Acessibilidade / Reportar erro

A propósito de “feminismos transcorpóreos e o espaço ético da natureza”, de Stacy Alaimo

On Stacy Alaimo's Trans-Corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature

Conheci o texto de Stacy Alaimo no início do século 21, quando me preparava para um intercâmbio com um colega pesquisador inglês, o ecocrítico Terry Gifford, da University of Leeds, que, já nos anos 1990, havia me apresentado o referencial dos debates relativos à natureza em suas relações com a literatura, quando ambos fazíamos nossos doutorados nas Universidades de Sheffield (eu) e de Lancaster (ele), na Inglaterra. O intercâmbio acabou não se materializando devido à crise do governo FHC, que cortou o que podia de bolsas para o exterior. A referência aos estudos ecocríticos permaneceu e procurei estabelecer uma conexão com as questões feministas porque foi sempre nessa seara que procurei ancorar meu pensamento crítico, tanto no âmbito pessoal quanto acadêmico.

Quando escrevi “Ecofeminismo e literatura: novas fronteiras críticas”, publicado em 2003 no livro Refazendo Nós: ensaios sobre mulher e literatura, que organizei juntamente com a saudosa Zahidé Muzart para a editora Mulheres, procurei mostrar o impacto desse novo território da crítica literária como uma renovação dentro do pensamento feminista. Referi-me a Stacy Alaimo exatamente porque ela, já em 1998______. “‘Skin, Dreaming’: The Bodily Transgressions of Fielding Burke, Octavia Butler, and Linda Hogan”. In GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (Eds.). Ecofeminist Literary Criticism - Theory, Interpretation, Pedagogy. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1998. p. 123-138., propunha, em “‘Skin Dreaming’: The Bodily Transgressions of Fielding Burke, Octavia Butler, and Linda Hogan”, uma desconstrução do referencial feminista no tocante à vertente ecofeminista da ecocrítica, fortemente associada ao essencialismo, especialmente devido às instâncias dicotômicas aí presentes (Cf. Greta GAARD e Patrick MURPHY, 1998GAARD, Greta; MURPHY, Patrick (Eds.). Ecofeminist Literary Criticism - Theory Interpretation, Pedagogy. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1998.). Em 2000, a pesquisadora norte-americana publicou Undomesticated Ground: Recasting Nature as a Feminist Space e é nesse espaço que ela retoma o que já reivindicava antes: a reescrita de certos conceitos que desestruturam a compreensão da natureza como um espaço de conexão com as mulheres. Para ela, à redefinição de natureza (enquanto conceito) segue-se a redefinição da(s) mulher(es). A natureza sempre teve “o papel de berço das ideologias opressoras” (Stacy ALAIMO, 2000______. Undomesticated Ground: Recasting Nature as a Feminist Space. Ithaca and London: Cornell University Press, 2000.),1 1 Todas as traduções, salvo quando indicado, são de minha inteira responsabilidade. mas, para além disso, “é também um espaço de possibilidade feminista, um território saturado, mas, de alguma forma, não domesticado” (p. 23). É também aqui que ela já defendia, junto a outras pensadoras (eco)feministas - Val Plumwood, Rose Braidotti, Donna Haraway -, a necessidade de reconceitualização de conceitos gendrados cujo uso não parecia responder adequadamente às necessidades feministas. Para Alaimo (2000), as feministas não precisam se afastar da natureza, porque tanto esta quanto as mulheres são socialmente construídas. E a natureza é “um lugar de muitas lutas por poder e significado” (p. 13). Nesse sentido, o retecimento e a releitura da natureza, das mulheres, dos seres humanos e da sua relação com o todo são necessárias e urgentes. Se isso não ocorreu ainda é devido a “uma rígida estreiteza de posições feministas predominantes” (ALAIMO, 2000, p. 8) que seguem Simone de Beauvoir em relação à separação entre mulheres e natureza. Essa crítica é retomada em 2008, conforme veremos mais adiante, ampliando o leque das feministas nomeadas. Na percepção de Alaimo, a natureza é um campo de resistência e de luta para as mulheres, tanto num contexto mais específico quanto num mais amplo, de resistência contra a opressão e a exploração mais generalizada do planeta.2 2 O argumento aqui colocado se origina no meu ensaio já referido (cf. Izabel BRANDÃO, 2003).

Anos mais tarde, em 2008, quando Alaimo retoma os mesmos argumentos - talvez nunca os tenha abandonado -, desta vez propõe as alterações conceituais que antes estavam apenas pré-formuladas e problematizadas, num momento de maturação teórica da pesquisadora. Parece-me ser este o grande salto proposto em “Feminismos trans-corpóreos e o espaço ético da natureza”, objeto deste comentário para a Revista Estudos Feministas, que publica, pela primeira vez em português, a tradução impecável de Susana Funck do ensaio de Alaimo.

Stacy Alaimo é pesquisadora e professora da University of Texas em Arlington, nos Estados Unidos, e tem atuado nas áreas de Estudos ambientais (literatura ambiental, filme, cultura e teoria; gênero e meio ambiente; saúde ambiental; justiça ambiental); Teoria crítica transdisciplinar (teoria crítica, teoria de gênero, estudos culturais, teorias ambientais, pós-humanismo, estudos animais; novo materialismo; feminismo material; o antropoceno), e Estudos culturais e literatura americana (literatura estadunidense dos séculos 19 e 20; filme, ativismo, performance, cultura visual, literaturas multiculturais e literaturas feministas), tratando de estabelecer conexões transversais entre ciência, filosofia, literatura e cultura popular, o que tem levado ao reconhecimento internacional de seu pensamento crítico. No seu site pessoal, hospedado pela própria universidade, ela informa que seus trabalhos já se encontram traduzidos do inglês para o português e o sueco (STACY ALAIMO Web Page, 2016STACY ALAIMO. Web Page. Disponível em: http://www.uta.edu/english/alaimo. Acesso em: 15/08/2016.
http://www.uta.edu/english/alaimo...
). Suas publicações têm sido consistentemente situadas no contexto da política ambiental, da ciência e das artes, com a referência da literatura, conforme já apontado. A ASLEASLE. ASLE Brasil. Disponível em: Disponível em: http://asle-brasil.com/ . Acesso em: 17/09/2016.
http://asle-brasil.com/...
(Association for the Study of Literature and the Environment) premiou a pesquisadora, em 2011, pelo seu trabalho com a ecocrítica.3 3 Há um braço da ASLE no Brasil. Para maiores informações, ver http://asle-brasil.com/. Acesso em 17/09/2016. Dos temas de interesse da pesquisadora, o mais relevante para este comentário é a teoria feminista material, relativa ao conceito de trans-corporalidade, que percebe o sujeito como político em múltipla escala, conceito este que vem sendo adotado em várias instâncias e debates feministas.4 4 Há vários vídeos protagonizados por Stacy Alaimo no YouTube que remetem às questões do feminismo material. Um desses vídeos é “Transcorporeality & Agency in the Antropocene” (ALAIMO, Eileen JOY, Karl STEEL, Ashby KINCH, Brandon JONES, Ali SPERLING, Ada SMAILBEGOVIC, and Angela Bennett SEGLER, 2014).

