. 104) e a influência de determinados tipos de personagens femininas para este público específico (CLETO, 1999CLETO, Fabio (org.). Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject. The University of Michigan Press. Ann Arbor. 1999.; DYER, 2004; HALPERIN, 2012), constituindo uma forma de leitura camp dos produtos fílmicos, subvertendo seus significados convencionais.

Sintonizado com tais perspectivas contemporâneas, proponho uma leitura interseccional (BRAH, 2006BRAH, Avtar. “Diferença, Diversidade, Diferenciação”. In: Cadernos Pagu. Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, n. 26. p. 329-376, 2006.) da trajetória de Carmen Miranda, abordando como aspectos que envolvem raça, gênero, sexualidade e classe estão presentes nas performances de Carmen, considerando que sua carreira atravessa diferentes contextos nacionais e com eles enquadramento discursivos e públicos distintos, mas conectados por relações econômicas, culturais e políticas que se reforçavam naquele período. Deste modo, a análise de sua trajetória buscará interpretar a indissociabilidade de suas performances, com todos os valores simbólicos nelas impingidas, com as expectativas dos públicos: de um lado, apresentando limites e possibilidades para suas representações e, de outro lado, expressando a multiplicidade de sentidos captáveis de suas diversas apropriações. Para tanto, a análise presente terá como foco privilegiado, não a participação nos filmes ou a produção musical de Carmen Miranda, mas sua recepção e comunicação com o público pela imprensa, acessível por meio de análise documental possibilitada pela visita a arquivos nacionais e estrangeiros25 25 Para a análise da trajetória e da relação entre Carmen Miranda e seus públicos, visitei arquivos em São Paulo, Rio de Janeiro, San Francisco, Los Angeles e Nova Iorque, dentre os quais destaco: a Biblioteca Jenny Klabin Segall, bem como seu arquivo digitalizado que abrange as revistas Cena Muda e Cinearte, o Museu Carmen Miranda, a Biblioteca Nacional, o GLBT Historical Society Archive, a Margareth Herrick Library na Academy of Motion Pictures Arts and Sciences, o One Lesbian and Gay Archive e o Shubert Archive. .

Negociando identidades entre os desejos de duas nações

Passar pelas performances de Carmen Miranda em sua primeira fase de sua carreira, durante os anos 1930, exige uma reflexão sobre o contexto específico de produção da identidade nacional, em especial sua primeira vinculação com o rádio e a música popular. Neste momento, não só o samba se transformava em ritmo nacional, como se redimensionava o universo simbólico nacional, incorporando elementos culturais populares e afro-brasileiros. Todo esse processo acompanhou o desenvolvimento de um mercado de cultura de massas no Rio de Janeiro, então capital federal, especialmente a partir das décadas de 1920 e 1930, com a efervescência dos teatros populares, do rádio comercial e da indústria fonográfica (Cf. FENERICK, 2005FENERICK, José Adriano. Nem do Morro, Nem da cidade: as transformações do samba e a indústria cultural. 1920-1945. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2005.; DAVIS, 2009DAVIS, Darién J. White Face, Black Mask: Africaneity and the early social history of popular music in Brazil. Michigan State University Press, 2009.). Neste período passamos a nos pensar, a partir dos meios de comunicação de massa, como um país mestiço, racialmente harmônico e como um povo alegre cuja maior expressão seria o samba.

Esse redimensionamento simbólico nacional perpassa lógicas econômicas complexas do mercado de cultura de massas, além de mediação políticas. O Estado se apropriava do sucesso do samba, buscando intervir no conteúdo das letras e veiculá-lo como ritmo nacional tendo em vista a coesão buscada pelo governo de Getúlio Vargas. Já o mercado buscava ampla aceitação do samba e atuava por meio da seletividade das representações, incorporando a música popular e de origem afro-brasileira, mas recusando sua apresentação negra. Mesmo considerando a importância dos compositores e músicos negros do período, a produção cultural buscava veicular representações marcadas pela branquitude, entendida em termos simbólicos como sinônimo de civilidade.

Neste contexto, a urbanizada capital brasileira acompanhava as transformações globais de ordem econômica e cultural, estruturando um mercado de lazer e entretenimento de rica produção cultural, ao mesmo tempo em que no período passava-se por uma mudança da referência cultural francesa predominante para a norte-americana, em especial, via cultura de massas, por meio da qual foram difundidos hábitos e práticas de consumo. O acesso ao novo estilo de vida era marcado por fronteiras de classe social, definindo certos tipos de diversão para grupos sociais privilegiados, como cassinos e clubes, e outros mais acessíveis às camadas médias e baixas, como os cinemas e botequins. A branquitude expressava então uma afinidade com o mundo moderno em suas dimensões materiais e simbólicas que definiam seletivamente quem tinham acesso a determinados produtos, espaços e comportamentos que promoviam, de outro lado, mecanismos de distinção social. A posse do rádio, a incorporação da moda hollywoodiana, a presença em bailes de gala ou cassinos eram alguns dos elementos que vinculavam sujeitos ao moderno. Em contraste, várias expressões da cultura popular e afro-brasileiro continuaram a ser criticados na imprensa como "bárbaros".

Embora os aspectos de classe social e estilos de vida fossem centrais, o aspecto racial aparece vinculado a ele como mecanismo de distinção social. Como exemplo, músicos e compositores negros, embora conquistassem certo reconhecimento, não chegavam ao status de cartazes do rádio, ganhando salários inferiores e não alcançando o mesmo prestígio. Em contraste com eles, os cartazes do rádio constituíam uma espécie de star system à brasileira, com presenças notáveis na publicidade, nas revistas ilustradas e no cinema nacional emergente, sendo acompanhados de perto por seu público nacional. Tal fronteira racial convivia com uma paradoxal valorização da mestiçagem e de cenários e ritmos afro-brasileiros que passavam a fazer parte da identidade nacional.

Carmen Miranda é representativa desse período, tendo contato próximo com compositores e músicos populares, mas alcançando sucesso em vida inimaginável a seus companheiros musicais, adentrando em espaços de elite, presente na publicidade, nas revistas e no cinema nacional emergente e, depois de sua consagração, internacionalizando sua carreira, já concebida como representante artística da nação. A branquitude de Carmen Miranda foi chave para sua ampla aceitação. No auge de sua carreira incorporou a personagem da baiana para o filme Banana da Terra, gravado no final de 1938. Neste filme, ela aparece em número musical, interpretando a música "O que é que a baiana tem?" de Dorival Caymmi, com as vestimentas da baiana.

