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Queer na primeira pessoa: notas para uma enunciação localizada

Queer in the First Person: Notes Towards a Localized Enunciation

Resumo:

Neste artigo procuro confrontar o que percepciono enquanto certos enquadramentos positivistas naturalizados na teoria queer contemporânea, em que se reproduzem disposições clássicas da relação formal, afectiva e metodológica sujeito/objecto, desejando, no processo, problematizar o que podemos descrever como os mecanismos de objectificação epistémica e política patente em alguma teoria queer recente. Em contraste, e por via da leitura de contribuições teóricas feministas (especialmente das últimas décadas do século XX), procuro traçar uma contra-narrativa teórica, uma outra trajectória epistémica, que valorize precisamente a mútua implicação entre subjetividade e objetividade, potencializando outra conceitualização de possíveis práticas críticas queer, encarnadas e operacionalizadas por via do corpo sujetivo significante.

Palavras-chave:
Teoria queer; Teoria feminista; Enunciação; Epistemologia Queer; Conhecimentos situados

Abstract:

In this paper, I seek to confront what I perceive as certain positivist frames of interpretation that are naturalized in contemporary queer theory, in which classical dispositions of the formal, affective and methodological subject/object relation are reproduced and in the process I hope to problematize what we may describe as the mechanisms of epistemic and political objectification present in some recent queer theory. In contrast, through readings of feminist theoretical contributions (especially those of the last few decades of the 20th century), I attempt to trace a theoretical counter-narrative, another epistemic trajectory, which values precisely the mutual implication between subjectivity and objectivity, enabling another way of conceptualizing possible queer critical practices, ones which are embodied and made possible through the signifying, subjective body.

Key words:
Queer theory; Feminist theory; Enunciation; Queer epistemology; Situated knowledges

Através do desenvolvimento institucional da teoria queer enquanto campo de pesquisa acadêmica, o próprio termo “queer” tem adquirido um tal grau de plasticidade semântica e conceitual, que a consolidação de queer enquanto designação disciplinar é contrastada pelas variadas proliferações e divisões do seu sentido na prática.1 1 Para uma análise extensiva dos sentidos (e não sentidos) contemporâneos de queer, ver Janet HALLEY e Andrew PARKER (2011). A sua mobilização original, com a intenção de re-descrever identidades fora dos parâmetros das políticas de identidade já implica, só por si, tensões entre uma relativa consonância com “gay”, “bissexual” ou “lésbica”, e uma radical desarticulação destas categorias, negando-lhes a coerência identitária e o valor político.2 2 Sobre a complexa relação entre as rubricas “queer” e “LGBT”, ver Diana FUSS (1991). Mas a sua elaboração também excede eixos de articulação sexual em alguma literatura contemporânea, tornando-se as energias expressivas de queer desvinculadas das especificidades da prática, percepção ou identificação sexual. De fato, de falarmos exclusivamente de sujeitos queer, passamos, hoje em dia, a falar, também, de uma panóplia de objetos queer, incluindo textos, filmes, imagens, obras, figuras, formas, e ainda de métodos, práticas, pensamentos, histórias, tradições - e por aí fora. Qual é, então, o estatuto epistemológico e ético de queer enquanto designação performativa? Até que ponto corresponde, ainda, à materialidade identitária (ou, talvez, pós-identitária...) de um sujeito, e até que ponto se desvinculou já da especificidade subjetiva para remeter para outros mundos e sentidos? O que significa queer hoje? Que sentido faz, que sentido pode ou deve fazer, e em que circunstâncias?

Responder a estas perguntas com completa confiança intelectual e política, dessa confiança derivando o quase inevitável poder de uma prescrição, imbuiria o conceito com uma carga de imperativos mais ou menos implícitos, mais ou menos explícitos, de como sobre ele e com ele agir. Tal efeito certamente contraria a própria potencialidade do termo “queer”. Afinal, o grau de plasticidade a que me refiro é uma vantagem na medida em que propõe um generoso campo de possibilidades em aberto, uma matriz de permutações múltiplas e contingentes, que confere ao conceito algo raro nos vocabulários críticos contemporâneos: um certo grau de humildade epistemológica. Mas é precisamente na medida em que determinados usos contemporâneos do termo parecem favorecer epistemologias totalizantes, ou seja, lógicas de conhecimento objetificantes cujas posições de interpretação e enunciação não são transparentes, que sinto a necessidade de tecer algumas notas no sentido contrário. Notas essas que não pretendem - até porque, por definição, não podem - afirmar inequívoca e conclusivamente a definição de queer, mas, sim, insinuar uma versão com alguma plausibilidade e poder, algures na espiral das suas iterações.