Entretanto, a jovem pesquisadora é ainda pouco conhecida, mesmo que este quadro esteja mudando gradativamente. Em 2010, em artigo para a ISLE (Interdisciplinary Studies in Literature and the Environment) sobre os novos direcionamentos para o ecofeminismo, Greta Gaard aponta o pouco reconhecimento dado a Alaimo e a outras estudiosas feministas que trabalham com o meio ambiente em várias instâncias crítico-teóricas.5 5 Ver referências completas ao final deste comentário. O artigo de Gaard foi traduzido por Marina Verçosa de Andrade e por mim, para o livro Traduções da cultura – perspectivas críticas feministas [prelo]. E aqui cabe uma observação: quando comecei a examinar o texto referente a este comentário, observei que Alaimo não fazia qualquer referência à ecocrítica feminista, vertente teórica que pode ser lida de forma intercambiada com ecofeminismo, embora seu pensamento seja afinado e alinhado com essa vertente crítica. Neste artigo de Gaard, que defende a ecocrítica feminista como termo reabilitador, o argumento aponta para o problema da má representação do ecofeminismo por suas associações com o essencialismo. É isso o que tem levado pesquisadoras como Alaimo (e muitas outras) a fugir de se autodescreverem como ecofeministas (ou ecocríticas feministas) e buscado outros campos teóricos, como a justiça ambiental ou o feminismo material, com os quais mais bem se identificam. Gaard (2010) fala em “abordagem interseccional” porque “sedimenta natureza, gênero, raça, classe e sexualidade, ainda que nem todos referenciais tratem de espécies” (p. 474). Considero relevante este esclarecimento, porque não percebo diferenças na visão ética e política defendida no ensaio de Alaimo, daquela defendida pela ecocrítica feminista. Essa consonância está registrada na introdução do livro International Perspectives in Feminist Ecocriticism, que aborda a questão dos novos feminismos,6 6 Oppermann (2013a) argumenta: “Transnacionalismo. Translocalismo. Ecoglobalismo. Ecocosmopolitanismo. Pós-humanismo. Ecologias Pós-Coloniais. Ecologia Queer. Trans-corporalidade. Novos Materialismos. Feminismos Materiais. Essas são as novas tendências que notadamente caracterizam a fase corrente dos estudos ecocríticos, que marcam distintamente a expansão do campo para áreas de preocupação mais inflexionadas ética e politicamente [...] agrupadas como aspectos de ‘uma terceira onda ecocrítica’[...]” (p. 19). especialmente da ecocrítica feminista. Gaard, Serpill OPPERMAN e Simon ESTOK (2013GAARD, Greta; OPPERMANN, Serpill; ESTOK, Simon (Eds.). International Perspectives in Feminist Ecocriticism. New York, London: Routledge, 2013.) reforçam o argumento sobre essa consonância, ao citar a visão da própria Alaimo sobre a ecocrítica feminista: “uma instância ética que insiste que as atividades e práticas de conhecimento dos humanos são tanto parte do vasto mundo quanto são também responsáveis por ele” (p. 2).

Passemos, agora, ao ensaio de Alaimo. A pesquisadora estabelece seis pontos de problematização em relação à sua proposta de reconceitualização de conceitos epistemológicos, cuja orientação é tanto ética quanto política no que diz respeito às mulheres e à natureza.7 7 Neste comentário, fiz um filtro das muitas e desafiadoras ideias defendidas no ensaio de Alaimo. É bem possível que muitas outras ideias relevantes tenham sido excluídas, mas a complexidade do ensaio é tal, que qualquer escolha se torna parcial. São eles: 1. A teoria feminista e seu afastamento da natureza; 2. A virada material na teoria feminista; 3. Agência sem sujeitos; 4. Um pouco fora de alcance: o espaço epistemológico como espaço ético; 5. Mapas de trânsito e 6. O tempo-espaço trans-corpóreo e os corpos tóxicos.

Segundo Alaimo (2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263.), nas últimas décadas, a teoria feminista, em grande parte, tem minimizado a importância da materialidade e focado na discursividade não material do corpo, que é percebido como algo “abiológico” e a matéria como “passiva, plástica” (p. 1). Para ela, o isolamento do corpo biológico não é desejável - nem ética nem política nem teoricamente -, pois isso provoca o rompimento de “suas interconexões evolucionárias, históricas e continuadas com o mundo material” (p. 1). O conceito de trans-corporalidade como lócus teórico surge no sentido de revisar esse rompimento, uma vez que é o “lugar em que as teorias corpóreas e ambientais se encontram e se misturam de forma produtiva” (p. 1). O movimento trazido por essa perspectiva é de um emaranhado, de um território que é, ao mesmo tempo, material e discursivo; que é natural e cultural, mas também biológico e textual. Todas essas interconexões remetem à interseccionalidade referida por Gaard (2010GAARD, Greta. “New Directions for Ecofeminism: Toward a More Feminist Ecocriticism”. ISLE Interdisciplinary Studies in Literature and Environment, p. 1-23, 2010. ) e já mencionada neste comentário.