A baiana remete tanto a um Brasil autêntico, de Salvador como a primeira capital do Brasil colonial, como também fazia referência à figura popular e negra da baiana vendedora de quitutes na capital federal, liderança religiosa e presença importante nos espaços lúdicos e religiosos do samba, prévios à sua veiculação comercial. Ao mesmo tempo, as baianas eram desde o final do século XIX uma figura do teatro de revistas, associadas ao papel da mulata sensual, em processo de se transformar em um símbolo nacional.

Carmen equilibrava-se nas tensões raciais, conseguindo uma aceitação de ampla escala para plateias de distintos espaços sociais e simbólicos. A baiana de Carmen é a baiana estilizada que incorporava certos elementos da figura da baiana, mas recusava o que era considerado "vulgar". A interpretação da figura da baiana por Carmen tomava outros contornos da figura negra da baiana, mantendo e deslocando seus sentidos anteriores. Além de ser branca e de olhos verdes, mostrava-se em sintonia com a moda hollywoodiana, tendo sua carreira reconhecida por inovar na moda nacional a partir de suas habilidades de costura e sensibilidade para adoção de padrões estéticos avant-garde. A baiana branqueada de Carmen, aludindo à negritude e ao popular, representava a possibilidade de conciliar as promessas de harmonia racial, com a unidade nacional, sem romper com a branquitude.

No entanto, a incorporação branqueada da baiana era feita com uma série de ambiguidades. Carmen Miranda carregava em suas interpretações aspectos da linguagem popular, do humor com duplos sentidos e alusões à sexualidade, com olhares e piscadelas em cumplicidade do público, em interpretações típicas do teatro popular burlesco. Carmen incorporou a linguagem popular discordante do português formal em suas letras, elementos religiosos de origem africana, valores contrários à ideologia trabalhista que denotam fissuras e ambiguidades no processo de branqueamen to do samba. Muitas músicas de Carmen valorizavam a folia em relação ao com prometimento amoroso ou o trabalho, invertendo as expectativas normativas.

Equilibrando-se nessas tensões raciais e morais, em diálogo com diversos públicos, ela se tornou uma das artistas mais consagradas de seu tempo e conseguiu que a baiana se tornasse um símbolo nacional. No auge de sua carreira, passou a atuar em espaços sociais e simbólicos elitizados da capital federal, do qual destaco o internacional e elitizado Cassino da Urca. Neste cenário, foi contratada pelo empresário da Broadway Lee Shubert que lhe ofereceu um contrato para a revista teatral Streets of Paris. Com imediato sucesso nos palcos nova-iorquinos, Carmen logo assinou um contrato com a 20th Century Fox.

A viagem de Carmen Miranda ao exterior tomou ares de uma expedição diplomática na área cultural, sendo ainda mais reconhecida como “Embaixatriz do Samba”, coincidindo com o período do Estado Novo, o qual aprofundava seu interesse e apoio à política cultural que valorizasse a unidade nacional. Quando migra para os Estados Unidos assume o status de representante da nação, tendo o aval e apoio do governo federal. Isso é visível quando, pouco antes de Carmen embarcar para os Estados Unidos, o presidente Getúlio Vargas sai “de seus cuidados em Caxambu, Minas Gerais, onde fazia uma estação de águas, para receber Carmen e o Bando da Lua – que lhe deram um show no hotel” (CASTRO, 2005CASTRO, Ruy. Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 194). A ida do conjunto musical Bando da Lua, acompanhando a cantora brasileira, dependeu da articulação de membros do governo, como Lourival Fontes do Departamento Nacional de Propaganda a Décio Moura, primeiro secretário do consulado brasileiro em Nova Iorque, devido à legislação protecionista em relação aos músicos norte-americanos. A justificativa de levar o grupo com a cantora seria de levar a música “genuinamente” nacional, apresentar a “verdadeira” cultura brasileira.

No novo contexto, Carmen levou todo um universo simbólico que se consolidara no mercado de cultura de massas desenvolvido no Rio de Janeiro para o cinema norte-americano. A identidade nacional brasileira passou a ser sistematicamente produzida então em uma esfera transnacional e mediada pelo setor corporativo altamente especializado da 20th Century Fox. A partir deste momento, pode-se dizer que há um entrelaçamento de representações. Carmen Miranda levou e estilizou de forma cada vez mais sofisticada a personagem da baiana. Ao mesmo tempo, o estereótipo de longa data no cinema norte-americano da mulher latino-americana, marcado pela passionalidade, musicalidade e sensualidade, foi incorporado por Carmen, sobrepondo-se à baiana.

Carmen foi aos Estados Unidos no período conhecido como Política de Boa Vizinhança, em plena Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um período marcado pela acentuação dos interesses econômicos e políticos dos Estados Unidos nos países latino-americanos, buscando evitar as influências dos países do eixo. Durante este período, há uma quantidade significativa de filmes, nos quais Carmen Miranda participou com protagonismo, que enfatizam a ideia de panamericanismo, ou seja, de uma amizade entre as nações americanas (Cf GARCIA, 2004; MENDONÇA, 1999MENDONÇA, Ana Rita. Carmen Miranda foi a Washington. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 1999.). Carmen surgia dos palcos em números musicais com a temática latino-americana, esbanjando sambas e, mais recorrentemente, misturas de ritmos e expressões em português, espanhol e inglês, representando a América Latina, adequada às representações norte-americanas, como uma unidade coesa. Em síntese, tal unidade se caracterizaria como primitiva, feminina e sexualizada, em contraste com o vizinho norte-americano civilizado, masculino e racional.

Consumindo Carmen Miranda: O que é que a baiana tem nos distintos contextos?

Carmen Miranda tornou-se uma estrela nacional no mercado de entretenimento que se forjava na capital brasileira e, depois, uma estrela na Broadway e em Hollywood. Como tal, negociou valores culturais abrangentes mediada por veículos de comunicação com história e lógicas próprias. É a partir de seus vínculos com uma esfera pública baseada na cultura de massas, por meio da qual difundiu globalmente suas imagens e performances, que sua carreira pode ser abordada.

