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“Mulher é trem ruim”: a “cozinha” e o “sistema” em um povoado norte-mineiro

“Woman is a Bad Thing”: the “Kitchen” and the “System” of a People in the Sertão of Minas Gerais

Resumo:

Neste artigo, mostra-se como, em um povoado no Sertão de Minas Gerais, as práticas femininas de “mexida de cozinha” implicam um conhecimento específico sobre o corpo, particularmente sobre o “sangue”, que é central para a vida social e cosmológica daquele povo. Como sugere a expressão local “mexida de cozinha”, há, no preparo da comida e na administração da casa, uma experiência diária de intervenção, por parte da mulher, sobre interações vitais e transformadoras do corpo. Argumento que isto coloca em continuidade processos sociais e fisiológicos, dando forma a um modelo nativo de “sistema social”.

Palavras-chave:
Cozinha; Comida; Corpo; Sertão; Minas Gerais

Abstract:

In this article, I show how, in a backwoods town of Minas Gerais, the women’s management practices in the kitchen and their worry about events of the body are central to the way in which social relations are conceived. I suggest that the local expression “mexida de cozinha” (kitchen’s business and kitchen’s movement) reveals a mode of action and movement that put on continuity physiological and social processes. The matter of food offers then a peculiar way of thinking about the social system.

Key words:
Body; Food; Ethnographic concept; Sertão

O sistema da casa

Estaria a mulher para a natureza assim como o homem está para a cultura? A questão colocada por Sherry B. ORTNER, em 1979ORTNER, Sherry B. “Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?”. In: ROSALDO, Michelle; LAMPHERE, Louise (Coords.). A Mulher, a cultura, a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. apontava para um atrelamento inextricável entre a identidade feminina e suas funções fisiológicas, especificamente aquelas ligadas ao aparelho reprodutivo, incluindo a lactação (que faria da mulher uma escrava das funções maternas, aprisionando-a ao ambiente doméstico). Para a autora, isto implicaria uma maior proximidade da mulher em relação à natureza, enquanto o homem, liberado de tais funções, estaria livre para construir, criar entes eternos (e não perecíveis, como os humanos gerados pelas mulheres). Tudo isto, argumentava Ortner, faria com que um dado universal (o corpo feminino) fosse apropriado, nas diversas culturas, como símbolo de uma inferioridade da mulher. A dominação masculina seria, portanto, um dado universal.

Até hoje - uma importante fonte de inspiração nos debates acadêmico e militante - este argumento começa a perder força quando o próprio corpo, morada da natureza, passa a ser questionado como categoria infracultural, dado irredutível. Cada vez mais antropólogas e antropólogos buscam evitar afirmações fundadas na natureza; estamos, afinal, num mundo “pós-teconologias reprodutivas”, “pós-natureza”. Enfim, não podemos mais falar “after nature” (em nome da natureza), já que nos encontramos “after nature” (depois do fim da natureza como categoria conceitual) (cf. Marilyn STRATHERN, 1992STRATHERN, Marilyn. After Nature: English Kinship in the Late Twentieth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.). A questão vem sendo recolocada não apenas em estudos voltados para as novas tecnologias reprodutivas, mas, também, com base em extensos dados etnográficos de melanesistas e americanistas: o que é um corpo?, pergunta-se (cf. Tania Stolze LIMA, 2002LIMA, Tania Stolze. “O que é um corpo?”. Religião e Sociedade, v. 22, n. 1, p. 09-20, 2002.; Maurice LEENHARDT, 1979LEENHARDT, Maurice. Do Kamo: Person and Myth in the Melanesian World. Chicago: Chicago, University Press, 1979. [1947] [1947]; Aparecida VILAÇA, 2005VILAÇA, Aparecida. “Chronically Unstable Bodies: reflections on Amazonian Corporalities”. The Journal of Royal Anthropology Institute, v. 11, n. 3, p. 445-464, set. 2005., entre outros). No mundo ocidental, ou euro-americano, os deslocamentos da noção de “Natureza” vêm rendendo análises definidoras, com sérias implicações para a análise social, como as de Michel Foucault (1999FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999.) e, mais recentemente, por exemplo, Judith Butler (2002______. “Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler”. Revista Estudos Feministas, n. 1, p. 155-167, 2002.; 2003______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.; 2007BUTLER, Judith. “Condição humana contra ‘natureza’”. Revista Estudos Feministas, v. 15, n. 3, p. 647-662, set.-dez. 2007. [Entrevista à Adriana Cavero]).

Neste artigo, mostrarei como, em Amoeiros, localidade ao norte de Minas Gerais, as práticas femininas relacionadas à cozinha e a preocupação das mulheres com os acontecimentos do corpo são centrais para a maneira como as relações sociais são concebidas. Mais do que isto, como sugere a expressão local “mexida de cozinha”, há um modo de intervenção, ritmo e movimento da mulher em sua cozinha que colocam em continuidade processos fisiológicos e sociais. Podemos dizer, assim, que esta “mexida” é parte constitutiva do que os amoerenses chamam “sistema” e traduzem por “modos de comer e de conversar”, isto é, os modos que identificam e diferenciam pessoas, povos, famílias.

Os estudos antropológicos sobre a função da comensalidade no sistema social destacam, invariavelmente, sua dimensão agregadora; a comida, quando tratada em sua dimensão sociológica, serve com facilidade às análises sobre identidade cultural e pertencimento social em um grupo determinado. A maneira de comer, o preparo, as preferências de paladar, tudo isto indica processos específicos de aprendizado, tão incorporados ao comportamento humano que, como escreveu Sidney MINTZ (2001MINTZ, Sidney. “Comida e antropologia: uma breve revisão”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo/Anpocs, v. 16, n. 47, p. 31-42, 2001.), “revela repetidamente a cultura em que cada um está inserido”1 1 Mintz (2001) afirma que poucos estudos trataram a comida como elemento central e destaca como exceção o trabalho de Audrey Richards (1948 [1935]), e, em certa medida, o de Rosemary Firth (1966 [1943]). Recentemente, uma série de estudos traz o tema para o primeiro plano, sob o viés do debate sobre “identidade cultural” (cf. Sangmee BAK, 1997; Daniel BITTER e Nina Pinheiro BITAR, 2012; Ana Maria CANESQUI, 1988; CAVALCANTI et al. [2012]; Sophie COE, 1994; Carol M. COUNIHAM & Steven L. KAPLAN, 1998; Jack GOODY, 1982; Carola LENTZ, 1999; MINTZ, 2001; Ehmiko OHNUKI, 1993; César SABINO, Madel LUZ e Maria Cláudia CARVALHO, 2010, entre outros). (p. 33). Entretanto, apesar do lugar quase sempre central - quando não exclusivo - da mulher nas práticas ligadas à comida e à sua importante “função social”, o feminino - quando associado às práticas de conhecimento do corpo - costuma ser observado conforme sua natureza submissa e destrutiva das relações sociais, corroborando variadas etnografias e trabalhos de cunho historiográfico onde certas práticas tipicamente femininas antagonizam os modelos desejados de relação social e são associadas a um comportamento cultural “menor”: o das intervenções maléficas sobre os corpos de outrem - grosso modo, o feitiço, bruxaria, a magia (por ex., Daniela Buono CALAINHO, 2012CALAINHO, Daniela Buono. “Magias de cozinha: escravas e feitiços em Portugal - séculos XVII e XVIII”. Cadernos Pagu, n. 39, p. 159-176, jul.-dez. 2012.; Jules MICHELET, 1989MICHELET, Jules. A feiticeira. São Paulo: Círculo do Livro, 1989.; Luiz Henrique PASSADOR, 2010PASSADOR, Luiz Henrique. “‘As mulheres são más’: pessoa, gênero e doença no sul de Moçambique”. Cadernos Pagu , n. 35, p. 177-210, jul.-dez. 2010.; Paola Basso M. B. Gomes ZORDAN, 2005ZORDAN, Paola Basso M. B. Gomes. “Bruxas: figuras de poder”. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 2, p. 331-340, mai.-ago. 2005.).

Responsável pela cozinha e pela procriação humana, elas são - na literatura acadêmica sobre o tema - reconhecidas como detentoras de saberes específicos da etiologia e da saúde dos corpos, o que, entretanto, mais do que atestar sua autoridade social, parece associá-las a uma imagem ameaçadora e moralmente ambígua, atribuindo-lhes um valor negativo para a constituição do “social”. Algumas etnografias, contudo, têm buscado explorar a positividade destes aspectos femininos temerários, colocando-os no centro da análise sociocultural.2 2 A análise de Passador (2010) sobre um povo no sul de Moçambique é um exemplo interessante. Ele apresenta a importante função sociológica feminina nas relações sociais como um todo, oferecendo várias pistas sobre a dimensão positiva do conhecimento feminino. Este é, também, o caminho que proponho seguirmos aqui, mostrando como as práticas de cozinha e sua articulação com os acontecimentos do corpo são uma importante chave de entendimento das relações sociais naquele contexto.3 3 Os nomes de lugares e pessoas citados neste artigo são fictícios.