É por essa razão que entendo o conceito de trans-corporalidade proposto por Alaimo (2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263.) como uma defesa da integração humano-ambiente, na qual humano e não humano estão imbricados um no outro: “a substância corpórea do humano é fundamentalmente inseparável do ‘ambiente’” (p. 1). É isso que qualifica a natureza como central para o humano, pois ela “está tão perto quanto a própria pele” (p. 1). Entende-se, assim, por ‘ambiente’ “o mundo de seres carnais, com suas próprias necessidades, exigências e ações” (p. 1). Esse espaço é, além disso, um território de “trocas mútuas e interconexões entre a corporalidade humana e o mais-que-humano” (p. 4). Há, portanto, uma identificação do prefixo “trans” com um movimento através de diferentes lugares: “um espaço epistemológico que reconhece as muitas vezes imprevisíveis e indesejáveis ações dos corpos humanos, das criaturas não humanas, dos sistemas ecológicos, dos agentes químicos, e de outros atores” (p. 2). Alaimo (2008) entende, dessa maneira, que a agência material permite uma epistemologia mais abrangente e que reforça a não separabilidade do humano e do ambiental.

A crítica de Alaimo (2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263.) à maior parte da teoria feminista diz respeito, conforme já apontado, à separação mulher-natureza, pois “transfere a ‘mulher’ da categoria de natureza para o âmbito da cultura” (p. 2). Essa discussão é calcada em teóricas clássicas feministas como Simone de Beauvoir, Sherry Ortner, Juliet Mitchel, Gayle Rubin e Monique Wittig. Entende-se a natureza, aqui, como stasis e essencialismo.8 8 A discussão relativa ao essencialismo tem mobilizado o pensamento feminista há décadas. Para uma visão recente acerca da polêmica em torno do conceito, ver Oppermann (2013a). A redefinição de conceitos - argumento iniciado em 1998 e ampliado em 2000 pela pesquisadora - levará ao empreendimento da “transformação dos dualismos marcados pelo gênero” (p. 2).

Ao falar sobre biologia em relação ao corpo, Alaimo trata do determinismo biológico como “espectro da biologia” e como contrassenso, a partir da percepção de teóricas como Linda Birke e Nancy Tuana. O corpo biológico é tanto “mutante e mutável como transformável” (p. 3 [itálico original]). A renovação celular, a remodelação dos ossos, dentre outros componentes do corpo, desmente o contexto de passividade do corpo biológico. À luz do pensamento feminista de Myra Hird, Alaimo discute a necessidade de uma ‘contra-biologia’ que pode trazer outros contornos a esse debate acerca do determinismo biológico, objetivando mostrar que a ‘natureza’ não humana tem outras resoluções para os tantos problemas relativos ao corpo, a exemplo da heterossexualidade compulsória. É nesse aspecto que fala sobre a intersexualidade das células, trazendo o exemplo do fungo Schizophylum, com seus vinte e oito mil sexos: “essa estranha biologia contesta não apenas o conteúdo e as ramificações da heterobiologia normativa, mas também seus argumentos de objetividade e neutralidade” (p. 3).

No contexto do que chama de “virada material na teoria feminista”, Alaimo (2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263.) defende o que entende como a materialidade levada a sério e aponta para o apagamento da substância da matéria na cultura, o que define o linguístico e o discursivo como o que é mais relevante, conforme já mencionado. A pesquisadora fala que três áreas do feminismo, informadas pelo pós-estruturalismo, pelo construcionismo social e pelos estudos culturais, ou seja, a teoria feminista corporal, o feminismo ambientalista e os estudos feministas da ciência, têm trabalhado “maneiras inovadoras de entender o mundo material”. Aqui incluídas estão Donna Haraway e Karen Barad, entre outras, que são “escritoras imersas no cosmos da chamada ‘virada linguística’, mas que se voltam para o âmbito extra-discursivo ou extra-linguístico” (ALAIMO, 2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263., p. 4). Essas estudiosas pedem a consideração do ‘agenciamento’, do ‘pensamento’ e da “dinâmica dos corpos e da natureza” (p. 4). Não se trata de negar a relevância da cultura, mas de perceber como a natureza humana e não humana traduz respostas, resistência ou outras formas que afetam a sua construção cultural. Assim, Alaimo propõe a necessidade de “repensar radicalmente a materialidade de corpos e naturezas” (2008, p. 4).

Haraway e Barad e outras estudiosas feministas (Vicky Kirby, Elizabeth Wilson, Moira Gatens, Claire Colebrook, Elizabeth Bray e Ladelle McWorther) buscam, no pensamento de Spinoza e Deleuze, Derrida, Foucault e Butler, estabelecer pontos de contato que não apenas problematizem a questão da materialidade, mas que sirvam nesse propósito de reconceitualização sobre o qual fala Alaimo.

Para a pesquisadora, a oposição natureza-cultura, quando percebida a partir do feminismo material, está embaralhada. O argumento de Alaimo pode ser esclarecido de duas formas: a primeira, através do pensamento de Barad, que aponta para o não essencialismo da materialidade, uma vez que sua constituição é permeada por “várias formas de poder e conhecimento, algumas mais ou menos ‘culturais’ e outras mais ou menos ‘naturais’ [...]” (p. 4). A outra, através do pensamento de Haraway e seu construto teórico do ciborgue, um “construto social e tecnológico” cuja matéria é tanto biológica quanto tecnológica, tanto carnal quanto mecânica, e que estimula a relação entre humano-animal-máquina, mas cuja compreensão material é rejeitada pelo discursivo. Essa figura que dilui o limite entre humano e tecnologia não é (ou raramente é) aceita como ‘amálgama’ de ‘humano’ e ‘natureza’. Não sem razão, HarawayHARAWAY, Donna. O manifesto das espécies companheiras - cães, pessoas e alteridade significante. [fragmento] In: BRANDÃO, Izabel et al. (Orgs.). Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). [prelo] hoje se volta para os caninos como uma forma de resposta da realidade da interação humano-mundo mais-que-humano.9 9 O livro Traduções da cultura [prelo] incluiu uma parte de O manifesto das espécies companheiras – cães, pessoas e alteridade significante [fragmento] entre os artigos e ensaios traduzidos da Antologia. A tradução é de Ildney Cavalcanti e Amanda Prado.