Nas palavras de Sevcenko, como uma marca do primeiro terço do século XX, as rádios incentivavam “primeiro criar mitos, depois penetrar e divulgar com estardalhaço os detalhes mais palpitantes de suas vidas privadas. Isso estabelecia o circuito ídolos-fãs-dramas-lances bombásticos-recordes de audiência como o projeto ideal” (SEVCENKO, 1998SEVCENKO, Nicolau. “A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio”. In: SEVCENKO, N.; NOVAIS, F. (Orgs.). História da Vida Privada no Brasil: da Belle èpoque à era do rádio. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, v. 3, p. 513-619, 1998., p. 591). Carmen Miranda não apenas participou deste florescimento do estrelato, como apontou enquanto figura chave lidando com o entrelaçamento das diversas mídias presentes na capital carioca, valorizando sua aparição no espaço público e inovando a partir de valores que ganhavam centralidade no período e ditando comportamentos sancionados como modernos. Carmen esteve mesmo antes de sua consagração como cantora, muito próxima ao cinema, seja em seus looks como em suas tentativas de participar do emergente cinema nacional.

Três anos antes de Carmen gravar seu primeiro disco, ela já estampava seu sorriso na revista Selecta, em julho de 1926, na matéria “Quem será a rainha do cinema brasileiro?”, a despeito de seu nome não ter sido mencionado (CASTRO, 2005CASTRO, Ruy. Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 46). Em pouco tempo, Carmen também teve foto publicada na revista Cinearte candidatando-se a participar de filme que se anunciava como o mais ambicioso do cinema brasileiro (CASTRO, 2005, p. 46). Tendo o pleito recusado, sua trajetória no cinema só se iniciou depois de firmada como um cartaz do rádio, na medida em que o cinema nacional em seus primórdios tinha em seu elenco as estrelas do broadcasting nacional. A cantora atuou em Carnaval Cantado (1932), Alô, alô Brasil! (1935), Estudantes (1935), Alô, alô, Carnava!l (1936) e Banana da Terra (1938), filmes os quais rodaram nos cinemas brasileiros de diversas regiões, dando aos espectadores a oportunidade de ver a imagem de sua estrela, até então apenas uma voz, em movimento.

No espaço interior das casas de classe média e alta se difundiam as revistas, porta de entrada dos novos comportamentos sancionados socialmente, nas quais se estampavam além das estrelas norte-americanas e suas vidas em Hollywood, os cartazes do rádio brasileiro, suas apresentações de samba e atuações em carnavais que passavam a ocorrer nos teatros e nos clubes da sociedade. Os sons eram captados pelo aparelho, cada vez mais presente nos lares, e as imagens, as opiniões e a vida pessoal das novas estrelas eram impressas nas páginas das revistas.

Ritmos, danças e performances corporais passaram a ser objeto de atenção privilegiada, destacando os corpos femininos. Incentivaram-se comercialmente novos padrões e valores relativos à diversão, esfera pública e cultura de massas que ressignificaram os espaços urbanos que, por sua vez, foram progressivamente ocupados por mulheres. De um lado, Sueann Caulfield (2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas, SP: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000.) explora como, por todos esses meios, as representações e as práticas produziam a figura da mulher moderna, vista como independente e dotada de sensualidade. De outro lado, salienta que, com o surgimento da imagem da “mulher moderna”, atualizaram-se formas de controle social das mulheres, sob o argumento de defesa da honra, contendo juízos de valor que eram marcados por diferenciações de raça e de classe.

Dentro de um histórico colonial no qual se valorizava a castidade feminina e baseava-se na ideia de que a “reclusão das mulheres da elite fazia-as moralmente superiores às mulheres do povo” (CAULFIED, 2000, p. 29), tratava-se da problemática de como diferenciar moralmente as mulheres provenientes da elite – alocadas a uma esfera de respeitabilidade social – das da classe populares, boa parte negras e mestiças. Tiago Gomes (2004GOMES, Tiago de Melo. “Massais, mulatas, meretrizes: imagens da sexualidade feminina no Rio de Janeiro dos anos 1920”. Cadernos Pagu (UNICAMP), Campinas, v. 23, p. 121-147, 2004.) demonstra como se estabeleceu certa crítica na década de 20 à modernidade, comparando-a a uma barbárie racializada. Nessa visão racializada, com o forte impacto da música afro-americana e afro-brasileira, a figura da mulher moderna era criticada porque supostamente se assemelhava às de origem africana, ao mesmo tempo em que a modernidade era vista como enegrecida. Naquele período, formou-se um “pânico perante o que parecia a muitos observadores a sexualização, a feminilização e a dissolução de fronteiras de raça e classe no espaço público das grandes cidades” (GOMES, 2004GOMES, Tiago de Melo. “Massais, mulatas, meretrizes: imagens da sexualidade feminina no Rio de Janeiro dos anos 1920”. Cadernos Pagu (UNICAMP), Campinas, v. 23, p. 121-147, 2004., p. 146-7). Além disso, a despeito das transformações sociais substanciais, continuava-se a atribuir às mulheres um papel principal em relação ao qual deveria subordinar suas outras atividades: o da maternidade26 26 Partindo da análise de discursos jurídicos e processos criminais sobre “defloramento”, Caulfield (2000) constata que a despeito das mudanças históricas da virada do século à década de 40, permanece uma moral na qual a honra sexual da mulher, também concebida como “honestidade sexual”, era considerada base da família, por sua vez sustentáculo da nação. .

Neste contexto, Carmen Miranda negociava, com seu público, códigos de gênero, raça e sexualidade. Carmen não frequentava então os locais de sociabilidade masculina dos sambistas, como Café Nice e o Café do Papagaio, antes era procurada em sua casa por sambistas que buscavam legitimar sua carreira com a cantora amplamente reconhecida. Carmen era acompanhada de seu pai em suas apresentações, muitas vezes até em viagens pelo país. Segundo Davis (2009DAVIS, Darién J. White Face, Black Mask: Africaneity and the early social history of popular music in Brazil. Michigan State University Press, 2009., p. 124) ela aprendeu como separar suas performances de vida privada de sua persona pública. Afastar-se da boemia e reiterar sua vinculação com a família eram estratégias para se afirmar como “garota descente”. Ela também não se dispunha a participar de peças no teatro de revista. Nas palavras do biógrafo Abel CardosoCARDOSOJUNIOR, Abel. Carmen Miranda: a cantora do Brasil. São Paulo: Edição particular do autor, 1978. Junior: “nessa época, Carmen ainda tinha preconceitos contra o teatro e achava que não devia descer do seu pedestal radiofônico e representar cenas de comédia em revistas” (1978, p. 68).