Amoeiros constitui-se de 40 casas espalhadas em meio a uma área de veredas e cerrado, no município de Chapada Gaúcha, ao norte de Minas Gerais. Como a maioria dos povos que habita o município, majoritariamente rural, os amoerenses são agricultores familiares e estão ligados entre si por laços de parentesco (descendência e/ou afinidade). O nome do município remete a uma história de ocupação demográfica e econômica. Fundado em 1995, Chapada Gaúcha foi a consequência política da chegada de imigrantes vindos do sul, os “gaúchos”, no final dos anos 70, estimulados por um programa de assentamento do Governo Militar, quando a pequena vila começou a se formar até se tornar o que é hoje, uma cidade de oito mil habitantes rodeada por grandes áreas de monocultura de soja e capim. Replica-se, assim, no nível local, uma tensão própria ao debate público no plano da política nacional: a oposição histórica entre o desenvolvimentismo modernizante, representado pelos “gaúchos” (grandes proprietários vindos do sul), e a cultura sustentável dos “povos do cerrado”.4 4 Sobre este contexto etnográfico, conferir Carmen Silvia Andriolli (2011); Luiz Felipe Rocha Benites (2010); Christine Chaves (2003); Cloude de Souza Correia (1999; 2002); Beatriz Heredia, Moacir Palmeira e Sergio Leite (2010); Andrea Borghi Moreira Jacinto (1999); Bernardo Novais da Mata-Machado (1991); Camila P. Medeiros (2011); Maria Dione de Carvalho Moraes (2000); Margarida Maria Moura (1988); Mônica Celeida Rabelo Nogueira (2009); Luzimar Pereira (2012); Eduardo Ribeiro (2010); Flávia Aparecida Andrade Souza (2006).

Na linguagem amoerense, fala-se muito das diferenças entre o “sistema dos gaúchos”, o “sistema do povo antigo”, o “sistema da roça”, o “sistema dos mineiros” e daí por diante. Em suma, “sistema” é um termo distintivo, um termo de diferenciação que poderíamos traduzir, na linguagem sociológica, por “sistema social”. Tal tradução guarda, contudo, alguns equívocos, pois não se trata, em Amoeiros, de um conjunto (o “social”) de partes integradas (a “diversidade sociocultural”). Os sistemas de casas, pessoas e povos não formam um mosaico de conjuntos diversos e contíguos, mas, sim, uma plasticidade de relações de diferença e semelhança, de parciais distinções e sobreposições. O “sistema” consiste antes em conjuntos instantâneos, constituídos por certo circuito de conversa e comensalidade. O “povo da roça” pode ser ou não ser sinônimo do “povo mineiro” ou “antigo”, por exemplo. Eventualmente, uma moça mineira será incorporada ao “sistema gaúcho” ao se casar com um deles. Assim, se o sistema é o mesmo que “modo de comer e de conversar”, como formulam os amoerenses, ele é, em última análise, “o sistema da casa”, ou da “cozinha” metonimicamente.

O sistema da casa corresponde à mexida de cozinha da dona da casa: o tempo, o modo, a quantidade e a qualidade da comida e de seu preparo; as pessoas que por ali circulam, quanto tempo ficam, o que conversam, quando e quanto se animam, se ajudam ou não a “lavar as vasilhas”. Ao mesmo tempo, como uma metalinguagem, na cozinha, o assunto é sobre a mexida de cozinha das outras casas: quem circulou na casa de quem e que modo da relação foi engendrado ali. Estas informações são objeto de interesse da conversa prosaica, diária; assim “falam dos outros”, assim ficam “sabendo do povo”.

As casas em Amoeiros são espaçadas por cerrado, veredas, córregos, rios, roças e pastos. A circulação das pessoas entre as casas mais próximas é diária; entre as mais distantes, a frequência depende de quanto se é “chegado”. Mas o fato é que a mulher, entre a cozinha e o terreiro, vê chegar, ao longo do dia, os parentes próximos que por ali repousam para assuntar e jogar dois dedos de prosa. Às vezes, é só um alô; às vezes, o chegante molha a boca com café. E se um “de-comer” é servido, a prosa rende, puxando mais oferta de comida. Decerto a dona da casa sentirá orgulho ao ver o povo “barulhando” em sua casa. Se o povo é “prosa ruim”, a dona esconde o biscoito e deixa o café velho na garrafa, sequer há de passar um café fresco. Quando a prosa “não dá bem”, o “de-comer” tampouco circula. Este é o “sistema”. Pode-se dizer, por exemplo, que uma dada família é “sistemática” porque, em sua casa, a circulação de prosa e comida é condicionada por julgamentos rigorosos em relação aos “de fora”.

Uma aproximação interessante merece ser feita, também, entre a concepção amoerense de “sistema” e o que se chama, na literatura acadêmica especializada, de “sistema alimentar”. Entendido como certo sistema de produção, distribuição e consumo de alimentos, relações a um só tempo econômicas e culturais (cf. MINTZ, 2001MINTZ, Sidney. “Comida e antropologia: uma breve revisão”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo/Anpocs, v. 16, n. 47, p. 31-42, 2001.), tal sistema aproxima-se do que, em Amoeiros, chamam “sistema” ou “modo de comer e de conversar”. Mas não se trata exatamente da mesma coisa, e as diferenças são, aqui, fundamentais.

Se a mulher é, para todos os efeitos, “a dona da casa”, isto lhe concede, evidentemente, uma respeitabilidade consensual, reafirmada sempre que necessário. Por outro lado, o homem é lembrado como “dono” quando se trata de falar da “propriedade”, ou seja, de um sistema fundado em determinado circuito de produção e consumo, tal qual o “sistema alimentar” do qual nos falou Mintz. Fundado numa perspectiva econômica, o “sistema alimentar” reage aos sinais de desequilíbrio - seja a escassez ou o excesso de produção alimentícia, por exemplo -, buscando se adequar para encontrar certo equilíbrio entre produção e consumo. O “sistema” de Amoeiros, ao contrário, parece desejar o risco do desequilíbrio.

A “mexida de cozinha” é uma prática de conhecimento no sentido de que intervém e fala sobre os acontecimentos do corpo - o nascimento, o amor, a doença, a morte. O problema todo é que a mesma comida que cura pode matar, basta que a cozinheira seja uma boa rezadeira - o que não é raro - e queira intervir sobre a vida de quem comerá da sua comida. Ao seu fazer culinário, ela acrescentará algumas palavras poderosas e oferecerá, sem que ninguém o saiba, “comida posta”, “comida benzida”, “comida rezada”.

Se esta dubiedade implícita da prática feminina reduz-se, em muitas análises, à evidência de um valor moral negativo, isto resulta na ideia de um sistema social no qual o homem assume posição hierárquica sobre a mulher. Com isto, a agência feminina, definida como elemento desestabilizador, submeter-se-ia à agência cultural e socialmente produtiva, idealmente masculina. Noutras palavras, a rotina doméstica, embora importante para a reprodução e criação humanas, não ocuparia lugar central na forma como a sociedade se organiza. Esta estaria definida de modo determinante pelo que acontece no “espaço público”, “domínio” dos homens.

E se encararmos tal dubiedade não como um traço cultural de marcação de gênero, mas como aspecto central das formas de viver e pensar de Amoeiros? Por esta perspectiva, a agência feminina deixa de ser um elemento puramente desestabilizador ou “antissocial”, para ser observada nos termos de uma prática de conhecimento fino das relações humanas. Nesta abordagem, a análise social não se separa da perspectiva cultural ou cosmológica, e a cozinha nem sempre se separa do espaço público.

A “mexida de cozinha” fala sobre “misturas” de “comidas” e, também, de “pessoas”, de “sangue” - utilizando, em todos os casos, uma lógica e um vocabulário comuns. Neste sentido, o corpo é matriz de significados sociais e é objeto de pensamento. A exemplo do que propuseram Anthony SEEGER, Roberto DA MATTA e Eduardo VIVEIROS DE CASTRO (1979SEEGER, Anthony; DA MATTA, Roberto e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”. Boletim do Museu Nacional, Rio de Janeiro: PPGAS-MN/UFRJ, n. 32, mai. 1979.) no clássico artigo sobre as sociedades indígenas sul-americanas, a experiência corpórea amoerense não é uma experiência infrassociológica. Há, em Amoeiros, como nos povos vizinhos, uma fisiológica dos fluidos corporais e dos processos de comunicação do corpo que subjaz às variadas formas de qualificação das relações pessoais estabelecidas ali. Podemos, por este caminho, falar, aqui, de uma “fisio-lógica” que é, também, uma “sócio-lógica”.

