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Editorial

Este segundo número do volume 25 de 2017 marca, junto ao número já publicado, e ao n. 3, que deverá estar disponibilizado on-line em setembro do ano corrente, os 25 anos de publicação da Revista Estudos Feministas. Motivo de orgulho para a equipe de pesquisadoras do campo de estudos feministas e de gênero do Centro de Filosofia e Ciências Humanas e do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC, que vem editando esta publicação desde 1999, quando foi lançado o volume 7, números 1 e 2, em colaboração com o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ.

Tendo ampliado sua equipe, de modo a integrar colegas de outros Centros da UFSC e, também, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), a Revista tem recebido um número considerável e crescente de artigos, que revelam a nítida expansão do campo, sua ampla diversificação temática e institucional. Mesmo no atual contexto de alta visibilidade de uma onda conservadora que, no Brasil, vem atacando os avanços de direitos humanos, obtidos através das continuadas lutas de movimentos sociais, aprofundando as desigualdades e atingindo as populações mais vulneráveis, ao contrário do que se poderia esperar, as pesquisas continuam avançando, sinalizando a capacidade de resistência de autoras e de autores mobilizadas/os em torno da elaboração de novos enfoques e da formulação de novas questões teóricas e empíricas. Assim, em função da procura de publicação na REF por autoras/es de variadas formações, atuações e militâncias, apresentamos, neste número, uma grande variedade de artigos sobre uma diversidade de temas.

O artigo “La cadena sexo-género-revolución”, de Moira Pérez, que inicia esta edição da REF, reflete sobre as formas como as dicotomias homo/hetero, trans/cis, utilizadas Rcomo categorias de análise, não têm dado conta da complexidade das posições de sujeitos em algumas perspectivas dos estudos queer. A autora critica uma certa simplificação que tende a atribuir um caráter revolucionário, subversivo, ao que nomeia como cadena homo-tran-revolución, e um caráter de normalização e repressivo ao segundo termo do binômio, que denomina de cadena hetero-cis-represion, generalizações que podem dificultar a compreensão e visibilidade de posturas conservadoras no âmbito homo/trans, assim como possíveis posições subversivas e radicais na esfera hetero/cis.

As especificidades das negociações com os serviços de saúde por parte de um segmento vulnerável são contempladas no artigo de Juliana Vieira Sampaio e Idilva Maria Pires Germano. As autoras analisam o modo como travestis e transexuais interagem com as instituições de saúde, ressaltando suas compreensões sobre as práticas capazes de produzir a saúde. Através da realização de entrevistas com duas travestis e duas transexuais, elas investigam os itinerários construídos em busca de um corpo de acordo com o padrão de beleza feminino. As autoras concluem que suas demandas adquirem características próprias, envolvendo tanto uma ruptura com as regras médicas quanto uma margem considerável de risco pessoal, rompendo com as concepções implicadas nas práticas oficiais de assistência, que continuam operando numa lógica binária de sexo/gênero para planejar suas ações.

O artigo de Luís Antonio Bitante Fernandes, Águeda Aparecida da Cruz Borges e Rodolfo Pinheiro Bernardo Lôbo - “Travestilidade às avessas - a desconstrução de uma 'paródia' identitária” - também investiga a situação das travestis, mas se detém numa proposta mais ampla. Os/a autores/a problematizam as identidades de gênero mediante a análise das ambiguidades das performances desempenhadas por um homem, ou seja, por um corpo masculino que se traveste de mulher e que ora se recoloca como homem, a depender de situações do cotidiano. Inspirados/a nas contribuições da teoria queer, os/a autores/a interpretam as performances de travestimento como jogos de aparência que, por um lado, garantem a sobrevivência e, por outro, permitem a desconstrução dos estereótipos sobre a sexualidade.

Ricardo Andrade Coutinho Filho, em seu artigo intitulado “Sob o melhor interesse! Os ‘homoafetivos’ e a criança no processo de adoção”, traz reflexões sobre processos e habilitações de adoção “homoafetiva” pleiteados no município do Rio de Janeiro e o lugar da sexualidade neste processo. O pesquisador busca trazer respostas para uma série de interrogações, entre elas, a de fulcral importância: de que forma o princípio do “melhor interesse da criança” tem sido interpretado quando os requerentes são “homoafetivos”?