As negociações dos códigos morais de gênero se relacionavam intimamente com questões raciais. Carmen Miranda, que se dizia morena27 27 Carmen Miranda identificou-se como morena em entrevista a Magalhães Jr. na revista Vida Doméstica de julho de 1930 quando perguntada se nasceu “aqui mesmo, no Rio”. Dizer que era morena era uma forma de afirmar sua brasilidade, afirmada em seguida de quando revelou ao público sua origem portuguesa, rompendo o acordo com a gravadora Victor que considerava como importante estratégia de mercado associar Carmen à brasilidade. , em suas letras atualizava as narrativas da mulata sensual que remontam ao teatro de revistas e mesmo aos romances oitocentistas brasileiros. A cantora do rádio, com sua habilidade de incorporar os signos culturais relevantes de seu tempo, acrescentava sal e canela a sua origem e aparência branca, performatizando a mestiçagem e dando materialidade à definição do tipo feminino nacional.

Embora suas canções enfatizassem uma feminilidade supostamente livre e democrática, já que vivenciada a partir de um eu lírico feminino28 28 Dentre os vários exemplos possíveis de serem citados, a relação entre feminilidade e liberdade sexual em suas letras pode ser perceptível na marchinha amplamente conhecida “Eu dei” (1937), de Ary Barroso, oferecendo um diálogo sexual sugestivo repleto de duplos sentidos. , na prática – como demonstrou Caulfield (2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas, SP: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000.) – percebe-se que se trata de uma experiência histórica privilegiada, reforçada no fato de Carmen Miranda ter automóvel próprio, símbolo da masculinidade de elite do período. A posse de um carro alçava Carmen à expressão de uma feminilidade modernizada avant-garde. Característica que se complementava com suas imagens em revistas e no cinema esbanjando beleza e sensualidade, algo que talvez motivou seu séquito de fãs do sexo feminino (CASTRO, 2005CASTRO, Ruy. Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.).

Naquele período, mulheres se organizavam e lutavam para defender seus direitos, como Patricia Galvão (Pagu), Tarsila do Amaral e muitas outras que criticavam a família patriarcal e defendiam a liberdade sexual para as mulheres. Ao lado delas, considerando que as negociações do âmbito privado são políticas, saturadas em relações de poder, podemos reavaliar o papel central de mulheres-chave na cultura de massas, como Carmen Miranda, na mudança dos códigos de gênero, ao proporcionar a suas fãs novas possibilidades de se vivenciar a feminilidade.

O consumo das imagens de mulheres como Carmen pode ser visto como uma forma de politização do privado, na medida em que participa das renegociações dos limites do feminino e do masculino. Carmen Miranda teve uma influência significativa sobre o público feminino, sendo ao mesmo tempo considerada estrela do rádio, em sintonia com a moda difundida por Hollywood, a qual incorporava criativamente, vestindo terninhos imortalizados por Marlene Dietrich no cinema norte-americano, além de seus sapatos plataforma que a destacavam nos palcos. Em um processo de mão dupla incorporava elementos da cultura de massas dos Estados Unidos, dando um tom nacional e incorporava os elementos populares, sofisticando-os a partir das influências estrangeiras.

Concomitantemente, é impossível pensar o extraordinário sucesso de Carmen desvinculado de seu diálogo com a cultura popular. A artista recebeu a alcunha de “cantora do It29 29 O “It” era uma expressão hollywoodiana atribuída à atriz Clara Bow pela escritora Elinor Glyn; uma expressão que denotava algo que alguém possuía, como um carisma especial, que a diferenciava de outras pessoas. No Brasil, dada a originalidade de Carmen no seu modo de cantar, interpretar e se apresentar em público, passou a ser considerada a “cantora do It” (CASTRO, 2005, p. 39). , denotando um carisma especial no olhar de seus contemporâneos, destacando-a dos demais. Tal aspecto estava tanto relacionado a uma trajetória da cantora que se embebia de um caldo de cultura popular, esbanjando gírias e expressões que circulavam nas ruas da capital, quanto representante de uma feminilidade moderna, negociando com os códigos morais e tensões raciais de seu período.

Na fase internacional de sua carreira, depois de descoberta pelo empresário Lee Shubert para a revista musical Streets of Paris na Broadway, Carmen levou consigo a indumentária da baiana estilizada com seus turbantes e adereços, além de seu grupo musical Bando da Lua, impactando assim que estreou no teatro norte-americano. A partir de então, sua indumentária exótica abriu portas para muitos contratos, efetivados com as indústrias de roupas, além de ter gerado uma apropriação clandestina de sua imagem por vários setores da moda da metrópole norte-americana (CASTRO, 2005CASTRO, Ruy. Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 223).

Em pouco tempo, sua moda invadia as lojas de departamento, a Macy’s usou o nome de Carmen em sua campanha publicitária em 1939 e a Teller criou manequins com poses e faces inspiradas na própria entertainer brasileira. O designer italiano Ferragamo foi contratado por Carmen em Nova Iorque para confeccionar seus sapatos plataforma, que usava desde 1934 no Rio de Janeiro. Como afirma Lisa Shaw: “até Carmen se tornar associada a eles, os sapatos plataforma eram considerados pelas lojas locais como muito exóticas para serem usados por mulheres americanas” (2013, p. 91, tradução minha).

Em um período no qual a estrela loura era referência estética, protagonista dos filmes românticos, Carmen Miranda assumia destaque crescente no cinema dos Estados Unidos. O exotismo, já parte das representações sobre a América Latina, é reforçado com os trajes da baiana, acentuando o “excesso” e a tropicalidade de suas caracterizações. Crescentemente criava modelos cada vez mais trabalhados da baiana estilizada que tomavam apresentações muito sofisticadas. Sua roupa era caracterizada por Robert Sullivan no Sunday News (16 de novembro de 1941, Shubert Archive, tradução minha) como “bárbara e brilhante”, deixando “homens aturdidos e mulheres perturbadas”.