Assim, para essas feministas, “é possível repensar radicalmente a materialidade exatamente ampliando, reconfigurando e retrabalhando muitos dos modelos teóricos da virada linguística” (ALAIMO, 2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263., p. 5). A virada material, portanto, compreende a matéria no contexto do que é material-semiótico; do que é intercorporal; performativo, agencial e letrado. A orientação discursiva está limitada na corporalidade humana e “os feminismos materialistas ampliam a questão do humano ao considerar modelos de extensão, interconexão, troca e separação” (ALAIMO, 2008, p. 5). A perspectiva filosófica ambientalista trata da agência da natureza, o que permite abertura para outros enfoques capazes de explicitar tal filosofia.

No tocante à “Agência sem sujeitos”, o ponto-chave da discussão empreendida é o aprendizado de que a natureza e o corpo têm agência e, por isso, precisam ser reconceituados no sentido de “reconhecer suas ações” (ALAIMO, 2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263., p. 5). Essa, no entanto, é uma questão “espinhosa”. Nem a natureza nem o corpo são tábula rasa que aguardam a inscrição da cultura. Vale, aqui, trazer uma fala anterior de Alaimo, porque ela repercute nessa percepção aprofundada: o corpo é “um lugar de conexão vibrante, de memória e conhecimentos históricos” (ALAIMO, 1998, p. 126), o que o aponta como lócus identitário demarcado pelas suas interações tanto com a cultura quanto com a natureza. O humano e o mundo mais-que-humano constroem pontes entre si na direção dessa compreensão relativa à agência. Um exemplo bastante importante e que remete à questão do corpo como ator leva a Linda Birke e à ilustração relativa à ação dos órgãos internos, mostrando que os corpos biológicos não são passivos. Fala-se que, num processo de doença, o corpo reage se um processo de cura se estabelece. Se o corpo reage, qual será o lugar dessa reação? Estaria ela na matéria simplesmente, ou tal questão é maior do que a materialidade que a comporta? Para que essa agência corporal aconteça, não é necessária uma ação que extrapole o contexto material? Parece-me que o encaminhamento desse debate implica expandir a discussão para outras dimensões teóricas também presentes nas preocupações ecocríticas feministas, mas que não aparecem na discussão de Alaimo.10 10 Uma dessas dimensões é a da espiritualidade, que vem sendo debatida em outras instâncias de discussão da ecologia e do meio ambiente. Cf. o livro Women and Nature? Beyond Dualism in Gender, Body, and Environment, editado por Douglas A. VAKOCH e Sam MICKEY [no prelo] que tem, pelo menos, um artigo que trata dessa questão em associação à problematização de mulheres latinas imigrantes.

Outra relevante ilustração é sobre a agência da natureza que remete para as respostas que ela dá quando o humano interfere. E, aqui, a agência é recíproca, conforme o pensamento de Carolyn Merchant trazido pela pesquisadora: quando o humano faz algo contra a natureza, ela reage. Nesse sentido, a ética ambientalista é de parceria, para o bem e/ou para o mal. A reação - a agência - da natureza configura-se como furacões, enchentes, demonstrando a semelhança entre humano-e-natureza, mas, apesar disso, nem um nem outro é “livre ou autônomo” (ALAIMO, 2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263., p. 6).11 11 Um exemplo bem atual, no contexto do Brasil, que ilustra o argumento de Alaimo, diz respeito à ruptura da Barragem de Mariana, em novembro de 2015, ainda hoje sem nenhuma resposta concreta para o ocorrido. A situação provocada pela Mineradora Samarco repercutiu penosamente para a comunidade da vila de Bento Rodrigues, em Minas Gerais. A ação irresponsável da Companhia causou o desastre ambiental no leito do Rio Doce e em extensões que levam a outros estados. Durante a última conferência do clima, a Paris 2015 COP 21, foi a ex-presidenta Dilma Roussef quem afirmou que levará, no mínimo, uma década para que a região seja completamente recuperada. Os danos físicos e psíquicos causados às pessoas são incalculáveis.

O pensamento de Judith Butler em relação à agência é também discutido por Alaimo. Segundo a filósofa feminista, o sujeito não é o “seu próprio ponto de partida” (p. 6). São as matrizes de poder que levam o sujeito a agir. Essa percepção, para Alaimo (2008), faz sentido para os humanos, mas precisa ser “reformulada para fazer sentido para criaturas não-humanas” (p. 7).

Da complexa discussão fica a perspectiva de que é preciso, também, reconceituar “agência”: “Nem modelos humanistas do sujeito, nem os modelos psicanalíticos do sujeito irracional são suficientes” (ALAIMO, 2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263., p. 7). É nessa direção que a reconceituação de agência material proposta por Alaimo vem através de feministas como McWhorter, Barad e Haraway. Desta última, recupera-se o símbolo do coiote trapaceiro como uma das figuras inspiradoras que reconceitua a natureza da agência em termos mais amplos - mais-que-humanos.

Já a proposição de reconceituação de Barad é mais abstrata. Percebe agência não como atributo, mas como algo diferente e que envolve outras coisas. Esse ponto é bastante complexo e merece aprofundamento. O conceito de agência de Barad sai do contexto humanista tradicional: “A agência é uma questão de intra-ação; é uma representação, não algo que alguém ou alguma coisa tem [...]. A agência não é absolutamente um atributo - é um ‘fazer/ser’ em sua intra-atividade” (ALAIMO, 2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263., p. 8). A “intra-atividade” é maior do que a “interatividade” porque envolve trocas interiores e cujas fronteiras não são claras.12 12 Nesse artigo sobre o conceito de intra-ação de Barad, o autor argumenta que os termos “relata” e “creata” associam-se à intra-ação, que entende a construção de todos os dados a partir das pessoas e, assim sendo, refletem suas preocupações e interesses. Por essa razão, uma entrevista, por exemplo, não coleta dados “inocentes”. Há, nesse contexto, uma agência sendo trabalhada e construída. Logo, agências diferentes influenciam a construção dos dados. É assim, portanto, que “relata” deve ser entendida como intra-ações que “consistem tanto de agências humana quanto não-humana” (Kit Stender PETERSEN, 2014, p. 4). Nesse sentido, pode-se compreender a materialidade como sendo discursiva e as práticas discursivas como materiais. A assimilação e a aceitação dessa complexa elaboração de Barad ainda levarão tempo, mas, conforme Alaimo, a ética ambiental pede agência no mundo mais-que-humano.