“Representações de docentes acerca da diversidade sexual e homofobia” é o título do artigo de Elaine de Jesus Souza, Claudiene Santos e Joilson Pereira da Silva. Através de uma pesquisa qualitativa, baseada no que denominam como análise de conteúdo temática e em corpus constituído de educadores/as de ensino fundamental e médio, mostram como surgem preconceitos sutis de homofobia no ambiente escolar e a necessidade daí resultante de urgentes ações pedagógicas para o reconhecimento da diversidade sexual.

O artigo “Masculinidades e docência na educação infantil”, de Angelita Alice Jaeger e Karine Jacques, apoia-se em uma pesquisa qualitativa e na perspectiva de gênero para entrevistar professores homens de educação infantil em três municípios gaúchos. Os entrevistados expõem às pesquisadoras os desafios que enfrentam na permanência do magistério, atuando nessa atividade construída para ser exercida por professoras mulheres. Constata-se, nas respostas e na análise feita nessa amostragem, que a docência masculina na educação infantil se sustenta pela resistência.

A preocupação com os discursos está presente no artigo de Anamaria Marcon Venson, "Tráfico de pessoas para exploração sexual? Uma análise de processos-crime (1995-2012)", que aborda a questão do tráfico de pessoas para exploração sexual, através da análise de alguns processos-crime investigados, processados e/ou julgados no Brasil em determinado espaço de tempo. Desenvolvendo suas reflexões fundadas nas categorias gênero, discursividade e processos de subjetivação, a autora interpreta os processos analisados como formas de combate à prostituição e às prostitutas.

Foram também incluídos nesse número novos artigos sobre questões de saúde que apontam para a necessidade de ajustes nas políticas da área. As práticas contraceptivas são objeto de análise de dois desses artigos. Rozeli Maria Porto e Cassia Helena Dantas Sousa investigam - em "'Percorrendo caminhos da angústia': itinerários abortivos em uma capital nordestina" - os angustiantes “itinerários abortivos” vivenciados pelas mulheres na busca de medicação capaz de provocar o aborto clandestino - no caso, Misoprostol/Cytotec - através da análise das relações entre usuárias de serviços de saúde pública e agentes mediadores na cidade de Natal, Rio Grande do Norte. Os resultados da pesquisa permitem uma compreensão de vários aspectos desses itinerários, incluindo a participação dos homens e das redes sociais.

Imbuídas de uma preocupação semelhante, Sabrina Pereira Paiva e Elaine Reis Brandão elaboram, em “Silêncio e vergonha: contracepção de emergência em drogaria do Rio de Janeiro”, uma etnografia sobre o processo de comercialização da contracepção de emergência no Rio de Janeiro. Entre outros aspectos, as autoras refletem sobre os constrangimentos causados pela visão discriminatória das balconistas de uma drogaria a respeito das mulheres que buscam o Levonorgestrel (CE), e que se refletem no silêncio e na vergonha das últimas, especialmente quando se trata de jovens pobres.

No artigo seguinte, “Silêncios nos discursos pró-aleitamento materno: uma análise na perspectiva de gênero”, Irene Rocha Kalil e Adriana Cavalcanti de Aguiar interpretam as Políticas de Aleitamento Materno, ressaltando a permanência da ênfase dos materiais divulgados na saúde da criança, em detrimento da incorporação do ponto de vista das mulheres a respeito dessa prática. As autoras concluem que entre a omissão e a construção de imagens estereotipadas, tanto a complexidade da amamentação quanto a do desmame acabam sendo silenciadas.