Segundo Ovalle, “A aparência exótica de Miranda provia um visual fácil de se adotar pra mulheres ansiosas para ‘apimentar’ seus uniformes de trabalho com ‘lenços florais coloridos... batons vermelhos brilhantes e bijuterias’(Berry 2000, 126)” (OVALLE, 2011OVALLE, Priscilla Peña. Dance and the Hollywood Latina: Race, Sex and Stardom. Rutgers University Press, New Brunswick, New Jersey, and London, 2011., p. 68, tradução minha). Na análise da mesma autora, a latinidade servia como um meio termo entre a brancura, simbolicamente concebida como sem atrativo sexual e a sensualidade, imaginada como associada à negritude, possibilitando o consumo das mulheres brancas de elementos que a fariam sensuais, sem associá-las a negritude que era concebida em termos negativizantes. Assim, Carmen Miranda abriu o caminho para outras futuras performers norte-americanas, impactando então nos limites morais socialmente aceitos da feminilidade.

Voltando ao contexto nacional, tal caracterização de Carmen Miranda atraiu uma já conhecida crítica sistemática brasileira de suas atuações30 30 A imprensa brasileira ora criticava Carmen por ter se americanizado e ora atribuía aos diretores de seus filmes fracassos nas interpretações da brasileira, a despeito de seu sucesso absoluto nas bilheterias. Supostamente, não se tratava mais de Carmen Miranda, mas de uma caricatura latino-americana ou então de uma artista “inebriada pelo perfume do dinheiro americano”. Os jornalistas e leitores que publicavam suas visões na revista criticavam Carmen por cantar sambas “cheirando a rumbas”, ao contrário do que prometera a chamada "Embaixatriz do Samba" quando embarcou no Rio de Janeiro a Nova Iorque (Arquivo da Biblioteca Jenny Klabin Segall). , embora não deixava de suscitar interesse e idolatria do público brasileiro. O sucesso de Carmen Miranda também estimulou a reverberação de sua fantasia da baiana nos contextos de elite. Muitas mulheres incorporavam, estimuladas pela publicidade e mercado de fantasias do carnaval, a baiana de Carmen Miranda inspirando-se na ideia de uma feminilidade nacional, prestigiada nos filmes produzidos em Hollywood.

Mesmo no baile do Municipal, o mais selecto de quantos se realizam no Rio de Janeiro(...) houve sensível maioria de “bahianas”. Este aspecto realmente curioso, que fixamos nas presentes páginas, onde vemos as mais bellas baianas que dansaram na festa do nosso maior theatro. (Revista O Cruzeiro, 17 de fevereiro de 1940, Arquivo da Biblioteca Nacional).

A matéria “As bahianas invadiram o Theatro Municipal” da revista O Cruzeiro registra a disseminação de uma fantasia antes renegada nos bailes carnavalescos de gala cariocas, o que pode ser captado pelo texto que demarca “este aspecto realmente curioso”. A especificidade de tal incorporação no contexto brasileiro trazia a questão das fronteiras raciais, já que a baiana era relacionada a uma figura negra. Neste sentido, a incorporação da personagem da baiana foi seletiva e passageira, segundo Tania Garcia: “se nos Estados Unidos a baiana vestia os manequins das vitrines de Nova York, influenciando a moda e o comportamento das mulheres de lá, no Brasil a indumentária era apenas uma fantasia para ser usada durante os quatro dias de carnaval” (2004, p. 118).

A influência da moda norte-americana baseada no impacto de Carmen Miranda não alterou no dia-a-dia a racialização da vestimenta e todos os significados e valores atribuídos a ela: “ o traje da baiana, após o carnaval, continuou entre nós a vestir somente as negras que ganhavam a vida com seu comércio de iguarias e frutas nas ruas da capital da República” (GARCIA, 2004, p. 118). Em outros termos, os turbantes e adereços que tanto impactaram no comércio da moda norte-americana, aqui não fizeram o mesmo sucesso devido ao universo simbólico ao qual estava relacionado.

Mesmo que delimitada, a aceitação da fantasia da baiana no carnaval de elite se concretizou com uma série de negociações, perpassando o estratificado mercado de produtos culturais e entretenimento do período: das revistas ilustradas às lojas de roupas, adereços e fantasias de carnaval, aos teatros e clubes que ofereciam bailes de carnaval. As tensões raciais no consumo da baiana são perceptíveis na contracapa da mesma revista O Cruzeiro. Nela, havia uma propaganda da revista A Cigarra com um desenho no qual se contrastava ao fundo uma baiana negra com um tabuleiro típico das baianas e uma jovem branca na frente com um chapéu feito do tabuleiro da baiana reverso. Abaixo da imagem, seguia-se o texto:

O taboleiro da bahiana... (desenho) serve para muita coisa. As garotas bonitas de Copacabana descobriram que com certo jeito elle se transforma até num chapeo elegante, e se, um chapéo elegante lhe interessa, procure-o nas páginas da mais completa revista mensal brasileira A Cigarra-Magazine. (Revista O Cruzeiro, 17 de fevereiro de 1940, Arquivo da Biblioteca Nacional).

Em uma revista direcionada a um público de classe média e alta31 31 Maria Celeste Mira (2001) demonstra que especialmente a partir do final da segunda década do século XX há a formação de um novo tipo de público leitor no Brasil, voltado às revistas ilustradas que desenvolveram técnicas e se profissionalizaram a partir de então e contavam com um público alfabetizado nas classes médias e altas. Segundo a autora, difunde-se um modelo de revista voltado à família com uma variedade de assuntos que contemplasse as diferenças de gênero e idade. Aliado a isso, afirma que “grande parte das publicações que se desenvolvem no Brasil a partir dos anos 30 tem relação com o cinema” (MIRA, 2001, p. 27). , verifica-se uma diferenciação radical entre dois tipos de consumo do chapéu da baiana. A primeira negra e representante dos estratos populares seria o anti-modelo e para tanto, ofuscada pela figura à sua frente. A figura jovem e branca, destacada à frente, seria um modelo “às garotas bonitas de Copacabana”. Tal imagem deixa claro que a referência à baiana nos carnavais nada dizia respeito a baiana negra das ruas da capital federal. Na mesma revista, outra matéria versava sobre o sucesso de Carmen Miranda na Broadway. Vestir-se de baiana significava incorporar a sensualidade, o exotismo e a tropicalidade que caracterizariam a mulher moderna peculiarmente nacional. A baiana de Carmen consumida nos carnavais de gala deixava para trás seu "passado negro", com todos os seus sentidos conotativos, e apontava para sua relação íntima com o cinema mais reconhecido mundialmente: o dos estúdios de Hollywood.