Outras ilustrações acerca do corpo como território selvagem, no qual uma espécie de agência material é possível, são referidas por Alaimo. Ela fala, por exemplo, do desejo sexual como uma dessas formas de agência material no espaço ‘selvagem’ do corpo: “quando nosso próprio corpo nos desconcerta, incomoda, decepciona, ou adoece” (p. 9). Essas são ações não valorizadas. São ações que, conforme Susan Wendell, mostram o corpo negativo com suas ações não legitimadas. Habitualmente, o corpo é tratado pelas feministas a partir de um “tom celebrativo”. Porém, isso apenas repercute como “o fracasso em confrontar totalmente ‘a experiência do corpo negativo’” (ALAIMO, 2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263., p. 9).

É por essa razão que o debate acerca da materialidade leva à discussão das agências corpóreas. A referência às doenças crônicas (artrite reumatoide, lupus, entre outras) remete à agência negativa da corporalidade, sua gravidade e seus sintomas reais, cuja variável está no cotidiano e trabalha, entre outras coisas, a mobilidade da dor. É o joelho que não funciona, é o sol que pode provocar dores, forças que agem constantemente. É nesse sentido que a intra-atividade de que fala Barad deve ser compreendida também. Os fatores podem ser desconhecidos, como os das doenças do sistema autoimune; conhecidos, como os sintomas de estresse, da dieta; ou suspeitos, como o tempo, ou a temperatura. A pesquisadora aponta para o fato de que as agências corpóreas podem tanto ser positivas quanto negativas ou neutras: “o corpo tem suas próprias forças, interligadas e continuamente intra-agindo com matérias mais amplas e com forças sociais, econômicas, psicológicas e culturais” (ALAIMO, 2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263., p. 9). Essa compreensão é útil e ética. Nesse sentido, nem o próprio corpo pode ter o seu domínio presumido. Da mesma forma que não se pode, segundo a pesquisadora, presumir-se o controle do mundo (p. 9).13 13 Debora SLICER (1998) fala na nossa surdez ao discurso do corpo que nos informa o tempo todo que devemos ouvi-lo. Esse discurso não ouvido funciona no sentido da intra-ação de Barad. A cultura nos impõe essa surdez ao estabelecer fronteiras do que é ou não saudável.

Ao falar no espaço epistemológico - contíguo com a pele - como espaço ético, Alaimo aponta para o contexto mais-que-humano, uma espécie de espaço mais amplo, que mostra a irrepresentabilidade da natureza (Catriona Sandilands), e o fato de não termos o controle do mundo (Donna Haraway):

O espaço epistemológico torna-se ético na filosofia ambiental e na teoria feminista, porque repele presunções de domínio humano que reduziriam a matéria da vida a meros ‘recursos’ para o consumo humano (ALAIMO, 2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263., p. 10),

abrindo espaço para a intra-ação, em uma ética que “abraça o mundo selvagem” (p. 10). Assim é que o corpo não é um “espaço externo”; nem “estranho”, ou “desconhecido, ou “inimaginável”, como muitas vezes o espaço da natureza selvagem é pensado.

Linda Hogan ilustra o pensamento de Alaimo a partir do corpo pensado como um espaço trans-corpóreo por onde podemos viajar. Trata-se, portanto, de uma jornada pelo interior do corpo: nesse espaço “que une a interioridade corporal com os processos de vida mais-que-humana” (p. 10). A isso a pesquisadora chama de tempo-espaço epistemológico, “por estarem sempre agindo e sofrendo ações, corpos humanos e naturezas não humanas se transformam, desdobram e, assim, resistem à categorização, conhecimento absoluto e controle” (p. 10).

É nesse sentido que o corpo nos ensina as “práticas de conhecimento” (Moira Gattens) a ele associadas, com seus “limites e capacidades”, um corpo percebido como “um processo e seus significados e capacidades [que] vão variar de acordo com seu contexto”. É aqui que seus limites e capacidades revelam suas interações com o ambiente.

Nas referências aos “Mapas de trânsito”, Alaimo vai tratar do lugar onde essa ética material é possível, que é no espaço pós-humano, também um espaço trans-corpóreo, afinal, o humano não é mais o centro da ação (Andrew Pickering): “O mundo nos cria no mesmo e único processo no qual o criamos” (ALAIMO, 2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263., p. 11). É aí que ocorre o tráfego entre corpos e naturezas, cujos caminhos precisam ser descobertos; cujas interconexões também precisam ser percebidas e cujas posições éticas, políticas também precisam ser conhecidas.

Nesses mapas, Alaimo discute a questão do trânsito referente às comidas e à trans-corporalidade: produção de comida, lixo resultante das comidas industrializadas; adoecimento do sujeito. Uma das autoras trazidas é Gatens, que, inspirada em Spinoza, fala sobre a identidade do corpo humano que “está radicalmente aberto ao mundo ao seu redor e pode ser composto, recomposto e decomposto por outros corpos” (ALAIMO, 2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263., p. 12). Embora não haja referência a Bakhtin, essa relação fenomenológica do corpo em constante transformação mostra o caráter dinâmico e dialógico das interações humano-mais-que-humano na natureza, em encontros “bons” e “ruins” com o ambiente: doenças, enfermidades, morte, tudo relacionado à saúde ambiental. A discussão, aqui, remete para os alimentos geneticamente modificados e a ciência ainda por descobrir - (ou revelar) como essas trocas afetam humanos e o mundo mais-que-humano.

Alaimo (2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263.) também trata do pensamento de Kirby que, a partir de Derrida, articula o como lemos a natureza ao que ela “escreve”: “Natureza, cultura, corpos, textos, tudo se desdobra num ‘campo de força de diferenciação sem limite’” (p. 13). Essa percepção de feministas como Kirby faz o que Alaimo (2008) chama de um “pós-escrito às muitas invocações feministas à natureza como um espaço não domesticado - literalmente não-doméstico”; “a corporalidade e a textualidade humanas se ampliam sem esforço - para o mundo mais-que-humano” (p. 13). Essa referência vem já de seu pensamento anterior, que aponta para a natureza como um território feminista por excelência, que defende o seu caráter de resistência e de luta, o que, hoje, a pesquisadora define como agência material que mostra as inter/intra-ações do humano com o mundo mais-que-humano. Aqui, palavra, corpo e terra dispensam distinção.