Talvez, tal processo importe para mim por eu desejar proteger e partilhar o grau de plausibilidade e poder que “queer” tem no meu corpo. A minha própria identificação enquanto queer, ora coextensiva com a minha identidade enquanto homossexual, ora uma interrogação crítica da mesma, começou por volta dos 17 anos. Subitamente, enquanto jovem português, descobri, através dos espaços virtuais anglófonos, uma palavra que alinhava, de forma obscura, mas vital, uma série de forças que me impactavam, na altura ainda por ordenar analítica mas violentamente compactada na minha experiência: expressão de gênero mutável; emergente desejo homossexual; não pertença social; consciência política dissidente; identificação feminista. Ora, é algures, nesta malha de afetos, autobiografia e feminismo que eu encontro as condições para a minha versão de queer, e é a que venho partilhar hoje convosco, na esperança de que, particularizando o discurso através da experiência, venha a encontrar de novo as condições para o generalizar, concedendo-lhe, então, dimensão política. Assim, ainda que implicitamente, esta é a minha história de uma palavra, e a minha tentativa de instrumentalizar esta história. Mas, para traçar tal história, retomemos, primeiro, uma história maior: para nos movermos em frente com o termo, voltemos atrás no tempo para pensar um pouco a sua genealogia, e, antes disso, a do próprio discurso da homossexualidade.

Um dos suportes históricos fundamentais da teoria queer é o relato providenciado por Michel FOUCAULT (1976FOUCAULT, Michel. L’Histoire de la Sexualité. Paris: Gallimard, 1976.) (no célebre primeiro volume da sua História da Sexualidade) e expandido por outros historiadores da sexualidade (como, por exemplo, David HALPERIN (1990HALPERIN, David. One Hundred Years of Homosexuality: and Other Essays on Greek Love. Nova Iorque: Routledge, 1990.), entre outros), da emergência da categoria clínica do “sujeito homossexual” no século XIX. A homossexualidade surge, então, como categoria clínica através da qual as forças institucionais capturam o sentido e ação de um corpo numa narrativa fixa, com pressupostos quanto às suas origens, quanto à sua tipologia, quanto à sua fenomenologia e quanto ao seu destino biológico e social. Mas o termo é, também, eventualmente tomado como palavra de ordem por aqueles que se reivindicam a si próprios enquanto homossexuais, e, assim, esta designação pretensamente neutra da ciência, que, na verdade, serve os interesses de um aparato ideológico heterossexista vasto e profundo, converte-se num recurso fulcral para as novas estratégias de autoafirmação e autorrepresentação de um emergente sujeito político. Ocorre, então, um torno paradigmático significativo. Ao objeto clínico da homossexualidade enquanto perfil psicofisiológico atribuído pela autoridade científica aos sujeitos, cuja não pertença social e política é reforçada pela via da patologização, com todas as implicações morais que esta comporta numa ciência que é também (e sempre) um quadro de valores humanos, opõe-se, agora, uma nova posicionalidade: surge a possibilidade de uma enunciação homossexual na primeira pessoa, na forma de uma nova autofiguração sexual, negociada dentro e contra os termos do modelo científico. Assim, o primeiro torno político da categoria da homossexualidade é o momento em que esta se enuncia e anuncia na primeira pessoa: passamos do fechamento da objetificação epistemológica à performatividade da autoidentificação.3 3 Sobre a natureza performativa da autoidentificação, ver Eve Kosofsky SEDGWICK (1990).