Tal apropriação se fazia no momento específico do carnaval, período no qual as mulheres poderiam ter maior liberdade em relação à sexualidade. Trata-se de uma liberdade relativa, dado que eram alvo de discussão e controle presente na imprensa e nos saberes jurídicos do período (Cf. CAULFIELD, 2004). As mulheres que frequentavam os espaços de lazer elitizados poderiam escapar dos rígidos controles de gênero, incorporando novos valores que passavam a associar brasilidade com uma feminilidade nacional. A incorporação da baiana nos bailes de carnaval articulava-se com novos padrões de brasilidade que se impunham às mulheres, deixando visível a demarcação das diferenças raciais.

Carmen Miranda camp: a apropriação deslocadora de uma artista extravagante

Some people say I dress too gay, But every day, I feel so gay; And when I'm gay, I dress that way, Is something wrong with that? (The Lady in the Tutti-Frutti Hat)

No excerto da letra da canção The Lady in The Tutti-Frutti Hat, interpretada por Carmen Miranda em The Gang’s All Here (1943), a entertainer se defende de uma suposta acusação de que se veste de forma exageradamente alegre ("gay"), alegando que tal vestimenta corresponde a seu natural estado de espírito. A iconografia de sua personagem, por sua vez, afasta-se daquilo que é tido como razoável para uma vestimenta comum, associando uma sensualidade transgressora, supostamente “natural” às latino-americanas, com sua performance baseada no exagero e artificialidade na composição de sua roupa. Assim, temos a expressão vocal e corporal da autenticidade (“natural”) contrastando com a sua vestimenta exagerada (“cultural”), conjugando de forma paradoxal espontaneidade e despropósito artificial, criando uma situação cômica.

O humor fez parte de sua trajetória desde o primeiro momento em que chegou ao novo país, nas entrevistas e nos palcos. Ela assumia o estereótipo próprio da latino-americana, “brincando” com sua inabilidade de falar na língua inglesa, seu interesse declarado em homens norte-americanos e insaciável fome. Carmen se aproveitava de seus erros de inglês, mesmo quando ela já dominava o inglês, ela reforçava o sotaque e os erros de pronúncia. Como ela vinha de um outro contexto, tinha um certo distanciamento do enquadramento simbólico que a situava e pôde usar seu estereótipo para fins cômicos.

Ciente de que não desempenharia outros papeis a não ser aqueles aspectos cômicos e caricatos de sua persona nos filmes, Carmen passou a enfatizá-los e exagerá-los, de forma a se deslocar deles. A partir de determinado momento em sua carreira, Carmen passou a se autoparodiar nos filmes e em suas apresentações em nightclubs. Um exemplo interessante é sua performance da música I make my money with bananas, cuja letra ironizava que sua carreira estava estreitamente vinculada às bananas. Em suas performances, ela tirava as bananas do turbante, levava ao público, tirava a sandália para mostrar sua altura diminuta, mostrava seu cabelo, dizendo existir algo abaixo do turbante, etc (Cf. CASTRO, 2005CASTRO, Ruy. Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 435). Além das autoparódias, vários artistas a parodiavam no teatro e nos cinemas. Ela, pessoalmente, ajudava os artistas a se apropriarem da personagem Carmen Miranda, como na performance de Mickey Rooney no filme Babes on Broadway.

Da baiana no Brasil à latino-americana desempenhada nos Estados Unidos, Carmen Miranda sabia com talento incorporar elementos simbólicos representativos, mas deslocá-los a seu favor e dar-lhes novos sentidos. Por meio de suas negociações com a imprensa e aparições públicas, com suas estilizações, exageros na produção de vestimentas e expressões faciais e mesmo diante de sua habilidade dialógica, acabou por sedimentar outros significados à iconografia brasileira e latino-americana, com a figura da baiana exportada.

Em seus diálogos com diversas audiências, surge uma forma curiosa de leitura de Carmen Miranda que remete a uma apropriação singular de sua persona, nas forças armadas. Nas bases e campos masculinos, com a falta de mulheres, homens faziam não apenas serviços tidos como femininos, como as interpretavam nos palcos32 32 Não se trata de algo espacialmente delimitado, antes amplamente difundido. Em especial, um espetáculo teve sucesso surpreendente, This is the Army, e se tornou imensamente popular nos Estados Unidos, foi apresentado na Broadway por quase dois meses e com imitações em outros campos, mesmo fora do país. Consta que entre outubro de 1942 a agosto de 1943 o espetáculo rodou os Estados Unidos, com destaque para uma apresentação ao presidente Roosevelt, que declarou seu prazer em ver um soldado personificando a cigana Rose Lee, em performance de strip-tease (BÉRUBÉ, 1990, p. 78). . A recepção predominante na mídia e nas forças armadas, dentro uma ótica mainstream, interpretava tais espetáculos como humorísticos, compondo a estratégia de promover entretenimento, elevar a moral e a integração necessária aos soldados (BÉRUBÉ, 1990BÉRUBÉ, Allan. Coming out under fire. The History of gay men and women in World War II. The University of Carolina Press, Chapel Hill, 1990.). Acidentalmente, acabou-se por produzir um “refúgio temporário onde soldados gays poderiam soltar seus cabelos para entreter seus companheiros” (BÉRUBÉ, 1990, p. 67-68, tradução minha). As relações entre atores e espectadores produziram leituras como performances drag, além de sugerir sentidos homossexuais às narrativas33 33 Um entertainer homossexual "[...] poderia curtir, ver – ou ser – um homem de verdade sob um vestido, beijando, dançando com, ou cantando músicas de amor com outros homens e então aproveitar a riqueza subsequente dos duplos sentidos, transformando cada aspecto da performance em uma subtrama homossexual. Quando ele sabia que havia outros homens gays atuando ou na plateia, com uma piscadela ou com uma troca de olhares, podia compartilhar seu prazer secreto com eles, expandindo sua apreciação solitária para uma experiência de grupo. Nesse sentido, as performances drag, onde quer que tenham se dado, abriram inadvertidamente espaço social no qual os homens gays difundiram sua cultura secreta. A graça estava no desconhecimento dos membros da plateia – uma subtrama sobre homossexualidade estava sendo criada bem abaixo dos olhos deles e ninguém percebia" (BÉRUBÉ,1990, p. 72, tradução minha). .