Alinhada ao pensamento de Val Plumwood e de Donna Haraway, Alaimo (2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263.) trata da reconceitualização do humano e da natureza em suas interconexões: os animais comunicam-se em uma linguagem que tem sido negada pelos humanos. Isso revela o descaso humano em relação aos aspectos “mentais” da natureza. O corpo e a natureza são constituídos do mesmo material, trabalhado “simultaneamente pelas forças da evolução, da história natural e humana, das desigualdades políticas, das contestações culturais, dos processos químicos e biológicos [...]” (p. 13). As distinções rígidas são simplistas e, nesse sentido, confirmar as dicotomias entre mente e matéria, cultura e natureza é manter uma compreensão historicamente equivocada.

O espaço trans-corpóreo - que “circunda o humano” (p. 14) - pede mais do que uma relação humano-natureza de interface. Isso é perigoso, pois este é um “lugar por excelência da devastação ambiental causada pelo consumo (exagerado), pelos dejetos e pela devastação” (ALAIMO, 2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263., p. 14). Segundo a pesquisadora, habitamos várias naturezas: o corpo, a terra, a cultura, e precisamos de “práticas sustentáveis de sobrevivência” (p. 14). A negação da extrema direita das consequências em relação ao aquecimento global, ao uso de pesticidas e herbicidas no ambiente doméstico mostra o contexto perverso das interações humano-natureza: as toxinas que impregnam os corpos humanos são levadas pelas águas, pelo ar, pelos tecidos das criaturas que viajam. As consequências disso aparecem nos processos de adoecimento humano e mais-que-humano. Por isso a necessidade de aprendizado do como buscar apoio em práticas sustentáveis de sobrevivência que podem ser encontradas no contexto da trans-corporalidade, espaço ético que “pode oferecer um caminho de conexão entre nossa existência corporificada e sobrevivência das criaturas não-humanas” (p. 14).

O último ponto de comentário do ensaio de Alaimo (2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263.) refere-se ao “tempo-espaço trans-corpóreo dos corpos tóxicos”. A conexão tempo-espaço informa que um serve ao outro para que as ações, a agência do mundo material, se revelem. A ética trans-corpórea tem um tempo-espaço para o “funcionamento de corpos humanos e não-humanos” (p. 15). Esse espaço tanto é lugar de prazer quanto de perigo: “o prazer do desejo, da surpresa, da interconexão e da emergência viva, bem como da dor, da toxicidade, da incapacidade e da morte” (p. 15). A ideia de que nossos corpos são tóxicos em certa medida chega como um choque, mas compreender esse espaço como um espaço ético da trans-corporalidade nos leva à reflexão de que somos mesmo um “caldo químico em seu sangue e tecidos” (p. 15). A ilustração chega a partir do caso Inui,14 14 O caso Inui, da contaminação do leite materno por agrotóxico, é assunto de reportagem do New York Times à época do ocorrido, em 2005. Ver Williams (2005). A contaminação de leite materno por agrotóxico no Brasil é também assunto de vários trabalhos que podem ser acessados na internet. O link http://www.ufmt.br/ppgsc/arquivos/857ae0a5ab2be9135cd279c8ad4d4e61.pdf é de uma dissertação de mestrado, na UFMT, de autoria de Danielly Cristina de Andrade PALMA (2011). sobre a contaminação do leite materno por agrotóxico: “o trânsito das toxinas revela a interconexão entre vários movimentos, como saúde ambiental, saúde ocupacional” (Florence WILLIAMS, 2005WILLIAMS, Florence. “Toxic Breast Milk?”. The New York Times Magazine, 09/01/2005. Disponível em: Disponível em: http://www.nytimes.com/2005/01/09/magazine/toxic-breast-milk.html?_r=0 . Acesso em: 18/08/2016.
http://www.nytimes.com/2005/01/09/magazi...
), dentre outros. A saúde do planeta está em risco.

Assim, a percepção do humano e da natureza como interligados, mais do que uma simples compreensão romântica, implica diretamente atos políticos. A noção de corpos tóxicos permite que se re-imagine “a corporalidade humana, e a própria materialidade [...] como algo que sempre carrega traços da história, da posição social, da região e da distribuição não igualitária de risco” (p. 16). Semelhante aos anéis que marcam a idade das árvores, o corpo traz “o registro de nossa exposição à contaminação ambiental”.15 15 Compreendo esse registro como também demarcador no corpo espiritual do ser humano e na própria natureza, de toda a nossa história. O que somos e no que nos transformamos demarcam a nossa saúde física – material –, psíquica e espiritual. Da mesma forma, também a natureza carrega essas informações. Alaimo não faz essa discussão, mas não vejo como excluí-la, porque mais do que matéria, somos outras coisas também. Além disso, tais aspectos têm sido trazidos nos debates que problematizam a natureza, seja através da ecocrítica, da ecocrítica feminista, ou de outras terminologias análogas como o ambientalismo, entre outras.

Alaimo (2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263.) aponta para os corpos tóxicos como corpos não essencialistas. São, isto sim, corpos pós-humanistas, cuja porosidade permeia

mesmo as experiências supostamente ‘individuais’ e a compreensão que temos de nosso corpo [que] são mediadas pela ciência, pela medicina, pela epidemiologia, e pelo redemoinho de subculturas, organizações, páginas da Web e revistas dedicadas a expor perigos e a cultivar práticas e prazeres alternativos e revolucionários (p. 16).

O espaço do corpo tóxico, segundo Alaimo (2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263.), é trans-corpóreo. Não separa ambientalismo, saúde humana nem justiça social. Faz, assim, um serviço ao feminismo por mostrar nosso intercâmbio com o “ambiente”. Esse espaço epistemológico mostra os limites do conhecimento humano, pois o tornar-se de outras criaturas é imprevisível. Essa linguagem precisa ser aprendida por nós.

Em conclusão, o ensaio de Alaimo (2008ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263.) nos traz reflexões que nos levam para outros caminhos de debates dentro da teoria feminista. O seu pensamento traz a novidade do conceito de trans-corporalidade, que ajusta nosso olhar para perceber a natureza e o humano como plenamente afinados, embora possam estar, paradoxalmente, em conflito, em movimentos em que a agência está em constante (intra)movimento. No dizer de Serpill Opperman (2010), a

trans-corporalidade [...] naturaliza o corpo ao colocá-lo dentro de ‘um mundo de criaturas biológicas, de ecossistemas, e de substâncias feitas pelo humano e xenobióticas’ (p. 104).