Os artigos a seguir também abordam diferentes temas, contribuindo para o debate a partir dos avanços dos estudos de gênero e das teorias feministas contemporâneas. Em “Negociaciones en familia: género, trabajo remunerado y cuidado en parejas de doble ingresso en Talca”, as autoras Verónica Gómez Urrutia, Oriana Arellano Faúndez e Cristina Valenzuela Contreras refletem sobre o fato de que a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, apesar de vir provocando significativas mudanças nas configurações familiares, não tem sido acompanhada de transformações importantes na divisão sexual do trabalho doméstico. A pesquisa realizada por elas no Chile mostra que, apesar de negociações que sugerem padrões de organização familiar baseados em igualdade de gênero, persistem as divisões tradicionais dos trabalhos de cuidados no lar como encargos das mulheres.

Em “Mulheres camponesas, discursos e práticas para outro desenvolvimento”, Adriana Samper-Erice e Flávia Charão-Marques, analisando documentos do Movimento de Mulheres Camponesas e observando práticas de mulheres participantes do MMC em pesquisa etnográfica realizada em Farmacinha da Solidão, no Rio Grande do Sul, constatam as discrepâncias do discurso sobre desenvolvimento produzido pelo MMC, em relação aos princípios norteadores propostos pelas agências de desenvolvimento. O discurso construído pelo MMC apresenta singularidades e articula ao tema do desenvolvimento a proposta de um feminismo camponês que problematiza a questão dos cuidados.

Em artigo com o sugestivo título de “‘Mulher é trem ruim’: a ‘cozinha’ e o ‘sistema’ em um povoado norte-mineiro”, Ana Carneiro procura mostrar, fundada em pesquisa que realizou em Amoeiros, no Sertão de Minas Gerais, como as práticas das mulheres no preparo da comida e nos afazeres da casa promovem uma experiência cotidiana de interações que colocam em continuidade processos sociais e fisiológicos. Para a autora, as práticas femininas relacionadas à cozinha e a preocupação das mulheres do povoado com os acontecimentos do corpo são centrais para a maneira como as relações sociais são concebidas. A expressão local “mexida de cozinha” fala de um modo de intervenção, ritmo e movimento das mulheres em suas cozinhas, nas inter-relações com as pessoas que por ali transitam, que dão forma a um modelo que os amoerenses chamam de “sistema do povo” e que a autora caracteriza como um sistema social.

Graziele Dainese, no artigo “Os casos e o gênero: acontecimentos da moralidade camponesa”, em pesquisa realizada na localidade de Terceira Margem, no estado de Minas Gerais, analisa aspectos da moralidade camponesa. Através das narrativas de “casos” extraconjugais vivenciados por habitantes da comunidade, que se dedica principalmente às atividades rurais, a autora reflete sobre casamento, “caso”, paixão, descontrole, família, gênero.

As trajetórias de vida das empregadas domésticas e cuidadoras que trabalham em Buenos Aires é o tema abordado pela pesquisadora Natacha Borgeaud-Garciandía no artigo “Trayectorias de vida y relaciones de dominación. Las trabajadoras migrantes en Buenos Aires”. A autora analisa as implicações da sua condição de migrante no contexto da divisão do trabalho, destacando as articulações entre sexo, raça e classe na configuração das relações de dominação.

Na sequência, no artigo “Mmmmm”, Claudia Montero se dedica a analisar três publicações feministas chilenas dos anos 1930 (Nosotras, Acción Femenina y La Mujer Nueva), com vistas a uma compreensão do impacto das imagens sobre a mulher que emergiram na Segunda República espanhola e na guerra civil espanhola, sobre a elaboração dos discursos feministas no Chile entre os anos 1930 e 1940.

“Psicologia: profissão feminina? A visão dos estudantes de Psicologia”, de Raiza Barros de Figuerêdo e Fatima Maria Leite Cruz, apresenta o resultado analítico de uma roda de conversa com estudantes do penúltimo ano do Curso de Psicologia em uma universidade pública do estado de Pernambuco. Apoiadas nas teorias da Enunciação e das Representações Sociais, as autoras buscam mapear os preconceitos que cercam a profissão, a ênfase na noção de cuidado atribuída ao feminino e a consciência dessas questões para o pensamento crítico.