Podemos e devemos comparar esta trajetória do discurso da homossexualidade com a do próprio termo “queer”, para melhor indexar a história contemporânea da sua ética e da sua poética. Em inglês, “queer” constela alguns significados diferentes, mais ou menos diretamente relacionados entre si. De acordo com a sua definição mais convencional, designa algo - ou alguém - excêntrico, bizarro, singular ou diferente; de natureza questionável ou suspeita; fisicamente indisposto ou mentalmente disfuncional; ou, ainda, mau, sem-valor ou falsificado. Mas a sua acepção dominante é enquanto termo pejorativo para homens percepcionados enquanto não heterossexuais e/ou efeminados (sendo que a distinção entre um e o outro grupo é pouco significativa para uma sociedade que a tal ponto conecta e confunde a expressão de gênero com a orientação sexual) e mulheres percepcionadas enquanto não heterossexuais. Um dos primeiros usos da palavra neste sentido terá sido ainda em 1894, numa carta escrita por John Sholto Douglas, o 9º marquês de Queensbury,4 4 Aristocrata notório por – na sequência de uma disputa jurídica com Oscar Wilde – ter enviado à Scotland Yard a informação que levou à condenação do autor por indecência moral (gross indecency) enquanto homossexual, arruinando o estatuto financeiro e a reputação de Wilde. e é no início do século XX que este uso se generaliza e naturaliza.

Mas, a partir dos anos 80, “queer” passa por um gradual processo de ressignificação. Ativistas LGBT radicalizados que se opõem a projetos liberais de integração passiva na sociedade heteronormativa e à adaptação acrítica às lógicas sociais dominantes que tal implicaria apropriam-se do termo enquanto emblema de uma provocação radical à normatividade. Precisamente na medida em que designaria o abjeto, aquilo e aqueles cuja legitimidade social e simbólica é negada por uma ordem que inclui certos sujeitos e exclui outros, “queer” será um termo vital enquanto nome de um novo modelo de crítica política e posicionamento identitário. Desde o surgimento do grupo norte-americano “Queer Nation” enquanto ala radicalizada do movimento LGBT por volta de 1990,5 5 Sobre o grupo Queer Nation, ver Lauren BERLANT e Elizabeth FREEMAN (1993). à emergência quase simultânea da teoria queer na academia enquanto novo projeto intelectual que radicaliza a crítica ao heterossexismo,6 6 Notemos que duas obras fundamentais para a teoria queer são publicadas em 1990: Epistemology of the Closet, de Eve Kosofsky Sedgwick e Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, de Judith BUTLER. “queer” consolida-se, eventualmente, como a palavra de ordem de um novo campo de possibilidades identitárias e políticas. Assim, queer não será mais um diagnóstico imposto pela ordem social heteronormativa ao sujeito, mas, sim, a assinatura que este próprio sujeito inscreve no seu corpo e fala enquanto agente político dissidente. Mais uma vez, num processo que podemos comparar, de forma simplificada, ao do discurso da homossexualidade, passamos da objetificação por outrem à autoidentificação do próprio, e da lógica enunciativa do objeto observado à lógica enunciativa do sujeito falante.

No entanto, o que caracteriza alguns discursos acadêmicos queer contemporâneos é, precisamente, o uso do conceito de queer numa lógica não de autoidentificação do sujeito, mas, sim, de objetificação de terceiros. No contexto do crescimento da teoria queer, observamos uma quantia surpreendente de instâncias em que “queer” não tem qualquer relação com os parâmetros de autoapresentação e afirmação que o caracterizam originalmente, nos anos 80 e 90. Antes, queer torna-se uma categoria ágil de observação social que não remete já, necessariamente, para a posição de locução de quem enuncia - nem, de fato, para a posição de locução de quem quer que seja. Pelo contrário, o acadêmico queer encontra-se na posição curiosa de, a partir da sua autoridade epistemológica, declarar certos fenômenos queer, como que reproduzindo a lógica do diagnóstico do médico do século XIX, que não precisa atentar à experiência do sujeito, mas, sim, à evidência do objeto. A dinâmica semântica de “queer” parece já tão recortada das especificidades de prática, percepção ou identificação sexual de cada sujeito, que Jack HALBERSTAM (2005HALBERSTAM, Jack. In a Queer Time and Place: Transgender Bodies, Subcultural Lives. Nova Iorque: NYU Press, 2005.), numa discussão sobre temporalidades queer, coloca a hipótese de que escolhamos designar “ravers, club kids, pessoas soropositivas que praticam sexo desprotegido, acompanhantes, prostitutas, pessoas sem abrigo, traficantes de droga e os desempregados” como sujeitos queer pelo modo como vivem em espaço-tempos subalternos em relação aos sujeitos normativos do capitalismo, independentemente da sua sexualidade. Pouco interessam, aliás, a Halberstam (2005), quais as condições e intenções destes grupos dispersos, que numa nota entre parênteses se limita a comentar que podem ocupar uma posição de disjunção social “deliberadamente, acidentalmente ou por necessidade” (p. 10). Por outro lado, um entendimento de queer enquanto conceito “desagregado da identidade sexual” conduz Jasbir K. PUAR (2007PUAR, Jaspir K. Terrorist Assemblages: Homonationalism in Queer Times. Durham: Duke University Press, 2007., p. 222), no contexto do seu trabalho sobre homonacionalismo, a insistir na designação enquanto queer de corpos tão variados como os de bombistas suicidas, homens Sikh de turbante, muçulmanos torturados e mulheres de burqa, entre outros. E estes são apenas dois exemplos breves de entre as tendências dominantes na literatura teórica contemporânea. Surpreendentemente, queer volta a surgir não como uma visão do próprio, mas, sim, como uma coisa vista, naturalizada enquanto propriedade intrínseca do que é sujeito à análise.