A artificialidade da separação entre discursivo e material precisa ser ultrapassada a partir desse “novo” espaço ético da natureza.

Referências

  • ALAIMO, Stacy. “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”. In: ALAIMO, Stacy; HECKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 237-263.
  • ______. Undomesticated Ground: Recasting Nature as a Feminist Space Ithaca and London: Cornell University Press, 2000.
  • ______. “‘Skin, Dreaming’: The Bodily Transgressions of Fielding Burke, Octavia Butler, and Linda Hogan”. In GAARD, Greta; MURPHY, Patrick D. (Eds.). Ecofeminist Literary Criticism - Theory, Interpretation, Pedagogy Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1998. p. 123-138.
  • ALAIMO, Stacy; JOY, Eileen; STEEL, Karl; KINCH, Ashby; JONES, Brandon; SPERLING, Ali; SMAILBEGOVIC, Ada e SEGLER, Angela Bennet. “Transcorporeality & Agency in the Antropocene”. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xpMrHmLNW7c Acesso em: 18/08/2016.
    » https://www.youtube.com/watch?v=xpMrHmLNW7c
  • ASLE. ASLE Brasil Disponível em: Disponível em: http://asle-brasil.com/ Acesso em: 17/09/2016.
    » http://asle-brasil.com/
  • BRANDÃO, Izabel. “Afterword”. In: VAKOCH, Douglas; MICHAEL, Sam (Eds.). Women and Nature? Beyond Dualism in Gender, Body, and Environment [prelo]
  • ______. “Ecofeminismo e literatura: novas fronteiras críticas”. In: BRANDÃO, Izabel; MUZART, Zahidé (Orgs.). Refazendo Nós: ensaios sobre mulher e literatura Florianópolis: Mulheres, 2003. p. 461-474.
  • GAARD, Greta; OPPERMANN, Serpill; ESTOK, Simon (Eds.). International Perspectives in Feminist Ecocriticism New York, London: Routledge, 2013.
  • GAARD, Greta. “New Directions for Ecofeminism: Toward a More Feminist Ecocriticism”. ISLE Interdisciplinary Studies in Literature and Environment, p. 1-23, 2010.
  • GAARD, Greta; MURPHY, Patrick (Eds.). Ecofeminist Literary Criticism - Theory Interpretation, Pedagogy Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1998.
  • HARAWAY, Donna. O manifesto das espécies companheiras - cães, pessoas e alteridade significante [fragmento] In: BRANDÃO, Izabel et al. (Orgs.). Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010) [prelo]
  • OPPERMANN, Serpil. “Feminist Ecocriticism. A Poshumanist Directionin Ecocritical Trajectory”. In: GAARD, Greta; OPPERMANN, Serpill; ESTOK, Simon (Eds.). International Perspectives in Feminist Ecocriticism . New York, London: Routledge , 2013a. p. 19-36.
  • ______. “Feminist Ecocriticism: the New Feminist Settlement”. Feminismo/s 22, Alicante, Centro de Estudios sobre la Mujer de la Universidad de Alicante, p. 17-46, diciembre 2013b.
  • ______. “Book Review of Stacy Alaimo”. In: ALAIMO, Stacy. Bodily Natures: Science, Environment, and the Material Self Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 2010.
  • PALMA, Danielly Cristina de Andrade. Agrotóxicos em leite humano de mães residentes em Lucas do Rio Verde - MT 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá. Disponível em: Disponível em: http://www.ufmt.br/ppgsc/arquivos/857ae0a5ab2be9135cd279c8ad4d4e61.pdf Acesso em: 18/08/2016.
    » http://www.ufmt.br/ppgsc/arquivos/857ae0a5ab2be9135cd279c8ad4d4e61.pdf
  • PETERSEN, Kit Stender. “Interviews as Intraviews: A Hand Puppet Approach to Studying Processes of Inclusion and Exclusion among Children in Kindergarten”. Reconceptualizing Educational Research Methodology, v. 5, n. 1, 2014. Disponível em: Disponível em: http://journals.hioa.no/index.php/rerm Acesso em: 21/08/2016.
    » http://journals.hioa.no/index.php/rerm
  • SLICER, Debora. “Toward an Ecofeminist Standpoint Theory: Bodies as Grounds”. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick (Eds.). Ecofeminist Literary Criticism - Theory, Interpretation, Pedagogy Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1998. p. 49-73.
  • STACY ALAIMO. Web Page Disponível em: http://www.uta.edu/english/alaimo Acesso em: 15/08/2016.
    » http://www.uta.edu/english/alaimo
  • WILLIAMS, Florence. “Toxic Breast Milk?”. The New York Times Magazine, 09/01/2005. Disponível em: Disponível em: http://www.nytimes.com/2005/01/09/magazine/toxic-breast-milk.html?_r=0 Acesso em: 18/08/2016.
    » http://www.nytimes.com/2005/01/09/magazine/toxic-breast-milk.html?_r=0
  • 1
    Todas as traduções, salvo quando indicado, são de minha inteira responsabilidade.
  • 2
    O argumento aqui colocado se origina no meu ensaio já referido (cf. Izabel BRANDÃO, 2003______. “Ecofeminismo e literatura: novas fronteiras críticas”. In: BRANDÃO, Izabel; MUZART, Zahidé (Orgs.). Refazendo Nós: ensaios sobre mulher e literatura. Florianópolis: Mulheres, 2003. p. 461-474.).
  • 3
    Há um braço da ASLE no Brasil. Para maiores informações, ver http://asle-brasil.com/. Acesso em 17/09/2016.
  • 4
    Há vários vídeos protagonizados por Stacy Alaimo no YouTube que remetem às questões do feminismo material. Um desses vídeos é “Transcorporeality & Agency in the Antropocene” (ALAIMO, Eileen JOY, Karl STEEL, Ashby KINCH, Brandon JONES, Ali SPERLING, Ada SMAILBEGOVIC, and Angela Bennett SEGLER, 2014).
  • 5
    Ver referências completas ao final deste comentário. O artigo de Gaard foi traduzido por Marina Verçosa de Andrade e por mim, para o livro Traduções da cultura – perspectivas críticas feministas [prelo].
  • 6