Diversas etnografias sobre campesinato mostram ricas classificações alimentares.5 5 Cf., entre outros, George Foster (1976); Mariza Peirano (1975); Josiane C. Weidig, Viviane S. Martins e Renata Menache (2008); Woortmann (2008). Em algumas delas, as concepções nativas de corpo e pessoa tornam-se especialmente visíveis quando investigadas sob a perspectiva de gênero, mas a atenção dada, por exemplo, às ocorrências etnográficas de um “sistema quente/frio” ligado a concepções de alimento, corpo e gênero não chegou a inspirar muitas interrogações sobre o lugar das práticas femininas no sistema social pensado em sua “totalidade”. Talvez porque a própria ideia de totalidade - a do modelo holista, hoje pouco persuasivo, das “comunidades camponesas” - subentendia a posição de gênero como uma “parte do todo”. Nos estudos sobre “campesinato”, a oposição entre o “espaço doméstico”, essencialmente feminino, e o “espaço fora da casa”, masculino, tendeu a uma equivalência entre as atividades masculinas e o “mundo social”, sendo este entendido como espaço “fora da casa”.6 6 Muitas vezes, esta tendência não é explicitada ou, nem mesmo, assumida pelo autor, mas se dá a ver em “atos-falhos” descritivos. Um bom exemplo é a bela etnografia realizada na área rural de São Luis do Paraitinga-SP, de Carlos R. Brandão (1995), onde a descrição das divisões do espaço doméstico e sua relação com o “fora” é feita sob o viés da divisão de gênero. O autor argumenta que o homem é o “mediador” entre o dentro e o fora da “casa”. Assim, para um homem, crescer significa também sair de casa, ultrapassar os limites do quintal, […] Cedo a menina começa a ‘ajudar a mãe em casa’, onde ela fica […]” (BRANDÃO, 1995, p. 188). As duas formas de “socialização” correspondem, assim, a um ultrapassar os limites da casa, para o homem, e “ficar”, para a mulher. Se, ao invés disto, notarmos, como proponho, que os lugares da casa são organizadores dos espaços “fora” da casa (inclusive a configuração de casas que forma o “povo” ou a “comunidade”), notaremos que a transformação da “moça” em “mãe-e-esposa” consiste não em “ficar” na casa, mas, sim, em uma “ultrapassagem” radical, a da cozinha de sua mãe e a rede de posições e relações sociais criadas neste lugar. Em Amoeiros, ao tornar-se “dona” de uma nova cozinha, a esposa recém-casada é responsável pela criação de um novo circuito de sociabilidade, o que reconfigura a totalidade das relações de força no povoado, dentro e fora das casas (Para aprofundar este argumento, cf. CARNEIRO, 2015; 2014; 2013; 2009). Assim, a comida e a cozinha puderam ser pensadas como temas relevantes apenas à medida que descreviam a comensalidade, isto é, a “produção de sociabilidade” (cf. Viviane Kraieski de ASSUNÇÃO, 2009ASSUNÇÃO, Viviane Kraieski de. “Alimentação e sociabilidade: apontamentos a partir e além da perspectiva simmeliana”. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, EDUFSC, v. 43, p. 523-535, out. 2009.; George SIMMEL, 2004SIMMEL, George. “Sociologia da refeição”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 33, p. 159-166, jan.-jun. 2004. [1910] [1910]), deixando de lado a intimidade do “corpo” e, com isto, aquilo que seria, para Claude LÉVI-STRAUSS (1964LÉVI-STRAUSS, Claude. Le cru et le cuit. Paris: Plon, 1964.; 1965______. “Le Triangle Culinaire”. In: L’Arc, n. 26, p. 19-29, 1965.), o cerne do problema: a cozinha como lugar de encontro entre natureza e cultura.

Inversamente, na esteira da crítica feminista dos anos 70, muito já foi dito e escrito sobre outros contextos etnográficos, com destaque para a Melanésia, onde se destacou o problema que esta abordagem apresenta ao tomar uma parte, a experiência de gênero masculina, pelo todo, o sistema social (cf. Donna HARAWAY, 1985HARAWAY, Donna. “A Manifesto for Cyborg: Science, Technology and Socialista Feminism in the 1980’s”. Socialist Review, n. 80, p. 65-107, 1985.; STRATHERN, 2006______. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Unicamp, 2006. [1988] [1988]).

O debate parece não ter repercutido muito nos estudos sobre “comida” e “corpo” em contextos de “roça”, onde o assunto da cozinha veio se mantendo, de modo geral, apartado do que se considera central numa sociedade (MINTZ, 2001MINTZ, Sidney. “Comida e antropologia: uma breve revisão”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo/Anpocs, v. 16, n. 47, p. 31-42, 2001.). Se for possível falar de uma grande narrativa do “campesinato”, nela, as experiências corporais vêm sendo silenciadas como se não tivessem peso significativo para os povos estudados (cf. Paulo Rogers FERREIRA, 2008FERREIRA, Paulo Rogers. Os afectos mal-ditos: o indizível nas sociedades camponesas. São Paulo: Anpocs/Hucitec, 2008.). Se o próprio termo “campesinato”, com toda a pauta de questões que ele um dia implicou, vem caindo em desuso (cf. Mauro William Barbosa de ALMEIDA, 2007), podemos questionar em que medida o enfraquecimento de uma “narrativa do campesinato” se articula à inabilidade desta em incorporar certos temas, já que veio encarando o espaço da cozinha como se este estivesse literalmente encerrado entre quatro paredes, ausente do interesse “público” e da “produção social”.

Como formulou Mintz (2001MINTZ, Sidney. “Comida e antropologia: uma breve revisão”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo/Anpocs, v. 16, n. 47, p. 31-42, 2001.), todos concordam que “a comida e o comer [...] assumem posição central no aprendizado social por sua natureza vital e essencial, embora rotineira” (p. 31-32 [grifo meu]). Esta formulação nos deixa entrever o que o autor mais abaixo diagnostica como razão para a falta de monografias onde a comida assuma um lugar central na sociedade descrita. “Talvez porque a comida e sua preparação fossem vistas como trabalho de mulher [...]; ou porque o estudo da comida fosse considerado prosaico [...]” (MINTZ, 2001MINTZ, Sidney. “Comida e antropologia: uma breve revisão”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo/Anpocs, v. 16, n. 47, p. 31-42, 2001., p. 32). Sugiro que as duas causas especuladas seriam, na verdade, uma só. O trabalho da mulher, prosaico e rotineiro, não vinha sendo considerado central para a sociedade. Se confundirmos o “sistema alimentar” com o “sistema da casa”, corremos o risco de projetar, sobre este último, a definição de um conceito de “sociedade” exógeno. O “de-comer” amoerense oferece-nos, assim, como objeto antropológico, uma maneira peculiar de se pensar o “sistema social”.

A observação generalizante que acabo de fazer sobre o lugar da cozinha nos estudos de campesinato é deliberadamente enviesada e não faz justiça aos trabalhos que se desviam dessa tendência. Vale ressaltar, portanto, que o “sistema” amoerense, centrado na cozinha, reverbera uma série de outros estudos, realizados em diversos contextos etnográficos de base rural, que têm em comum o fato de descreverem os “mundos sociais” observados a partir do tema da hospitalidade (cf. Michael HERZFELD, 1987HERZFELD, Michael. “‘As in Your Own House’: Hospitality, Ethnography, and the Stereotype of Mediterranean Society”. In: GILMORE, David D. (Ed.). Honor and Shame and the Unity of the Mediterranean. Washington, n. 22, American Anthropological Association, 1987, p. 75-89.; Julian PITT-RIVERSPITT-RIVERS, Julian. “The Law of Hospitality”. Hau: Journal of Ethnographic Theory, v. 2, n. 1, p. 501-517, 2012. [1977], 1995; Louis H. MARCELIN, 1996MARCELIN, Louis H. L’Invention de la famille Afro-Americaine. Famille, Parenté et Domesticité parmi les Noirs du Recôncavo da Bahia, Brésil. 1996. Tese (Doutorado) - PPGAS, Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro., PASSADOR, 2010PASSADOR, Luiz Henrique. “‘As mulheres são más’: pessoa, gênero e doença no sul de Moçambique”. Cadernos Pagu , n. 35, p. 177-210, jul.-dez. 2010.). Recentemente, o tema da hospitalidade é retomado no mesmo caminho proposto aqui como chave analítica capaz de conectar múltiplas dimensões da vida social e cosmológica (cf. Catherine ALLERTON, 2012ALLERTON, Catherine. Potent Landscapes. Place and Mobility in Eastern Indonesia. Honolulu: University of Hawaii Press, 2013.; Matei CANDEA, 2012CANDEA, Matei. “The Return to Hospitality”. Journal of the Royal Anthropological Institute, v. 18, n. 1, p. 1-19, 2012.; Janet CARSTEN, 1997CARSTEN, Janet. The Heat of the Hearth. The Process of Kinship in a Malay Fishing Community. Oxford: Claredon Press, 1997.; John COMERFORD, Ana CARNEIRO & Graziele DAINESE, 2014COMERFORD, John; CARNEIRO, Ana; DAINESE, Graziele (Orgs.). Giros etnográficos em Minas Gerais: conflito, casa, comida, prosa, festa, política e o diabo . Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015.; DAINESE, 2011DAINESE, Graziele. Chegar ao cerrado mineiro: hospitalidade, política e paixões. 2011. Tese (Doutorado) - PPGAS, Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro. e 2014; Nancy MUNN, 1992MUNN, Nancy. The Fame of Gawa. A Symbolic Study of Value Transformation in Massim Society. Durham: Duke University Press Books, 1992.; Andrew SHRYOCK, 2012SHRYOCK, Andrew. “Breaking Hospitality Apart: Bad Hosts, Bad Guests, and the Problem of Sovereignty”. Journal of the Royal Anthropological Institute , p. 20-33, 2012.).