Ora, que estruturas conceituais possibilitam estes usos de queer, estes atos experimentais de nomeação, que, enfaticamente, separam o valor do conceito da posição de fala de quem nomeia, mas, que, por outro, lado possibilitam ao termo um alcance totalizante que cobre, inclusive, os corpos daqueles que não se identifiquem, de todo, enquanto queer? A introdução a um número especial da revista acadêmica Social Text, chamado “What’s Queer About Queer Studies Now?”, coescrito por Halberstam, David L. ENG e José Esteban MUÑOZ (2005HALBERSTAM, Jack; ENG, David; MUÑOZ, José Esteban (Orgs.). What’s Queer about Queer Studies Now? Durham: Duke University Press, 2005.), clarifica o uso de queer em causa nestes modelos e consiste numa das poucas instâncias que encontrei em que se fazem afirmações claras quanto a uma potencial epistemologia queer. Aqui, os autores apelam a um modelo da teoria queer enquanto “crítica sem sujeito”. Salientando a importância da teoria queer ser capaz de se interrogar sucessivamente sobre as exclusões que ela própria operacionaliza na sua reflexão sobre a identidade, os autores defendem que queer se produza enquanto um conceito “sem referente político” (HALBERSTAM et al., 2005HALBERSTAM, Jack; ENG, David; MUÑOZ, José Esteban (Orgs.). What’s Queer about Queer Studies Now? Durham: Duke University Press, 2005., p. 1). No seu entendimento de epistemologia queer, esta terá de ser caracterizada “pela contínua desconstrução dos pilares de positivismo das políticas da identidade” (HALBERSTAM et al., 2005, p. 3), devendo, por isso, rejeitar o estabelecimento de qualquer sujeito ou objeto como sendo o foco do campo de análise. Para os autores, esta reorientação do termo é necessária na medida em que a teoria queer tradicionalmente sobre-focaliza sujeitos gays masculinos brancos de classe média. A “crítica sem sujeito” serviria, pelo contrário, para nomear um projeto crítico em que a sobre-determinação da teoria queer por vozes gays masculinas brancas de classe média é negada a favor de visões mais largas e inclusivas da sexualidade e da sociedade. E, para perturbar esta cumplicidade da teoria queer com a consolidação de identidades sexuais e sociais privilegiadas, o conceito de “queer” precisa se autonomizar radicalmente de qualquer sujeito ou objeto. Nesta perspectiva, a desconstrução das estruturas positivistas que refletem os preconceitos sexuais, raciais, de classe e de gênero da teoria queer só será possível através do corte do conceito de queer com qualquer posição subjetiva.

No entanto, sou intensamente cético quanto ao que este enquadramento teórico significa quando a sua articulação implica a total desarticulação da primeira pessoa, ao ponto da elisão de uma posição especificada e corporalizada de enunciação queer. Esta metáfora política sem referente tem e terá referentes concretos problemáticos, como é exemplificado por Halberstam e Puar, num processo de observação unilateral que descreve tudo, do corpo desempregado ao corpo torturado, como queer. Desvinculado da primeira pessoa, o termo vem, assim, a operar como um meio de determinar outros sujeitos enquanto objetos de conhecimento. Na qualidade de categoria analítica desencarnada, “queer” torna-se, portanto, um enquadramento diagnóstico experimental para a captura conceitual de qualquer corpo ou coisa. No meu entendimento, isto reproduz exatamente as estruturas positivistas que uma “crítica sem sujeito” pretenderia pôr em causa. E, por mais energizada que esta formulação de uma “crítica sem sujeito” seja pelas exclusões identitárias da teoria queer, há precisamente fortes motivos feministas para criticar a viabilidade de uma “crítica sem sujeito” e os projetos de representação agregados a mesma. Afinal, numerosas intervenções teóricas feministas nos séculos XX e XXI salientam a importância ética e epistemológica de modos de enunciação subjetiva, ou seja, corporalizada, parcial e localizada, precisamente na medida em que estas modalidades críticas perturbam estruturas machistas de produção do conhecimento e abrem a possibilidade para novas éticas identitárias e críticas. E penso que é justamente nessa direção que precisamos nos mover.