Bérubé (1990BÉRUBÉ, Allan. Coming out under fire. The History of gay men and women in World War II. The University of Carolina Press, Chapel Hill, 1990.) aponta a existência de uma publicação chamada “Blueprint Special” em 1944 sobre o show “Hi Hank!” no qual eram incluídos cinco páginas de personificações masculinas de Carmen Miranda. Segundo o autor, em abril de 1941, um escritor da revista Theather Arts Magazine ainda reportou que os funcionários das forças armadas não mais aguentavam interpretações masculinas de Carmen Miranda e declaravam “desesperadamente” a necessidade por mais variedade (BÉRUBÉ, 1990BÉRUBÉ, Allan. Coming out under fire. The History of gay men and women in World War II. The University of Carolina Press, Chapel Hill, 1990., p. 89). Mais do que um adendo específico, a vinculação entre Carmen Miranda e este público nos revela uma faceta interessante para se compreender aspectos cruciais do agenciamento de Carmen Miranda e da dinâmica múltipla e dissonante dos produtos culturais massivos. Trata-se de um aspecto importante cujos desdobramentos são perceptíveis até os dias atuais, sendo Carmen Miranda ainda, especialmente para gerações mais antigas, um "ícone gay".

Dentre as várias apropriações paródicas de Carmen, destaco sua apropriação por um soldado que a interpretava em atividades teatrais nos campos de guerra e teatros durante a Segunda Guerra Mundial, Sasha Brastoff. A interpretação de Brastoff (sobre quem eu viria a descobrir uma série de fotos em uma pasta no One Lesbian and Gay Archive de Los Angeles, na qual performava várias personagens como drag queen) ficou tão famosa que foi gravada em um filme sobre as forças armadas, Winged Victory, de 1946. Brastoff não parodiou Carmen ressaltando elementos de conteúdo típicos à imagem latino-americana com seus chapéus de frutas tropicais, como a maior parte de suas paródias no cinema fazia34 34 A primeira personificação no cinema foi feita por Mickey Rooney em Babies on Broadway (1941), filme de Busby Berkeley pela MGM. Antecedem à personificação de Rooney outras paródias de Carmen no teatro e sucedem muitas outras no cinema, caracterizando de forma cômica alguns elementos sedimentados nas performances de Carmen como o uso de turbantes, seu exotismo e tropicalidade. . Brastoff explorou um dos seus elementos artísticos característicos: a estilização. O artista manteve a forma da indumentária de Carmen, mas sua fantasia substitui frutas por talheres e um uniforme do exército norte-americano, ressaltando ainda a plataforma exagerada –acentuada pelo ator – típica da entertainer. Argutamente, Carmen Miranda fazia então parte do exército norte-americano em uma interpretação drag.

A interpretação de Carmen Miranda em sua interpretação por Sasha Brastoff nos leva a pensar sobre sua importância na subcultura gay e no mundo drag. Há algo nesta relação, já amplamente estudada por diversos pesquisadores (CLETO, 1999CLETO, Fabio (org.). Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject. The University of Michigan Press. Ann Arbor. 1999.; DYER, 2004DYER, Richard. Heavenly Bodies: Film Stars and Society. Routledge. London & New York. Second Edition. 2004.; HALPERIN, 2013) ao intentar compreender o porquê muitos homens que se identificam como homossexuais experienciam a cultura a partir de uma leitura peculiar, em especial, a partir de uma identificação com determinadas atrizes e cantoras. Trata-se do que já foi conceituado como uma sensibilidade, um gosto, um gênero de linguagem ou mesmo um discurso nomeado de camp, originalmente um termo em inglês próprio a uma subcultura homossexual que por sua vez designava um meio de comunicação restrito a iniciados.

O camp, segundo Susan Sontag (1999SONTAG, Susan. “Notes on 'Camp'”. In: CLETO, Fabio (Org.) Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject. The University of Michigan Press. Ann Arbor. 1999.), se caracteriza como o oposto da valorização do conteúdo, constitui-se em uma “visão do mundo em termos de estilo”, o mundo como um fenômeno estético, avaliado “em termos de grau de artifício, de estilização”, algo que faz de estrelas de cinema de feminilidade acentuada e exacerbada os maiores exemplos de ícones gays e característica presente na interpretação de drag queens. Enquanto Sontag (1999) interpreta o camp como de natureza essencialmente apolítica, a bibliografia recente o explora como este pode se constituir como uma forma de subversão por meio da ênfase no artifício que expõe a arbitrariedade daquilo que é naturalizado por meio da cultura: em especial, as normas de gênero (Cf. CLETO, 1999CLETO, Fabio (org.). Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject. The University of Michigan Press. Ann Arbor. 1999.).

Tais sujeitos que compartilham o camp habitam em sociedades heteronormativas que se caracterizam por uma esfera pública violentamente heterossexual, nas quais “passar-se por hetero” é uma importante estratégia de sobrevivência para homens não heterossexuais. Sendo assim, estes tendem a se tornar mais conscientes, mesmo que não de forma crítica ou reflexiva, das identidades de gênero como performativas e adquirirem uma sensibilidade especial para a personificação (BABUSCIO, 1999; HALPERIN, 2013). Por causa disso, a atenção às superfícies e ao estilo são centrais em um olhar camp.

Enquanto Susan Sontag revelava o caráter do mundo como um teatro, um aspecto fundamental do camp, Fábio Cleto explora o caráter importante que o palco tem para os rompimentos normativos queer:

Temos visto que as condições para produzir um efeito camp são em geral a construção impermanente do palco teatral interpretativo e que essas condições também produzem o status de camp, compartilhando as mesmas premissas provisionais, performativas e processuais e acabando por se tornar uma arquitetura discursiva queer (instável, torcida, inorgânica) nômade, insubstancial e efêmera: em resumo, um efeito da performatividade. (CLETO, 1999CLETO, Fabio (org.). Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject. The University of Michigan Press. Ann Arbor. 1999., p. 32, tradução minha).

Estilização e performance no palco são características da carreira de Carmen Miranda, bem como de suas apropriações. É dos palcos que criou seus traços característicos, sejam indumentários como os turbantes e adereços, sejam os movimentos de suas mãos e cintura, facilmente reproduzidos. Carmen e seus personificadores poderiam mesmo acentuar tais ou quais aspectos de suas características, gerando efeitos cômicos, brincando com uma suposta autenticidade construída da artista. Vestir-se de Carmen revelou-se uma forma de explorar o mundo como um teatro, a identidade como uma paródia e a autenticidade como arbitrariedade. Neste sentido, trata-se de uma linguagem que se caracteriza por uma estreita afinidade com as teorizações queer que salienta o aspecto performativo das identidades.