Amor e dor: acontecimentos do corpo

Dona Amorosa suspirou, irônica, dizendo a Antônio Velho, tio de seu marido: “Mulher é trem ruim!”. Com esta frase, ela falava sobre o sofrimento feminino, mas fingia não discordar do velho, que acabara de reclamar da “cabeça fraca” de sua ex-nora. Em seguida, ela emendou: “Mulher nasce é para sofrer, a gente nasce é para o que é”. Inseriu, assim, a sugestão de que a mulher, ao invés de fazer ruindade, é quem sofre ruindade. Dessa forma, nós, boas entendedoras presentes na ocasião, saberíamos que havia, ali, uma “quase-ofensa”, entredita contra as opiniões do velho, dono da casa onde nos encontrávamos.

Os cuidados de resguardo objetivam, sobretudo, proteger a cabeça das mulheres. Nessas épocas de mulher, todos sabem que “a cabeça fica fraca”. Por exemplo, elas não podem comer “comida remosa”, que é “forte”, nem fazer “serviço pesado”, isto é, quase tudo que é “serviço da casa”. “Pegar friagem” também não podem; lavar o cabelo só depois de findada a quarentena. Hoje, “as moças não respeitam muito”, reclamam as mais velhas. “De primeiro o povo era muito sistemático”, contam-me elas, “a mulher recém-parida nem botava o pé fora da cama”. As moças novas relativizam, acham que “é cisma”, mas nem por isso deixam de cumprir - de forma menos “sistemática” - os cuidados de resguardo que aprenderam com “os antigos”.

Por outro lado, as(os) amoerenses reconhecem frequentemente que, para outros assuntos, o homem é que “descontrola”. No assunto da cachaça, por exemplo. “Mulher é poucas que a gente fala, Bebe!”, disseram-me dois buraqueiros. Com o termo “beber”, referiam-se a beber muita cachaça (e não qualquer outra bebida); beber o suficiente para prejudicar o trabalho e as relações pessoais. Relacionei esta observação de gênero ao fato de que os homens costumam beber para ajudar no trabalho da roça, o que exige “sangue forte”, e os dois rapazes concordaram. Depois lhes disse que isto também deve corresponder ao fato de que, em Amoeiros, as moças são supostas a fazerem os homens sofrer, e não o contrário - vide os causos de separação e processos de matrimônio que presenciei ou dos quais ouvi causos; vide as canções românticas de rádio que todos escutam, com letras sobre “dor-de-cotovelo”, dores de amores, cantadas por homens e da perspectiva masculina. Os dois rapazes divertiram-se com minha observação; riram sem divergir.

Em época de Folia, antes da festa, é comum ouvir um rapaz animado cantarolando, como que de brincadeira,

se eu beber, vai doer menos do que está doendo agora. [...]; Tô virando pé-de-cana, toda noite eu tô bebendo por amor, por amor eu tô sofrendo, a marvada me largou. [...]; Amigo locutor [...] estou no celular, falando de um bar, bebi todas pra poder ligar. Manda um recado e um beijo meu. Sei que ela não perde um programa seu. Vai locutor, diz que estou completamente apaixonado, louco de amor...7 7 Trechos de canções escutadas no rádio durante pesquisa de campo realizada entre 2006 e 2008 (ao longo dos quais se somaram 16 meses de campo no total). .

Beber é, enfim, o signo por excelência da rima fácil entre amor e dor. Relacionada à pinga, a rima nos dá ideia da ambiguidade que se lhe mostra constitutiva, um tema contrastando-se ao outro e, ao mesmo tempo, iluminando seu sentido: a pinga “corre pelo sangue”, revitalizando ou enfraquecendo com eficácia a energia vital de uma pessoa; assim como o amor eleva e destrói pessoas.

Em uma das conversas animadas que eu ouvia entre “parentes chegados”, o “de-comer” fez a prosa “render”. “Uma prima come um caju manso. Eu quero é o caju brabo”, diz a outra ao seu lado. “O bom é o brabo, que não trava a língua, Luiz me deu um bando. Hmm... Mas é gostoso! Docinho...”. E em reação à expressão de prazer da senhora que descrevia o caju, um primo seu solta a gargalhada: “Fulana está comendo o caju de Luiz! Hahaha!”. A partir daí todos começam a rir, enquanto vão emendando cada qual seu próprio comentário: “Pegou a vara e deu o caju!”, “Esse mostra a vara e dá o caju! Hahaha!”. A ambiguidade que produz o humor e “anima o povo” depende, em conversas como esta, de um traço semântico próprio ao vocabulário culinário, cheio de duplos sentidos, de analogias entre os processos físico-químicos do corpo e os da comida. A comida é, neste sentido, uma espécie de zona sombria da prosa. Pelo caráter delicado dos acontecimentos do corpo associados ao prazer (seja pela comida ou pelo sexo), fazem o corpo “falar”. Assim, o vocabulário culinário entrediz o que não se deve dizer verbalmente.

O amor como acontecimento do corpo, não à toa, está, também, na boca de cantores e proseadores que buscam, na metáfora culinária, recursos para suas descrições sentimentais ou carnais. “Soltar verso” nas folias é um desses modos de dizer sem dizer, pois, ali, “é tudo brincadeira”. Canta-se é mode “enterter”. Quase sempre, e sobretudo quando a folia é boa, o coro é composto por uma maioria de moças solteiras. Na “brincadeira”, envoltas na música que cantam, servindo-se comedidamente da oferta de cachaça controlada pelo alferes, as moças soltam recados em forma de verso:

Se eu soubesse de certeza que meu bem viesse hoje/eu matava uma galinha e dav’ele com arroz; a folha da bananeira de tão verde amarelou/a boquinha do meu bem de tão doce açucarou; eu subi na mandioqueira pra comer beiju de massa/eu sou fina no ciúme e danada na pirraça; eu subi no pé da lima, chupei lima sem querer, abracei o gai [galho] da lima pensando que era você.

Tudo o que se ingere tem acesso privilegiado ao funcionamento do sangue, à vida que este viabiliza, inclusive a vida íntima de cada um e de cada par. Por outro lado, a concretude, a objetividade e o caráter prosaico do ato de comer parecem contrastar com essa dimensão tão particular e íntima da comida. É esta polaridade que parece promover a graça, a risada: o reconhecimento de prazeres e desprazeres ao mesmo tempo inconfessáveis e compartilhados; dois sentidos contraditórios para um só signo. Tal polaridade - ou tensão, ou dubiedade, na falta de termos melhores - é constitutiva da relação entre a comida e o corpo. Note-se, por exemplo, que a comida anima o corpo, e, consequentemente, guarda, também, a força de matá-lo, portanto, se o tema envolve comicidade, é porque também pode ser dramático.

Mais uma vez, o caráter concreto, pragmático, desta afirmação replica-se na maneira como a linguagem produz sentido em conversas nas quais o assunto envolve doença e morte. Os termos “reza” e “benzimento”, por exemplo. “Benzer” é o mesmo que “rezar” (“fazer o bem”), explicavam-me no que eu perguntava. Com o tempo, entretanto, aprendi que são, também, palavras usadas para se referir a uma prática duramente condenável, o “feitiço” (“fazer ruindade”). Esta palavra, única que não tem significação ambígua, é raramente proferida em Amoeiros. Como em inúmeros outros contextos etnográficos, ali é preferível apenas sugeri-lo.

Sinônimos-antônimos, “benzimento” e “reza” misturam-se em oposição ao mal, mas se opõem para falar do mal sem que se precise enunciar o nome não ambíguo do mal. Reza e benzimento significam, sem distinção, o gesto de proferir palavras aos santos que ajudarão na cura remediando diante de Deus, mas, também, palavras dirigidas àquele que só vai “atrapalhar a sorte”, o “Dito-cujo” de quem nem se deve proferir, “É não dizer para não chamar!”, alertam.

É possível, em Amoeiros, reconhecer uma narrativa que se repete quando há suspeitas de feitiço: a forma narrativa do “causo de paixão descontrolada” - quando o amor “vira” dor. Desta forma, se a mulher é quem faz o homem sofrer, como vimos, é ela, também, que “conhece a mexida da casa”, lugar dos segredos e das mágoas que se devem “esconder das vistas dos outros”. Sobre determinadas doenças, “Mulher é quem sabe!”, porque domina a mexida de cozinha e suas consequências para a saúde do corpo. Este conhecimento é fisiológico e, ao mesmo tempo, amoroso, íntimo, privado: a menstruação atrasada de uma, a doencinha de útero da outra, a falta de apetite do filho enamorado. Quando uma ofensa fica por ser dita entre filho e pai, a mãe é a mediadora do marido, evitando, assim, a conversa e o risco do conflito aberto entre pai e filho. Neste sentido, não é errado dizer que é ao envolver o pai que a “conversa delicada” se torna pública, nos termos do conflito aberto. Disto não podemos inferir, entretanto, que o diálogo materno tenha alcance restrito ao espaço privado, nos assuntos de foro íntimo. É que tais assuntos nunca são apenas “da intimidade”.