Com a pergunta “Como adolescentes apreendem a ciência e a profissão de cientista?”, Gabriela Reznik, Luisa Medeiros Massarani, Marina Ramalho, Maria Ataide Malcher, Luis Amorim e Yurij Castelfranchi desenvolvem o artigo a partir de um movimento de pesquisa empregando a técnica de discussões em grupos focais com alunas do segundo ano do Ensino Médio, motivadas por dois programas televisivos brasileiros, Jornal Nacional e Fantástico. A pesquisa mostra como se dá a visão da ciência para ambos as adolescentes e as/os autoras/es concluem que não há diferença marcante na percepção da atividade científica das adolescentes de diferentes contextos sociais.

A compreensão das relações entre tecnologia e as apropriações que a sociedade faz dela são tema do artigo “Investigando questões de gênero em um curso da área de Computação”, de autoria de Marília Abrahão Amaral, Maria Claudia Figueiredo Pereira Emer, Silvia Amélia Bim, Mariangela Gomes Setti e Marcelo Mikosz Gonçalves. A pesquisa se sustenta em teorias, pesquisas e iniciativas de classe sobre questões de gênero e no mapeamento do trajeto das alunas entrevistadas com o objetivo de apontar motivações, dificuldades, facilidades e expectativas, tanto no ingresso quanto no transcorrer curricular de um Curso de Bacharelado em Sistemas de Informação (BSI), curso predominantemente e historicamente masculino - em uma universidade pública brasileira.

Dois ensaios compõem a seção Ponto de Vista, reforçando as reflexões desenvolvidas em artigos anteriores: “Queer na primeira pessoa: notas para uma enunciação localizada”, de Daniel Lourenço, e “Zonas de clandestinidad y ‘nuda vida’: mujeres, cuerpo y aborto”, de Barbara Sutton. Daniel Lourenço desde o resumo recorre à teoria feminista e à teoria queer contemporânea para enunciar o papel da subjetividade e da corporalidade na constituição de conhecimentos e significados queer e das condições que daí surgem no pensamento crítico. Assume o seu texto como uma contribuição para um modelo alternativo de prática crítica. Por sua vez, Barbara Sutton explora a concepção de zonas de clandestinidade e as noções de política do corpo e de poder soberano do Estado no contexto da Argentina, tanto na ditadura quanto na democracia. Apoia-se nas teorias de Giorgio Agamben e Penelope Deutscher para procurar entender formas como as mulheres são constituídas como vidas nuas, despojadas de direitos básicos.

A seção Debate “O Antropoceno, o pós-humano e o novo materialismo”, organizada por Claudia de Lima Costa e Susana Bornéo Funck, traz relevantes intervenções para a discussão de temas atuais e inovadores nas teorias feministas. O artigo “Feminismos transcorpóreos e o espaço ético da natureza”, de Stacy Alaimo, em excelente tradução de Susana Funck, serve de provocação ao debate, introduzindo conceitos que vêm alterando as teorias e políticas feministas na atualidade. Com novos olhares para a natureza ambiente ou mais-que-humana, a autora se posiciona pelo apagamento dos dualismos marcados pelo gênero que, segundo dizeres das apresentadoras, contribuem para silenciar e diminuir grupos humanos e a vida não humana. Segue-se o artigo de Izabel Brandão que, a partir da reflexão sobre as contribuições de Alaimo para a pesquisa feminista, discute a relação entre ecofeminismo e feminismo material, ou justiça ambiental. Hanna Meissner, por sua vez, tendo como preocupação central as políticas dos novos materialismos feministas, enfatiza a consideração à agência e historicidade do material que estes materialismos buscam articular. O texto de Melina Savi discute o conceito de Antropoceno, era em que as intervenções humanas são tão extremas para o planeta, que o ser humano passa a se constituir numa força geológica. Os artigos enfatizam a questão da responsabilidade ética nas relações inter e intraespécies.

Com a publicação de resenhas, disponibilizamos este novo número da revista, desejando a todas/os boas leituras e reflexões

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017
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