Há múltiplos lugares textuais a partir dos quais podemos relembrar e reconstituir esta sintaxe crítica em torno do sujeito de enunciação. E se o que está em causa são os parâmetros epistemológicos da teoria queer, partamos precisamente daí para a nossa indagação. Nesta linha, um texto relativamente pouco visível no contexto do cânone da teoria queer pode ser-nos útil. “Coming Out of Geography: Towards a Queer Epistemology”, de Jon BINNIE (1997BINNIE, Jon. “Coming Out of Geography: Towards a Queer Epistemology”. Environment and Planning D. Society and Space, v. 15, 1997.), consiste numa primeira tentativa de traçar alguns apontamentos quanto a uma eventual epistemologia queer. Escrevendo no contexto da geografia cultural, Binnie (1997) critica as estruturas epistemológicas da disciplina por excluírem, por definição, a dissidência sexual, afirmando, inequivocamente, que “o positivismo é necessariamente heterossexista” (p. 223). Inspirado precisamente por leituras feministas da epistemologia, o autor interroga o pressuposto de que “o investigador deva manter uma distância crítica segura entre o sujeito e o objeto de pesquisa” (BINNIE, 1997BINNIE, Jon. “Coming Out of Geography: Towards a Queer Epistemology”. Environment and Planning D. Society and Space, v. 15, 1997., p. 224), considerando-o um pressuposto machista e heterossexista que invisibiliza subjetividades oprimidas, promovendo uma ciência falsamente neutra que, na verdade, operacionaliza uma série de exclusões políticas, epistemológicas e identitárias. Em contraste, Binnie insiste a favor de um foco intensivo na questão da corporalidade não só enquanto objeto de pesquisa, mas, mesmo enquanto o próprio material do conhecimento científico, articulando-se, então, na prática crítica, tanto a materialidade do objeto em análise como a do sujeito que analisa.

Nesta proposta, Binnie inspira-se em diversas reflexões feministas contemporâneas que reinscrevem a problemática do sujeito na cena do conhecimento. E, nesse projeto de reconstituição feminista da epistemologia clássica, Donna HARAWAY (1988HARAWAY, Donna. “Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective”. Feminist Studies, v. 14, n. 3, 1988. ) será um nome praticamente incontornável. Formada no campo das ciências exatas, com especialização em biologia, Haraway escreve a favor de modelos epistemológicos alternativos que rompam com tradições patriarcais de criação de conhecimento, nas quais o sujeito crítico é tomado como o neutro e imparcial veículo de uma verdade objetiva e absoluta. Para a emergência de uma epistemologia feminista dissidente, será imperativo reinscrever o corpo falante no campo na própria prática crítica ou científica, enquanto agente material e subjetivamente específico. Reposicionando o sujeito enquanto matriz do conhecimento científico, Haraway argumenta a favor do que designa de “perspectivas parciais” e conhecimentos “corporalizados” ou “situados”. Explicitando a sua posição, Haraway (1988) escreve:

Eu argumento a favor de políticas e epistemologias de localização, posicionamento e situação, em que a parcialidade substitui a universalidade como condição de ser ouvida ao fazer afirmações quanto a conhecimentos racionais. […] Eu argumento a favor de uma visão que parte de um corpo, sempre um corpo complexo, contraditório, estruturante e estruturado, em oposição à visão que parte de cima, de nenhures, da simplicidade (p. 589).