Judith Butler (2003BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.) encontra na paródia um meio de subversão de normas identitárias, quando esta expõe a arbitrariedade social daquilo que se naturaliza por meio de discursos e práticas. Não se trata de qualquer paródia: “o deslocamento parodístico, o riso da paródia, depende de um contexto e de uma recepção em que se possam fomentar confusões subversivas” (BUTLER, 2003BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 198). Na lógica da autora, gênero é uma construção performativa que, portanto, não existe em estado natural ou original – é fruto da repetição estilizada, por sua vez regulada por normas sociais. Butler (2003) parte da descrição da personificação de Garbo de um texto muito anterior, de Esther Newton (1999NEWTON, Esther. “Mother Camp: Female Impersonators in America” In: CLETO, FABIO (org,). Camp: Queer Aesthetics and the Performing Subject: A Reader. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.), centrado na análise etnográfica do mundo drag do pós-guerra norte-americano. Neste espaço, a performance da incoerência é tida como um ponto central no palco, quando um sujeito de sexo anatômico masculino interpreta o feminino, enfatizando aspectos ambíguos de gênero, transformando o gênero de uma suposta prioridade ontológica em uma fabricação performativa.

A identificação do público homossexual com Carmen Miranda bem como sua identificação camp não ocorreu sem razões. Seu exagero, estilização e autoparódia produziu um distanciamento do estereótipo das mulheres latino-americanas ou desestabilizou ideias essencialistas de identidades, na visão deste público. Suas personagens estilizadas – que mantém a forma original da baiana com caracterizações distintas – ressaltavam a estilização como traço presente na construção de identidades e então sugerem a percepção intuitiva da construção cultural e arbitrária das identidades. Se Carmen Miranda poderia interpretar um papel e parodiar-se, por que outros não poderiam? Carmen Miranda não foi apenas objeto de apropriação por homens que a interpretavam, ela participou deste processo, ajudando vários atores a personificá-la e mesmo compareceu a uma das apresentações de Sascha Brastoff em um teatro, chegando a dizer que ele interpretava Carmen Miranda melhor do que ela (The Washington Post, 24 de maio de 1945, Proquest). Assim sendo, ela mostrou a determinadas audiências que Carmen Miranda era, na verdade, um papel.

O que a performance de Sascha Brastoff sinaliza é a possibilidade de uma linguagem deslocadora, compreendida apenas entre pares, que se utiliza dos meios de expressão mainstream para subvertê-los. Trata-se de uma leitura subversiva própria a uma experiência homossexual em uma sociedade heteronormativa, dentro de uma instituição chave da masculinidade heterossexual (as forças armadas) e por meio da divulgação do cinema hollywoodiano. Em outros termos, as próprias instituições que produzem a heteronormatividade estão abertas a sua subversão, não se tratando de um sistema fechado e imune a questionamentos.

Brastoff levou a sério o humor de Carmen e ao enfatizar o arbitrário cultural dos significados, colocou em questão a um só tempo os valores heteronormativos do cinema e das forças armadas, mesmo financiado por ambos. A figura do soldado transforma-se, para o riso daqueles que podiam decifrar seus códigos, em uma versão drag de Carmen Miranda. Sua interpretação em Winged Victory demonstra que experiências não normativas fizeram-se presentes de forma conotativa no cinema, criando possibilidades de subjetivação em desacordo com as normas sociais, atestando que a produção cultural mainstream também cria, mesmo que não intencionalmente, significados dissidentes (Conf. DOTY, 1993DOTY, Alexander. Making things perfectly queer: interpreting mass culture. University of Minnesota Press. Minneapolis, London, 1993.).

Considerações finais

Ao analisar o consumo como aspecto fundamental da trajetória de Carmen Miranda, meu intuito foi focalizar como a cultura de massas e a apreensão de seus significados são marcadas por ambiguidades e dissonâncias. Para além do que enfatizar a relação entre Carmen Miranda e as representações de brasilidade ou o estereótipo da latino-americana, busquei analisar como a interpretação dos seus sentidos é mais diversa e depende de sua recepção. Considerar os públicos como parte constituinte da construção da imagem midiática, significa compreender que eles “podem selecionar da complexidade da imagem, os significados e sentimentos, as variações, inflexões e contradições que funcionam para ele” (DYER, 2004DYER, Richard. Heavenly Bodies: Film Stars and Society. Routledge. London & New York. Second Edition. 2004., p. 04).

A construção semiótica de uma estrela do cinema tem uma lógica própria às engrenagens da indústria fílmica dentro de uma economia capitalista, muito embora não se restrinja a problemáticas econômicas. Carmen lidou em sua trajetória desde o Brasil com elementos marcantes nas representações nacionais e depois continentais, caracterizadas pela intersecção entre as categorias de gênero, raça e sexualidade. Da baiana à sua sobreposição pela latino-americana, Carmen a partir da repetição de elementos simbólicos com história própria, acaba por deslocá-los e dar-lhes novos sentidos. Sua recepção pelo público feminino e homossexual masculino permite focalizar o aspecto criativo e as possibilidades dissidentes das representações e identificações dentro da cultura de massas, invariavelmente marcadas pela multiplicidade e apropriações subversivas.

Como vimos, no contexto norte-americano, forjou-se uma imagem de Carmen Miranda a partir do estereótipo de latino-americana com um histórico no cinema hollywoodiano próprio a representações que a subalternizavam. Mas, como busquei abordar, a construção da imagem de Carmen Miranda não se tratou de algo passivo, mas contou com uma participação ativa da cantora, atriz e entertainer. Utilizando o conceito de performatividade (BUTLER, 2003BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.), é possível pensar a forma como por meio da repetição, estilização e humor, Carmen pôde alterar seus significados, muito embora dentro de certas limitações impostas.

Por meio de suas negociações com a imprensa e aparições públicas, seja em apresentações ou em sua vida particular, acabou por sedimentar significados diversos que se tornaram parte da iconografia brasileira e latino-americana. Dada a complexidade de universos e estratégias simbólicas com os quais a artista brasileira lidou, ela constituiu diferentes tipos de recepção, relacionadas com as experiências sociais que constituíam relações distintas com sua imagem e performances. A multiplicidade de sentidos que acionava, invadindo as vidas privadas via meios de comunicação de massa, permitia que fosse lida e fruída de diversas maneiras e por sujeitos distintos, constituindo-se como um ícone cultural paradigmático e transnacional.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2016
  • Aceito
    21 Set 2016
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