    Oppermann (2013aOPPERMANN, Serpil. “Feminist Ecocriticism. A Poshumanist Directionin Ecocritical Trajectory”. In: GAARD, Greta; OPPERMANN, Serpill; ESTOK, Simon (Eds.). International Perspectives in Feminist Ecocriticism . New York, London: Routledge , 2013a. p. 19-36.) argumenta: “Transnacionalismo. Translocalismo. Ecoglobalismo. Ecocosmopolitanismo. Pós-humanismo. Ecologias Pós-Coloniais. Ecologia Queer. Trans-corporalidade. Novos Materialismos. Feminismos Materiais. Essas são as novas tendências que notadamente caracterizam a fase corrente dos estudos ecocríticos, que marcam distintamente a expansão do campo para áreas de preocupação mais inflexionadas ética e politicamente [...] agrupadas como aspectos de ‘uma terceira onda ecocrítica’[...]” (p. 19).
  • 7
    Neste comentário, fiz um filtro das muitas e desafiadoras ideias defendidas no ensaio de Alaimo. É bem possível que muitas outras ideias relevantes tenham sido excluídas, mas a complexidade do ensaio é tal, que qualquer escolha se torna parcial.
  • 8
    A discussão relativa ao essencialismo tem mobilizado o pensamento feminista há décadas. Para uma visão recente acerca da polêmica em torno do conceito, ver Oppermann (2013a).
  • 9
    O livro Traduções da cultura [prelo] incluiu uma parte de O manifesto das espécies companheiras – cães, pessoas e alteridade significante [fragmento] entre os artigos e ensaios traduzidos da Antologia. A tradução é de Ildney Cavalcanti e Amanda Prado.
  • 10
    Uma dessas dimensões é a da espiritualidade, que vem sendo debatida em outras instâncias de discussão da ecologia e do meio ambiente. Cf. o livro Women and Nature? Beyond Dualism in Gender, Body, and Environment, editado por Douglas A. VAKOCH e Sam MICKEY [no prelo] que tem, pelo menos, um artigo que trata dessa questão em associação à problematização de mulheres latinas imigrantes.
  • 11
    Um exemplo bem atual, no contexto do Brasil, que ilustra o argumento de Alaimo, diz respeito à ruptura da Barragem de Mariana, em novembro de 2015, ainda hoje sem nenhuma resposta concreta para o ocorrido. A situação provocada pela Mineradora Samarco repercutiu penosamente para a comunidade da vila de Bento Rodrigues, em Minas Gerais. A ação irresponsável da Companhia causou o desastre ambiental no leito do Rio Doce e em extensões que levam a outros estados. Durante a última conferência do clima, a Paris 2015 COP 21, foi a ex-presidenta Dilma Roussef quem afirmou que levará, no mínimo, uma década para que a região seja completamente recuperada. Os danos físicos e psíquicos causados às pessoas são incalculáveis.
  • 12
    Nesse artigo sobre o conceito de intra-ação de Barad, o autor argumenta que os termos “relata” e “creata” associam-se à intra-ação, que entende a construção de todos os dados a partir das pessoas e, assim sendo, refletem suas preocupações e interesses. Por essa razão, uma entrevista, por exemplo, não coleta dados “inocentes”. Há, nesse contexto, uma agência sendo trabalhada e construída. Logo, agências diferentes influenciam a construção dos dados. É assim, portanto, que “relata” deve ser entendida como intra-ações que “consistem tanto de agências humana quanto não-humana” (Kit Stender PETERSEN, 2014PETERSEN, Kit Stender. “Interviews as Intraviews: A Hand Puppet Approach to Studying Processes of Inclusion and Exclusion among Children in Kindergarten”. Reconceptualizing Educational Research Methodology, v. 5, n. 1, 2014. Disponível em: Disponível em: http://journals.hioa.no/index.php/rerm . Acesso em: 21/08/2016.
    http://journals.hioa.no/index.php/rerm...
    , p. 4).
  • 13
    Debora SLICER (1998SLICER, Debora. “Toward an Ecofeminist Standpoint Theory: Bodies as Grounds”. In: GAARD, Greta; MURPHY, Patrick (Eds.). Ecofeminist Literary Criticism - Theory, Interpretation, Pedagogy. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1998. p. 49-73.) fala na nossa surdez ao discurso do corpo que nos informa o tempo todo que devemos ouvi-lo. Esse discurso não ouvido funciona no sentido da intra-ação de Barad. A cultura nos impõe essa surdez ao estabelecer fronteiras do que é ou não saudável.
  • 14
    O caso Inui, da contaminação do leite materno por agrotóxico, é assunto de reportagem do New York Times à época do ocorrido, em 2005. Ver Williams (2005). A contaminação de leite materno por agrotóxico no Brasil é também assunto de vários trabalhos que podem ser acessados na internet. O link http://www.ufmt.br/ppgsc/arquivos/857ae0a5ab2be9135cd279c8ad4d4e61.pdf é de uma dissertação de mestrado, na UFMT, de autoria de Danielly Cristina de Andrade PALMA (2011PALMA, Danielly Cristina de Andrade. Agrotóxicos em leite humano de mães residentes em Lucas do Rio Verde - MT. 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá. Disponível em: Disponível em: http://www.ufmt.br/ppgsc/arquivos/857ae0a5ab2be9135cd279c8ad4d4e61.pdf . Acesso em: 18/08/2016.
    http://www.ufmt.br/ppgsc/arquivos/857ae0...
    ).
  • 15
    Compreendo esse registro como também demarcador no corpo espiritual do ser humano e na própria natureza, de toda a nossa história. O que somos e no que nos transformamos demarcam a nossa saúde física – material –, psíquica e espiritual. Da mesma forma, também a natureza carrega essas informações. Alaimo não faz essa discussão, mas não vejo como excluí-la, porque mais do que matéria, somos outras coisas também. Além disso, tais aspectos têm sido trazidos nos debates que problematizam a natureza, seja através da ecocrítica, da ecocrítica feminista, ou de outras terminologias análogas como o ambientalismo, entre outras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2016
  • Aceito
    12 Jan 2017
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br