As condições de enunciação crítica ou científica serão, assim, vincadas enquanto circunstâncias materialmente específicas e a legitimidade de um conhecimento dependerá da medida em que se assume a sua contingência histórica e social enquanto produção de uma força subjetiva. O conhecimento é, então, marcado, materializado e corporalizado enquanto estando predicado numa posição de sujeito particular. A condição do conhecimento será, portanto, o próprio corpo crítico. Mas este não se trata do corpo que o pensamento clássico naturaliza enquanto chão inquestionável e invisível do pensamento e do discurso. O que está em causa nestas novas visões feministas da relação entre subjetividade e epistemologia não se trata exclusivamente de uma remodelação da epistemologia de acordo com e a favor da subjetividade. Uma nova crítica feminista dependerá também, e necessariamente, de uma nova visão do corpo crítico.

É por esta nova visão que a filósofa Elizabeth GROSZ (1993GROSZ, Elizabeth. “Bodies and Knowledges: Feminism and the Crisis of Reason”. In: ALCOFF, Linda e POTTER, Elizabeth (Orgs.). ______. Feminist Epistemologies. Nova Iorque: Routledge, 1993.) trabalha no texto “Bodies and Knowledges: Feminism and the Crisis of Reason”. Grosz (1993) parte do reconhecimento de que há, na verdade, problemas significativos nesta proposta de colocar o corpo enquanto conceito estruturante do pensamento feminista. O corpo não poderá ser o chão de uma prática crítica ou científica se, no processo, se reforçam mecanismos ideológicos de “biologismo, essencialismo, a-historicismo e naturalismo” (p. 195). É necessário um modelo não biologístico e não redutivo do corpo, que o entenda enquanto um dinâmico catalisador de forças sócio-culturais. Grosz (1993) escreve:

Se os corpos são atravessados e infiltrados por conhecimentos, sentidos e poderes, eles também podem, sob certas circunstâncias, vir a ser lugares de luta e resistência, inscrevendo-se a si próprios nas práticas sociais. É a atividade de corpos desejantes que apesar de marcados pela lei, operacionalizam as suas próprias inscrições nos corpos de outros, de si próprios, e ainda da lei, que devemos opor à passividade do corpo inscrito (p. 199).

No texto “The Subject of Feminism”, a teórica Rosi BRAIDOTTI (1991BRAIDOTTI, Rosi. “The Subject in Feminism”. Hypatia, v. 6, n. 2, 1991.) partilha deste sentido da complexidade da corporalidade do sujeito crítico, e procura, igualmente, pensar o corpo sem o fixar enquanto referente natural. Pelo contrário, insiste num entendimento do corpo enquanto “entidade culturalmente codificada e socializada” (p. 160), um entendimento que se estende à materialização do próprio projeto crítico. Este consistirá num conjunto de práticas corporalizadas as quais se opõem ao modelo dominante que determina o processo teórico enquanto “abstrato, universalizado, objetivo e distanciado”. Muito pelo contrário, este estará “intimamente ligado ao lugar de enunciação de cada um, ou seja, de onde cada um fala” (BRAIDOTTI, 1991BRAIDOTTI, Rosi. “The Subject in Feminism”. Hypatia, v. 6, n. 2, 1991., p. 160). A natureza estritamente material do pensamento, da fala e da escrita resultará, assim, na necessidade de reconstituir um sujeito crítico que assume e afirma como pensa, fala e escreve dentro das suas próprias condições existenciais.

Esta ética crítica alternativa é ainda partilhada pela crítica feminista Elspeth PROBYN (1991PROBYN, Elspeth. “This Body Which Is Not One: Speaking an Embodied Self”. Hypatia , v. 6, n. 3, 1991.) em “This Body Which is Not One: Speaking an Embodied Self”, texto em que se levanta explicitamente a problemática da enunciação de um “eu” na prática crítica. Probyn procura possibilidades de articulação do “eu” que potenciem um sentido da especificidade e materialidade da produção de conhecimento, mas que evitem uma naturalização do corpo falante enquanto fonte de autoridade epistemológica. Probyn (1991) reconhece, tal como Grosz (1993GROSZ, Elizabeth. “Bodies and Knowledges: Feminism and the Crisis of Reason”. In: ALCOFF, Linda e POTTER, Elizabeth (Orgs.). ______. Feminist Epistemologies. Nova Iorque: Routledge, 1993.), como “a própria menção de um corpo é entendida como um atalho para a reinscrição de uma epistemologia realista” (p. 112), leia-se, positivista. Resistir a tal reinscrição consistirá, para Probyn, numa crítica à natureza referencial da representação, interrogando o valor-de-verdade das diversas figuras do “eu” que são produzidas quando o corpo falante se autorrepresenta na escrita. Probyn sugere uma transição teórica e prática da referência naturalizante à figuração crítica, sendo que o “eu” enunciado pelo corpo crítico falante será cuidadosamente conceitualizado enquanto uma ficção - mas, tal como a verdade ou o gênero, uma ficção sócio-culturalmente incontornável, e um lugar de poderosos e indispensáveis efeitos éticos e epistemológicos. A possibilidade subsequentemente desenhada para o discurso crítico é a de entender o “eu” escrito enquanto um instrumento útil para a mobilização de sentidos e conhecimentos de formas que possam transformar a relação entre subjetividade e prática crítica, situando modelos alternativos à obliteração de sujeitos dissidentes implementada pelos modelos inerentemente patriarcais do positivismo clássico que Binnie e Haraway descrevem.