“Pra tudo existe uma ciência”, formulam os amoerenses. Com as donas de casa se passa o mesmo, explicam-me: “elas têm a sua ciência”, constantemente trocam informações que aprimoram seus modos individuais de um fazer comum na cozinha ou na horta, com o marido ou com os filhos, no seu intervir sutil diante de acontecimentos prosaicos ou extraordinários. O intervir é sutil porque o resultado imprevisto de alguma ação doméstica visibiliza outra espécie de entendimento. Pode-se, por exemplo, repetir o modo no fazer de um doce - o jeitinho como sempre faz e dá certo! -, mas aí dá de um dia “o leite dá de cortar e o doce desanda”. Suspeita-se sobre a chegada de “gente de fora”, durante a mexida na cozinha: “O olho dos outros faz o leite cortar. Diz o dizer!”, dizem-me os buraqueiros. É inveja?, pergunto. E quem é que sabe?, respondem-me.

A lógica de articulação entre o conhecimento culinário e o conhecimento do sangue (metonimicamente, do corpo humano) é operada com domínio pelas mulheres, por seu vocabulário de práticas rotineiras. As “conversas de mulher” constituem, neste sentido, um terreno privilegiado; o “sistema” delas é favorável ao conhecimento da imponderabilidade da vida (corpos e pessoas). Os processos empenhados, suas práticas envolvendo a cozinha (e a casa, metonimicamente) replicam-se nas descrições sobre as dinâmicas do sangue. O sangue pode ser, por exemplo, “apurado”, isto é, intensificado na mistura, assim como ocorre na procriação feita por primos, parentes em geral, pessoas que têm “um sangue só”. Igualmente, vê-se o caldo ser “apurado” no fogo brando, mode engrossar. O caju e o vinagre “apertam”, “Caju é bom para caganeira!”, recomenda-se. Já o vinagre é mais “forte”, aperta mais, serve, então, para doenças mais graves, como inflamação e infecção. Para doenças de mulher, é sentar numa bacia com água morna e vinagre, ou, então a fusão com a casca do barbatimão, que aperta ainda mais que o vinagre. O barbatimão pode até beber, mas, se exagerar, periga apertar os órgãos, tudo, e pode até causar falecimento! O leite “corta” e vira talhada, e a lima, por sua vez, “corta” o açúcar, chupando-a na receita de doce de leite, por isto é bom contra diabete, que é o açúcar no sangue, explicam-me eles. O limão também corta, e nisto o termo assume dois sentidos aparentemente distintos - corta porque elimina e porque faz talhar.

Quando “o sangue da pessoa talha”, é porque sua saúde vai mal: “Talvez mesmo só Deus”, lamentam os parentes. Na cozinha, similarmente, por mais hábeis que sejam as mãos cozinheiras, “o talho” é sempre uma preocupação - seja fazer talhar do jeito certo, seja evitar que algo fique “talhado” por descuido. A possibilidade de o talho não ter sido apenas um “mau jeito” é ainda mais preocupante. Se a comida talha, pode ser mode a cozinheira ter sido afetada pela “inveja” ou, ainda mais grave, pelo “feitiço” (“primo da inveja”). Assim, o sistema da casa serve para pensar e intervir com uma intrincada “mexida”. Esta mobiliza, nas reflexões, sobre o corpo e a comida, o tema da imponderabilidade. “É a arte da sorte”, dizem-me.

Neste sentido, o surgimento de determinadas doenças promove uma cadeia de comentários e análises sobre a sequência de evidências físicas e seus relativos diagnósticos possíveis. Em tom grandiloquente, já ouvi que o “de-comer” é poderoso como um remédio aplicado por injeção (meio de medicamentoso mais eficaz, pois vai direto para o sangue, dizem-me). Outro bom exemplo da similaridade entre os processos culinários e os sanguíneos é o “esteporo”, uma “doença do povo da roça” resultante do choque térmico. Trata-se do efeito no sangue, similar ao causado às receitas que demandam resfriamento lento e que, se não é obedecido, faz com que o “de-comer” - exposto ao brusco contraste quente-frio - fique “talhado”, “cortado”, “desandado”, “estragado”. “Não dá certo, porqueira...”, reclama a cozinheira.

O esteporo pode ocorrer, por exemplo, por conta de uma bebida quente seguida da ingestão de algo gelado ou, o caso mais comum, um café que se toma pouco tempo antes de sair à chuva. É uma doença crônica cujos sintomas - similares aos do reumatismo - aparecem e desaparecem ao longo da vida. Como o reumatismo, o esteporo envolve uma série ampla de distúrbios e dores; são “males que caminham pelo sangue”, explicam-me as amoerenses. Por este motivo, remédios à base de óleo ou de cachaça são eficazes; sendo “quentes”, “correm rápido pelo sangue”. Pelo mesmo motivo, são substâncias arriscadas.

Um efeito frequentemente atribuído a interações corpóreas infelizes é o fato de o sangue ter “virado”. Quando o sangue “vira”, ele “fica novo”, “fraco”, mais “ralo” ou, ao contrário, mais “grosso” (ambos, em certa medida, identificados porque indicam “fraqueza”). “O sangue vira e a gente fica com a saúde mais precária, pode ser mode a pessoa mesmo, ou, então, mode o clima”, contou-me um senhor que conheci durante a espera na fila do posto de saúde de Chapada Gaúcha-MG. Seu pescoço inchado chegava a roxear. As mulheres ao redor, que, como ele, aguardavam na fila para pegar suas fichas médicas, faziam-lhe perguntas com o intuito de obter detalhes sobre “o causo”. Arriscavam diagnósticos: “É alergia! Pode ter sido mode a toalha de banho!”.

Enfim, o assunto do sangue parece não esbarrar: o sangue virou, ficou remoso, grosso; foi um “de-comer” que fez mal, não deu bem. Noutra análise, quando se tratam de avaliações morais, a pessoa é “sangue ruim” mode a raça que puxou; ou é fraca mode a doença ainda presente no sangue desde tal ou qual acontecimento, quando esteporou. O sangue esteporado é assim, nunca se sabe quando vai voltar a doença, o que torna complexo e complicado o diagnóstico de qualquer doença que venha a surgir ao longo da vida. Não seriam os sintomas uma variação do esteporo? Este não apenas é crônico, podendo sempre desaparecer e reincidir, como se manifesta por sintomas diversos: alergia de pele, dor de cabeça, inchaços. As reincidências do sangue esteporado, assim como os remédios “finos” e “quentes”, aproximam-se da ideia expressa, também, pelo termo “remoso” para falar dos alimentos que fazem mal e, em determinados contextos, alteram a qualidade do sangue. Assim o são todas as carnes de caça comidas por mulheres grávidas, em resguardo e menstruadas.

Mas essa é só uma das situações específicas e evitáveis em que um alimento se torna remoso; existem várias outras possibilidades e razões para isto ocorrer; e sempre haverá controvérsias a se desenrolar sobre o assunto. O sangue afetado por tais e tais alimentos pode mudar de qualidade independente de fatores externos (de modo similar à cachaça, ao amor e à prosa). Enfim, há uma analogia evidente entre as maneiras como o corpo (especialmente o sangue) e a comida (sobretudo o leite) sofrem mutações. Corpo e comida são, mais do que isto, constitutivos de uma mesma dinâmica: o primeiro está sempre incorporando a última. Esta interação, vimos, é marcada por tensões, polaridades constitutivas, que demandam, para que se mantenha o predomínio do polo desejado, uma intervenção “fina” sobre os efeitos concretos desta interação. O risco latente de ser atingida por “ruindades”, “invejas” coloca a cozinheira para além da ordem da natureza, isto é, da ordem de Deus; são casos de “coisa feita”. Mas há também de “talhar por azar” (que não é “feito” por ninguém), como há os casos nos quais a Natureza, Deus mesmo, foi que já “fez a pessoa nascer com aquela sorte”. É sempre entre uma e outra possibilidade - entre o feito por gente, a sorte dada por Deus e o simples acontecimento de azar - que “o assunto rende”.

Um conhecimento “fino”

O que é “feito por gente” ou o que é “dado por Deus” é uma questão nem sempre fácil de saber. Observarmos que a prática de conhecimento feminina, sua “mexida”, é importante e eficaz nos acontecimentos do corpo, no ciclo da vida, e que esta esperteza se relaciona com uma incerteza característica do sistema. Resta-nos perguntar qual a relação de conhecimento estabelecida entre as mulheres e seu instável objeto de conhecimento.

O exemplo do esteporo é eloquente para percebermos a particularidade do objeto de conhecimento feminino. Como vimos, a exposição ao contraste quente-frio pode ser danosa a qualquer um, mas é mais recorrente entre as mulheres, pois resulta, frequentemente, da mexida com fogão e água. Também são, sobretudo, as mulheres que devem evitar alimentos “remosos”, pois estes normalmente só são danosos quando ingeridos nos períodos de menstruação ou resguardo - momentos em que o ciclo reprodutivo feminino altera as qualidades do sangue da mulher, tornando-o mais fraco, mais suscetível aos males de comidas fortes. “Comidas fortes” são necessárias a um “corpo sadio”, mas provocam graves problemas quando ingeridas em corpos vulneráveis - resguardo, cansaço, estômago vazio, raiva, fraqueza, tristeza. Enfim, situações de “cabeça fraca”. Um mesmo alimento é, assim, considerado ao mesmo tempo saudável (“faz bem”) e remoso (“faz mal”).