No percurso que aqui tracei passando por Binnie, Haraway, Grosz, Braidotti e Probyn, espero ter evidenciado as condições de emergência de um sujeito crítico dissidente. Perante a natureza ideologicamente opressiva da aplicação acrítica dos protocolos positivistas clássicos das ciências ocidentais, emerge a necessidade de uma nova ética crítica que abra possibilidades mais epistemologicamente frutíferas, mais eticamente justas e mais politicamente eficazes. Tal passará, necessariamente, pela perturbação do binarismo histórico que opõe o objeto de conhecimento ao sujeito crítico. Contra este dualismo, é urgente que compreendamos que o objeto de conhecimento está, em larga medida, predicado no sujeito crítico, e que o sujeito crítico em torno se implica e insinua no objeto de conhecimento. Se aceite esta hipótese, segue-se o reconhecimento de que a “distância crítica” defendida por métodos científicos convencionais pode e deve ser transtornada e transformada (se não necessariamente negada), resultando em novas soluções de prática crítica. A renegociação dessa distância passará pelo reconhecimento das nossas posições de enunciação enquanto sujeitos críticos, cujos corpos sócio-culturalmente específicos estão complexamente implicados em densas malhas de poderes, conhecimentos e sentidos, nas quais somos posicionados simultaneamente enquanto produtos e produtores. E, finalmente, compreender e aceitar que esta posicionalidade implique, talvez, algo tão simples, modesto e vulnerável quanto falar, no contexto da prática crítica, um “eu”.

Talvez o caminho aqui traçado pareça já demasiado removido das problemáticas particulares de um discurso queer contemporâneo. Mas não nos podemos esquecer de que é precisamente nos discursos feministas dos anos 80 que encontramos parte das condições de germinação do pensamento queer contemporâneo - basta pensar nos trabalhos seminais de Eve Kosofsky Sedgwick, Judith Butler ou Teresa De Lauretis nessa década e na viragem da mesma para os anos 90. E eu não procuro, aqui, uma comparação superficial, meramente incidental, entre problemáticas distintas, mas, sim, uma transposição das soluções de um campo para o outro, quando as problemáticas são, creio, as mesmas em ambos os campos. Nomeadamente, como situar alternativas epistemológicas e éticas a modelos ortodoxos do conhecimento que repetidamente excluem e oprimem identidades minoritárias e dissidentes. Ora, para Halberstam e para Puar, a solução deste problema aparenta passar pela implementação de uma “crítica sem sujeito”, pretensamente liberta de sujeitos ou objetos fixos mas, como aqui procurei explicitar, tendente a uma objetificação, a uma coisificação altamente problemática dos corpos tidos em consideração nos seus projectos críticos. Se, tal como os autores em causa, concordo que é vital uma crítica anti-heterossexista ao positivismo clássico, favoreço uma solução diametricamente oposta. Alinhado com a linha teórica feminista que aqui procurei decalcar, creio que é urgente, isso sim, constituir ou recuperar uma “crítica com sujeito”. Uma crítica assumidamente corporal, concreta, parcial e localizada que aceita a sua própria contingência e os seus próprios limites epistemológicos e que entende, por isso, que a articulação consciente do “eu” crítico” pode vir a transformar radicalmente os panoramas dos nossos projectos contemporâneos sobre o desejo, o gênero, a sexualidade e a opressão.

No livro Tendencies, de 1993______. Tendencies. Durham: Duke University Press, 1993, a autora Eve Kosofsky SEDGWICK (1994), cujo trabalho marca indelevelmente o eventual percurso da teoria queer, escreve:

Esta é uma das coisas a que ‘queer’ se pode referir: a malha aberta de possibilidades, falhas, justaposições, dissonâncias e ressonâncias, lacunas e excessos de sentido ocorrentes quando os elementos constituintes do género ou sexualidade de qualquer um não são conduzidos (ou não podem ser conduzidos) a significar monoliticamente. As aventuras experimentais linguísticas, epistemológicas, representacionais e políticas vinculadas aos muitos de nós que podem em certos momentos sentirem-se movidos a descrever-se como (entre muitas outras possibilidades) femmes forçosas, fadas radicais, fantasistas, travestis, clones, malta do cabedal, senhoras de fato e gravata, mulheres feministas ou homens feministas, masturbadores, bulldaggers, divas, rainhas do Snap!, passivas másculas, contadores-de-estórias, transsexuais, tias, wannabes, homens de identificação lésbica ou lésbicas que dormem com homens ou… pessoas capazes de apreciar, aprender com, ou identificar-se com tal (p. 8).

O que quero aqui salientar é como esta passagem de uma das obras fundadoras da teoria queer já anexa explicitamente o projeto queer a um número de posicionalidades de autopercepção e enunciação que passam, inequivocamente, pela primeira pessoa. Além disso, a explícita ênfase nos aspectos “linguísticos, epistemológicos, representacionais e políticos” deste projeto levanta questões não só quanto aos conteúdos próprios da teoria queer, mas mesmo quanto às suas formas, métodos e estruturas, e como estas estarão predicadas nas posicionalidades identitárias de uma multiplicidade de sujeitos. Em 1993, já encontramos, portanto, um primeiro indício da afirmação de uma “crítica com sujeito”, que resiste ao heterossexismo do positivismo clássico precisamente através de um posicionamento crítico do sujeito. Hoje, regresso a esses primeiros traços textuais para energizar uma possibilidade: a de uma enunciação crítica que não se esqueça de que queer significa pouco, se é que significa de todo, senão na primeira pessoa.

Referências

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  • PROBYN, Elspeth. “This Body Which Is Not One: Speaking an Embodied Self”. Hypatia , v. 6, n. 3, 1991.
  • PUAR, Jaspir K. Terrorist Assemblages: Homonationalism in Queer Times Durham: Duke University Press, 2007.
  • SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemology of the Closet California: University of California Press, 1990.
  • ______. Tendencies Durham: Duke University Press, 1993
  • 1
    Para uma análise extensiva dos sentidos (e não sentidos) contemporâneos de queer, ver Janet HALLEY e Andrew PARKER (2011HALLEY, Janet e PARKER, Andrew (Orgs.). After Sex: On Writing Since Queer Theory. Durham: Duke University Press, 2011.).
  • 2
    Sobre a complexa relação entre as rubricas “queer” e “LGBT”, ver Diana FUSS (1991FUSS, Diana (Org.). Inside/Out: Lesbian Theories, Gay Theories. Nova Iorque: Routledge, 1991.).
  • 3
    Sobre a natureza performativa da autoidentificação, ver Eve Kosofsky SEDGWICK (1990SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemology of the Closet. California: University of California Press, 1990.).
  • 4
    Aristocrata notório por – na sequência de uma disputa jurídica com Oscar Wilde – ter enviado à Scotland Yard a informação que levou à condenação do autor por indecência moral (gross indecency) enquanto homossexual, arruinando o estatuto financeiro e a reputação de Wilde.
  • 5
    Sobre o grupo Queer Nation, ver Lauren BERLANT e Elizabeth FREEMAN (1993BERLANT, Lauren; FREEMAN, Elizabeth. “Queer Nationality”. In: WARNER, Michael (Org.). Fear of a Queer Planet: Queer Politics and Social Theory. Minnesota: University of Minnesota Press, 1993.).
  • 6
    Notemos que duas obras fundamentais para a teoria queer são publicadas em 1990: Epistemology of the Closet, de Eve Kosofsky Sedgwick e Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, de Judith BUTLERBUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Nova Iorque: Routledge, 1990..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2015
  • Aceito
    10 Ago 2016
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