Também as qualidades de “quente” e “frio” têm valores variáveis. Muitos dos alimentos “remosos” (isto é, “alimentos que fazem mal”) são “quentes”, mas um óleo “quente” pode “fazer bem”. Por exemplo, como base para remédio a ser esfregado sobre a pele, mode o sangue absorver. Por outro lado, um “remédio quente” aplicado a um “corpo frio” (molhado de chuva ou da mexida para lavar) tornar-se-á extremamente danoso. Quando se trata de ingestão de alimento, pode ocorrer o inverso: um “corpo quente” (devido à inflamação, por exemplo) pede um “de-comer frio”. Assim, nem todos os alimentos “quentes” guardam a qualidade de “remosos” (por exemplo, não há registro de que a carne de gado tenha feito mal a alguma amoerense. Por outro lado, um cheiro “frio” pode ser empregado no sentido de azedo, apodrecido, estragado, mas um alimento “frio” (como a mandioca) é, em geral, “manso”, inofensivo.

Enfim, de modo geral, essas classificações morais e físicas do sangue e da comida, tanto nas mulheres quanto nos homens, dependem de interações singulares, de ocasiões concretas, específicas; dependem, portanto, de um conhecimento empírico em constante fazer. Trata-se de um cruzamento de fatores: qual alimento é ou não remoso, para quem, por qual razão, se foi a combinação com outro alimento, se foi cisma, ou o que foi, como foi, todos têm seus causos contados para defender uma ou outra hipótese. O veredicto depende da verificação de eficácia das intervenções feitas no corpo do doente (testando uma hipótese): mexida de cozinha, mexida de remédio e de reza, o que deu certo, quando e como; se deu errado, por que será? Como se procedeu?

O próprio “sistema” é, em suma, constituído pelo jogo da contingência. Embora cada pessoa tenha seu “sistema”, isto é, seu “modo de comer e de conversar”, este é conectado ao sistema de sua família, vizinhança, amizades e inimizades chegadas. Disto é feito o “sistema”, interações que produzem efeitos nunca inteiramente previsíveis, mas sempre reconhecidamente possíveis. O “sistema” é um conjunto de “sistemas”, assim como o “povo” de Amoeiros é uma “mistura de povos”. O “sistema” é um conjunto de “modos de comer e conversar”, ou de “mexidas de cozinha”. É um conjunto aberto, mas as possibilidades de transformação não são infinitas ou aleatórias. O sistema de um povo transforma-se ao infinito, mas promovendo seu próprio movimento, sua intensidade própria, sua “animação”.

A “mexida de cozinha” lida com efeitos contraditórios, possibilitados por uma mesma ação, replicando a maneira dos cuidados da “saúde feminina”.8 8 Há um remédio fitoterápico muito popular na região, chamado “Saúde Feminina”, um composto de extratos de folhas e cascas de árvores, das mesmas com que as mulheres amoerenses fazem seus “remédios do mato”. Devido às mutações mensais em seu corpo, para não correrem o risco, algumas mulheres optam, como medida de precaução, por jamais comerem carnes que já tenham sido remosas “para” uma determinada pessoa. Outras fazem observações muito atentas durante toda a vida para traçar um lógica das interações particulares em seu corpo individualizado.

Klass WOORTMANN (2008WOORTMANN, Klaas. “Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas”. Caderno Espaço Feminino, v. 19, n. 01, janeiro-julho 2008.) faz observações similares às minhas em um artigo panorâmico sobre a classificação de alimentos, corpos e pessoas, conforme a oposição quente/frio. Colhendo dados de pesquisas em várias regiões do Brasil e boa parte da América Latina, o autor afirma que a recorrente palavra “reima” é possivelmente derivada de rheuma, do latim - que designa fluir, correr, e, também, “mau gênio”. “É uma ‘qualidade’ do alimento que o torna ofensivo para certos estados do organismo e em certos momentos da vida da pessoa”, escreve o autor (WOORTMANN, 2008). Note-se a especificidade desta qualidade dos alimentos, ela os torna ofensivos para certos estados e momentos de organismos e pessoas. Por este caminho, Woortmann (2008WOORTMANN, Klaas. “Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas”. Caderno Espaço Feminino, v. 19, n. 01, janeiro-julho 2008.) observa que “não há uniformidade quanto à percepção dessas ‘qualidades’”. Além disto, um mesmo alimento pode ser considerado “quente” ou “frio”, dependendo da região. O importante, conclui ele, é que há um modelo classificatório e está sempre referido ao organismo humano.

Antes de ser uma qualidade generalizável, a “reima” exprime uma relação entre o alimento e o organismo. Uma série de atitudes é, então, analisada no artigo de Woortmann, atitudes que, em primeira instância, são formas de buscar o equilíbrio (as qualidades frias devem, a rigor, ser equilibradas pelo contato com qualidades quentes). Mas o equilíbrio entre “frio” e “quente” não é feito de forças ou quantidades mensuráveis, nem de antagonismos morais preestabelecidos. Não se trata, em suma, de buscar equilibrar a balança. O desequilíbrio, vimos, é parte do ciclo feminino como condição para que haja movimento, promove os acontecimentos principais do ciclo da vida - o nascimento e a morte. Muitas vezes, portanto, em Amoeiros, a cura é dada por uma substância desequilibradora, arriscada (óleo “quente”; cachaça, comida “forte” etc.). O que se busca é a mistura de “qualidades”, e, não, o equilíbrio entre quantidades.

O sangue feminino, pela constante mudança de qualidade a que é exposto, é um componente importante das incertezas do sistema. Para além das contingências danosas como as que acometeram o senhor do Posto de Saúde, o sangue da mulher obedece a rotinas mais ou menos regulares, a mudanças na qualidade do sangue. O sangue das moças ciclicamente se predispõe à fraqueza, torna-se vulnerável ao que é forte. Contudo, lembre-se, é desta vulnerabilidade própria que seu corpo tira as condições de sua força quase Divina: gerar pessoas. Sua força reprodutiva é função desta suscetibilidade, desta fraqueza.

A categoria “fino” é, neste sentido, esclarecedora. Dizer que uma mulher tem “mão fina na cozinha” significa ver nela um gesto de comedimento e seleção apurada na prática de misturar os alimentos na panela. Ter a mão fina é necessário quando se vai cozinhar para um doente. Nesses casos, a mulher “precisa saber”. Diz-se, também, que alguém é fina(o) quando se trata de uma pessoa muito suscetível a ofensas, melindrosa e vulnerável, tal qual o sangue quando, por exemplo, se passa na pele um remédio fino. Este esquenta o sangue. Os remédios à base de óleo para pele são “finos” porque são “quentes”. “Diz’que feijão de corda misturado com o carioquinha é quente”. Neco não gosta porque é quente, faz mal ao estômago, pesa, queixa-se ele. Em um contexto temático aparentemente distante deste, ouvi uma argumentação interessante sobre uma briga entre filha e mãe. Disseram-me: “Mãe é trem fino, a filha não pode mexer com a mãe porque mãe é “trem fino”!”. A mãe, por sua vez, era acusada de “rogar praga” sobre a filha. O adjetivo “fino” deixa-nos notar, assim, o perigo de uma suscetibilidade que é, também, valiosa.

Pessoa e sistema

Na boca do povo, dados sobre o “de-comer” falam diariamente e diretamente sobre o “sangue” e o “modo” de cada “povo”, de cada “família”, mas, também, sobre as diferenciações rotineiras deste conjunto, a combinação familiar, no que ela se diferencia e se integra a outras combinações, misturas. Chega-se, então, ao interesse envolvendo o sangue e o modo de cada “pessoa”, suas relações externas, sua família, sua “raça”. Neste sentido, a relação entre o “de-comer” e o sistema é automática quando dizem, por exemplo: “Fulano é da raça dos Gomes, por isso é gostador de cachaça”. Existem, vimos, as possíveis variações de uma única pessoa, cuja mexida é influenciada por motivos diversos (doença, casamento, desânimo, tristeza, aperreio, enfaro, culpa do marido, culpa dos filhos, viuvez, falação, porqueira...). Em suma, para além da determinação genealógica do sangue sobre o sistema de cada pessoa, família ou povo, as diferenciações internas e externas de um sistema estão sempre suscetíveis a deslocamentos - em quaisquer desses níveis, interferindo, até mesmo, na composição do sangue, como vimos. Noutras palavras, através da lógica do sangue, a circulação contínua de comidas e palavras estende-se não apenas às relações externas ao corpo, como, também, àquelas que lhe são intrínsecas.

“As meninas de Fulano são nojentas, têm nojo de tudo, não comem nada fora de casa!”; “Cicrana é do estômago fraco, diz que não pode com comida forte. Mas é do juízo fraco! Tudo o que come diz que é forte demais...” Na família do outro,

diz’que toda vida foram gente ruim - a casa é de porta fechada - aquela segurança no de-comer. A farinha lá guardada pubando e eles nem para trocar por uma quarta de boi. Diz’que os filhos, comer, só depois que os pais comiam. Mas isso já é maldade do povo...

“Mas que tem gente 'prosa', isso tem.”

Como não tem! Beltrano não come pé de galinha porque diz’ os antigos que quem come pé de galinha fica pobre. Bestagem! Se fosse assim ia ter um monte de gente rica nos Buracos! Um bando de povo besta que não come pé de galinha nos Buracos, e pobre! É prosa! Hahaha!

“A Folia daquele povo é ruim!”, alguém conta.

Aquele ano foi só carne crua. Chegando gente e ninguém preparava o de comer. Só tinha um arrozinho queimado, com aquela rapa da panela. No dia seguinte, prepararam buchada. Onde já se viu buchada de manhã! Ninguém comeu; os foliões saíram logo, cedinho.

Essas são conversas de “gente prosa ruim”. Quem é “prosinha boa” não gosta de falar dos outros. Dizem: “A festa teve boa, muita comida!”.

A comida como grande atrativo da festa de folia ritualiza a comida de todo dia. Necessária à manutenção do “corpo forte”, esta garante a saúde dada por Deus, mostrando o esforço diário que este espera de nós, tal qual pais e mães esperam de filhos e filhas. Dar o “de-comer” é, neste sentido, receber a bênção Divina. Por outro lado, a mexida de cozinha, ao explicitar esta abençoada atuação sobre o corpo humano, guarda em seu próprio gesto uma “mexida” sobre o que, por bem, é animado por Deus: “o corpo com sua alma, tal qual fogo e ar”, no dizer da esposa de Uruvaio.

“Titia está com uma morrência...”, comenta Amorosa ao voltar da casa da cunhada. Havia ido caçar um olho de buriti no terreno da outra, e foi quando soube do causo. Titia pensa que é porque tomou leite com açúcar, diz-me Amorosa, e rebate: “Não é nada. Não é o açúcar não, é o leite. Qualquer leite, a gente vê nos bezerros, mamam e dali a um tempo está tudo deitado. O mesmo é a pessoa”.

O fazer feminino da mexida de cozinha implica constantes observações deste gênero - como é a pessoa e como são os efeitos, nela, do que ela come. A própria mexida na cozinha é uma prática de gestão do tempo e dos efeitos sobre corpos alheios. Os remédios do mato são um bom exemplo - parte da criação humana, réplica enfraquecida da Criação Divina - sobretudo quando associados aos benzimentos ou rezas. Todas as senhoras amoerenses - mães e avós que inevitavelmente lideram com “quebrantos” - conhecem, sabem fazer “uma rezinha ao menos”. Mas isto é diferente do benzedor/rezador/curador profissional. Estes, aliás, em geral são homens e moram longe de Amoeiros - não são parentes.

Fazer e mexer as rezas triviais e o “de-comer”, criar e gerar pessoas. As habilidades esperadas para uma mulher por certo se aproximam da “mão de Deus”. Por este caminho, é preciso entender o termo “mistura” não apenas no sentido culinário, como já vimos, mas, também, num sentido de visualidade: quando duas unidades separadas tornam-se indistinguíveis, como se fossem uma única unidade, por darem a impressão de, estando juntas, partilharem as mesmas qualidades, embora continuem não sendo essencialmente a mesma coisa. Dois gêmeos, por exemplo, ficam “misturados na vista” de quem não os distingue. Ao se olhar para duas estampas muito parecidas, colocadas lado a lado, “a vista mistura” as estampas. Assim, comer da mesma comida é fazer uma “mistura” não apenas pela variedade de alimentos, mas, também, porque é o mesmo “sistema”, como a prosa de um filho às vezes se mistura com a do pai. “Uma é mesminha que a outra! No modo de conversar de dentro da casa, a gente cria intimidade, faz-se chegado, ganha amizade, ganha conhecimento”. Mas, para isso, é preciso “animação”, “risada”.

Enfim, o que mobiliza este processo de mistura de gente é, sobretudo, a mexida de cozinha, nas relações internas tanto quanto externas aos corpos individualizados. A exemplo de Deus. Dádiva Divina, a semente na terra multiplica infinitamente o alimento humano (e em benefício da multiplicação humana), o que se retribui distintamente entre homens e mulheres: eles agradecem com o seu trabalho na roça; elas, com o trabalho na mexida de cozinha. “Pode puxar!”, avisam os anfitriões, mostrando sua consideração para com o visitante. Por outro lado, esta mexida (incluindo o efeito da comida no corpo) é também o que promove a constante possibilidade de desequilíbrios no sistema.

Esta instabilidade sistemática parece evidenciar-se com maior clareza quando se trata da ordinária vida cotidiana, na prosa jogada fora da cozinha. Ali, as repetições são como a “animação do povo”, intensivas, integrais - cada causo recontado, cada conversa desenrolada mobiliza um conjunto casual e provisório de pessoas. As reincidências, repetições e diferenças de cada nova versão narrada de um causo, por exemplo, constituem um importante alvo de conflito, e também de análise e especulação dos amoerenses. Quando a dona da casa passa o café, a prosa anima; se faz bolo ou biscoito, o trem anima ainda mais, e assim o povo vai ficando - caso haja gosto da dona, mais comida vai puxando mais prosa, que puxará mais oferta de comida e daí por diante. Deste ambiente nasce o “bem-querer”, mas, também, o “desentendimento”, a “fofoca”. Esse é o sistema. Ele precisa ser animado, mesmo que isto o coloque em constante em risco.

Não à toa, o assunto sobre a comida “puxa” o tema do corpo (nascimentos, doenças, mortes) e do amor (namoros, casamentos, traições): é assim como o filho que “puxa” o sangue de seus antepassados maternos ou paternos. “Esse aí não puxou à família da mãe.” Diz-se, por exemplo, “puxou foi o sangue ruim” do pai e do avô. Mas vai ter quem pense diferente, e, noutra conversa, outras evidências serão atestadas sobre a natureza da pessoa falada. O destino que Deus deu, a sorte que cada um caçou, o sangue da família a que alguém puxou. É esta “mexida da pessoa” que dará atestado sobre o que se pensa a respeito dela ou seu povo. Como reclamou certa vez Dona Maria, em tom conformado, “a mexida nunca termina, assim Deus quer”.

Considerações finais

Em certa medida, aproximamo-nos da elaboração de Lévi-Strauss (1982______. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982. [1969] [1969]) sobre a circulação de mulheres, palavras e comidas como constitutiva de toda estrutura social. Sem entrar na já alentada acusação contra esta análise, no que ela promoveria uma alienação da agência feminina (cf. Gayle RUBIN, 1975RUBIN, Gayle. “The Traffic in Women”. In: REITER, Rayna (Ed.). Towards an Anthropology of Women. New York: Monthly Rewiew Press, 1975. p. 157-210.), a abordagem, aqui, inverte o eixo a partir do qual a circulação se mostra (as mulheres, fixas em suas cozinhas, são as regentes da circulação de prosa e comida). Pela perspectiva feminina, a rotina doméstica é um esforço responsável, a um só tempo, pela produção de congraçamento e de risco, sendo este silenciado ou tornado piada, porém, nunca eliminado das variabilidades imprevistas, quiçá danosas.

A força motriz do “sistema” - que define o “povo”, as “pessoas”, suas “prosas” seus “sangues” - encontra-se, como vimos, na “mexida de cozinha”, termo referente às práticas de preparar e propiciar a circulação de comida e prosa ao redor do fogão. É possível, portanto, traçar uma linha de continuidade entre a movimentação de uma dada cozinha, ou seja, o sistema agenciado em torno de uma mulher em particular, e o que as(os) amoerenses chamam de “sistema do povo, o que “nós”, cientistas sociais, mal traduzindo, chamaríamos “sistema social”. Da mesma forma, surgem linhas de continuidade entre a cozinha e o sangue, isto é, o destino, a sorte de cada um e o equilíbrio instável do “sistema”.

Agradecimentos

Agradeço aos colegas André Dumans Guedes, Carmen Silvia Andriolli, Dibe Ayoub, Graziele Dainese, John Comerford e Luzimar Pereira pela leitura da primeira versão deste artigo e pelas discussões no âmbito do Giros/Nuap (Núcleo de Antropologia da Política, coordenado por Moacir Palmeira, PPGAS/MN/UFRJ). Agradeço, também, aos pareceristas da Revista Estudos Feministas e à FAPERJ, que me concedeu uma bolsa de pós-doutorado graças à qual foi possível aprofundar a pesquisa em que este artigo se baseia.

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  • 1
    Mintz (2001) afirma que poucos estudos trataram a comida como elemento central e destaca como exceção o trabalho de Audrey Richards (1948RICHARDS, Audrey. Hunger and Work in a Savage Tribe. Glencoe: Illinois Free Press, 1948. [1935] [1935]), e, em certa medida, o de Rosemary Firth (1966FIRTH, Rosemary. Housekeeping among Malay Peasants. Londres: Athlone Press, 1966. [1943]. (Série School of Economic Monographs in Social Anthropology) [1943]). Recentemente, uma série de estudos traz o tema para o primeiro plano, sob o viés do debate sobre “identidade cultural” (cf. Sangmee BAK, 1997BAK, Sangmee. “McDonald’s in Seoul”. In: WATSON, James L. (Org.). Golden Arches East. Standford: Standford University Press, 1997.; Daniel BITTER e Nina Pinheiro BITAR, 2012BITTER, Daniel e BITAR, Nina Pinheiro. “Comida, trabalho e patrimônio. Notas sobre o ofício das baianas de acarajés e das tacacazeiras”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 213-236, jul.-dez. 2012.; Ana Maria CANESQUI, 1988CANESQUI, Ana Maria. “Antropologia e alimentação”. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 207-216, 1988.; CAVALCANTI et alCAVALCANTI, Luiza Guimarães et al. “Comida e identidade: construções identitárias de comensais da feira das Sete Portas, Salvador, Bahia”. 2012. In: SEMINÁRIO ALIMENTAÇÃO E CULTURA NA BAHIA, 1., 2012, Feira de Santana, Bahia.. [2012]; Sophie COE, 1994COE, Sophie. America’s First Cuisines. Austin: University of Texas Press, 1994.; Carol M. COUNIHAM & Steven L. KAPLAN, 1998COUNIHAN, Carol M.; KAPLAN, Steven L. (Orgs.). Food and Gender. Amsterdam: Harwood Academic Publishers, 1998.; Jack GOODY, 1982GOODY, Jack. Cooking, Cuisine and Class. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.; Carola LENTZ, 1999LENTZ, Carola (Org.). Changing food habits. Amsterdam: Harwood Academic Publishers, 1999.; MINTZ, 2001; Ehmiko OHNUKI, 1993OHNUKI, Ehmiko. Rice and Self: Japanese Identities Through Time. Princeton: Princeton University Press, 1993.; César SABINO, Madel LUZ e Maria Cláudia CARVALHO, 2010SABINO, César; LUZ, Madel e CARVALHO, Maria Cláudia. “O fim da comida: suplementação alimentar e alimentação entre frequentadores assíduos de academias de musculação e fitness do Rio de Janeiro”. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, Rio de Janeiro, FioCruz, v. 17, n. 2, p. 343-356, 2010., entre outros).
  • 2
    A análise de Passador (2010) sobre um povo no sul de Moçambique é um exemplo interessante. Ele apresenta a importante função sociológica feminina nas relações sociais como um todo, oferecendo várias pistas sobre a dimensão positiva do conhecimento feminino.
  • 3
    Os nomes de lugares e pessoas citados neste artigo são fictícios.
  • 4
    Sobre este contexto etnográfico, conferir Carmen Silvia Andriolli (2011ANDRIOLLI, Carmen Silvia. Sob as vestes de Sertão Veredas, o Gerais: “Mexer com criação” no Sertão do IBAMA. 2011. 255p. Tese (Doutorado) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.); Luiz Felipe Rocha Benites (2010BENITES, Luiz Felipe Rocha. Olhando da ribanceira: perspectivas de influência e vulnerabilidade no Vale do Alto-Médio São Francisco. 2010. Tese (Doutorado) - Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro.); Christine Chaves (2003CHAVES, Christine. Festas da Política: uma etnografia da modernidade no sertão (Buritis - MG). Rio de Janeiro: Relume Dumará; Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ, 2003.); Cloude de Souza Correia (1999______. Mineiros, Gaúchos e Conservacionistas: uma abordagem dos conflitos socioambientais no noroeste de Minas Gerais resultantes das distintas formas de apropriação espacial do Cerrado. 1999. 78p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília, Brasília.; 2002CORREIA, Cloude de Souza. Do Carrancismo ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas: (des)organização fundiária e territorialidades. 2002. 139p. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília, Brasília.); Beatriz Heredia, Moacir Palmeira e Sergio Leite (2010HEREDIA, Beatriz; PALMEIRA, Moacir e LEITE, Sergio. “Sociedade e Economia do ‘Agronegócio’ no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 25, n. 74, out. 2010.); Andrea Borghi Moreira Jacinto (1999JACINTO, Andrea Borghi Moreira. Afluentes de Memória: itinerários, taperas e histórias no Parque Nacional Grande Sertão Veredas. 1999. 182p. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.); Bernardo Novais da Mata-Machado (1991MATA-MACHADO, Bernardo Novais da. História do Sertão Noroeste de Minas Gerais (1690-1930). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1991.); Camila P. Medeiros (2011MEDEIROS, Camila P. No rastro de quem anda: comparações entre o ‘tempo do Parque’ e o ‘hoje’ em um assentamento no noroeste mineiro. 2011. 265p. Tese (Doutorado) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.); Maria Dione de Carvalho Moraes (2000MORAES, Maria Dione de Carvalho. Memórias de um Sertão Desencantado (modernização agrícola, narrativas e atores sociais nos cerrados do Sudoeste Piauiense). 2000. Tese (Doutorado) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.); Margarida Maria Moura (1988MOURA, Margarida Maria. Os deserdados da terra. A lógica costumeira e judicial dos processos de expulsão e invasão da terra camponesa no sertão de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.); Mônica Celeida Rabelo Nogueira (2009); Luzimar Pereira (2012PEREIRA, Luzimar. Os giros do sagrado: um estudo etnográfico sobre as folias em Urucuia, MG. Rio de Janeiro: 7 Letras , 2012.); Eduardo Ribeiro (2010RIBEIRO, Eduardo (Org.). Histórias dos gerais. Belo Horizonte: EDUFMG, 2010.); Flávia Aparecida Andrade Souza (2006SOUZA, Flávia Aparecida Andrade. A cultura tradicional do sertanejo e o seu deslocamento para a implantação do Parque Nacional Grande Sertão Veredas. 2006. 114p. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciência Florestal, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa.).
  • 5
    Cf., entre outros, George Foster (1976FOSTER, George. “Disease Etiologies in Non-Western Medical Systems”. American Anthropologist, v. 78, n. 4, p. 773-782, 1976. (New Series)); Mariza Peirano (1975PEIRANO, Mariza. A reima do peixe. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília, Brasília, 1975.); Josiane C. Weidig, Viviane S. Martins e Renata Menache (2008WEIDIG, Josiane C.; MARTINS, Viviane S.; MENACHE, Renata. “Plantar, criar, comer: classificações da comida e das pessoas no interior de famílias rurais”. 2008 In: FAZENDO GÊNERO - CORPO, VIOLÊNCIA E PODER, 8., ago. 2008, Florianópolis.); Woortmann (2008).
  • 6
    Muitas vezes, esta tendência não é explicitada ou, nem mesmo, assumida pelo autor, mas se dá a ver em “atos-falhos” descritivos. Um bom exemplo é a bela etnografia realizada na área rural de São Luis do Paraitinga-SP, de Carlos R. Brandão (1995BRANDÃO, Carlos R. “Casa, terra, bichos e homens”. In: ______. A partilha da vida. São Paulo:Geic/Cabral, 1995. p. 185-199.), onde a descrição das divisões do espaço doméstico e sua relação com o “fora” é feita sob o viés da divisão de gênero. O autor argumenta que o homem é o “mediador” entre o dentro e o fora da “casa”. Assim, para um homem, crescer significa também sair de casa, ultrapassar os limites do quintal, […] Cedo a menina começa a ‘ajudar a mãe em casa’, onde ela fica […]” (BRANDÃO, 1995, p. 188). As duas formas de “socialização” correspondem, assim, a um ultrapassar os limites da casa, para o homem, e “ficar”, para a mulher. Se, ao invés disto, notarmos, como proponho, que os lugares da casa são organizadores dos espaços “fora” da casa (inclusive a configuração de casas que forma o “povo” ou a “comunidade”), notaremos que a transformação da “moça” em “mãe-e-esposa” consiste não em “ficar” na casa, mas, sim, em uma “ultrapassagem” radical, a da cozinha de sua mãe e a rede de posições e relações sociais criadas neste lugar. Em Amoeiros, ao tornar-se “dona” de uma nova cozinha, a esposa recém-casada é responsável pela criação de um novo circuito de sociabilidade, o que reconfigura a totalidade das relações de força no povoado, dentro e fora das casas (Para aprofundar este argumento, cf. CARNEIRO, 2015CARNEIRO, Ana. “O sistema da mexida de cozinha”. In: COMERFORD, John; CARNEIRO, Ana e DAINESE, Graziele (Orgs.). Giros etnográficos em Minas Gerais: conflito, casa, comida, prosa, festa, política e o diabo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015a.; 2014______. “Um causo, um povo, uma televisão: formas análogas”. Revista Mana, v. 20, n. 3, dez. 2014.; 2013______. “Os rumos da prosa: parentes chegados, primos cunhados”. Revista de Ciências Sociais, UFC, v. 44, p. 196, 2013.; 2009______. “De moça à esposa: casa, casamento e êxodo feminino no sertão mineiro”. Revista Desenvolvimento Social, Unimontes, v. 4, p. 37-45, 2009.).
  • 7
    Trechos de canções escutadas no rádio durante pesquisa de campo realizada entre 2006 e 2008 (ao longo dos quais se somaram 16 meses de campo no total).
  • 8
    Há um remédio fitoterápico muito popular na região, chamado “Saúde Feminina”, um composto de extratos de folhas e cascas de árvores, das mesmas com que as mulheres amoerenses fazem seus “remédios do mato”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2015
  • Revisado
    23 Dez 2015
  • Aceito
    13 Abr 2016
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